EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ___ VARA DA FAZENDA PÚBLICA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA C/ PEDIDO LIMINAR O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seus Promotores de Justiça do GAESP - Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor que esta subscrevem, com fundamento e legitimado pelos arts. 1º, inciso III, 3º, 5º caput e §§ 1º e 2º, 6º, 37 caput, 127 caput, 129, incisos II e III e 196/198 da Constituição Federal; arts. 1º, caput e 25, inciso IV, alínea "a", da Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); arts. 2º, § 1º, 4º caput, 5º, inciso III, 6º, 7º, incisos I, II, IV e XII da Lei nº 8.080/90; art. 22 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); arts. 91, caput, 97, inciso III e parágrafo único, 217, 219 caput e parágrafo único, nºs "1, 2 e 4", 222, inciso IV e 223, inciso I, da Constituição do Estado de São Paulo; arts. 1º caput e 103, incisos I, VII, alínea "a" e VIII, da Lei Complementar Estadual n.º 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo); arts. 2º, §§ 1º e 2º, 3º, inciso IV, alíneas "a" e "c", 7º, 8º, inciso I, 9º, inciso IV, 12, inciso I e 18, inciso III, da Lei Complementar Estadual nº 791/95 (Código de Saúde do Estado de São Paulo); arts. 53 e 55 da Lei Estadual nº 10.083/98 (Código Sanitário do Estado de São Paulo); arts. 1º, inciso IV, 5º caput, 11, 12, 18 e 21, da Lei Federal n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); arts. 81, parágrafo único, incisos I, II e III, 82, inciso I, 84 caput e §§ 3º e 4º e 87 da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); vem ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, observando-se o procedimento comum ordinário, em face do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO (FAZENDA PÚBLICA MUNICIPAL DE SÃO PAULO) que deverá ser citado na pessoa do Excelentíssimo Sr. Procurador Geral do Município, em seu Gabinete, situado à Rua Maria Paula, nº 270 - Centro, nesta Capital, pelos motivos de fato e de direito a seguir descritos. I - DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO A Constituição Federal, em seu artigo 129, II, determina ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias à sua garantia. A Carta Magna conceituou em seu artigo 197 que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde". Essa conceituação teve como móvel possibilitar a atuação do Ministério Público frente aos Poderes Públicos, em prol da sociedade. A Constituição Federal, igualmente, em seus artigos 127 caput e 129, inciso III; a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 91; a Lei Federal nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) em seu art. 25, inciso IV, alínea "a"; e a Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em seu art. 103, inciso VIII, cometem ao Ministério Público legitimação para o ajuizamento da ação civil pública para a defesa, em juízo, dos interesses difusos e coletivos. Ressalte-se a conclusão da Organização Pan-americana da Saúde e do Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde, enumerada na Série Direito e Saúde nº 1 - Brasília, 1994, afirmou que "O conceito de ações e serviços de relevância pública, adotado pelo artigo 197 do atual texto constitucional, norma preceptiva, deve ser entendido desde a verificação de que a Constituição de 1988 adotou como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana. Aplicado às ações e aos serviços de saúde, o conceito implica o poder de controle, pela sociedade e pelo Estado, visando zelar pela sua efetiva prestação e por sua qualidade. Ao qualificar as ações e serviços de saúde como de relevância pública, proclamou a Constituição Federal sua essencialidade. Por "relevância pública" deve-se entender que o interesse primário do Estado, nas ações e serviços de saúde, envolve sua essencialidade para a coletividade, ou seja, sua relevância social. Ademais, enquanto direito de todos e dever do Estado, as ações e serviços de saúde devem ser por ele privilegiados. A correta interpretação do Artigo 196 do texto constitucional implica o entendimento de ações e serviços de saúde como conjunto de medidas dirigidas ao enfrentamento das doenças e suas seqüelas, através da atenção médica preventiva e curativa, bem como de seus determinantes e condicionantes de ordem econômica e social. Tem o Ministério Público a função institucional de zelar pelos serviços de relevância pública, dentre os quais as ações e serviços de saúde, adotando as medidas necessárias para sua efetiva prestação, inclusive em face de omissão do Poder Público". Dessa forma, está o Ministério Público legitimado para a propositura da presente ação civil pública. II – DOS FATOS O Ministério Público do Estado de São Paulo recebeu representação assinada pelo Deputado Estadual Paulo Teixeira e pelo Presidente da "SEMPREVIVA Associação Brasileira de Combate à Hipertermia Maligna", noticiando o seguinte quadro: "...Nos últimos anos foram verificadas no Estado de São Paulo algumas mortes "misteriosas", causadas por uma síndrome pouco conhecida no Brasil tanto pelos cidadãos como pelos médicos: a Hipertermia Maligna. A Hipertermia Maligna foi descrita formalmente pela primeira vez em 1960, pelos médicos australianos Michael Denborough e Richard Lovell. Eles descreveram o caso de um jovem que manifestara profundo pavor acerca de uma operação a que ia ser submetido a curto prazo, dado que vários dos seus parentes tinham morrido por razões inexplicadas durante anestesias. Antecipadamente prevenido, o anestesiologista suspendeu a intervenção quando esse paciente começou a exibir suores, febre e rigidez muscular durante as fases iniciais da anestesia. Empreenderam-se imediatamente medidas enérgicas para sustentação das funções vitais e o paciente sobreviveu - o primeiro caso documentado de hipertermia maligna. A Hipertermia Maligna é uma síndrome ligada a uma herança genética, sem sinais clínicos aparentes, desencadeada por anestésicos gerais halogenados (como o Sevoflurano, Halotano, Enflurano, Isoflurano e o Desflurano), bem como por relaxantes musculares despolarizantes, tal qual a Succinilcolina (Quelicin). Não sendo diagnosticada e tratada em tempo hábil (com Dantroleno Sódico), a Hipertermia Maligna leva o paciente à morte em 70% dos casos. Embora não se tenha ainda dados estatísticos sobre a HM no Brasil, sabe-se, com base em estatísticas norte-americanas, que sua incidência é de 1:10.000 anestesias em crianças e 1:50.000 em geral. A cifra torna-se relevante quando tomamos conhecimento que só no Estado de São Paulo são realizadas cerca de 6.000 anestesias por dia, ou 180.000 por mês. A ocorrência de pelo menos um caso por mês é corroborada pelas freqüentes consultas realizadas à HOT LINE HM (plantão 24 horas), serviço existente no Hospital São Paulo/UNIFESP Universidade Federal de São Paulo. Um fator agravante da Hipertermia Maligna é o fato de estar ligada a uma herança genética dominante. Assim, cada ocorrência, à semelhança da ponta de um iceberg, esconde, muitas vezes, extensos grupos familiares sob risco de desenvolver essa crise caracterizada por sua alta morbidade. Os exames pré-operatórios de rotina não são capazes de identificar o problema, o qual só pode ser identificado através de testes de laboratório, após biopsia muscular - procedimento complexo que exige a ida do paciente a um dos dois Centros de Diagnósticos existentes no Brasil e sua internação. Devido a alta mortalidade da síndrome e as dificuldades inerentes ao exame para a detecção da suscetibilidade (principalmente em crianças, devido a necessidade da retirada de fragmento muscular da coxa, com cerca de um grama, para o exame) a conduta mais adequada à priori é a preventiva. A recente descoberta da Hipertermia Maligna, como acima relatado, acrescida do período de latência que historicamente subsiste entre uma descoberta científica e sua divulgação, mormente nos países em desenvolvimento, entre os quais se inscreve o Brasil, configura um quadro de grande desconhecimento da síndrome entre a classe médica brasileira de um modo geral. O próprio currículo das Faculdades de Medicina não privilegia a síndrome, a qual talvez seja discutida apenas, no nível de pós-graduação, entre os médicos que optam pela Anestesiologia. O desconhecimento dessa mortal síndrome, a falta de diagnóstico correto (a HM tem sido constantemente confundida com choque anafilático) e o conseqüente tratamento inadequado têm levado muitas pessoas à morte. As principais vítimas tem sido crianças e jovens, como pragmaticamente se tem observado, embora a HM possa se desencadear e levar a óbito pessoas de qualquer idade e sexo. Mesmo os anestesiologistas (categoria que melhor conhece a síndrome) têm necessitado de suporte da HOT LINE, para o diagnóstico diferencial, quando se deparam com um caso de HM. A questão agrava-se com o desconhecimento da HM pelos outros médicos integrantes da equipe cirúrgica, que os impede de prestar ao anestesiologista o auxílio necessário na hora do atendimento emergencial de um paciente em crise. E o tempo, fator fundamental nesses casos, representa a diferença entre a vida e a morte (grifo nosso). O desconhecimento da HM, acrescido da ausência de estatísticas brasileiras sobre ela, tem levado à assunção apriorística e não fundamentada, do seu caráter "raro"(grifo nosso). Em decorrência, não tem havido por parte dos responsáveis pela Administração Hospitalar (Diretores Clínicos) interesse na aquisição do único medicamento existente em todo o mundo para a prevenção e tratamento da HM - o Dantroleno Sódico (grifo nosso). Muitos hospitais se encontram neste caso. Os hospitais públicos alegam problemas com a disponibilização de verbas; os hospitais particulares evitam a compra da droga destinada a uma emergência cirúrgica (jogando com a probabilidade da sua não ocorrência e com a vida dos pacientes) em função de uma maior lucratividade. Falta visão preventiva; falta a compreensão de que a prevenção pode reduzir os custos de um complicado atendimento emergencial ou até erradicar o número de mortes decorrentes da síndrome. Internando-se em hospitais que não possuem o medicamento (de fabricação norte americana, sem similar no Brasil), muitas vezes desconhecendo sua própria condição de suscetibilidade, o paciente acaba tendo sua vida entregue ao conhecimento que o anestesiologista, o cirurgião ou outros integrantes da equipe cirúrgica tenham sobre a HM. O conhecimento da HM, pelo médico, é fundamental para a realização de uma boa anamnese que investigue acidentes anestésicos na família do paciente, da qual pode ocorrer a suspeição de suscetibilidade e o seu conseqüente encaminhamento aos Centros especializados para o diagnóstico por biópsia muscular. Em casos de cirurgias eletivas, em pacientes com biópsia positiva, o médico conhecedor da gravidade desse diagnóstico, certamente enviará seu pacientes (sic) com biópsia positiva, o médico conhecedor da gravidade deste diagnóstico certamente tomará, junto com sua equipe, as medidas preventivas necessárias para evitar a morte do paciente...". Ante a relevância pública da questão, instaurou-se o inquérito civil público em anexo e indagou-se sobre ela ao Conselho Regional de Farmácia e às Secretarias Estadual e Municipal da Saúde. A Secretaria Estadual da Saúde, sensível ao problema, informou que o "Dantroleno Sódico" estaria em breve à disposição das Unidades Hospitalares Estaduais, face sua inclusão na relação de medicamentos a serem adquiridos por meio de licitação. Disse, ainda, que estariam sendo agendados cursos e palestras sobre a Hipertermia Maligna, a serem realizados após a aquisição do Dantroleno Sódico. O Conselho Regional de Farmácia remeteu parecer do Dr. Marcelo Polacow Bisson - CRF.SP 13573, Coordenador da Comissão de Farmácia Hospitalar do CRF.SP, no seguinte sentido: "Com a finalidade de subsidiar resposta ao Ofício nº 1112/99 do Ministério Público de São Paulo, informo a V.Sª. que o medicamento Dantrolene Sódico é produzido regularmente no Brasil pelo Laboratório Cristália Produtos Químicos Farmacêuticos Ltda., com sede em Itapira-SP, conforme dados extraídos do P.R. Vade Mecun ed. 1999, e confirmados via telefônica com o laboratório na data de ontem, tendo com preço de fábrica fixado em R$ 2.485,00 (dois mil, quatrocentos e oitenta e cinco reais) o Kit com 3 caixas (36 ampolas). A indicação principal de tal medicamento é para a Hipertermia Maligna, não tendo substitutos farmacológicos disponíveis no mercado nacional, tendo inclusive sua utilização disciplinada no Parecer nº 55/99 do Conselho Federal de Medicina, e aprovado em Sessão Plenária (grifo nosso). Conforme protocolo apresentado pela Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo (SAESP), o tratamento da crise é realizado com Dantrolene Sódico: Injeções intravenosas de 2 mg/kg, repetidas até o controle da crise. A maioria dos casos é controlada com doses inferiores a 10 mg/kg. Com relação a disponibilidade e abastecimento nos hospitais é necessário que o mesmo seja padronizado pelas Comissões de Farmácia e Terapêutica e sejam comprados ou licitados para estarem disponíveis, sejam estes hospitais de natureza pública ou privada. Um dos problemas enfrentados é o alto custo deste medicamento e sua utilização ocasional, a qual não raras vezes pode levar ao vencimento do prazo de validade e prejuízo ao hospital, mas no entendimento deste coordenador é imprescindível que os hospitais que utilizem agentes anestésicos desencadeadores de Hipertermia Maligna obrigatoriamente devam ter estocados em suas farmácias tal medicamento, mesmo sobre (sic) o risco de vencimento". O Município de São Paulo, através de sua Secretaria Municipal de Saúde, acolhendo manifestação da "Seção Técnica de Estoque Central", respondeu ao ofício nos seguintes termos: "Em atenção ao solicitado temos a informar que o medicamento Dantroleno Sódico não faz parte do elenco de medicamentos padronizados em SMS, com aquisição regular e periódica. Devido ao seu uso ser específico e bastante esporádico, uma vez que no H.M.M.E. Dr. Mário de Moraes Altenfelder Silva, não houve nenhum caso no período de nove anos, assim sendo para que não ocorra o vencimento do medicamento face ao uso bastante raro informamos que o Hospital possui uma verba de pronto pagamento para a aquisição do referido medicamento, em caso de necessidade, uma vez que haverá tempo hábil para a administração do medicamento ao paciente que apresentar a Hipertermia Maligna.". Ante tal resposta, frontalmente contrária às afirmativas feitas por outras autoridades no assunto, no sentido da necessidade de se ter o Dantroleno (ou Dantrolene) Sódico à mão durante qualquer procedimento anestésico com utilização de anestésicos halogenados ou de relaxantes musculares despolarizantes, face à inexistência de sinais clínicos anteriores aparentes nas pessoas portadoras da síndrome e à necessidade de pronta utilização do medicamento, sob risco de morte, em caso de manifestação da HM, indagou-se à "Sempre Viva" sobre a conduta da Secretaria Municipal da Saúde. A resposta, subscrita também pelo Professor Titular da Disciplina de Anestesiologia, Dor e Terapia Intensiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Dr. José Luiz Gomes do Amaral, uma das maiores, senão a maior autoridade no assunto na América Latina, foi nos seguintes termos: "Em referência ao vosso ofício..., teria a assinalar nossa estranheza face ao pronunciamento dos técnicos da Prefeitura do Município de São Paulo...Em Ofício assinado pelas Senhoras...há referências equivocadas sobre Hipertermia Maligna. Em primeiro lugar, referem-se as referidas técnicas que o uso do Dantrolene Sódico, medicamento específico para o tratamento de Hipertermia Maligna, tem uso bastante esporádico. Desconhecem as senhoras que temos quase semanalmente casos de hipertermia maligna registrados em São Paulo e submetidos a orientação da hot-line da Hipertermia Maligna no Hospital São Paulo. Espera-se que haja registrado, pelo menos, um caso de hipertermia maligna para cada 50.000 anestesias e o número de procedimentos anestésicos no estado de São Paulo não é inferior a 6.000 procedimentos ao dia (o que provavelmente configura um caso de Hipertermia Maligna a cada 10 dias)(grifo nosso). Em segundo lugar, referem-se as técnicas à possibilidade de administração de dantrolene sódico após um episódio de hipertermia maligna, mencionando que haveria tempo hábil para aquisição e administração do medicamento em caso de necessidade. Desconhecem as técnicas a evolução desta doença, que muito mais freqüentemente é fulminante, levando o paciente à morte eventualmente minutos após o início da síndrome (grifo nosso). Ainda a assinalar que a doença acontece na maior parte das vezes nos primeiros minutos após a exposição a agentes anestésicos e muito dificilmente depois da interrupção da administração da anestesia. Assim, surgindo um episódio de Hipertermia maligna, ou o paciente é tratado imediatamente ou as conseqüências não raramente fatais (a mortalidade pode chegar a 70 % para os casos não tratados) serão inevitáveis. Seria como comprar extintor de incêndio depois do início da catástrofe (grifo nosso).". Junto com a resposta supradescrita veio o exemplar do periódico técnico de fls. 71 do I.C., de onde se podem extrair informações importantes sobre a questão, todas confirmando as afirmativas acima transcritas. O Ministério da Saúde também prestou informações relevantes. Disse o Diretor-Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que, embora não haja, ainda, norma técnica ou jurídica, federal, sobre a obrigatoriedade dos hospitais manterem em depósito o Dantroleno Sódico, medicamento registrado perante o Ministério da Saúde e indicado para o tratamento da hipertermia maligna, dois textos oficiais faziam referência à questão. O primeiro deles é a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.363/93, que determina aos médicos que praticam anestesia que: Art. 1º, VI - "...para a prática da anestesia deve o médico anestesista avaliar previamente as situações de segurança do ambiente hospitalar, somente praticando o ato anestésico se estiverem asseguradas as condições mínimas para a sua realização, cabendo ao diretor-técnico da instituição garantir tais condições. Art. 2º. Entendem-se por condições mínimas de segurança para a prática de anestesia as a seguir relacionadas: ...IV - Deverão estar à disposição do anestesista equipamentos, gases e drogas que permitam a realização de qualquer ato anestésico com segurança e desfibrilador, cardioscópio, sistema ventilatório e medicações essenciais para utilização imediata, caso haja necessidade de procedimento de manobras de recuperação cardiorespiratória; O outro documento é o projeto de lei estadual de São Paulo nº 867/GESP, de 1999 (DOE SP DE 21/10/99), prevendo a obrigatoriedade de todos os hospitais e postos de saúde do Estado de São Paulo, públicos ou particulares, terem em seus estoques, especialmente, o Dantroleno Sódico, sob pena de multa (fls. 88/90 do I.C.). O Parecer Consulta nº 1.412/97 do Conselho Federal de Medicina (fls. 91/95 do I.C.), confirmam integralmente a existência da Hipertermia Maligna e o Dantroleno Sódico como única droga capaz de atenuar drasticamente os efeitos letais de sua manifestação. Por fim, ouvido no GAESP a respeito da questão, disse o Professor José Luiz Gomes do Amaral que a Hipertermia Maligna é doença atualmente bastante conhecida dos anestesiologistas e que o Dantroleno Sódico, hoje, também é fabricado no Brasil e já está disponível em vários hospitais particulares. Afirmou, ainda, que somente em hospitais e pronto socorros são realizadas práticas anestésicas com as substâncias que desencadeam a hipertermia maligna; que o medicamento tem validade de três (3) anos; que todos os potenciais portadores dessa doença, submetidos ao procedimento anestésico desencadeante, estariam protegidos se, em cada unidade de saúde respectiva, tivesse ao menos um "kit" do Dantroleno Sódico; que o custo do medicamento é semelhante ao de um antibiótico de última geração, largamente utilizados em hospitais hoje em dia, muitas vezes sem tanta eficácia na manutenção da vida do paciente quanto o Dantroleno Sódico; que quase 100% das anestesias em crianças são realizadas com substâncias desencadeantes da doença, taxa que, para os adultos, seria em torno de 40%. III - DO DIREITO É princípio fundamental da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, sendo certo que seus objetivos fundamentais são, entre outros, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais, além de promover o bem de todos (arts. 1º e 3º da CF). Além disso, todos os cidadãos têm direito à vida e à saúde, sendo obrigatório à administração pública observar os princípios da legalidade e da eficiência (arts. 5º, 6º e 37 da CF). É disposição legal em vigor que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (art. 2º, § 1º da Lei nº 8.080/90). Não custa lembrar, ainda, que o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração Direta e Indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS, sendo certo que essas ações e serviços do SUS obedecem, entre outros, aos princípios da universalidade de acesso, em todos os níveis de assistência, a qual deve ser integral, assim entendida como conjunto articulado e contínuo de ações e serviços curativos, individuais e coletivos, exigidos em cada caso e em todos os níveis de complexidade. Também são princípios a serem obedecidos pelos serviços públicos de saúde os da igualdade da assistência e o da capacidade de resolução em todos os níveis de assistência (arts. 4º e 7º da Lei nº 8.080/90). Afirma a Constituição Estadual de São Paulo que a saúde é direito de todos e dever do Estado, direito este que será garantido mediante acesso universal e igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis, bem como mediante atendimento integral ao indivíduo, abrangendo a promoção, preservação e recuperação de sua saúde. Além disso, é diretriz do SUS neste Estado a universalização da assistência de igual qualidade com instalação e acesso a todos os níveis, dos serviços de saúde à população urbana e rural, sendo sua atribuição (do SUS) a assistência integral à saúde (arts. 219, 222 e 223 da Constituição do Estado de São Paulo). No mesmo sentido são as normas do Código de Saúde do Estado de São Paulo (Lei Complementar Estadual nº 791/95). Como se sabe, o Município de São Paulo, embora não esteja habilitado como Gestor do SUS, integra-o por força Constitucional, já que tem o dever de prestar assistência e atendimento de saúde pública. É isso que está dito no artigo 23 da CF: "É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: ...II - cuidar da saúde e assistência pública...". No mesmo sentido o artigo 30 da Carta Magna: "Compete aos Municípios: "...VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população...". Portanto, quando o Município de São Paulo presta atendimento de saúde à população em geral - obrigação constitucional - em seus prédios, com seus recursos e através de seus funcionários (licenciados ou não, reunidos em "cooperativas" ou não) integra, pretenda ou não, o Sistema Único de Saúde, nos termos do artigo 4º da Lei nº 8.080/90 e, como tal, submete-se às suas regras, diretrizes e princípios. Quando a Prefeitura Municipal, pelo Decreto nº 37.847/99, criou o "Sistema Integrado Municipal de Saúde - SIMS", reconhecendo a obrigação constitucionalmente prevista, disse que o mesmo tem por objetivo "aperfeiçoar as ações de saúde, uniformizando a utilização e otimização dos recursos humanos e físicos disponíveis no Município de São Paulo, visando prover de condições indispensáveis os serviços de saúde prestados à população". Salientou ainda, no mesmo Decreto, que o SIMS é integrado pelo "Plano de Atendimento à Saúde - PAS; Administrações Regionais de Saúde ARS; Plano de Atendimento Pré-Hospitalar - APH; Hospital do Servidor Público Municipal - HSPM e Grupo de Voluntários da Saúde - GVS". Aliás, quando, através da Lei nº 11.866/95, o Município de São Paulo criou o "PAS", disse no seu artigo 1º que seu objetivo era "melhorar o atendimento nas áreas da Saúde sob a responsabilidade da Prefeitura"! Diretrizes fundamentais do SUS, segundo o artigo 198 da CF, são, entre outras, o atendimento integral (que pode ser entendido como a disponibilização à população de todos os meios materiais e humanos conhecidos da medicina para a recuperação de sua saúde) e a prioridade para as atividades preventivas (que pode ser entendida como a disponibilização à população de todos os recursos conhecidos da medicina para evitar riscos à sua saúde). A conjugação dessas duas diretrizes, de aplicação imediata, está repetida nos artigos 5º, inciso III, 7º da Lei nº 8.080/90. Neste quadro, é inadmissível que o Município de São Paulo não disponibilize, possuindo permanentemente no estoque de cada um de seus hospitais e pronto socorros, ou seja, de suas unidades de prestação de serviços e ações de saúde à população, gerenciadas diretamente ou através de seus funcionários licenciados (unidades do PAS - Plano de Atendimento à Saúde, Pronto Socorros e do Hospital do Servidor Público Municipal), onde se realize qualquer procedimento anestésico com anestésicos voláteis (halotano, enflurano, isoflurano, sevoflurano e desflurano) ou com relaxantes musculares despolarizantes (succinilcolina - "Quelicin"), no mínimo um "kit" válido do medicamento DANTROLENO (ou DANTROLENE) SÓDICO, colocando em risco de morte parcela não desprezível da população, potencialmente portadora da HIPERTERMIA MALIGNA. Tal omissão torna-se ainda mais afrontante quando se constata que tem fundamento em apreciação que confronta o custo e o benefício da medida, preferindo o Poder Público Municipal colocar em risco a vida dos pacientes potencialmente portadores da síndrome, a ter em sua prateleira um medicamento nem tão caro, cuja validade é bastante longa. Essa atitude, que contraria todos os princípios e regras legais em vigor sobre a vida e a saúde pública, deve ser corrigida o quanto antes pelo Poder Judiciário, pois diariamente pessoas estão correndo risco em hospitais e pronto socorros sob responsabilidade última do Poder Público Municipal, pois esses pacientes podem ser portadores da Hipertermia Maligna e, ao serem medicados com as substâncias acima mencionadas, poderão manifestá-la e, com grande probabilidade, vir a morrer, sem que os profissionais desses locais, eventualmente, sequer venham a saber a causa da morte ou, sabendo-a, não a divulguem para não ter que responder por ela, já que causada por pura negligência. Vale lembrar, ainda, o disposto no artigo 22 da Lei n. 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor), segundo o qual "Os órgão públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código". Não se trata, é bom lembrar desde logo, de adentrar-se na discricionariedade administrativa, pois a eficácia material da administração traduz-se no adimplemento de sua competência ordinária e na execução e cumprimento pelos entes administrativos dos objetivos que lhe são próprios. Em suma, quanto ao resultado daquilo que lhe foi atribuído constitucionalmente, principalmente na área de serviços de saúde pública, a Administração Pública, no caso Municipal de São Paulo, não tem discricionariedade, muito menos outra saída que não a de atingir aquilo que está previsto na lei, o que não está ocorrendo no presente caso. Trata-se, pois, de balizar a discricionariedade administrativa pelos preceitos constitucionais e legais, para que não se consagre a arbitrariedade e a ineficiência. Como salientado por Tomás-Ramón Fernández, deve-se "conceder à administração - nos limites casuisticamente permitidos pela Constituição - tanta liberdade quanto necessite para o eficaz cumprimento de suas complexas tarefas" (Arbitrariedad y discrecionalidad. Barcelona: Civitas, 1991. p. 117). Vislumbra-se, portanto, a necessidade do Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV), em defesa dos direitos fundamentais e serviços essenciais previstos pela Carta Magna - vida, dignidade da pessoa humana, saúde - garantir a eficiência dos serviços públicos de saúde prestados ou sob responsabilidade Constitucional do Município de São Paulo, inclusive responsabilizando as autoridades omissas. Repise-se que a Constituição Federal, em seu Art. 129, inciso II, confere ao Ministério Público a tarefa institucional de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos por ela assegurados. O Ministério Público tem um dever irrenunciável e impostergável de defesa do povo, cabendo-lhe exigir dos Poderes Públicos e dos que agem em atividades essenciais o efetivo respeito aos direitos constitucionalmente assegurados na prestação dos serviços relevantes e essenciais. Como já salientado anteriormente, embora os portadores da Hipertermia Maligna possam ser considerados como uma minoria da população, pela estatística conhecida de casos sabemos que ela pode, mesmo assim, atingir parcela não desprezível de pessoas, caracterizando a existência enquanto risco a número indeterminado de indivíduos - do direito difuso, ou - enquanto danos sofridos pelos portadores da síndrome, por falta do medicamento em tela - do interesse individual homogêneo, conforme definidos no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor. E não se alegue, como certamente pretenderá a Administração Pública Municipal, a famosa série de dificuldades, como a necessidade de cumprir a burocracia administrativa (necessidade de concorrência pública) para justificar sua confessada omissão. A lei garante ao administrador público, em casos de urgência, os meios e a necessária discricionariedade para, entre aqueles (meios) disponíveis, escolher o ou os que melhor e mais rapidamente atinjam o resultado exigido pela Lei. O que a Lei quer e o Poder Judiciário determinará, neste caso, é o atendimento médico universal, integral, igualitário, preventivo e eficiente, dentro da competência recebida, dentro do S.U.S, pelo Município de São Paulo. O modo como o Governo Municipal o fará não deve interessar ao Ministério Público ou ao Judiciário, desde que se atinja o resultado imediatamente e, obviamente, dentro dos limites legais. Portanto, nem se alegue que o Ministério Público ou o Judiciário estejam pretendendo governar, ou retirar do Governante a discricionariedade inerente à atividade administrativa. O que se pretende com esta ação é garantir o resultado previsto na Constituição e nas normas infraconstitucionais quanto ao serviço de saúde prestado publicamente pelo Município de São Paulo, em suas unidades. Cabe ao Governo Municipal, dentro de sua liberdade regrada (discricionariedade), valer-se dos meios que tiver à mão para alcançá-lo, adquirindo o medicamento de quem lhe vender mais barato, inclusive no mercado mundial. Por fim, não se deve descartar importante conseqüência da negligência do Poder Público Municipal para com os portadores da Hipertermia Maligna e que venham a sofrer conseqüências pela falta do Dantroleno Sódico em suas unidades: a obrigação de indenizar as vítimas ou suas famílias pela omissão culposa, que redundará em gastos muito superiores à compra do medicamento. IV - DO PEDIDO Diante de todo o exposto, o Ministério Público do Estado de São Paulo requer a citação do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO (FAZENDA PÚBLICA MUNICIPAL DE SÃO PAULO), na pessoa do Excelentíssimo ProcuradorGeral do Município para que, querendo, conteste no prazo legal a presente ação, sob pena de suportar os efeitos da revelia (CPC, art. 319), que deverá, ao final, ser julgada inteiramente procedente, para condenar o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO (Fazenda Pública Municipal de São Paulo) à obrigação de fazer, no prazo de noventa (90) dias, consistente na disponibilização permanente, em todos os seus estabelecimentos ou unidades de atendimento à saúde integrantes do ‘Sistema Integrado Municipal de Saúde - SIMS", gerenciados ou não diretamente (o que inclui as unidades entregues às cooperativas de funcionários), onde se realizem procedimentos com anestésicos voláteis (halotano, enflurano, isoflurano, sevoflurano e desflurano) ou com relaxantes musculares despolarizantes (succinilcolina), ou seja, principalmente hospitais e prontos socorros, no mínimo um (1) "kit" do medicamento DANTROLENO (ou DANTROLENE) SÓDICO no próprio estoque de cada uma dessas unidades. Nos termos do art. 11 da Lei nº 7.347/95, requer-se seja o requerido condenado ao cumprimento dessa obrigação de fazer, no prazo acima alvitrado, sob pena de cominação de multa diária no valor de R$100.000,00 (cem mil reais) em caso de descumprimento, para cada unidade onde tal desabastecimento for constatado, quantia que deverá ser revertida para o fundo de reconstituição dos interesses metaindividuais lesados, criado pelo art. 13 daquela Lei. O pedido acima, por guardar estreita relação com a manutenção da vida humana, é relevante e urgente. Diante da urgência reclamada pela espécie, aguarda-se pela concessão liminar da antecipação da tutela pretendida , nos termos do disposto no artigo 273, inciso I, do CPC e artigo 84, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor, aplicável por força do art. 21 da Lei nº 7.347/85. A medida liminar urge e impera, porquanto o provimento da pretensão, a final, poderá ser inócuo para prevenir danos à saúde pública, inclusive deixando de evitar algumas eventuais mortes. Relevante é o fundamento da lide e presentes o "fumus boni juris" e o "periculum in mora". Requer-se, finalmente, seja oficiado de forma circunstanciada ao Conselho Regional de Farmácia para, decorridos trinta (30) dias do término do prazo fixado, antecipadamente ou ao final, para o cumprimento da obrigação de fazer, seja providenciada visita em todas as unidades de prestação de serviço público municipal de saúde, onde sejam utilizadas as substâncias desencadeantes da Hipertermia Maligna (anestésicos voláteis e relaxantes musculares despolarizantes) para constatação da existência, em estoque no mesmo prédio, de no mínimo um "kit" de Dantroleno Sódico, ou seja, para comprovação da ordem judicial. Requer-se, por fim, que as intimações do Ministério Público sejam realizadas pessoalmente, na forma da lei, na rua Riachuelo, nº 115, 1º andar, sala 39 - Centro, São Paulo. Protesta-se pela produção de provas, por todos os meios admitidos em direito, sobretudo pela juntada de novos documentos e perícias, além de oitiva de testemunhas e peritos, caso se faça necessário. Em virtude de expressa previsão legal de dispensa de custas, tanto para o demandante quanto para o demandado, e da vedação constitucional ao recebimento de honorários advocatícios por parte do Ministério Público, deixa-se de postular nesse sentido. Dá-se à causa o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Termos em que, P. e E. Deferimento. São Paulo, 10 de outubro de 2000. Cesar Pinheiro Rodrigues João Luiz Marcondes Júnior Promotores de Justiça do Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor – GAESP – Órgão de Execução do Ministério Público do Estado de São Paulo – Rua Riachuelo, 115, 1º andar, Centro, São Paulo, tels. 3119-9088 ou 3119-9090.