Simpósio 2011 - Textos Completos

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LIVRO DE TEXTOS COMPLETOS E RESUMOS
DO XVI SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E
CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE
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Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca
Universitária UNIOESTE/Campus de Toledo
Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924
Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea (16. : 2011 :
Toledo – Pr.)
S612L
Livro de textos completos e resumos do XVI Simpósio
de Filosofia Moderna e Contemporânea [recurso eletrônico],
UNIOESTE - Toledo, realizado no período de 24 a 28 de
outubro de 2011 / Organização de Remi Schorn, Alexandre
Klock Ernzen, Libanio Cardoso, Luciano Carlos Utteich e
Ester Maria Dreher Heuser
, – Cascavel : EDUNIOESTE, 2011.
1 CD-ROM.
ISSN: 2176-2066
1. Filosofia moderna – Congresso 2. Filosofia contemporânea – Congresso I. Schorn, Remi, Org. II. Emzen, Alexandre
Klock, Org. III. Cardoso, Libanio, Org. IV. Utteich, Luciano
Carlos, Org. V. Heuser, Ester Maria Dreher, Org. V. T.
CDD 20. ed. 190.06
Nota: Os textos completos e os resumos que compõem este Livro digital foram publicados na íntegra, o
conteúdo é de inteira responsabilidade de seus autores.
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SUMÁRIO
A ARTE NA PERSPECTIVA DEWEYANA - Cosmo Rafael Gonzatto ...................... 10
A BASE EMPÍRICA E A CRÍTICA INTERSUBJETIVA - Angelo Eduardo da Silva 19
A CONCEPÇÃO DE GOVERNO NO PENSAMENTO DE THOREAU - Ayres Pablo
Bogoni ............................................................................................................................ 27
A CONCEPÇÃO DO EU NA ―ADVERTÊNCIA AO LEITOR‖ DE MONTAIGNE Gilmar Henrique da Conceição ...................................................................................... 34
A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL KANTIANA SEGUNDO HENRY E. ALLISON
- Douglas João Orben ..................................................................................................... 41
A DISSOLUÇÃO DO SUJEITO NA DOUTRINA NIETZSCHIANA DA VONTADE
DE POTÊNCIA - Marioni Fischer de Mello .................................................................. 50
A ESSÊNCIA DA EXPERIÊNCIA NA ―CRÍTICA DA RAZÃO PURA‖ [B] - Pedro
Henrique Vieira .............................................................................................................. 58
A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO CONSUMAÇÃO: UMA DEFINIÇÃO A
PARTIR DE JOHN DEWEY - Francieli Nunes da Rosa .............................................. 65
A GENEALOGIA DO NÃO EGOÍSMO EM NIETZSCHE - Fernando de Sá Moreira 79
A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA TRAGÉDIA EM NIETZSCHE - Lucas Sariom
de Sousa .......................................................................................................................... 86
A LEITURA FILOSÓFICA NO ENSINO DE FILOSOFIA NO NÍVEL MÉDIO Ezequiel Cardozo da Silva .............................................................................................. 95
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A LIBERDADE COMO O SENTIDO DA REVOLUÇÃO EM HANNAH ARENDT Altair de Souza Carneiro .............................................................................................. 104
A NEUROFILOSOFIA DE PATRICIA CHURCHLAND: APONTAMENTOS
INTRODUTÓRIOS - João F. Christofoletti................................................................. 113
A NOÇÃO HEIDEGGERIANA DE MUNDO E A ESPACIALIDADE EXISTENCIAL
DO DASEIN - Taciane Alves da Silva ......................................................................... 122
OS DESAFIOS DA APLICAÇÃO DE UMA AULA TEMÁTICO-REFLEXIVA Claudeonor Antônio de Vargas .................................................................................... 131
A PERCEPÇÃO OU A COISA E A ILUSÃO NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO
DE HEGEL - Christiano Tortato .................................................................................. 140
A REALIDADE DOS EVENTOS MENTAIS SEGUNDO POPPER - Mauricio
Smiderle ........................................................................................................................ 148
A RELAÇÃO ENTRE HOMEM E MUNDO EM SARTRE - Thayla Gevehr ........... 155
A RELAÇÃO ENTRE MORALIDADE E MAL EM IMMANUEL KANT - Ramon
Alexandre Matzenbacher .............................................................................................. 163
A RELAÇÃO TRABALHO – LIBERDADE – ALIENAÇÃO NA ANÁLISE DE
MARCUSE - Cleberson Odair Leonhardt .................................................................... 172
ANÁLISE DA NOÇÃO CARTESIANA DE PENSAMENTO - Marcos Alexandre
Borges ........................................................................................................................... 180
APONTAMENTOS ACERCA DA NOÇÃO HUSSERLIANA DE MUNDO - Devair
Gonçalves Sanchez ....................................................................................................... 191
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CIDADANIA, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE - Rosa de Lourdes
Aguilar Verástegui ........................................................................................................ 200
CONFLITO POLÍTICO E LIBERDADE NO PENSAMENTO DE MAQUIAVEL André Antoninho Fuhr ................................................................................................. 209
CONSCIÊNCIA E PSIQUISMO EM SARTRE - Flávia Augusta Vetter Ferri........... 216
CONSIDERAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL DE KANT Vanessa Brun Bicalho .................................................................................................. 224
DA CÓPIA AO SIMULACRO: DE DELEUZE AOS BEATLES - Evânio Márlon
Guerrezi ........................................................................................................................ 233
DAVID HUME E A PROBABILIDADE - Lazandir João da Silva ............................ 242
DEWEY E A ARTE PARA SENSIBILIZAR: A EXPERIÊNCIA DE UMA
APRENDIZAGEM DESFRAGMENTADA - Maria Dinora Baccin Castelli ............. 250
DEWEY E DENNETT – OS FUNDAMENTOS DO NATURALISMO EVOLUTIVO
E A QUESTÃO DO SIGNIFICADO - José Claudio Morelli Matos ........................... 263
EDUCAÇÃO E SOCIEDADE DE CONTROLE: A CONSTITUIÇÃO DE UM
INDIVÍDUO FLEXÍVEL - Daniel Salésio Vandresen ................................................ 273
EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE DE CONTROLE ENTRE DELEUZE E FOUCAULT
- Eduardo Alexandre Santos de Oliveira ...................................................................... 282
ENGAJAMENTO E LITERATURA EM SARTRE - Luiza Helena Hilgert .............. 290
ESCOLA E EMANCIPAÇÃO EM MARIO OSORIO - Tiago Anderson Brutti ........ 298
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ÉTICA E POLÍTICA NO PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL - Luiz Carlos de Abreu ..... 305
EXISTENCIALISMO SARTRIANO: A PERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIA
―LIVRE‖ - Ricardo Fabricio Feltrin ............................................................................. 313
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO NA GRÉCIA ANTIGA - Hélio Clemente Fernandes .. 321
GADAMER: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERFIL DA NOSSA ÉPOCA - Evanildes
Lorencena ..................................................................................................................... 330
INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO: NOTAS SOBRE CONDORCET E HANNAH
ARENDT - Sandra Janice Nunes ................................................................................. 339
IDENTIDADE PESSOAL EM DAVID HUME - Angélica Limberger ...................... 351
KANT E A METAFÍSICA DE SEU TEMPO - Danilo Miner de Oliveira ................. 359
MIMESIS E ALEGORIA: A FIGURA DE TÂNATOS EM AS INTERMITÊNCIAS DA
MORTE DE JOSÉ SARAMAGO - Toani Caroline Reinehr ....................................... 367
MISTÉRIO E PROBLEMA: CHAVE DE LEITURA PARA OS TEXTOS DE
GABRIEL MARCEL - José Andre de Azevedo .......................................................... 376
O CUIDADO DE SI PELA ESCRITA E LEITURA FILOSÓFICA - Leandro Nunes 385
O EMÍLIO DE ROUSSEAU: EDUCAÇÃO, NATUREZA E SOCIEDADE - Alexandre
José Krul ....................................................................................................................... 393
O ENCONTRO DA REALIDADE PENSANTE EM DESCARTES - Vanessa Henning
...................................................................................................................................... 401
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O HOMEM EM CONSTRUÇÃO DE SI MESMO SEGUNDO JEAN PAUL SARTRE
- Priscila Dias Batista Vieira ........................................................................................ 413
O HOMEM, SUAS FORÇAS ATIVAS E REATIVAS E O ENSINO DE FILOSOFIA
EM NIETZSCHE-DELEUZE - Angélica Lúcia Engelsing ......................................... 420
O IMPULSO VITAL NA FILOSOFIA DE BERGSON - Vinícius de Fontes ............ 428
O MEDO COMO PAIXÃO MOTIVADORA DO ESTADO CIVIL - Josete Soboleski
...................................................................................................................................... 436
O NATURALISMO BIOLÓGICO COMO ALTERNATIVA AO DUALISMO
SUBSTANCIAL E DE PROPRIEDADES - André Rosolem Sant‘Anna ................... 444
O PROCESSO EDUCATIVO NA PERSPECTIVA DE DEWEY: O PAPEL DA
AÇÃO REFLEXIVA NA CONSTRUÇÃO DE EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS Diego Bechi .................................................................................................................. 454
O QUE É O RACIONALISMO CRÍTICO? - Alexandre Klock Ernzen ..................... 462
O QUE PODEMOS CONHECER? - Remi Schorn ..................................................... 471
O RETRATO DE BASIL HALLWARD - Gleisson Roberto Schmidt ....................... 481
O SENTIDO ONTOLÓGICO DA NOÇÃO DE INCONSCIENTE SEGUNDO A
INTERPRETAÇÃO DE FREUD POR MICHEL HENRY - José Luiz Furtado ......... 488
O SISTEMA PARTIDARISTA SOB O OLHAR DE ARENDT E SCHMITT - Roberto
Lopes de Souza ............................................................................................................. 496
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O SUJEITO POLÍTICO: RAZÃO E SENTIMENTO EM ROUSSEAU - Rita de Cássia
Ferreira Lins e Silva ..................................................................................................... 504
OBJETO, SUJEITO E CERTEZA SENSÍVEL EM SUA UNIDADE: O CAPÍTULO
PRIMEIRO DA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO - Saulo Sbaraini Agostini ....... 513
PAUL RICOEUR: RECONHECIMENTO POSITIVO E RESPEITO (AUCHTUNG) Adriane da Silva Machado Möbbs ............................................................................... 521
PEDAGOGIA
DA
AUTONOMIA:
A
CURIOSIDADE
E
A
BUSCA
DO
CONHECIMENTO EM PAULO FREIRE - Hélio da Siqueira ................................... 528
RECONSTRUÇÃO DO ―EU‖ PELA LINGUAGEM - Vitor Leite Primo Diogo ...... 536
SADE: HOMOSSEXUALIDADE E SUPRESSÃO DA ESPÉCIE HUMANA - Evelin
Raupp Maia de Almeida ............................................................................................... 544
SCHOPENHAUER, UM MODELO DE EDUCADOR - Italo Ariel Zanelato .......... 551
TEETETO: DO SENTIDO DAS IMAGENS SENSÍVEIS À INTELECÇÃO - Gislene
Vale dos Santos ............................................................................................................ 563
TEMPORALIDADE APOLÍNEA - Roni Lenon da Silva ........................................... 574
THEODOR ADORNO: O CARÁTER NÃO-IDÊNTICO ENQUANTO REFERÊNCIA
CRÍTICA DA FILOSOFIA - Rosalvo Schütz .............................................................. 580
TOLERÂNCIA E REDESCRIÇÃO DE MUNDO: A FILOSOFIA NO PROJETO
NEOPRAGMÁTICO DE RORTY - Altair Alberto Fávero ......................................... 587
UM OUTRO OLHAR SOBRE A VIOLÊNCIA NA ESCOLA - Gomercindo Ghiggi 607
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UMA LEITURA INTERCULTURAL DE ERNST BLOCH - Paulo Hahn ................ 621
UMA
LINGUAGEM
PURAMENTE
MECÂNICA:
A
CONCEPÇÃO
DE
LINGUAGEM NA OBRA LEVIATHAN DE THOMAS HOBBES - Geder Paulo
Friedrich Cominetti ...................................................................................................... 641
VIVÊNCIA
x
EXPERIÊNCIA:
A
ATROFIA
DA
CONSCIÊNCIA
NA
MODERNIDADE SEGUNDO O PENSAMENTO DE WALTER BENJAMIN Shayene de Paula .......................................................................................................... 651
WITTGENSTEIN E O TEMA DA ESTÉTICA - Marco Aurélio Gobatto da Silva ... 659
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A ARTE NA PERSPECTIVA DEWEYANA - Cosmo Rafael Gonzatto
Universidade de Passo Fundo – UPF
[email protected]
Introdução
A arte nos últimos anos tornou-se objeto de estudos nas diferentes áreas do
conhecimento humano. Em sua obra ―Arte Como Experiência”, John Dewey descreve a
importância que a arte tem na vida do ser humano, e que a mesma não se expressa por si
mesmo é necessário que aconteça uma relação entre aquele que aprecia uma obra e
quem a criou, para que possa ser entendido o significado do conceito de experiência
existente nessa obra.
Esse estudo visa apresentar a importância concedida pelo autor à arte, mostrando que a
sua compreensão não pode estar apenas limitada a uma mera interpretação intelectual ao
observar uma obra. O principal conceito para que possamos compreender a filosofia
deweyana é o de experiência, esse que ocorre no processo de interação entre o ser vivo e
o meio, e é a partir do qual começa a existir a arte.
O texto está dividido em duas partes: na primeira mostraremos como o homem no
decorrer dos últimos anos tem se preocupado apenas em querer explicar que a obra de
arte é como uma espécie de objeto acabado e pronto e também mostrar o quanto ela se
faz presente no cotidiano do ser humano. E na segunda parte mostraremos como que ao
analisar uma obra de arte devemos tentar explorar a mesma, para que possamos
considerar toda a experiência que há nela e naquele que a criou, e não apenas se
limitando a interpretação que a sua razão lhe mostra.
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1. A arte na vida humana
Foi com o surgimento da religião que o homem começa a ter as primeiras
demonstrações de artes estéticas, onde as mesmas começaram a ser elaboradas a partir
das experiências de vida que um povo possuía. Até mesmo na idade média podemos
identificar exemplos de arte, onde a experiência humana, aliada à religião deram origem
a quadros com um valor estético. Como Dewey descreve nessas palavras logo a abaixo:
Em geral, essa Idade Média, popularmente considerada como a expressão do auge da
fé cristã no mundo ocidental, é uma demonstração do poder dos sentidos de absorver
as ideias mais altamentes espiritualizadas. (DEWEY, 2010, p. 102)
Como podemos observar na Idade Média a arte se transforma em vida, expressa as
sensações daquele que a cria, tentando transmitir as mesmas ao objeto. As cores que são
pintadas no quadros realçam alguns dos sentimentos humanos existentes aqui na terra,
até mesmo um tom diferente de tinta na pintura é capaz de querer expressar as lágrimas
existentes nesse mundo sensível.
Atualmente aqueles que glorificam as artes e colocando as mesmas em uma esfera
suprema, como em uma espécie de um pedestal, não conseguem perceber que muitas
dessas obras encontradas em museus e que hoje são cobiçadas pela grande maioria dos
homens, pelos seus valores altíssimos, foram objetos criados pelas gerações passadas
para gerar melhorias a vida de determinados povos, pois elas faziam parte do seu clã, da
sua cultura e da sua religião. Uma tigela que hoje é apreciada e admirada por todos, pela
a sua grande utilidade que tem aos homens, ou pelo valor raro que ela possui em um
determinado museu, em outras gerações quando ela foi criada nada mais era do que os
frutos da experiência de um povo que teve a necessidade de criar esse objeto para lhe
auxiliar nas atividades do seu cotidiano.
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Mas até mesmo em Atenas a arte já estava presente, os esportes atléticos, o teatro,
celebravam e reforçavam as tradições raciais e grupais, instruindo o próprio povo,
comemorando glórias e fortalecendo o orgulho cívico (DEWEY, 2010, p.66). Não foi
de se espantar que até mesmo os gregos atenienses, ao refletirem sobre a arte, tenham
formado uma opinião de que ela era um ato de reprodução ou de imitação. (DEWEY,
2010, p. 67). Platão observando todos esses fatores que aconteciam em sua época e o
sentido que as artes estavam refletindo nas emoções e ideias, e que eram associadas às
principais instituições da vida social, tomou como justificativa censurar todos os poetas,
dramaturgos e músicos da Grécia antiga (DEWEY, 2010, p. 66).
A partir disso cria-se uma censura a arte, a qual antes era reconhecida como a expressão
da experiência de vida de um povo e que hoje é apenas mais um objeto criado pela
mente humana, e que na maioria das vezes ela não consegue ser corretamente
compreendida. Segundo o autor existem razões históricas para justificar as concepções
que deram origem as separações que foram feitas às belas artes (DEWEY, 2010, p. 66).
As obras que se encontram em nossos atuais museus e galerias relatam esses fatos. Para
o filósofo americano foi o surgimento do capitalismo um dos grandes responsáveis pelo
desenvolvimento dos museus, por acreditarem que o lugar mais apropriado para as
obras de arte serem armazenadas seriam os próprios museus. Os ricos por serem
considerados os grandes produtores do sistema capitalista se sentiram obrigados a se
cercar de obras de arte por saberem que além de elas serem raras e também possuírem
um altíssimo valor, elas conseguiriam ostentar todo o seu poder de status diante da
sociedade, provando assim o quanto eles são cultos por pode adquiri-las. Mas não é
apenas as pessoas que demonstram o seu bom gosto cultural, as cidades também dão
grande ênfase na construção de prédios, galerias de artes, museus, teatros.
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As obras de arte aos poucos vão perdendo cada vez mais o seu verdadeiro significado,
se há algum tempo atrás um objeto ao ser criado era fruto de toda inspiração gerada pela
experiência de vida daquele que a estaria criando, hoje cada vez mais tem aumentado o
numero de pessoas que fazem da arte apenas para vender no mundo econômico, esses
que são motivados e patrocinados por homens ricos e poderosos.
Com o avanço da tecnologia o artista se vê preocupado em conseguir elaborar as suas
artes a partir da sua expressão pessoal, pois a concorrência com as maquinas tem
impossibilitado muito ele de conseguir lutar contra elas, então uma das soluções
encontradas por ele para conseguir superar este problema está em começar a produzir
obras, dando maior importância a aparência delas e desconsiderando a sua experiência
pessoal que antes era expressa no objeto.
Muitas teorias foram elaboradas para tentar dar uma conceitualização a respeito das
obras de arte, mas se as mesmas tivessem apenas a intenção de aproximar elas do
contexto das pessoas, elas se tornariam mais atrativas para o povo do que quando são
elaboradas essas teorias intelectuais que apresentam compartimentos querendo explicálas. E é tentando mostrar essa relação que existe entre o mundo (experiência) daquele
que observa uma obra de arte, e aquela que está sendo analisada que no capítulo
seguinte tentaremos fazer essa aproximação entre a arte e a experiência humana.
2. A arte como representação da experiência humana
Ao analisarmos uma obra de arte temos que observar a mesma a partir de um critério
estético e não se limitando apenas a sua razão. Devemos observar que por detrás de toda
arte existe a cultura, a religião e a experiência de vida de um povo que a criou em uma
determinada época. Como no exemplo que o autor cita ao se referir ao Partenon,
monumento histórico da Grécia antiga:
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Quem se propõe a teorizar sobre a experiência estética encarnada no Partenon precisa
descobrir, em pensamento, o que aquelas pessoas em cuja vida o templo entrou, como
criadoras e como as que se compraziam com ele, tinham em comum com as pessoas
de nossas próprias casas e ruas. (DEWEY, 2010, p.61)
Segundo Dewey para compreendermos a estética é necessário que possamos entender a
sua forma bruta. Como no exemplo de alguém que desfruta da arte, através de um livro
de poesia, não deve ficar apenas fascinado com a leitura, querendo seguir adiante como
em um processo mecânico que é gerado pelo seu impulso da curiosidade, mas sim deve
se mover pela atividade prazerosa que esta obra lhe proporciona quando a le e deve ir a
explorando cuidadosamente.
Para que a obra de arte possa ser considerada estética é necessário que o artista exprima
nela a sua experiência pessoal, fazendo com que a partir dela aqueles que a observam
possam compartilhar da sua experiência, caso contrário, ela será puramente mecânica.
Pois o artista ao trabalhar em sua obra, incorpora em si qual será a reação do expectador
ao ve-la. Para o autor a experiência estética está ligada a experiência do criar. Quando
um artista está criando a sua obra, ele está em contato com ela. E esse contato mostra
todas as suas percepções que estão interligadas com o objeto até que se possa chegar ao
seu fim, modelando e remodelando passo a passo a sua obra até que quando ele
determina de ter chegado ao final, ela cessa.
Para que uma obra de arte possa ser compreendida a partir do seu valor estético,
devemos tentar observar que essas qualidades artísticas que aparecem aos nossos olhos
e que são admiradas e apreciadas por muitos, também são influenciadas por outros
fatores, os quais estão relacionados como todas as influências que o artista possui ao
desenvolver a sua obra. Toda a sua experiência está expressa ali naquele objeto, as
coisas que acontecem e aconteceram ao seu redor, o contexto social que ele vive, a
influência do clima, o seu estado de espírito que ele se encontra.
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Vejamos melhor a partir de um exemplo que o próprio Dewey cita logo abaixo:
As flores podem ser apreciadas sem que se conheçam as interações entre o solo, o ar, a
umidade e as sementes dos quais elas resultam. Mas não podem ser compreendidas
sem que justamente essas interações sejam levadas em conta – e a teoria é uma
questão de compreensão. (2010, p. 73)
Podemos perceber que essa teoria da estética existe por causa da experiência, essa que
se mostra através de todas as relações existentes entre os seres vivos em seu globo.
Existe uma ordem que se manifesta nas relações entre esses seres vivos quando eles
atingem um equilíbrio, essa ordem não é imposta de fora para dentro, mas elaborada a
partir das relações de interações e energias que esses seres têm dentro de si. E como
essa ordem é ativa e está sempre em mudança, então ela se desenvolve. (DEWEY, 2010,
p.76)
Segundo o autor é após o organismo conseguir sair do caos e compartilhar as suas
relações como o meio, e se organizando de uma maneira que lhe tragará estabilidade
que surge essa participação. E é essa participação vem logo depois de uma fase de
perturbação e conflito, ela traz em si os germes de uma consumação semelhante ao
estético. (DEWEY, 2010, p.77)
Segundo Dewey existe dois mundos onde a experiência estética não ocorre. O primeiro
em um mundo onde as coisas estão em constante movimento, pois neste não existiria
repouso e as mudanças não seriam acumulativas. E o outro é aquele onde as coisas são
acabadas e prontas, pois esse mundo não oferece problemas para serem resolvidos, pois
quando tudo já está completo e perfeito não existe a necessidade de realizações serem
feitas. Em um mundo feito de mudanças e perturbações como o nosso, um mundo
perfeito e acabado projetado a partir de nossas próprias ideias só seria permitido que não
existisse a mudança entre nós, pois não conseguiríamos distinguir o que está em
repouso ou em movimento, o que é perfeito e imperfeito.
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A criatura viva adota a sua harmonia quando consegue estabelecer uma relação com o
meio em que vive. Os prazeres surgem do conflito com as coisas que se tem, a partir de
uma realização do ser que está em processo de adaptação com a vida. A maioria dos
seres vivos despreza o seu passado, querendo muita vezes nem se lembrar dele, pois é
repleto de muitos infortúnios, trazendo assim para eles uma sensação ruim, que
lembram oportunidades desperdiçadas e que não gostariam de virem a ser lembradas.
Mas a criatura viva assume seu passado, lembra e relembra dele, para que essas ações
mal sucedidas possam ser evitadas com mais cuidado e que todas as boas ações do
passado possam ser instrumentalizadas para ajudar a gerar bons frutos presentes em suas
ações.
Quando o homem deixa de temer as lembranças do seu passado que atormenta sobre as
expectativas do seu futuro é que ele fica plenamente vivo. Para o autor a arte celebra
todas as experiências do passado reforçando as mesmas em futuro que é intensificado
pelo o que existe agora. Da mesma maneira que o ser vivo troca relações com o seu
meio, o homem através das suas percepções e do mundo que está ao seu redor o faz
ganhar um novo sentido. A arte se caracteriza por essa troca de experiência que existe
entre o artista e suas experiências vividas que são lembradas e que vão ganhando
sentido aos objetos conforme ele vai os modelando. Os fatos, as lembranças do seu
passado, as suas sensações privadas, as trocas de experiências com o seu meio agora
ganham sentido conforme o objeto artístico vai sendo criado e a partir da experiência do
autor.
A arte nasce a partir do próprio modo de viver. O que era algo espantoso, ou
preocupante para o homem, agora começa a ser transformado e usado para poder dar
inicio ao processo de executamento das suas ideias. Todas essas influências que o meio
exerce sobre o homem, agora passa a ser convertidas em sua consciência, para que essas
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relações que ele tem com a natureza através da sua experiência, possa começa a dar
origem a um objeto. Mas mesmo a arte se mostrando como uma realização do mundo
estético, ainda existem aqueles que acreditam que a arte não pode ser a realização da
união da experiência que a criatura viva teve com o seu meio e o pensamento para que
ela possa desenvolver e colocar em prática. No entanto é quando se mostra todo o
processo de continuidade que essa criatura viva desenvolve aqui na terra, que toda essa
tese artística passa a ser refutada.
Conclusão
Pelo exposto, mostramos a maneira como que a obra de arte tem se feito presente na
vida do ser humano, o erro que foi cometido ao querer separar a arte da vida do homem,
criando teorias que a justificassem a partir de uma interpretação intelectual, como se a
mesma fosse fruto apenas da sua racionalidade, desconsiderando assim todas as
experiências daqueles que a criaram. E ainda na segunda parte do texto mostramos o
cuidado que se deve ter ao analisar uma obra de arte, para que a sua interpretação não
seja gerada a um mundo totalmente intelectualista. É necessário que consigamos
perceber, fazer essa distinção entre a experiência que está contida em uma obra de arte,
e não apenas ficarmos preso naquilo que a nossa razão nos mostra.
Enfim, para perceber uma obra de arte o expectador deve olhar ela a partir da sua
experiência. Mas que a sua experiência possa estar interligada com a do artista que criou
a obra, mostrando assim as relações semelhantes existentes entre ambas, as experiências
vivenciadas pelos dois. Ao produzir uma obra de arte estética, o artista expressa nela
todas as suas experiências e emoções que foram vividas para que aquele que irá
observar, possa tentar viver e/ou sentir aquilo que ele mesmo vive e ou viveu.
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REFERÊNCIAS
DEWEY, John. A arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Editora
Martins, 2010.
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A BASE EMPÍRICA E A CRÍTICA INTERSUBJETIVA - Angelo Eduardo da
Silva
UNIOESTE/Grupo PET-Filosofia
[email protected]
Palavras-chave: Enunciados básicos; falseabilidade; crítica intersubjetiva.
A falseabilidade como critério de demarcação entre ciência empírica, de um lado, e
matemática pura, lógica formal e metafísica, de outro, conduz aos problemas
concernentes à aceitação ou rejeição da base empírica. Neste artigo, apresento a
concepção de Karl Popper, que, ao estabelecer uma separação entre os aspectos
psicológicos (experiências perceptuais) e os aspectos lógicos e metodológicos (relações
lógicas objetivas) dos sistemas empíricos, propõe que os enunciados básicos, uma vez
aceitos pela comunidade científica à luz de eventos observáveis e dos sistemas teóricos
vigentes, assumam o papel de premissas da inferência falseadora (modus tollens) da
conjectura sob teste. Surge, com essa proposta, a teoria de um novo empirismo que,
sustentado por um realismo metafísico, permite às ciências empíricas serem objetivas,
falseáveis e suscetíveis à crítica intersubjetiva.
Qual é a atitude da comunidade científica, no âmbito das ciências empíricas, frente às
teorias vigentes, às novas hipóteses explicativas e aos eventos observáveis? Que papel
cumpre a experiência durante os procedimentos realizados pelos cientistas (teóricos ou
experimentadores)? O que autoriza os filósofos a teorizarem e proporem discussões
racionais acerca dos procedimentos metodológicos, das teorias, dos testes empíricos
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com os quais os cientistas (teóricos ou experimentais) realizam suas atividades? Embora
o conjunto dessas questões extrapole a preocupação central desse texto, não é, por isso,
menos pertinente e, a meu ver, constitui o pano de fundo das discussões epistemológicas
na Filosofia. A concepção que se assume de Ciência e de Filosofia acaba por direcionar
não apenas o papel da Epistemologia, como também os problemas que são aceitos como
pertinentes à comunidade científica e filosófica.
Se entendermos por ciências empíricas o campo teórico da atividade humana que
confirma definitivamente as suas teorias, verificando-as através da experiência, então
não apenas assumimos uma postura de aceitação de que o mundo seja como elas o
explicam como também admitimos que seja possível conhecê-lo decisivamente. Mas, se
compreendemos as ciências empíricas como resultado autônomo e objetivo do empenho
humano em mostrar que as teorias atualmente vigentes foram submetidas aos altos
padrões da crítica científica na tentativa de falsificá-las, então a atitude do cientista e do
filósofo consiste em empenhar todas as suas energias para conseguir a bancarrota das
teorias científicas, apresentando novas conjecturas mais facilmente testáveis, com maior
alcance explicativo e maior rigor crítico.
A pretensão de que todos os enunciados científicos devam ser ―conclusivamente
decisíveis‖1 conduz, segundo Popper, à aparente contradição entre a tese principal do
empirismo, de que somente a experiência é capaz de concluir acerca do valor de
verdade dos enunciados científicos, e o problema da indução detectado por Hume. O
problema lógico da indução2, de Hume, resulta na condição insustentável de que a
inferência das leis científicas (generalizações) a partir de fatos (enunciados singulares) é
1
Popper (2007, p.41) emprega essa expressão referindo-se a Moritz Schlick.
Cf. POPPER, K.R. Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária. Trad. Milton Amado. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975 .
2
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logicamente ilegítima3, contudo incontornável. Assim, o ceticismo humeano mantém,
diante do oceano de incertezas daquilo que o homem pode conhecer acerca dos fatos,
―uma pequena ilha de certeza no meio‖4: a certeza que advém das experiências
perceptuais. A contradição entre a tese central do empirismo e o problema lógico da
indução, de Hume, é ―aparente‖ porque se rejeitarmos as inferências indutivas dos
procedimentos das ciências empíricas o problema se dissolve.
Relacionado diretamente ao problema lógico da indução está o que Popper caracteriza
como psicologismo – ―a doutrina segundo a qual as ciências empíricas são reduzíveis a
percepções sensórias e, consequentemente, a nossas experiências‖ (POPPER, 2007,
p.99). O pressuposto de aceitar que as teorias científicas são reduzíveis ao conhecimento
sensível imediato implica aceitar a concepção de que o edifício do conhecimento
científico está alicerçado sobre bases firmes e inabaláveis. Ao criticar o psicologismo,
Popper apresenta o problema da base empírica – o problema de estabelecer as relações
entre as experiências perceptuais e os enunciados básicos de sistemas teóricos. A
preocupação de Popper está em esclarecer o que são os enunciados básicos, sobre quais
aspectos assenta a sua objetividade e como podem ser submetidos à crítica.
Para isso, Popper recupera o trilema de Fries, que estabelece a atitude dos indutivistas
perante os enunciados científicos. Para Fries, se não admitimos dogmaticamente os
3
Segundo Wesley Salmon, a legitimidade lógica está diretamente relacionada à implicação necessária
entre premissas e conclusão de um argumento, isto é, depende exclusivamente da forma lógica do
argumento, não do seu conteúdo. Sendo assim, apenas argumentos dedutivos podem ser logicamente
válidos, já que a conclusão de um argumento dedutivo é uma derivação tautológica das premissas (se as
premissas são verdadeiras, a conclusão deve necessariamente ser verdadeira). Quanto aos argumentos
indutivos, uma conclusão é ―provavelmente verdadeira‖ se suas premissas são verdadeiras, justamente
porque o conteúdo da conclusão excede o das premissas. Ver SALMON, W. Lógica, Rio de Janeiro:
LTC, 2009.
4
Cf. WATKINS, 1990, p.17.
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enunciados científicos, então precisamos submetê-los a justificação. Considerando que
apenas enunciados podem justificar enunciados, se exigirmos que todos os enunciados
devam ser justificados, tal tarefa redundará em regressão infinita. Na tentativa de
escapar tanto do dogmatismo quanto da regressão infinita, resta-nos o psicologismo de
admitir que os enunciados sejam justificados por fatos. Assim, o trilema de Fries –
dogmatismo vs. regressão infinita vs. psicologismo – registra a impossibilidade de
contornar as inferências indutivas quando a justificação dos enunciados científicos for
requerida.
Dentre as exigências da proposta de Popper de uma abordagem objetiva das ciências
empíricas está a de separar os aspectos lógicos e metodológicos (relações lógicas
objetivas) dos aspectos psicológicos (experiências perceptuais e convicções subjetivas).
Ainda que o nosso conhecimento acerca dos fatos dependa da observação, das
percepções subjetivas, do conhecimento imediato através dos sentidos externos, essa
consciência não justifica qualquer enunciado científico. A tarefa da epistemologia,
reafirma Popper em 19595, pretende responder à seguinte questão: ―de que modo
proceder para melhor criticar nossas teorias (nossas hipóteses, nossas conjecturas), em
vez de defendê-las contra a dúvida?‖ (POPPER, 2007, p.105, n.*1).
Contudo, como não é possível saber se um sistema de enunciados é um sistema
convencional de definições implícitas irrefutáveis ou um sistema empírico e falseável
apenas pela análise de sua forma lógica, o critério de demarcação não pode ser aplicado
diretamente a um sistema linguístico: é necessário dispor de regras metodológicas que
5
Ao revisar a Logik der Forschung para a versão inglesa, Popper indica os testes empíricos como um dos
aspectos da crítica intersubjetiva. Assim, temos a argumentação crítica (que faz uso da linguagem
argumentativa, especificamente humana) e a testabilidade (que lança mão a linguagem descritiva) como
instâncias objetivas da crítica da comunidade científica.
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orientem a caracterização de um sistema teórico empírico e definam sob quais
condições os enunciados básicos são aceitos. A argumentação a seguir pretende,
portanto, dar conta (1º) da caracterização de um sistema teórico empírico; (2º) da
investigação lógica da falseabilidade – as relações entre teorias e a classe de enunciados
básicos; e (3º) da aceitação ou rejeição dos enunciados básicos.
Popper registra três itens que, se satisfeitos, permitem a forma lógica de um sistema
teórico empírico: (i) sintético (deve representar um mundo não contraditório, mas
logicamente possível); (ii) falseável (deve satisfazer o critério de demarcação proposto);
(iii) objetivo (não pode se confundir com o nosso mundo de experiência, mas assumir
existência autônoma e efetiva).
A respeito das relações lógicas entre a teoria e a classe de enunciados básicos, afirma
Popper:
―Uma teoria será chamada ―empírica‖ ou ―falseável‖ sempre que, sem ambiguidade,
dividir a classe de todos os possíveis enunciados básicos nas seguintes duas subclasses
não vazias: primeiro, a classe de todos os enunciados básicos com os quais é
incompatível (ou que rejeita, ou proíbe) – a essa classe chamamos de classe dos
falseadores potenciais da teoria; segundo, a classe dos enunciados básicos que ela não
contradiz (ou que ela ―permite‖).‖ (POPPER, 2007, p.90).
A relevância dos enunciados básicos consiste, segundo Popper, em cumprir dois papéis:
permitir que uma teoria científica seja falseável, uma vez que ao contar com a classe de
todos os enunciados básicos logicamente possíveis, caracterizamos a forma lógica dos
enunciados – a forma de enunciados empíricos; e corroborar a hipótese falseadora – a
hipótese empírica de baixo nível de universalidade que, cumprindo certas relações
lógicas com os enunciados básicos, pode ser submetida a novas provas empíricas. Uma
hipótese falseadora deve descrever um efeito suscetível de reprodução que contradiga
os enunciados singulares extraídos dedutivamente da conjectura. Entretanto, a exigência
de ‗reprodução‘ não é tão rigorosa: ―para falsear o enunciado ‗todos os corvos são
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pretos‘, bastaria o enunciado intersubjetivamente suscetível de teste de que no zoológico
de Nova Iorque existe uma família de corvos brancos‖ (Idem, p.91, n.1).
Popper apresenta duas condições epistemológicas que os enunciados básicos devem
satisfazer: ―(a) De um enunciado universal, desacompanhado de condições iniciais, não
se pode deduzir um enunciado básico; (b) pode haver contradição recíproca entre um
enunciado universal e um enunciado básico‖ (Idem, p.107-8).
Para satisfazer ambas as condições, Popper estabelece a regra metodológica de que a
forma lógica dos enunciados básicos deve ser a de existenciais singulares. Desse modo,
(b) é satisfeito se for possível contraditar um enunciado básico a partir de um enunciado
deduzido da teoria. Da conjunção de (a) e (b) temos que um enunciado básico não pode
ser negado por outro enunciado básico, já que a forma existencial não é negada por
outro existencial, mas por um enunciado do tipo ―não-há‖. Assim, temos que de um
enunciado existencial singular é possível extrair um enunciado existencial puro – e
apenas este pode negar um enunciado universal estrito.
Além da caracterização lógica formal dos enunciados básicos, há o requisito material:
devem descrever eventos observáveis ou resultados de experimentos que sejam
suscetíveis a novos testes intersubjetivos. Para tanto, devem estabelecer relações
específicas de espaço e de tempo na forma ―Há um isto ou aquilo na região k‖ ou ―Tal
ou qual evento está ocorrendo na região k‖. (Por isso que um enunciado do tipo ―O
cobre é condutor elétrico‖ não é testável.) Impossibilitando cair sob a extensão de sua
própria crítica ao psicologismo, Popper lança mão novamente da abordagem objetiva e
diferencia observações e percepções da observabilidade: os enunciados básicos serão
aceitos ou rejeitados à luz de experimentos que possam ser intersubjetivamente testados
e criticados.
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A aceitação ou rejeição de enunciados básicos é necessária na medida em que apenas
estes enunciados (existenciais singulares) podem ser comparados com as ocorrências.
Não há sentido em propor novas conjecturas explicativas se estas não podem ser
falseadas. Mas só será aceito ou rejeitado o enunciado básico que, além de cumprir os
requisitos lógicos e metodológicos, estiver em acordo intersubjetivo dos indivíduos
envolvidos no processo de crítica. Nesse sentido, os enunciados básicos são aceitos por
convenção. O risco de dogmatismo é inofensivo, uma vez que a qualquer momento que
o enunciado básico for questionado, poderá ser novamente submetido a novas provas e
avaliações críticas. Assim, a regressão infinita é potencial, contudo inócua, já que o
cientista está disposto, não a comprovar sua teoria, mas a falseá-la. Como os enunciados
básicos não pretendem em momento algum se justificar ou se alicerçar sobre as
percepções sensoriais, o risco de psicologismo também é eliminado.
Ao exigir a objetividade da base empírica, Popper assenta o edifício do conhecimento
científico sobre um pântano: não é possível qualquer base firme e inabalável para o
conhecimento científico. A base empírica pode vacilar a qualquer momento – e é a isto
que se dedica o cientista que assume uma atitude crítica frente às teorias científicas. A
racionalidade em Karl Popper advoga para a filosofia contemporânea uma nova
compreensão de empirismo. Se quisermos alimentar o problema cosmológico de como
compreendemos o mundo, precisamos assumir a concepção metafísica de um realismo
que, ao invés de possibilitar o conhecimento certo e definitivo acerca dos fatos
empíricos, prefere apostar na atitude crítica e falibilista como possibilidade máxima da
racionalidade das teorias científicas.
REFERÊNCIAS
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POPPER, K.R. A Lógica da Pesquisa Científica, São Paulo: Editora Cultrix, 2007.
POPPER, K.R. ―A distinção entre ciência e metafísica‖ [1963] In POPPER, K.R.
Conjecturas e Refutações, Brasília: Editoria Universidade de Brasília, 1972 (p.282321).
POPPER, K.R. O Realismo e o Objetivo da Ciência, Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1997.
WATKINS, J.W.N. ―A Base Empírica‖ [1984] In WATKINS, J.W.N. Ciência e
Cepticismo, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990 (p.207-248).
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A CONCEPÇÃO DE GOVERNO NO PENSAMENTO DE THOREAU - Ayres
Pablo Bogoni
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
[email protected]
Palavras-chave: Governo; Moral; Autoridade.
Henry David Thoreau toma por base de suas especulações o contratualismo moderno.
Para ele, o Estado é um ente artificial, produzido pela razão humana e fundado na
conveniência. O Estado nem sempre existiu, mas não existirá para sempre, tão logo os
homens alcançarem determinado desenvolvimento moral, não lhes será mais necessária
sua tutela.
Mas, no atual nível de moralidade, os homens são impelidos pela sua própria condição à
criar um ente que estabeleça uma harmonia, uma ordem entre eles. A origem da
instituição, como se vê, tem bases contratualistas. Thoreau concorda com Hobbes acerca
do início da sociedade civil, ambos teorizam que as circunstâncias em jogo no estado de
natureza impeliram o homem a estabelecer uma autoridade. Porém, destoando de
Hobbes, Thoreau acrescenta que a raiz daquela atitude não é outra senão a condição
moral.
A partir da formação da sociedade através do pacto, Thoreau se distancia
progressivamente de Hobbes, a começar pela noção de Direito. Para Hobbes o Direito é
produto do Estado, logo, lei e justiça se confundem na teoria hobbesiana. Já para
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Thoreau lei e Direito são absolutamente diferentes, e o cidadão não deve prestar
reverência à lei mais do que ao Direito, ele ―desmistifica a lei, mostra que ela nem
sempre se reveste da condição de expressão da vontade geral da nação, e, ao contrário,
chega em alguns casos a ser ofensiva ao direito.‖ (MONTEIRO, 2003, p.62)
Passando pela questão do Direito, Thoreau se aproxima de Locke na questão da
legitimidade. Crê que o governo e suas ações dependem do consentimento dos
governados já que são meros instrumentos para a realização do bem público.
Veremos que Thoreau aponta quatro características através das quais se desdobra sua
concepção de governo.
Thoreau apresenta, ao longo da sua obra, quatro características fundamentais do
governo, quais sejam: uma conveniência, um modo escolhido pelo povo para executar
sua vontade, uma tradição e, por fim, um expediente.
A) o governo é uma conveniência: o governo, segundo Thoreau, foi criado segundo uma
conveniência, ou seja, não derivou de uma autoridade metafísica, mas foi resultado de
um cálculo racional de conveniência, consequência do nível de moralidade da maioria
daqueles que compõe o corpo social. Disto resulta que, devido ao comportamento
inconsequente de uns para com os outros, os homens consideram por bem estabelecer
uma
autoridade,
porém,
observa
ele,
os
governos
fundados
(até
mesmo
democraticamente) até então têm sido constante razão de queixa e aborrecimento.
No melhor dos casos, o governo é apenas uma conveniência; entretanto, a maior parte
dos governos, habitualmente, e todos os governos, por vezes, são inconvenientes. […]
Os governos demonstram, assim, quão facilmente os homens podem ser impostos, ou
se imporem a si mesmos, para seu próprio benefício. (THOREAU, 1993, p. 17-18)
B) o governo é executor da vontade popular: uma das funções básicas de um governo é
executar políticas públicas, gerir a coisa pública com vistas à realização dos objetivos da
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sociedade para a qual labuta. Porém, dentro desta esfera de responsabilidade, os
governantes nem sempre agem de acordo com os princípios republicanos, visando o
bem do todo, transformando o Estado num instrumento particular. ―O próprio governo,
que não passa do modo escolhido pelo povo para o cumprimento de sua vontade, está
igualmente sujeito a ser mal empregado e pervertido antes que o povo possa agir por seu
intermédio.‖ (THOREAU, 1993, p. 17)
A experiência convenceu Thoreau de que os governos de sua época, apesar de eleitos
com o objetivo específico de servir aos interesses do povo, acabavam por adquirir outras
motivações. Disso resulta sua crítica ao regime democrático de governo, o sistema
eleitoral, base da democracia, não produz resultados ilibados, pois os próprios
candidatos são amorais ou imorais e, portanto, produzirão um governo corrompido.
Thoreau toma como exemplo a guerra mexicana, da qual foi contemporâneo. Seria
possível afirmar com toda segurança que a maioria do povo americano não desejava
aquele confronto gratuito. A disputa, segundo ele, se dava movida por interesses
escusos de uma elite escravocrata e gananciosa.
[…] Thoreau acentua não só um problema irresolúvel da democracia, a tirania da
maioria sobre a minoria, senão também a falta de consideração que todo sistema de
governo sempre diz respeito à consciência individual. Defeito do que também padece
o utilitarismo como corrente ética em todas as suas versões, pois, por muito que se
busque a felicidade para a maioria, sempre fica uma minoria que sai mal servida. […]
Portanto, com efeito o indivíduo que sai mal servido por beneficiar para maioria, antes
ou depois, também sairá beneficiado conforme vá aumentando a felicidade geral. O
problema é que esperar isto é como esperar o céu em qualquer religião: é sempre uma
recompensa futura que justifica no presente uma determinada situação de infelicidade,
inclusive de predomínio de um grupo social sobre outro. Mas, curiosamente, a
recompensa prometida não chega nunca na vida do indivíduo sacrificado, pelo que
todo o seu sacrifício vital resultar-lhe-á inútil. Isto sem saber se algum dia este
sacrifício será útil para alguém ou talvez nunca aconteça. Portanto, o resultado final do
utilitarismo e da democracia, é que sempre há uma minoria que sai mal servida para
que se beneficie uma maioria. Esta injusta situação não parece ter solução nestes
sistemas e Thoreau declara-o. (VÁSQUEZ, 2009, p.4)
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C) o governo é uma tradição: os homens nascem sob a égide de um Estado, o hábito
acaba por tolher a possibilidade de repensar suas funções e sua existência. A sociedade
cegamente assume um pressuposto: a de que o Estado é um bem ou um mal necessário.
―Que é o atual governo norte-americano senão uma tradição, embora recente, buscando
transmitir-se inalterada à posteridade, mas perdendo, a todo instante, algo de sua
integridade‖ (THOREAU, 1993, p.17-18)
O governo, uma vez formado, evidentemente buscará sua sucessão no tempo e sua
expansão no espaço. Mas, segundo observa Thoreau, conforme age, com sua
característica imoralidade, o Estado se desfaz, esfacela-se sua integridade moral, aquele
componente transcendental que sustenta a coesão empírica. Não importa o quanto a
ilusão de seu fortalecimento empírico impressione, um Estado imoral ou amoral está
fadado ao fracasso e à extinção, como tudo que é sólido se desmancha no ar.
D) o governo é uma necessidade do povo: a ideia de necessidade aqui está associada à
forte tradição de tutela ao qual a humanidade sempre foi submetida. Desde tempos
remotos, quando o Direito se confundia com a força, os homens foram submetidos a
reis, príncipes, conselhos, etc. Quanto Thoreau afirma que ―o povo carece de ter sempre
alguma maquinaria complicada, e de ouvir-lhe o estrépito, para satisfazer a ideia de
governo que nutre‖ (THOREAU, 1993, p.18), com isso quer dizer que o Estado é
também um hábito incorporado pela civilização.
As críticas de Thoreau ao governo tem por base o aspecto moral de determinada ação ou
política governamental, o filósofo não reputa a cobrança de impostos como uma ação
má porque a questão econômica não pode ser fator determinante.
Se alguém me viesse dizer que este é um mau governo porque tributa certas
mercadorias estrangeiras que lhe chegam aos portos, é muito provável que eu não faça
bulha nenhuma a respeito […]. Por outras palavras, quando um sexto da população de
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uma nação que se comprometeu a ser o refúgio da liberdade se componha de escravos,
e um país inteiro seja injustamente invadido e conquistado por um exército estrangeiro
e sujeitado à lei militar, acho que não é cedo demais para os homens honestos se
rebelarem e promoverem uma revolução‖ (THOREAU, 1993, p. 21-22)
Neste trecho, Thoreau utiliza dois exemplos que demonstram na prática seu julgamento
moral: não faria nada contra a tributação de mercadorias importadas mas reconhece o
dever de desobediência diante da agressão armada dos Estados Unidos contra o México,
pois, ―ele debate sua causa não no campo da moral do cidadão em relação à lei, mas no
campo da consciência individual e do compromisso moral da consciência‖ (ARENDT,
1972, p.57)
Por fim, resta esclarecer que existe uma estreita ligação entre autoridade e moralidade.
Uma autoridade nata, para Thoreau, é aquela que seja capaz de utilizar a sua consciência
e produzir bons juízos morais. A esse tipo de autoridade, uma autoridade pura, Thoreau
afirma que se submeteria prazerosamente. Porém, com relação ao governo imoral ou
amoral, dado que não possui autoridade intrínseca, deve receber o consentimento dos
governados.
A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a sujeitar-me – pois
prazenteiramente obedecerei a quem saiba e possa fazer melhor que eu, e, em muitas
coisas, mesmo a quem não saiba nem possa fazer tão bem –, é ainda uma autoridade
impura: para ser estritamente justa, tem de receber a sanção e o consentimento dos
governados. Não pode ter nenhum direito puro sobre minha pessoa e meus bens mas
apenas aquele que lhe concedo. (THOREAU, 1993, p. 45-46)
Assim, Thoreau se apoia em Locke para considerar que a legitimidade de um governo
amoral depende do consentimento, que pode ser delegado como também retirado, e,
neste último caso, o governo deve permitir ao governado retirar-se de sua tutela.
A crítica de Thoreau é, na verdade, a cobrança de uma liberdade prometida. Se o
governo foi criado para defender a liberdade dos governados, deve ele permitir a quem
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quer que esteja desapontado com suas políticas romper com a dependência ao retirar seu
consentimento.
Importa esclarecer, todavia, que Thoreau não está pregando um novo modo de vida,
independente de qualquer autoridade, mas de imediato buscar mecanismos para
melhorar o que já está posto, e, caso não seja possível moralizar as ações do governo,
pelo menos não participar de seus crimes.
Thoreau ainda apresenta uma noção progressiva de governo, conforme o
desenvolvimento dos homens permitam, conforme ele mesmo diz ―o progresso de uma
monarquia absoluta para uma limitada, de uma democracia limitada para uma
democracia, é um progresso rumo ao efetivo respeito pelo indivíduo‖. Com efeito, há
evidente desenvolvimento nas mudanças políticas promovidas pela humanidade.
Thoreau cita o exemplo da passagem de uma monarquia absoluta para a constitucional,
e da democracia limitada ou representativa para uma democracia plena ou direta. O que
impede a humanidade de progredir mais alguns passos em direção ao respeito pela
dignidade humana?
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Crises da Republica. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MONTEIRO, Maurício Gentil. O Direito de Resistência na Ordem Jurídica
Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. São Paulo: Cultrix, 1993.
VÁZQUEZ, F. J. Irisarri. H. D. Thoreau: uma aproximação à Resistance to Civil
Government. Actas das Jornadas de Jovens Investigadores de Filosofia – Primeiras
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Jornadas
Internacionais
Krisis
–
2009.
Disponível
em
http://www.krisis.uevora.pt/edicao/separatas_1JIJIF/Fco_IRISARRI_VAZQUEZ.pdf.
Acesso em Outubro de 2011.
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A CONCEPÇÃO DO EU NA “ADVERTÊNCIA AO LEITOR” DE MONTAIGNE
- Gilmar Henrique da Conceição
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
[email protected]
Palavras-chave: Montaigne, subjetividade, ceticismo
Ao abrirmos os Ensaios, de cara, somos surpreendidos com a primeira página porque
nos deparamos com uma tentativa montaigneana de nos dissuadir da sua leitura: ―não é
sensato que empregues teu lazer em um assunto tão frívolo e tão vão‖, ainda que nas
linhas iniciais Montaigne tenha escrito que: ―Está aqui um livro de boa fé‖.
Na
realidade, percebemos nesta advertência ao leitor, a elaboração de um Eu de múltiplas
formas, mas que já oferece pistas ao leitor. De acordo com Villey, Montaigne escreve a
advertência ao leitor quando se publica a primeira edição dos Ensaios (março de 1580),
mas ele já vinha anteriormente escrevendo e ―ruminando‖ seu pensamento à seis anos.
Esta advertência mostra a noção que Montaigne tem de seus escritos. Esta mesma
concepção se repete no início do capítulo I, XXVI (Da educação das crianças), no
início do capítulo II, VIII (Da afeição dos pais pelos filhos). Todavia, esta primeira
concepção não corresponde nem à concepção dos primeiros ensaios (que Villey situa
por volta de 1572), nos quais Montaigne ainda não pensava claramente em retratar a si
mesmo, nem a que prevalecerá na maioria dos ensaios de 1588, em que nosso autor
afirmará que pretende pintar a si mesmo não mais para seus parentes e amigos, e sim
para procurar em si ―a forma integral da natureza humana (como podemos observar no
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capítulo III, II – ―Do arrependimento‖). Parece que há nesta advertência nessa mudança
ressonância de ordem subjetiva e política. É sabido que o ensaísta prima pela busca da
verdade e da honestidade, num século corrupto e mascarado. Vejamos um excerto desta
advertência na qual o ensaísta afirma querer pintar-se nu, se pudesse:
―[...] Quero que me vejam aqui em minha maneira simples, natural e habitual, sem
apuro e artifício: pois é a mim que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e
minha maneira natural, tanto quanto o respeito público mo permitiu. Pois, se eu tivesse
estado entre aqueles povos que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das
primeiras leis da natureza, asseguro-te que de muito bom grado me tria pintado inteiro
e nu. Assim, leitor sou eu mesmo a matéria deste livro [...]‖ (MONTAIGNE, livro I, p.
3-4, 2002).
Michel de Montaigne está ligado predominantemente ao ceticismo renascentista, sendo
considerado pioneiro da forma ―ensaio‖. Ele também é conhecido por sua inovação do
método de filosofar, por suas contundentes críticas a respeito do conhecimento humano,
da política e da lei (LANGER, 2005)
Em grande parte, a dificuldade em se estudar o pensamento de Montaigne vem de que
ele implica num trânsito pelos temas essenciais dos Ensaios: a natureza do eu
(a subjetividade), a questão do conhecimento (o ceticismo) e a filosofia prática; enfim,
por todos os ensaios. Cardoso (1992) escreveu que: ―Montaigne com seu procedimento
teria inventado para o domínio da interioridade, ou da subjetividade, um método
correspondente ao caminho experimental que começava a trilhar em seu tempo as
ciências da natureza‖. Subjetividade em Montaigne não implica em fazer ―o que lhe dá
na telha‖ no plano público, pois isto levaria à desordem social, mas na obediência às leis
e na conformação aos costumes da sociedade na qual nascemos e vivemos. O termo
―para si‖, segundo nosso autor, significa que as objetivações (atividade dirigida,
consciente e superadora) sejam utilizadas pela pessoa como mediações fundamentais no
processo de direção consciente de sua própria vida.
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A subjetividade de Montaigne não deve ser compreendida de forma literal como registro
de suas características pessoais – como usualmente pensaram alguns comentadores –
mas sim como registro de juízo. Pretendemos mostrar, assim, que subjetividade não é o
mapeamento de espaços interiores, mas a base de sua ação, enquanto juízo confrontado
ininterruptamente com a diversidade e a mutação. Montaigne recorre à filosofia, à
literatura, à mitologia, à arte e à história para tirar lições para o eu. Subjetividade é
entendida como o espaço de encontro do eu com o mundo social, resultando tanto em
marcas singulares na formação do eu quanto na construção de crenças e valores
compartilhados na dimensão cultural que vão constituir a experiência histórica e
coletiva das sociedades, dos grupos e populações. Montaigne privilegia a pluralidade de
vozes que reverberam em sua mente, de forma que os efeitos da polifonia acompanham
os Ensaios, e não renega nada. O ensaísta articula observações feitas a seu respeito às
observações feitas em torno de si porque desta experiência de si podemos extrair o
reconhecimento de nossa fragilidade. Este reconhecimento da fragilidade traduz-se, na
esfera intelectual, por uma atitude perscrutadora e, na esfera moral, pela moderação.
Isso tem implicações políticas porque a comunicação com o outro se dá por
―espelhamento‖, a que se referem os comentadores: enxergar-se em outro e espelhar o
outro em si, numa operação aproximativa e incerta. O espelhamento leva à descoberta
de alguma afinidade e semelhança e a relação social se realizará de modo mais feliz e
bem sucedido quanto maiores forem os vínculos de convivência e amizade entre os
interlocutores.
Montaigne vê a história e a política como extensão da subjetividade. Como são muitas
as possibilidades, a escola da vida é proveitosa, desde que se renuncie aos julgamentos
absolutos, bem como ao viver estreito e rasteiro. Por isso, no exercício do julgamento, é
bom estar aberto para a diversidade do mundo; o eu não pode ser prisão, e sim ponte,
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pois: ―Da freqüentação da sociedade tira-se maravilhosa clarividência para julgar os
homens. Vivemos todos apertados dentro de nós mesmos, e não vemos um palmo diante
do nariz‖ (I,26).
Montaigne declara o seu amor ao que é humano e ao terreno.
Efetivamente, parece que, a exemplo dos grandes filósofos, Montaigne quer como
objeto de afeição o gênero humano e o mundo, mas, constata a infinita diversidade de
costumes, seitas, juízos, opiniões, leis e interesses.
A partir da advertência ao leitor, investigamos a questão de que Montaigne não somente
confere aos Ensaios a dimensão subjetiva e provisória, como também se contrapõe às
noções abstratas e genéricas e aponta a experiência de si como o único saber capaz de
orientar, de alguma maneira, nossas ações, sempre singulares e circunstanciadas,
referidas sempre a situações particulares. Birchal (2007) situa o pensamento de
Montaigne naquilo que podemos chamar de uma ―história da subjetividade‖,
subjetividade que em nosso autor é marcada pela dúvida, pelo corpo, pela linguagem e
pelo outro. Ao eleger o eu como o exemplo por excelência, o ensaísta enfatiza o ser
humano real e concreto, que deve afirmar sua distância com relação às instituições
políticas e religiosas. Na dúvida cartesiana1 vislumbramos a dúvida expressa por
Montaigne. Podemos assim colocar Montaigne como raiz de uma vertente da questão do
sujeito que é pré-cartesiana e não cartesiana, ao mesmo tempo (BIRCHAL, 2007, p.
22). Qual seja, o ensaísta revela uma figura da subjetividade não estritamente
racionalista, ancorada no mundo e em relação com o outro: ele recusa a idéia de que a
razão defina, essencialmente, o ser humano. Descartes busca uma moral e uma política
fundadas em certeza2. Por outro lado, o subjetivismo ético de Montaigne não se
1
BRUNSCHVICG, Léon. Descartes et Pascal lecteurs de Montaigne. Neuchâtel
(Suisse): Editions de la Bacconnière, 1945.
2
STAROBINSKI, 1993, p. 243.
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identifica seja com o individualismo sofista, seja com o relativismo cético. Diferente
das certezas do ―eu só sei que nada sei‖ e do ―penso, logo existo‖, Montaigne toma para
si a divisa de Pirro (“Que sais-je?‖3) cuja interrogação expressa com mais clareza o
posicionamento de nosso autor. Ao eleger o eu como o exemplo por excelência, o
ensaísta enfatiza o ser humano real e concreto, que deve afirmar sua distância com
relação às instituições políticas e religiosas. Não podemos identificar com segurança
nossas afecções e disposições, e não podemos determinar nossos movimentos internos,
portanto, devido à complexidade e indeterminação de nossas afecções somente podemos
ver uma parte do todo, ou um traço entre tantos traços possíveis. Neste sentido, as
noções gerais e padrões não podem determinar nossas condutas com certeza e
segurança, uma vez que toda tentativa de forçar nossas ações a corresponderem às
abstrações alcançará, no limite, algum traço de semelhança entre a noção geral e o
particular, jamais uma plena correspondência entre ambos. Mas, nunca se poderá
ultrapassar os limites da mera semelhança. A consideração da particularidade das
situações e da singularidade dos casos conduz Montaigne a afastar os paradigmas
externos para recolher-se em si mesmo, buscando na experiência de si, na inspeção
meticulosa das condições e matérias singulares de sua ação, algum tipo de orientação
para sua conduta política. A prática política do ensaísta provém desta experiência:
aprender o que evitar e o que seguir.
Subjetividade é entendida como o espaço de encontro do eu com o mundo social,
resultando tanto em marcas singulares na formação do eu quanto na construção de
crenças e valores compartilhados na dimensão cultural que vão constituir a experiência
3
―Observo os filósofos pirrônicos, que não podem expressar sua concepção geral em nenhuma forma de
falar, pois precisariam de uma nova linguagem. A nossa é toda formada de proposições afirmativas, que
lhe são inteiramente hostis; de forma que, quando eles dizem: ‗Eu duvido‘, incontinenti são agarrados
pelo pescoço para serem obrigados a admitir que pelo menos asseguram que duvidam‖. (II, 12, p. 291)
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histórica e coletiva das sociedades, dos grupos e populações. Montaigne privilegia a
pluralidade de vozes que reverberam em sua mente, de forma que os efeitos da polifonia
acompanham os Ensaios, e não renega nada. O ensaísta articula observações feitas a seu
respeito às observações feitas em torno de si porque desta experiência de si podemos
extrair o reconhecimento de nossa fragilidade. Este reconhecimento da fragilidade
traduz-se, na esfera intelectual, por uma atitude perscrutadora e, na esfera moral, pela
moderação.
Xavier escreve que o leitor de Montaigne deve buscar nos Ensaios não uma imagem
acabada de sabedoria e auto-suficiência na qual espelhar-se, nem tampouco a
enunciação de saberes prontos, mas sim o reconhecimento da sinceridade como virtude.
O leitor deve, sobretudo aceitar o convite de Montaigne ao diálogo, à investigação e ao
livre exercício do juízo como meio de afirmar-se em sua verdade. Daí que na
advertência ao leitor, Montaigne nos convida a fazermos o percurso da descoberta de si
como um de seus íntimos, pois adverte que não se propôs nenhum fim que não
doméstico e privado: ―Não levei em consideração teu serviço, nem minha glória.
Minhas forças não são capazes de um tal intento. Votei-o ao benefício particular de
meus parentes e amigos [...]‖ (MONTAIGNE, livro I, p. 3-4, 2002).
REFERÊNCIAS
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culto humanista da glória. www.lasallerj.org/pdf/diversidades/Artigo8.pdf
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(Suisse): Editions de la Bacconnière, 1945.
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de. Oeuvres Completes. Editions Gallimard, 1962.
Bibliothéque de La Plêiade.
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Fontes, 2000. – (Paidéia)
STAROBINSKI, Jean. Montaigne em movimento. Tradução de Maria Lúcia Machado.
São Paulo: Cia da Letras, 1992.
SILVA PIRES, Sandra da. ENSAIOS DE MONTAIGNE: O Jugement e sua Forma.
Dissertação/ Filosofia. Universidade de São Paulo. 2009.
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A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL KANTIANA SEGUNDO HENRY E.
ALLISON - Douglas João Orben
Aluno especial do PPG-Filosofia da UFSM e professor do curso de Filosofia da
Faculdade Palotina (FAPAS) – Santa Maria. [email protected]
A ―revolução copernicana‖1 operada por Kant tem como consequência inevitável a
necessidade de novos fundamentos para o conhecimento humano. A filosofia
transcendental, portanto, apresenta-se como a fonte de todos os princípios e conceitos,
que submetidos à crítica, revelaram-se de origem pura e a priori. Por se tratar do
conhecimento especificamente humano, os conceitos e intuições são condições
transcendentais, típicas do entendimento humano, sem as quais nenhum conhecimento
seria possível. Estas estruturas intelectuais e sensíveis, não apenas condicionam, senão
que determinam todo o conhecimento humanamente possível. Não obstante, a realidade
possível manifesta-se na síntese dos predicados intelectuais (categorias) como as
condições da sensibilidade humana (espaço e tempo).
A síntese transcendental constitui a parte central da Analítica dos Conceitos da Crítica
da Razão Pura, pois em sua alçada encontra-se uma questão basilar: demonstrar que as
categorias puras e a priori do entendimento (descobertos na Dedução Metafísica) são as
1
A metáfora da ―revolução copernicana‖ de Kant remete a virada epistemológica operada,
principalmente, na Crítica da Razão Pura. Na obra, Kant comprova que toda natureza humanamente
possível encontra-se, necessariamente, determinada pelas condições puras e a priori do entendimento
humano. Esta nova postura filosófica refuta a tese empirista que acreditava ser os dados empíricos o
fundamento de todo conhecimento humano.
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condições formais de todos os objetos, bem como da experiência em geral 2. A síntese
transcendental legitima a aplicabilidade das categorias puras à experiência, assim como
limita o seu âmbito de validade às fronteiras da sensibilidade.
Neste sentido, a abordagem defendida por Henry Allison, pretende mostrar que a
Dedução Transcendental fundamenta a síntese na espontaneidade do entendimento. A
demonstração da validade e realidade objetiva das categorias seria a condição e
possibilidade da síntese e, por conseguinte, de toda realidade fenomênica. A conexão
entre predicados intelectuais e intuição sensível não deixa de ser um ato sintético,
todavia, para Allison, nada poderia ser sintetizado sem a espontaneidade das categorias.
1. Validade objetiva e realidade objetiva: a síntese na interpretação de allison
A interpretação e defesa do idealismo transcendental kantiano por Allison, no que
concerne à Dedução Transcendental, pretende demonstrar a conexão entre as condições
sensíveis e intelectuais do conhecimento humano, fundamentando-a na espontaneidade
do entendimento humano. ―A tese é que todo conteúdo sensível, independente da
natureza, deve sujeitar-se às categorias3‖, de tal forma que a síntese transcendental
encontra-se atrelada, inevitavelmente, as categorias puras e a priori do entendimento.
Para tanto, a abordagem de Allison defende que a Dedução Transcendental contempla
duas teses distintas acerca das categorias, e que cada uma delas opera com uma
diferente concepção de objeto. O autor escreve: ―O essencial de minha interpretação
2
Cf. Höffe, 1986, p. 91.
―La tesis es que todo contenido sensible, cualquiera que sea su naturaleza, debe sujetarse a las categorías
[...]‖ (Allison, 1992, p. 218).
3
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pode resumir-se da seguinte maneira: a primeira parte da dedução se refere à validade
objetiva (objective Gültigkeit) das categorias, enquanto que a segunda parte se refere à
sua realidade objetiva (objective Realität).‖ 4 (Allison, 1992, p. 220). Contudo, tanto a
validade quanto a realidade objetiva das categorias são condições sintéticas, regidas pela
espontaneidade do entendimento.
1.1. Validade objetiva das categorias
A validade objetiva das categorias é, segundo Allison, uma condição geral dos objetos
(objective Gültigkeit), diretamente vinculada à estrutura forma dos juízos. Afirmar a
validade objetiva das categorias equivale a dizer que elas fundamentam, possibilitam e
legitimam a validade da síntese judicativa5. Em outros termos, a validade objetiva
acompanha os preceitos da lógica geral6 enquanto condições da verdade ou falsidade de
todos os juízos possíveis.
4
―Lo esencial de mi interpretación puede resumirse en la siguiente fórmula: la primera parte de la
<Deducción> se refiere a la validez objetiva (objective Gültigkeit) delas categorías, mientras que la
segunda parte se refiere a su realidad objetiva (objective Realität)‖. (Allison, 1992, p. 220).
5
Cf. Allison, 1992, p. 220.
6
Dentro do sistema lógico kantiano a lógica geral divide-se em lógica geral pura e aplicada. A lógica
geral pura compreende as regras formais e a priori do entendimento puro, ou seja, ela refere-se às normas
básicas do pensamento a priori; segundo Kant, a mesma ―contém as regras absolutamente necessárias do
pensamento, e ocupa-se portanto destes, independentemente da diversidade dos objetos a que possa
dirigir-se (Kant, 1985, p. 89). Neste mesmo sentido, Kant salienta que ―uma lógica geral, mais pura,
ocupa-se, pois, de princípios puros a priori e é um cânone do entendimento e da razão, mas só com
referencia ao que há de formal no seu uso, seja qual for o conteúdo (empírico ou transcendental)‖ (Kant,
1985, p. 90). De outro modo, a lógica geral aplicada é entendida por Kant como um conhecimento
psicológica baseado em dados empíricos, pelo que não se pode atribuir-lhe um valor transcendental, mas
apenas uma aplicabilidade geral, uma vez que, mesmo considerando dados empíricos, ela não distingue os
objetos determinados. Segundo Kant, ―uma lógica geral é aplicada, quando se ocupa das regras do uso do
entendimento nas condições empíricas subjetivas que a psicologia nos ensina. Tem, pois, princípios
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A validade objetiva aborda o objeto em sentido amplo, o qual contempla todo e
qualquer juízo sintetizado pelas categorias. Segundo Allison, o termo utilizado por Kant
para designar este sentido de objeto em geral é ―Objekt‖7. O objeto (Objekt) da validade
objetiva das categorias é uma condição necessária para a síntese transcendental dos
objetos reais (Gegenstand) 8, pois ela funda a possibilidade da experiência em geral.
O entendimento, cuja função é essencialmente sintética, unifica a diversidade intuída
em um conceito objetivamente válido9, isto é, num conceito geral de um objeto possível.
O conceito de objeto em geral (Objekt) é formado tão-somente pelas conexões
estabelecidas pelos elementos transcendentais do conhecimento humano10, pelo que a
validade objetiva das categorias, em relação ao objeto geral (Objekt), não determina a
realidade empírica (Gegenstand) do mesmo.
A condição geral da validade objetiva não implica, portanto, na totalidade da síntese
transcendental. Esta, por estabelecer a ligação entre conceitos e dados empíricos, deve
determinar, além da verdade formal, a condição real do objeto existente (Gegenstand).
Com efeito, em consonância com a validade objetiva das categorias, Allison afirma a
noção de realidade objetiva como sendo a determinante da síntese transcendental, pois
empíricos, embora seja, na verdade, geral na medida em que ocupa-se do uso do entendimento sem
distinção dos objetos‖ (Kant, 1985, p. 90). Para maior compreensão acerca destes conceitos: Cf: Kant,
1992, p. 36.
7
Cf. Allison, 1992, p. 221.
8
Segundo Allison, se por um lado Kant usa o termo Objekt como sendo uma condição geral da verdade
ou falsidade do objeto, por outro lado o termo Gegenstand representa o objeto da realidade objetiva, ou
seja, objeto (Gegenstand) expressa o sentido real do objeto, pelo que o mesmo deve, necessariamente,
estar ligado a uma experiência possível.
9
Cf. Allison, 1992, p. 236.
10
Ou seja, a síntese entre as formas puras da sensibilidade e as condições intelectuais do conhecimento
humano.
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―afirmar que um conceito tem realidade objetiva equivale a afirmar que se refere ou é
aplicado a um objeto real‖.11 (Allison, 1992, p. 221).
Ora, a validade objetiva demonstrou a necessidade das categorias em relação a todo e
qualquer conteúdo empírico, independente de sua natureza intuitiva. Todavia, para
completar a dedução, é necessário comprovar a aplicabilidade das categorias, não de
acordo com qualquer intuição, mas sim conforme a forma da intuição sensível
(humana).
1.2. Realidade objetiva das categorias
A segunda parte da Dedução Transcendental, que deve ser analisada pressupondo a
primeira, pretende completar a conexão da unidade sintética das categorias, para além
do diverso intuído em geral, sintetizando-as com o diverso particular da intuição
sensível. Provando a aplicabilidade das categorias à diversidade sensível da intuição
humana, Kant fundamenta a sua ―revolução copernicana‖ ao comprovar que toda
natureza humanamente possível encontra-se, necessariamente, determinada pelas
condições puras e a priori do entendimento.
Entendendo as categorias como regras puras que determinam a priori as leis naturais,
bem como dos objetos (Gegenstand) reais, clarifica-se a interpretação de Allison que
11
―Afirmar que un concepto tiene realidad objetiva equivale a afirmar que se refiere o es aplicable a un
objeto real.‖ (Allison, 1992, p. 221).
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pretende provar a realidade objetiva das categorias12, pois, como o próprio comentador
salienta, o objetivo central da segunda parte da dedução é ―provar que as categorias
possibilitam a natureza. Uma vez que, por natureza se entende aqui a totalidade dos
fenômenos ou objetos de uma experiência possível [...], isso, equivale em realidade à
demonstração de que as categorias possibilitam a experiência‖ 13 (Allison, 1992, p. 254).
Ao vincular as categorias puras e a priori do entendimento com as formas puras da
sensibilidade humana, Kant fundamenta dois aspectos imprescindíveis para a
compreensão da sua filosofia crítica, a saber: primeiro, a comprovação que a unidade
das formas puras da intuição, produzida pela síntese da imaginação, encontra-se regida
pelas categorias. Por conseguinte, evidencia-se a possibilidade de conhecimentos
sintéticos a priori,14 os quais são basilares para a totalidade do projeto crítico kantiano.
Demonstrando a realidade objetiva das categorias (Gegenstand), Kant completa a
Dedução Transcendental provando, assim, que toda realidade humanamente possível
encontra-se,
necessariamente,
determinada
pelas
condições
intelectuais
do
entendimento. A síntese transcendental, que deve ser compreendida como síntese
categorial, é a condição de possibilidade de todo e qualquer objeto, pois toda unificação
(neste conjunto estão contidas a unidade da apercepção, a síntese da imaginação e a
síntese da apreensão) encontra-se condicionada pela síntese das categorias.
12
Cf. Allison, 1992, p. 220-221.
―[...] es poner de manifiesto que las categorías hacen posible la naturaleza. En tanto que por naturaleza
se entiende aquí la totalidad de los fenómenos u objetos de posible experiencia [...], equivale en realidad a
demostrar que las categorías hacen posible la experiencia.‖ (Allison, 1992, p. 254).
13
14
As categorias, ao determinar as formas puras da intuição, articulam conhecimentos
sintéticos (intuição e conceito) de forma totalmente a priori, ou seja, conhecimento
sintético, contudo, possibilitado tão-semente a partir dos elementos transcendentais a
priori.
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Por conseguinte, toda a síntese, pela qual se torna possível a própria percepção, está
submetida às categorias; e como a experiência é um conhecimento mediante
percepções ligadas entre si, as categorias são condições da possibilidade da
experiência e têm pois também validade a priori em relação a todos os objetos da
experiência (Kant, 1985, p. 163-164).
Portanto, segundo a abordagem de Allison, tanto a validade quanto a realidade objetiva
das categorias corroboram a tese que vincula toda e qualquer síntese às regras a priori
do entendimento. Nesta interpretação, a Dedução Transcendental pretende mostrar que
todas as sínteses possíveis estão, necessariamente, regidas pelas categorias.15 Ao provar
a aplicabilidade das categorias puras e a priori do entendimento à natureza empírica, a
Dedução Transcendental kantiana é levada acabo, evidenciando, portanto que toda e
qualquer lei ou objeto humanamente possível encontra-se, necessariamente, submetido
às condições intelectuais do conhecimento humano.
Considerações finais
A interpretação de Allison, acerca do idealismo transcendental kantiano, pretende
apresentar, sobretudo, uma defesa da filosofia crítica de Kant. Esta apologia de Allison
pressupõe uma unidade sistemática da filosofia kantiana. Na Dedução Transcendental
das categorias, tal unidade e apresentada por Allison como sendo o fundamento basilar
da síntese transcendental. A validade e a realidade objetiva das categorias seriam,
portanto, as condições e possibilidades da síntese transcendental e, por conseguinte, de
toda realidade fenomênica. A conexão entre predicados intelectuais e intuição sensível
não deixa de ser um ato sintético, todavia, para Allison, nada poderia ser sintetizado
15
Cf. Allison, 1992, p. 264.
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sem a espontaneidade das categorias. ―A tese é que todo conteúdo sensível,
independente da natureza, deve sujeitar-se às categorias‖ (Allison, 1992, p. 218),16 de tal
forma que a síntese transcendental encontra-se inevitavelmente sujeita às condições
intelectuais do entendimento humano.
Neste sentido, todas as sínteses da Dedução Transcendental estão, igualmente, regidas
pelas categorias, pelo que a Dedução Transcendental deve, necessariamente, ser
analisada tomando como ponto norteador a espontaneidade do entendimento. Assim,
mesmo contendo argumentos e sínteses diferentes, a comprovação da aplicabilidade das
categorias à experiência possível somente pode ser levada a cabo considerando, em
todos os seus passos, a inevitável determinação de todas as sínteses da dedução pelas
condições transcendentais do entendimento. Nesta interpretação, Kant, na Dedução
Transcendental, além de provar a aplicabilidade das categorias puras do entendimento à
natureza empírica, apresenta aquela que talvez seja a ideia fundamental de sua
―revolução copernicana‖, a saber: que toda e qualquer lei, objeto ou experiência
possível encontra-se, necessariamente, submetida às condições intelectuais do
entendimento humano.
REFERÊNCIAS
16
―La tesis es que todo contenido sensible, cualquiera que sea su naturaleza, debe sujetarse a las
categorías [...]‖ (Allison, 1992, p. 218).
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London, Methuen & Co. Ltd, 1966.
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A DISSOLUÇÃO DO SUJEITO NA DOUTRINA NIETZSCHIANA DA
VONTADE DE POTÊNCIA - Marioni Fischer de Mello
Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
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Palavras-chave: sujeito; crítica; metafísica; efetividade
A dissolução do sujeito, evidenciada na crítica de Nietzsche à metafísica, se efetiva com
a doutrina da vontade de potência, no terceiro período de sua obra25. Nesta fase o
filósofo delineia com maior precisão sua doutrina e tais críticas tornam-se incisivas
conduzindo à compreensão dos motivos pelos quais ela desintegra a noção tradicional
de sujeito. Tal empreendimento é orientado a partir de uma reflexão complexa, na qual a
efetividade26, preconizada pela dinamicidade da vida, se encarrega de produzir. A
dissolução do sujeito metafísico proposta pelo pensador arrasta consigo outros conceitos
canônicos da metafísica que fenecem concomitantemente. O objetivo deste trabalho é,
no entanto, elucidar de maneira preliminar o encaminhamento teórico a partir do qual
Nietzsche estabelece a superação do conceito tradicional de sujeito.
25
Sobre a periodização da obra de Nietzsche ver Marton (2005, p.30).
Há na filosofia de Nietzsche uma diferenciação entre Efetividade (Wirklichkeit) e Realidade (Realität).
O primeiro termo designaria o produto da interpretação e representação humana do existente. O segundo
designa o próprio existente em sua dinamicidade, imprevisibilidade e impossível determinação absoluta.
(cf. nota de Barros in Complexidade da efetividade, realidade e perspectivismo, 2010, p. 12).
26
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A Inconsistência do Sujeito na Crítica de Nietzsche à Metafísica
Em sua crítica Nietzsche denuncia o desprezo à efetividade como consequência da
dicotomia instituída pela metafísica, impondo radicalmente a condenação à vida:
A atitude a parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida,
descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente,
passando a valer quase como atitude filosófica em si – ela é sobretudo uma
consequência da precariedade de condições em que a filosofia surgiu e subsistiu
(GM/GM, § 10)27.
A ênfase na desaprovação à atitude metafísica que nega a vida justifica-se considerando
a relevância das configurações impulsionais que o corpo representa em sua filosofia. Ao
erigir suas críticas aos conceitos absolutos e eternos que a fundamentam, torna-se
imprescindível dirigir esforços a destituir de validade a autonomia do conceito de
sujeito, pelo qual o pressuposto de uma alma imortal define a essência humana,
pressupondo um além-mundo e negando a efetividade. Na interpretação nietzschiana a
alma perde o status de referência fundamental para se entender o homem – configuração
instintual que se institui tão somente no vir-a-ser.
Se a metafísica erigiu seus pressupostos pelo dualismo conceitual28 que a caracterizou,
preconizando um além-mundo alcançado pela alma – instâncias superiores – atingidas
27
Será adotado neste estudo o padrão de abreviaturas das obras de Nietzsche tal como convencionado
pelos Cadernos Nietzsche a partir da edição crítica das obras completas organizadas por Colli e
Montinari: EH/EH – Ecce Homo; GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos); JGB/BM –
Jenseits von Gut und Böse (Para Além de Bem e Mal); GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia
da Moral); Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim Falou Zaratustra); AC/AC – Der Antichrist (O
Anticristo).
28
Sujeito / Objeto, Subjetivo / Objetivo, Material /Espiritual, Interior /Exterior, Corpo /Alma, Bem /Mal,
Verdade /Falsidade, Divino / Humano, Aparência / Realidade, etc.
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ante a negação e renúncia do corpo, sua fundamentação carece ser revista pela
genealogia nietzschiana que diagnostica e denuncia a instabilidade das bases sob as
quais ela se sustenta. Para Nietzsche,
tudo o que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias; nada
realmente vivo saiu de suas mãos. Eles matam, eles empalham quando adoram, esses
idólatras de conceitos (...) a morte, a mudança, a idade, assim como a procriação e o
crescimento, são para eles objeções (...) Moral: desembaraçar-se do engano dos
sentidos, do vir-a-ser, da história (...) dizer não a tudo o que crê nos sentidos (...) e,
sobretudo, fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de
todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante
para portar-se como se fosse real!...‖ (GD/CI, ―A ―Razão‖ na Filosofia‖, § 1).
Nietzsche visa aniquilar o pressuposto metafísico que nega o vir-a-ser, instaurado como
fundamentação da filosofia, preconizado no Fédon29, quando Sócrates em seu diálogo
predica a Símias: ―É nisto então, primeiramente, que se manifesta o filósofo: em
separar, o mais possível e em grau superior aos outros homens, a alma do comércio com
o corpo‖ (PLATÃO. 1975, p. 15). Sócrates despreza o corpo considerando que os
homens vivem nele encarcerados e o projeta como empecilho ao conhecimento devido à
inexatidão dos sentidos (cf. PLATÃO. 1975, p. 15-17), como se evidencia na seguinte
passagem:
Mas que significa purificar a alma, se não o que já outrora se dizia: separá-la o mais
possível do corpo e acostumá-la a recolher-se de todas as suas partes e a unir-se a si
mesma, vivendo, na medida das suas forças, tanto no presente como no futuro isolada
e por si, livre do corpo como duma prisão? (PLATÃO. 1975, p. 19).
Transfigurado e deturpado em mero receptáculo da alma na depreciativa concepção
socrático-platônica, o corpo, reconhecido por Nietzsche como configuração de impulsos
29
Platão. Tradução de Dias Palmeira. Atlântida Editora, Coimbra, 1975.
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em luta por mais potência, foi relegado a mais cruel das classificações. Tornou-se o
grande vilão que se interpõe à verdade e ao conhecimento, sendo literalmente carregado
como um fardo do qual se almeja livrar. Nietzsche, contudo, reafirma sua posição a
favor da vida, quando reconhece por detrás dos sentidos e do espírito o ser próprio:
O corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade. Mesmo em vossa estultice
e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos
digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida.
Não consegue mais o que quer acima de tudo: – criar para além de si. Isto ele quer
acima de tudo; é o seu férvido anseio. Mas achou que, agora, era tarde demais para
isso; – e, assim, o vosso ser próprio quer perecer, ó desprezadores da vida. Perecer,
quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não
conseguis mais criar para além de vós. E, por isso, agora, vos assanhais contra a vida e
a terra. Há uma inconsciente inveja no vesgo olhar do vosso desprezo. (Za/ZA, ―Dos
desprezadores do corpo‖, § 3).
Diante de tal prerrogativa, a alma: pura, eterna, imutável, uniforme, inteligível, divina e
capaz de alcançar o conhecimento, de acordo com a Teoria das Ideias de Platão, atrelada
ao corpo, tão somente capaz de perceber o mundo concreto pelos sentidos, como pálida
reprodução do mundo das Ideias, constitui uma das dualidades ferrenhamente criticadas
por Nietzsche. Tais dualismos circunscrevem o centro nevrálgico da crítica de Nietzsche
à metafísica, a qual o filósofo busca superar, consolidando a efetividade a partir da
doutrina da vontade de potência.
Criação de Novas Perspectivas: a doutrina da vontade de potência
Há na filosofia nietzschiana uma relação de interdependência entre a dissolvência da
noção de sujeito e a luta de impulsos por mais potência, evidenciando que sua investida
não se trata de mera destruição visando ultrapassar os conceitos tradicionais da
metafísica sem propor novas perspectivas. Tal atitude é observada em uma passagem na
qual o filósofo se reporta à multiplicidade de forças que atuam no organismo e da
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impossibilidade de sua unificação, sugerindo outras possibilidades para a compreensão
do conceito de alma:
A crença que vê a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível (...) deve ser
eliminada da ciência! Seja dito entre nós que não é necessário, absolutamente, livrarse com isso da ―alma‖ mesma (...). Está aberto o caminho para novas versões e
refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ―alma mortal‖, ―alma como
pluralidade do sujeito‖ e ―alma como estrutura social dos impulsos e afetos‖ (GD/CI,
―Dos Preconceitos dos Filósofos‖, § 12).
Nietzsche elucida o desenvolvimento de sua filosofia pelas configurações agônicas de
impulsos que agem no mundo e, consequentemente, no organismo humano, enunciando
suas concepções adverte: ―Qual pode ser a nossa doutrina? – Que ninguém dá ao ser
humano suas características, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais,
nem ele próprio‖ (GD/CI, ―Os Quatro Grandes Erros‖, § 8). Sem finalidade,
interferência teleológica ou transcendente, independentes de qualquer relação
consciente, essas forças múltiplas se efetivam num movimento oscilatório constante em
luta por mais potência. Transitórias em suas relações de intensificação e domínio tais
forças se configuram num processo dinâmico e contínuo, que desconstrói a noção de um
―eu‖ puro, de um sujeito subjacente à ação.
Outorgado estatuto de plena radicalidade à efetividade, a dualidade metafísica é
superada e a multiplicidade de impulsos que configuram o vir-a-ser passa a ser
considerada. Sustentada como único critério a partir do qual se torna possível qualquer
pretensão valorativa, a vida irromperá plena em sua investigação e diagnósticos
fisiopsicológicos, instituindo o corpo enquanto instância privilegiada de sua
investigação, pois é onde atuam as forças instintuais que balizam sua filosofia. Quanto a
isso, ajuíza Nietzsche:
Que sentido tem aqueles conceitos mentirosos, os conceitos auxiliares de moral,
―alma‖, ―espírito‖, ―livre-arbítrio‖, ―Deus‖, senão o de arruinar fisiologicamente a
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humanidade?... Quando se retira a seriedade da autoconservação, da fortificação do
corpo, ou seja, da vida, quando se faz da anemia um ideal, do desprezo ao corpo a
―salvação da alma‖, que é isto, senão uma receita de décadence? – A perda do centro
de gravidade, a resistência aos instintos naturais, em uma palavra, a ―ausência de si‖ –
a isto chamou moral até agora... (EH/EH, ―AURORA: pensamentos sobre a moral
como preconceito‖§ 2).
Nietzsche renuncia à filosofia platônica, na qual a alma se opõe ao corpo que é
desprezado, e a refuta, reconhecendo em Platão ―o mais voluntarioso ‗ partidário do
além‘, o grande caluniador da vida‖ (GM/GM, § 25). Vislumbra na configuração de
impulsos em luta por mais potência uma transgressão às crenças que fundamentam a
metafísica.
Considerações Finais
Ao eleger o corpo como fio condutor de sua filosofia, longe de promover mera inversão
em relação aos pressupostos da alma e, para além de uma concepção reducionista, o
filósofo articula uma abordagem complexa e intrincada que identifica no corpo a mesma
composição impulsional que configura o mundo em toda a sua constituição: a luta de
forças por superação e a assimilação de configurações impulsionais desierarquizadas.
Nietzsche sustenta a corporeidade como cadeia instintual que age indiferente à
consciência humana se intensificando ou decrescendo em potência. ―A maior parte do
pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas (...) ―estar
consciente‖ não se opõe de algum modo decisivo ao que é instintivo‖ (JGB/BM, ―Dos
Preconceitos dos Filósofos‖, § 3).
Decorrente da adaptação humana aos influxos do vir-a-ser, a racionalidade que,
engendrada pelas crenças metafísicas, tomava lugar de destaque na configuração do
homem, segregando os instintos naturais que o caracterizavam e distinguindo-o
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demarcava sua supremacia ante as demais espécies, é agora restituída pela genealogia
nietzschiana ao seu status originário. Tal reestabelecimento se deve a impossibilidade da
doutrina impulsional (leia-se vontade de potência) – devido à multiplicidade relacional
de forças que atuam no organismo, constituindo de maneira difusa as bases desse órgão,
que a linguagem habituou-se a chamar de ―consciência‖ – em admitir uma noção de
individualidade que tende a unificar aquelas hierarquias de impulsos que lutam entre si
por mais potência, visando superação e assimilação.
A partir dessas considerações percebe-se que para Nietzsche ―não somos um sujeito
‗único‘: há uma pluralidade de sujeitos cuja interação e luta formam nosso pensamento
e consciência‖ (Fragmento póstumo XI 40[42] de agosto/setembro de 1885). Reportar
tais relações a um suposto ―eu‖ centralizador desses processos configuraria, para
Nietzsche, um equívoco da linguagem, que se limita a considerar os influxos que
caracterizam a expressão dessas forças como integrados sob a forma de um sujeito.
Se o mundo e mesmo o organismo humano são configurações de impulsos lutando entre
si por mais potência, numa desestabilização contínua instituindo um desequilíbrio
constante, num antagonismo cuja força geradora é desencadeada pelas múltiplas e
indefinidas relações que se estabelecem nesse processo, a ação momentânea que
permeia o instante não pode ser gerida ou impetrada por um sujeito plasmado sob as
nuances metafísicas. Ante tal instabilidade, não pode haver uma substância absoluta a
agenciar uma configuração plural em permanente mutabilidade.
O sujeito, ao qual a linguagem pela força dissimulatória da gramática equivocadamente
conferiu a responsabilidade, enquanto causa de uma ação desencadeada pela cadeia de
impulsos dominante em uma circunstância específica e momentânea, fenece, assim, ante
a investida nietzschiana. Na perspectiva de Nietzsche o sujeito metafísico, enquanto
relação processual configurada na plenitude do instante, se dissolve na efetividade, se
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dispersa na efemeridade do instante em que se configura, sem possibilidade de
apreensão. Sua existência cumpre-se apenas no vir-a-ser e apenas sob tal contingência
pode tornando-se, tornar-se, fazer-se, enfim, efetivar-se.
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, F. W. Assim Falou Zaratustra. Tradução Mário da Silva. 17. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
______. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.Tradução e notas
de Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
______. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução e notas de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
______. O Anticristo: maldição ao cristianismo: ditirambos de Dionísio. Tradução e
notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução e notas de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BARROS, R. Complexidade da efetividade, realidade e perspectivismo. In: Revista
Trágica: Estudos sobre Nietzsche. v. 3, n. 2, 2010, p. 112-121.
MARTON, S. Nietzsche na Alemanha. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.
PLATÃO. Fédon. Tradução de Dias Palmeira. Atlântida Editora, Coimbra, 1975.
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A ESSÊNCIA DA EXPERIÊNCIA NA “CRÍTICA DA RAZÃO PURA” [B] Pedro Henrique Vieira
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Palavras-chave: experiência; percepção; síntese; consciência de si.
Por ocasião da demonstração dos princípios sintéticos puros da natureza ou experiência
real, Kant1 define esta última como
[...] um conhecimento empírico, isto é, um conhecimento que determina um objeto
[Objekt] mediante percepções [Wahrnehmungen]. É, pois, uma síntese das percepções,
que não está contida na percepção, antes contém, numa consciência, a unidade
sintética do seu diverso, unidade que constitui o essencial2 de um conhecimento dos
objetos dos sentidos, isto é, da experiência [Erfahrung] (não simplesmente da intuição
ou da sensação dos sentidos). (B 218-219)
1
Nas citações à Crítica da razão pura (doravante denominada CRP), a paginação indica as edições
originais de 1781 (primeira) e de 1787 (segunda), sinalizadas respectivamente pelas letras A e B.
2
A filosofia crítica herda da escola de Wolff a noção de ―essência‖ como ―possibilidade‖. Comporta-a sob
a designação de ―essência lógica‖, princípio daquilo que pertence à possibilidade de algo, e lhe contrapõe
a noção de ―essência real‖ ou ―natural‖, princípio último daquilo que existe. (Cf. CAYGILL, 2000, p.
127ss) Isso porque Kant polariza a síntese entre o conceito de um objeto, correlacionado ao pensamento
do eu, e o imediato ―dar-se‖ intuitivamente de uma existência independente da vontade. O conhecimento
humano é discursivo, isto é, se relaciona, mediante determinações conceituais prévias, com a matéria
sensível. Porquanto os objetos são sinteticamente determinados, é possível analiticamente expor tudo o
que pertence a sua possibilidade a priori. Todavia, é insondável o fundamento da existência que se dá à
intuição. As coisas em si mesmas, que temos de pensar como sua causa extra intellectum, são o
incognoscível. Logo, quando perguntamos pela essência da experiência, limitamo-nos a investigar os
―princípios da exposição das manifestações [Erscheinungen]‖ (A 247/B303), isto é, as condições prévias
à nossa experiência.
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Entendida como conhecimento de objetos empíricos, a experiência, como se esclarece já
no primeiro parágrafo da Introdução à CRP, é o resultado da transformação que a
faculdade intelectual do homem opera sobre a ―matéria bruta das impressões sensíveis‖.
(Cf. A/B 1-2, passagem reescrita para a segunda edição) Seus ―dois troncos‖,
―porventura oriundos de uma raiz comum, mas para nós desconhecida‖, são a
sensibilidade [Sinnlichkeit] e o entendimento [Verstand]. (Cf. A 15/B 29) Aquela é a
capacidade de receber intuição, que é ―[...] o fim para o qual tende, como meio, todo o
pensamento‖ (A 19/ B 33) e o único modo de referência imediata à existência exterior,
que se manifesta como sensação. O entendimento, por sua vez, é a capacidade de pensar
as intuições, isto é, de submetê-las segundo conceitos à unidade sintética da
consciência. ―Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento,
nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos
são cegas.‖ (A 51/B 75) Como consequência, ―as condições da possibilidade da
experiência em geral são, ao mesmo tempo‖ e tão somente, ―condições da possibilidade
dos objetos [Gegenstände] da experiência‖ (A 111, 158/B 197).
Inteiramente perpassada por esta compreensão, a CRP – em especial nos primeiros
decênios que seguiram suas publicações originais, – soou para muitos um convite ao
subjetivismo absoluto, à assimilação completa do eu transcendental como fundamento
último de toda efetividade. Não obstante, ou mesmo precisamente por isso, a obra
parecia carregar uma contradição insolúvel: como poderia Kant deduzir a realidade das
intuições da coisa em si, se esta, ao fim, era problematicamente pensada? Sob essa
perspectiva, é necessária uma reinterpretação do percurso da investigação crítica que
pode certamente conduzir a destinos alheios às pretensões do filósofo de Königsberg.
Todavia, se é possível ler, em especial com base na primeira edição, esse
―fenomenalismo‖ (Cf. VILLACAÑAS BERLANGA, p. 74ss) radical, também parece
que, ao menos na edição de 1787, Kant decididamente acentua a necessidade do dar-se à
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intuição da existência determinável como objeto. A reformulação da Dedução
transcendental das categorias e a inclusão de uma Refutação do idealismo fortalecem a
concepção das manifestações3 sensíveis como abertura imediata àquilo que
posteriormente poderá se configurar como experiência. Desmorona, nesse caso, a
necessidade da coisa em si como fundamento material da intuição e seu papel fica
reservado a conceito limite de algo incognoscível, extra intellectum, a que referimos as
intuições, como condição para sua ligação sob conceitos. No ―mundo del conocimiento
objetivo‖, a coisa em si seria requerida tão somente como ―límite negativo de todas las
preguntas, límite que sólo se divisa desde el lado de la pregunta e y del silencio, no
desde el lado de la respuesta.‖ (VILLACAÑAS, 1992, p. 81s)
Propomo-nos aqui a lançar alguma luz sobre a investigação acerca da essência da
experiência – i. e., de suas condições de possibilidade – na segunda edição Crítica da
Razão Pura, pois esse se mostra um privilegiado questionamento acerca do estatuto da
representação na filosofia kantiana, na formulação que aparentemente mais se presta aos
propósitos do ideal ilustrado de ciência universal. Portanto, trata-se de uma questão
concernente não só à coerência interna de uma ―teoria do conhecimento‖, mas ao
sentido total da filosofia crítica, à colocação dos fundamentos e de parte da resposta à
pergunta ―Que é o homem?‖, à qual, segundo Kant, se reconduzem todas as demais
perguntas filosóficas.
3
Kant chama de Erscheinung o objeto indeterminado de uma intuição empírica, que, ao menos segundo
A 248, se converte em Phaenomenon na medida em que é ―pensado como objeto, segundo a unidade das
categorias‖. Não há consenso no que toca esse ponto. Caygill, por exemplo, sustenta a distinção (Cf.
Caygill, Dicionário Kant, 2002, p. 32); Valerio Rohden, por outro lado, em nota de revisão técnica à
tradução brasileira do Dicionário de Caygill, afirma que, na segunda edição da CRP, ―[...] tais
diferenciações são eliminadas: Erscheinungen e phaenomena tornam-se sinônimos.‖ (ibidem, p 149, **)
Optamos aqui por ressaltar a diferença entre esses dois conceitos e garantir espaço para o caso de nela
residir uma distinção importante e, visto que a edição portuguesa aqui utilizada os traduz indistintamente
por fenómeno, modificaremos, nas citações, a tradução de Erscheinung para manifestação.
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***
A sensibilidade recebe as manifestações [Erscheinungen] sob formas puras que
permitem ordenamento e relação: espaço e tempo, ―grandezas infinitas dadas‖, que
precedem e em si contêm todas as determinações de suas limitações. As partes do
espaço simultaneamente se seguem justapostas uma à outra até o infinito; as do tempo
são possíveis segundo relações de sucessão e simultaneidade. Sua realidade é empírica,
pois sem elas não seriam possíveis percepção ou experiência, muito embora não
possuam qualquer validade com referência às coisas em si mesmas, nisso consistindo a
sua idealidade transcendental. O espaço é a forma do sentido externo; o tempo, a do
sentido interno: representamos sob relações temporais a atividade do próprio
pensamento, com suas inclinações, sentimentos e representações de objetos exteriores,
isto é, espaciais. Por isso, toda consciência externa implica na submissão das
manifestações espaciais a princípios puros do entendimento e o tempo é a forma das
representações em geral.
Disso se depreende que apenas mediante a submissão das intuições sensíveis à unidade
de sua síntese numa consciência é possível a percepção. Essa síntese é uma operação da
imaginação sobre as sensações que porventura serão ligadas pelo entendimento numa
experiência. Como é fácil observar, não percebemos a mera forma pura da intuição ou a
mera matéria sensível, mas sim grandezas espaço-temporais, que podem ser puras
(como, por exemplo, um triângulo) ou empíricas (como uma casa). Isso porque as
sensações homogêneas no espaço, dada sua independência em relação à vontade, são
percebidas como grandezas geométricas determinadas no espaço e sua existência é
prontamente concebida como continuação de percepções anteriores que a fundamentam.
Por conseguinte, o sentido interno é a representação da permanência de relações entre
inclinações, sentimentos e intuições espaciais. Nele as percepções se ordenam segundo
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sua sucessividade e simultaneidade, sem a ligação necessária que caracteriza a
experiência. Por exemplo: no enunciado ―quando carrego um corpo, sinto uma pressão
de peso‖ falta o reconhecimento de qualquer objeto como substrato da relação. Por
conseguinte, não se trata de um conhecimento acerca de um corpo, mas da mera
descrição de estados que, ainda que intersubjetivamente compreensível, não carrega
consigo qualquer pretensão de verdade ou falsidade.
Não obstante, é a partir dessa unidade subjetiva de estados de consciência que as
manifestações podem ser ligadas numa experiência em que a existência dos objetos é
intersubjetivamente conhecida sem a dependência de sua representação imediata atual.
Pela mudança das percepções no tempo permanente, é possível determinar no fenômeno
o substrato da relação e dizer, por exemplo, que ―o corpo é pesado‖, atribuindo ao
objeto o peso tornado predicado. Ademais, visto que as intuições sensíveis, que
preenchem apenas um instante, são imediatamente tomadas como continuação de
intuições anteriores, a ação no tempo pela qual uma age sobre a existência da outra pode
ser determinada pelo princípio da de causalidade, como nos juízos ―o sol aquece a
pedra‖ e ―a chuva molhou a rua‖. Por fim, visto que as substâncias agem entre si no
tempo, o entendimento as determina sob o conceito de comunidade universal, de modo
que o espaço e o tempo percebidos se encontram sempre totalmente preenchidos com
substâncias interativas.
A capacidade de unificação objetiva do diverso da intuição sensível (juízo) implica na
necessidade de se pensar (1) em conceitos puros (categorias) que operem como funções
de síntese das intuições numa consciência possível e (2) consequentemente no sujeito
como seu substrato transcendental. As intuições, que somente nos oferecem a
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contingência, não poderiam fornecer por si conceitos cuja origem a priori se atesta na
universalidade e certeza teórica.4 Com isso, além de elucidar a possibilidade da
experiência, Kant garante espaço para o conhecimento a priori, i. e., necessário e
universal, como na matemática pura e na ciência pura da natureza, que ―antecipam‖ as
regras pelas quais o entendimento e a imaginação (faculdades espontâneas) unificam as
percepções e a experiência.
Decorre disso que experiência é construção da forma conceitual da natureza, isto é,
determinação objetiva das manifestações no tempo e no espaço. Portanto, é vão querer
garantir sua concordância com as incognoscíveis coisas em si mesmas ou presumir
conhecer seres de puro pensamento que ultrapassam as condições da intuição humana.
Se, por um lado, o conhecimento se mostra a condição dos próprios objetos de
conhecimento, por outro, essas mesmas condições a priori não possuem qualquer
validade fora de sua referência à intuição empírica.
Disso concluímos que a essência experiência repousa na determinação, segundo regras
prévias, da forma conceitual da matéria intuída, isto é, na unidade simbiótica – expressa
nos juízos sintéticos a priori, – entre a espontaneidade do pensamento e a receptividade
da intuição. Ademais, como toda atividade do ânimo [Gemüt] tem por condição as
intuições recebidas, uma síntese a priori subjaz à própria possibilidade do
autorreconhecimento da consciência enquanto tal, da determinação de sua existência.
Experiência é, portanto, a submissão das intuições à forma – e às regras universais de
determinação dessa forma – da percepção de si mesmo.
REFERÊNCIAS
4
―[...] a derivação empírica [...] não se coaduna com a realidade dos conhecimentos da matemática pura e
os da ciência geral da natureza, sendo, por conseguinte, refutada pelo facto.‖ (B 127-128)
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19, fevereiro de 2006. pp. 109-148. Disponível em: Acesso em:
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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO CONSUMAÇÃO: UMA DEFINIÇÃO A
PARTIR DE JOHN DEWEY - Francieli Nunes da Rosa
Universidade de Passo Fundo
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Considerações Iniciais
O filósofo americano John Dewey, além de ser um dos mais importantes representantes
do pragmatismo e de contribuir para a pedagogia do início do século XX, realizou
significativas reflexões sobre a arte e a estética. Em sua obra Arte como experiência
aborda o conceito de experiência estética, nessa, Dewey busca conceber a arte não nos
termos do senso comum – que atribui o estético a algo meramente perceptivo e passivo;
e o artístico ao sumamente prático e ativo –, mas num senso maior de compreensão, de
uma inteligibilidade aprofundada dos objetos da natureza e do homem. Conforme
Dewey (2010) a ideia de que a arte é uma forma de conhecimento está implícita na
afirmação aristotélica de que a poesia é mais filosófica que a história. Assim, o filósofo
norte-americano aponta para uma complementaridade entre ambas as dimensões,
entendendo como limitações da experiência os excessos no fazer (como a rápida
sucessão de ações que impossibilita sua profundidade) e no sofrer (como a acepção de
sonhar, antever ou imaginar em excesso). Nesse sentido, ele propõe a existência de uma
atividade na própria percepção e de uma receptividade na prática, considerando que o
artista padece de cada detalhe do que cria.
O objetivo do texto é mostrar que, a experiência no qual Dewey descreve como estética
em seu livro Arte como experiência, não se reduz ao objeto sobre o qual se volta como
uma obra de arte qualquer, pois surge tanto em obras de arte – escultura, música, teatro,
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etc. – como em fatos corriqueiros do cotidiano. Com efeito, tal sorte de experiências é o
que impede que a vida siga incessantemente o fluxo da banalidade e do homogêneo. Ela
(experiência) se caracteriza por ser marcante, total e indistinta em termos afetivos,
intelectuais, volitivos e práticos, dada como um todo, pronta e imediatamente vivido,
que não pode ser decomposto em unidades distintas como as citadas sem que tal
procedimento artificial se dê às expensas de seu real significado. Ela surge como o fim
de um processo de intensidade gradativa, constituindo seu ápice ou consumação e
imprimindo sensações de magnitude visceral, consideravelmente marcante. A
experiência estética, portanto, é aquela que promove uma ruptura nos parâmetros
habituais de sentir e pensar, não impondo os critérios advindos do já experimentado no
passado àquilo que é experimentado no presente; não se reduzindo apenas à recognição.
Dessa forma desenvolveremos na primeira parte do texto uma abordagem sobre os
diferentes tipos de experiência que Dewey ressalta no livro Arte como experiência
(2010), tentando fazer a distinção, se é que existe entre: experiência singular, como ter
uma experiência e como ter uma reconstrução da experiência. Na segunda parte do texto
nos deteremos em analisar especificamente a experiência estética, o seu surgimento e
como um objeto, por exemplo, pode ser considerado estético sob o ponto de vista da
experiência humana. E, por fim, na terceira parte investigaremos o ato de expressão a
partir de uma perspectiva sensível da experiência estética em relação ao artista plástico
Alexander Grey, analisando suas obras de arte e suas contribuições para a Filosofia da
Arte.
A origem da experiência e suas particularidades
Segundo o dicionário Wikipédia (2011) a palavra experiência nos remete a ideia de
empiria ou empirismo que é um movimento que acredita nas experiências como únicas
e formadoras das ideias, discordando, portanto, da noção de ideias inatas. O termo tem
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uma etimologia dupla, a palavra latina experientia, de onde provém a palavra
experiência, é originária da expressão grega εμπειρισμός. Deriva-se também de um uso
mais específico da palavra empírico, relativo aos médicos ou cientistas cuja habilidade
está na experiência prática e não, necessariamente na instrução da teoria. Dewey,
porém, a conceitua de uma forma diferente, por um lado a experiência consiste em
experimentar, e por outro, em provar, ou seja, com base nas experiências que prova, o
indivíduo passa por um constante processo de reconstrução. Em seu livro Como
pensamos (1959, p.199) em um trecho intitulado – A significação da experiência –,
Dewey diz que:
O termo experiência pode interpretar-se seja como referência à atitude empírica, seja
como referência à atitude experimental. A experiência não é coisa rígida e fechada; é
viva e, portanto, cresce. Quando dominada pelo passado, pelo costume, pela rotina,
opõe, frequentemente, ao que é razoável, ao que é pensado. A experiência inclui,
porém, ainda a reflexão, que nos liberta da influência cerceante dos sentidos, dos
apetites da tradição. Assim, torna-se capaz de acolher e assimilar tudo o que o
pensamento mais exato e penetrante descobre.
Dewey utiliza tal palavra não num sentido individual, ou seja, que a experiência é
somente tudo aquilo que experimentamos. Mas a coloca lado a lado com o processo
reflexivo, com o pensamento, com a razão; não há experiência significativa se não for
racional e prática. Ela é interação do ser vivo com as condições ambientais e também,
entre indivíduos, pois está envolvida no próprio processo do viver; ela ocorre
continuamente, pois é interação. No livro Arte como experiência já referido, o filósofo
se utiliza de vários tipos de experiência, entre os quais, destacamos: experiência
singular; como ter uma experiência; e, como ter uma reconstrução da experiência.
Tentaremos desenvolver cada uma delas no decorrer do texto.
Entende-se por experiência singular tudo aquilo que o material vivenciado faz o
percurso até sua realização. Dessa forma Dewey (2010, p.109) diz que ―só então, ela é
integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente de outras
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experiências‖, ou seja, quando concluímos uma obra de modo satisfatório; quando um
problema recebe solução; quando escrevemos um poema, de todos esses modos,
conclui-se que o seu encerramento é uma consumação, e não uma cessação. Na medida
em que tal experiência carrega em si seu caráter individualizador, trata-se, portanto, de
uma experiência. A experiência singular é aquela que tem um começo e um fim, Dewey
(2010, p.110) dá o seguinte exemplo: ―Porque a vida não é uma marcha ou um fluxo
uniforme e ininterrupto. É feita de histórias, cada qual com seu enredo, seu início e
movimento para seu fim, cada qual com seu movimento rítmico e particular, cada qual
com sua qualidade não repetida, que a perpassa por inteiro‖.
Na experiência singular cada parte sucessiva (meio e indivíduo e/ou entre indivíduos)
flui livremente, sem interrupções para aquilo que vem a seguir; em uma experiência as
sensações vão de algo para algo, e quando uma parte leva a outra, e uma das partes dão
continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. Devido essa fusão não
temos uma experiência ―morta‖ ou sem significado, mas temos uma experiência
singular, e tal experiência tem uma unidade na qual Dewey (2010, p.112) chama de, por
exemplo, ―aquela refeição, aquela tempestade‖. Essa unidade é constituída por uma
aptidão que perpassa a experiência inteira, sobre as partes que a compõem, o indivíduo
passa a ter uma experiência.
Para o filósofo ter uma experiência não é o ponto mais importante, mas sim o que
fazemos dela e qual a continuidade que damos a ela; a experiência só tem valor se a
conectarmos com o meio, e essa conexão entre individuo e meio sofre uma relação entre
agir e sofrer, desse modo, tem-se uma experiência. Em decorrência disso Dewey
(1959b) dá o seguinte exemplo: ―Não existe experiência quando uma criança
simplesmente põe o dedo no fogo; será experiência quando o movimento se associa com
a dor que ela sofre, em consequência daquele ato‖. Ter uma experiência é associar
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retrospectivamente e prospectivamente entre aquilo que fazemos as coisas e aquilo que
em consequência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer. Uma experiência
primeiramente tem caráter ativo-passivo e não é, nesse primeiro momento, cognitiva; à
medida que é acrescentado valor numa experiência na percepção das relações ou
continuidades a que nos conduz, ela inclui a cognição na proporção em que seja
cumulativa ou conduza a alguma coisa ou tenha significação. Para o filósofo (2010,
p.122) ―toda experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum
aspecto do mundo em que ela vive‖, tal interação constitui a experiência total
vivenciada, e o encerramento que a conclui é a instituição de uma harmonia sentida.
Dessa forma, ter uma experiência está relacionado com a condução ou não da mesma, se
ela será significativa ou não, porque qualquer ação ou trabalho pode ter o nome de
experiência, mas se de fato, não for consumado, o significado real de se ter uma
experiência no entender de Dewey, não será educativa para a sua continuidade e
aprimoramento, não haverá reconstrução. Assim, podemos entender por reconstrução,
todas as coisas retidas da experiência passada, que tenderiam a ficar batidas devido à
rotina ou inertes pela falta de uso, transformando-se em coeficientes de novas aventuras
e conhecimentos se revestindo de um novo significado. Dewey no livro Vida e
Educação (1978, p.38) por meio de um exemplo visualiza como ocorre o processo de
reconstrução da experiência na vida do indivíduo, ele diz o seguinte:
1. A criança tenta alimentar-se por si mesma com uma colher. 2. Encontra dificuldade.
Falta-lhe a habilidade necessária. Seu organismo não tem o ―comportamento‖
necessário àquele ato. Tem várias outras habilidades e hábitos. Sabe segurar a colher,
sabe apanhar o alimento. Falta-lhe, porém, alguma coisa para poder alimentar-se por
si. 3. Experimenta novamente, sob a direção da ama ou da mãe. Experimenta, depois,
sozinha, de um modo, depois, de outro. 4. Afinal acerta, acha e aplica a habilidade que
lhe faltava. 5. A atividade começada em 1, detida por uma dificuldade em 2, prossegue
agora seu caminho. A criança alimenta-se por si mesma.
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Nesta ilustração o filósofo americano deixa evidente que o aprender é indispensável à
vida, resta salientar que tudo o que aprendemos e reorganizamos, reconstrói nossa vida.
A cada experiência comum que tentamos reorganizar e aprimorar chamamos de
reconstrução da experiência. Reconstruir uma experiência não é esquecer a experiência
passada e construir uma nova, mas é associar significado a aquela experiência antiga,
sem conteúdo e simples, e dar um novo sentido, uma nova forma de pensar e agir. De
todas essas formas de pensar o processo da experiência, Dewey não as coloca como
diferentes tipos de experiências, mas diferentes atitudes perante diferentes momentos a
que a utilizamos; ele não duplica ou triplica o conceito de experiência, apenas a coloca
em diferentes formas do agir humano. No meio dessa conceituação Dewey coloca a
experiência estética como sendo o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços
que pertencem a toda experiência normalmente completa. Para dar conta do objetivo
proposto do texto é necessário compreender melhor a ideia de experiência estética que
será exemplificada melhor no próximo tópico.
A consumação da experiência estética
A palavra ‗estético‘ refere-se à experiência como apreciação, percepção e deleite;
denota mais o ponto de vista do consumidor do que o produtor. Segundo uma crítica
que Dewey faz ―na língua inglesa não há uma palavra que inclua de forma inequívoca o
que é expresso nas palavras ‗artístico‘ e ‗estético‘‖. Ressalta também que, ―artístico se
refere primordialmente ao ato de produção, e estético, ao de percepção e prazer, a
inexistência de um termo que designe o conjunto dos dois processos é lamentável‖
(2010, pp. 125-126). O efeito desta separação entre ambos, é assimilar a arte como algo
que se sobrepõe ao material estético, ou leva a idea de que, como a arte é um processo
de criação, sua percepção e seu prazer que extrai-se dela, nada tem em comum com o
ato criativo. Compreender a ligação da arte como produção, e a percepção e apreciação
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como prazer, é manter entre si uma tentativa de mostrar que a concepção da experiência
consciente é uma relação entre o fazer e o estar sujeito a algo. A relação existente ao se
ter uma experiência entre agir e o ficar sujeito a algo, indicam que a distinção entre o
estético e o artístico não pode ser levada a ponto de se tornar uma separação. Dessa
forma, a arte, une a mesma relação entre o agir e o sofrer, entre a energia de saída e a de
entrada, que faz que uma experiência seja uma experiência.
A experiência estética é vista como inerentemente ligada à experiência de criar, assim
como a produção deve absorver em si as qualidades do produto, tal como percebidas, e
ser reguladas por elas, a visão, a audição e o paladar tornam-se estéticos na medida em
que há uma relação com uma forma distinta de atividade que classifica o que é
percebido. Por exemplo, um objeto é predominantemente estético quando gera o prazer
característico da percepção estética, quando os fatores determinantes de qualquer coisa
que se possa chamar de experiência singular, se elevam muito acima do limiar da
percepção e se tornam manifestos por eles mesmos. As obras de arte geralmente, se
apresentam a nós com um ar mais espontâneo, na arte segundo Dewey (2010, p.161) ―o
espontâneo é a completa absorção em um tema que é novo, e cujo frescor sustenta e
preserva a emoção. A trivialidade do tema e a imposição calculista são os dois inimigos
da espontaneidade de expressão‖. Portanto, a expressão manifestará a espontaneidade se
o material tiver sido absorvido de forma vital em uma experiência presente.
A experiência estética, não deixa de ser expressiva por colocar em voga a forma visível
da relação entre as coisas. Toda obra de arte em certa medida, se abstrai dos traços
particulares dos objetos expressados, caso fosse o contrário, ela apenas criaria, por meio
da imitação, uma ilusão da presença das próprias coisas. Por exemplo, a temática
adotada por Alex Grey na arte visionária parte da impressão pela técnica das
transparências com as quais dá verdadeiras aulas de anatomia humana, ilustra pessoas
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de ambos os sexos meditando, ou no ato sexual, Grey sempre demonstra uma
impressionante maturidade mística ao apresentar suas intuições com clareza, mesclando
com precisão simbologias sagradas sobrepondo em detalhes os corpos humanos34. Dessa
forma, a expressividade do todo para aquele que observa dotado de visão estética,
aumenta, ao invés de diminuir. No entender de Dewey ―estético‖ (2011, p.125):
não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro, seja pelo luxo ocioso
ou pela idealização transcendental, mas que é o desenvolvimento esclarecido e
intensificado de traços que pertencem a toda experiência normalmente completa. Essa
é a realidade que considero a única base segura sobre a qual se pode erigir a teoria
estética.
Dewey nos aponta a ideia sobre o sentido estético quando observamos uma obra de arte,
pois estético, é a mescla pertinente de uma experiência que tem um movimento
evolutivo rumo a sua consumação. Ele é parte da experiência que está sendo vivida, é o
ato de expressão, pois, em termos epistemológicos, o ato de expressão é um espremer,
um pressionar para fora. O ato expressivo que constitui a obra de arte é uma construção
no tempo, a verdadeira obra de arte é a construção de uma experiência integral que se dá
a partir da interação com o meio. O ato expressivo ocorrido na experiência estética não
é uma inspiração completa, mas é segundo Dewey (2010, p.155) ―o transporte de uma
inspiração até a conclusão por meio do material objetivo da percepção‖ a qual a
inspiração pode-se entender, como sendo aquilo que é definido de forma completa e
primorosa. A partir disso colocaremos e definiremos o ato de expressão na experiência
estética a partir das obras de arte do artista plástico Alex Grey, e ver sua colaboração
para a filosofia da arte numa perspectiva sensível-inteligível.
34
Parte do texto foi parafraseada de um blog da internet onde contém as obras de arte e os comentários do
artista plástico americano. Para ficar mais claro poder-se-á ter acesso ao blog nas referências finais
(2011b).
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O ato de expressão na experiência estética de Alex Grey
Um ato expressivo sob o ponto de vista de um observador externo ao ato é ilustrado
com um exemplo que Dewey dá no livro Arte como experiência (2010 p.149): ―a
princípio, o bebê chora do mesmo modo que vira a cabeça para acompanhar a luz; há
um impulso interno, mas não há nada a expressar‖ quando o mesmo bebê se torna mais
amadurecido ―aprende que determinados atos geram consequências diferentes, que, por
exemplo, ele recebe atenção quando chora, e que sorrir induz uma outra reação clara nos
que o cercam‖. Dessa forma, a criança começa a se dar conta do sentido daquilo que
faz; quando aprende o significado de um ato oriundo de uma pressão interna, a criança
se torna capaz de atos de verdadeira expressão. Neste caso há uma ligação entre a
expressão e a arte. Pois, seu ato espontâneo que antes era, torna-se proposital, então ela
começa a gerir e ordenar suas atividades, referindo-se as consequências do ato, tais
consequências são incorporadas como significado de atos posteriores, porque a relação
entre o fazer e o vivenciar é percebida por ela. A criança, então, pode chorar com um
propósito específico, seja por querer atenção, seja pela busca de um alívio, neste caso,
pode haver uma arte inexperiente.
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O ato de expressão sempre carrega em si um material natural, e quase todas as
concepções errôneas da natureza do ato expressivo se originam segundo Dewey ―na
ideia de que uma emoção só é completa em si, internamente, quando é anunciada com
um impacto sobre o material externo‖ (2010, p.156). Ela é essencial no ato expressivo,
na medida em que a emoção leva alguém a reunir um material afiliado ao clima que se
despertou, pode, quem sabe, resultar num poema, por exemplo. Na explosão direta, a
situação objetiva é o estímulo, a causa da emoção, na obra de arte, o material objetivo
transforma-se no conteúdo e no material da emoção, e não apenas em seu ensejo
evocador. Quando desenvolvemos um ato expressivo, a emoção funciona ―como um
íma que atrai para si o material apropriado: apropriado por ter uma afinidade emocional
com o estado de ânimo já desencadeado‖ (DEWEY, 2010, p.159). Dessa
forma,
podemos perceber nas obras do artista plástico Alexander Grey (2011b) a arte a serviço
da elevação sensível-inteligível, ele nos leva além de preconceitos e identificações
ilusórias para chegar ao campo infravermelho térmico do calor emanado do corpo no
ato expressivo. Leva-nos a um campo energético mostrando o padrão vibratório das
glândulas-chakras-sefirots35 gerando campos mais sutis como registrados nas fotografias
35
Chakras são órgãos energéticos que absorvem a energia, transformando-a e redistribuindo-a entre os
corpos. Por meio deles, também, são eliminadas as toxinas energéticas de todo o sistema. O chakra pode
ser considerado como uma glândula energética que está relacionada com o aspecto da aprendizagem da
alma, que tem atuação sobre determinadas partes, órgãos e glândulas do corpo físico. Nos chakras é onde
estão registrados todas as lembranças, traumas, bloqueios e padrões mentais e emocionais condicionantes
do passado. São as glândulas dos sentimentos e dos pensamentos e representa a personalidade, a maneira
de ser e de se expressar no mundo. O que é chamado de doença no corpo físico é, apenas, um sintoma de
uma disfunção energética que já existe muitos meses ou anos antes. A causa da doença não está no corpo
físico, mas nos chakras, onde estão os padrões mentais e emocionais, ou seja, a maneira como nós vemos
e reagirmos às outras pessoas e aos eventos da vida (2011c).
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kirlian36,
atingindo o eu espiritual, o self junguiano,
composto de matéria e energia. Grey em suas pinturas a
óleo traça detalhes mostrando a transparência de um casal
unido pelo beijo com o símbolo grego apeíron (ilimitado,
infinito, indefinido), unindo-os pelo timo no peito e pela
pineal na cabeça. Outra imagem que mostra o ato de
expressão
é
O
Beijo
de
Rodin37
o
artista
faz
tridimensionalmente com volumes e sombras do casal
congelado na ansiosa fração de segundo antes do toque dos
lábios no primeiro beijo. Grey nos brinda com sua visão pessoal do espiritual em outro
nível além do olho físico e corporal, além da mente
culturalmente cultivada para o transcendente, iniciando no
sensível e no inteligível, ou seja, indo além do corpo e da
natureza como pré-conceitual, chegando a nos fazer
vislumbrar com o transverbal ou o transindividual, colocando
o divino como algo físico. Assim, a arte envolve
primeiramente, o desenvolvimento e crescimento do próprio artista no fazer sua arteobra em processo, que é quando o transe do fazer artístico, faz com que o artista
inexista, o ego morra e se esqueça de si. Em segundo, a arte compartilha o
36
Fotografia Kirlian ou, num termo mais moderno, bioeletrografia, é o método de fotografia descoberto
pelo padre Landell de Moura em 1904. Sob a designação de "O Perianto", ele descrevia minuciosamente
os efeitos eletro-luminescentes do que muitos acreditam ser a aura humana. Ele não pôde seguir adiante
em sua pesquisa, parando-a em 1912, por questões doutrinárias da Igreja Católica (2011d).
37
O Beijo é uma escultura em mármore do artista realista Auguste Rodin que está atualmente no Palacete
das Artes, em Salvador, no estado da Bahia. Na obra do escultor francês, o artista inspirou-se nos delírios
amorosos vividos com Camille Claudel, sua assistente (2011e).
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desenvolvimento espiritual do artista transpirada em sua obra para evocar intuições
similares no observador, colaborando com a expansão de nossa consciência por meio da
sensibilidade estética ao sagrado. Grey não faz uma distinção entre o espírito e a
matéria, mas parte do sensível para elevar-se ao inteligível; em todas as obras de arte
dele, podemos perceber a interação que existe entre o corpo e o espírito. Ele não desloca
um do outro, liga-os utilizando energias cósmicas física à energia física. Dessa forma,
parto da premissa de que podemos visualizar na obras de Grey aquilo que Dewey falou
em teoria sobre o ato de expressão na experiência estética. Podemos perceber na
imagem de Grey, na qual ele retrata um artista em total transe com as energias físicas e
as energias cósmicas, uma está em consonância com a outra,
não existe dualidade, tudo é uma só coisa. O artista naquele
momento
está
partindo
de
seu
conhecimento
sensível
(experiência) para o seu conhecimento inteligível (racional).
A expressão visual nesta obra pode assumir a forma de uma
metáfora, que há por trás da pintura um ato de identificação
afetiva (entre o artista da pintura e o seu material) e não
simplesmente uma comparação intelectual. O trabalho em si,
possui tonalidades artísticas quando as duas funções (emoção e razão) são executadas
em uma única operação, Dewey (2010, p.169) diz ―enquanto o pintor coloca tintas na
tela ou as imagina postas ali, suas ideias e sentimentos também são ordenados‖. Assim,
podemos perceber que tanto Dewey quanto Grey parecem estar em sintonia na medida
em que um teoriza a experiência estética e o outro experiencia a filosofia da arte. É no
ato de expressão que as energias postas ali poderão ser visualizadas em seu todo,
colocando lado a lado, conhecimento racional e conhecimento empírico tirando da arte
qualquer situação dualista que pode existir. A partir dessa nossa breve construção sobre
o ato de expressão teorizado e experienciado pelos artistas e apreciadores Dewey e
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Grey, deixam evidente que na arte não pode ocorrer qualquer espécie de separação ou
dualidade entre aquele que sente e aquele que faz; entre a emoção e a razão; entre a
criatura viva o objeto; entre a arte e o artístico. Portanto, a consumação estética é a
unificação entre ambas as dimensões, que infelizmente, foram deslocadas por inúmeros
julgamentos falsos acerca da experiência estética.
Considerações Finais
Vimos auxiliados por Dewey que a experiência estética não é algo que está fora da
experiência comum, mas ela por si só já é um mover da experiência em seu todo. Nos
mais diferentes tipos de experiência que Dewey ressalta em seu livro Arte como
experiência ele não desloca uma ou outra experiência, conceitua-a de forma diferente
em diferentes momentos em que está sendo vivenciada. Indica-nos uma série de
conflitos gerados pela ideia de separação entre arte e artístico o que denota um sentido
errôneo sobre tais conceitos; indica julgamentos falsos sobre a ideia de apreciador e
artista. A experiência estética é a experiência crescente que envolve a totalidade da
criatura viva e o objeto expressado, rumo a uma conclusão gratificante. Se existe arte no
trabalho cênico, por exemplo, o papel fica subordinado, a fim de ocupar a posição de
uma parte no todo. Por isso ele é qualificado pela forma estética ao ver de Dewey.
Portanto, a consumação da experiência estética, tem haver com a sua totalidade, na
medida em que nos perguntamos: quando realmente um trabalho é estético sob o prisma
humano? É possível conferir uma qualidade estética a todas as formas de produção?
Quando algo é uma experiência comum e quando é uma experiência estética? Talvez as
respostas de tais questões estejam no decorrente do próprio texto, pois só há uma
consumação de fato da experiência estética quando ela pode ser vista em sua totalidade
(racional e emocional) tanto pelo apreciador quanto pela pessoa que está elaborando sua
obra de arte, seja ela qual for.
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REFERÊNCIAS
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_____________. Democracia e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1959b.
_____________. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
____________. Vida e educação. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Empirismo 2011.
http://olhonu-fim.blogspot.com/p/alex-gray.html 2011b.
http://www.anjodeluz.com.br/os_chakras.htm 2011c.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fotografia_Kirlian 2011d.
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Beijo 2011e.
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A GENEALOGIA DO NÃO EGOÍSMO EM NIETZSCHE - Fernando de Sá
Moreira
Mestre em Filosofia (Unioeste) / Professor colaborador (Unioeste)
[email protected]
Palavras-chave: não egoísmo, má consciência, compaixão
Ao que tudo indica, não seríamos injustos com Nietzsche se, para começar esta
comunicação, fizermos uma pequena modificação em uma famosa passagem de um de
seus textos do primeiro período. Poderíamos questionar: como pôde vir à luz entre os
homens um legítimo e puro impulso não egoísta?1 Sabemos que Nietzsche toma a
compaixão como um de seus principais problemas no terceiro período. A seguinte
passagem de O anticristo permite visualizar isso: ―Ousou-se chamar a compaixão uma
virtude (– em toda moral nobre é considerada fraqueza –); foi-se mais longe, fez-se dela
a virtude, o solo e origem de todas as virtudes‖ (NIETZSCHE, 2007, pp. 13-14). Essa
passagem faz parte de uma crítica abertamente direcionada ao filósofo Arthur
Schopenhauer e, através dele, a um estado de décadence da cultura denunciado pela
valorização generalizada da compaixão, i.e., do não egoísmo, como o valor moral por
excelência.
1 Modificamos aqui a seguinte passagem: ―[...] como pôde vir à luz entre os homens um legítimo e puro
impulso à verdade‖ (NIETZSCHE, 2008b, p. 28).
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A posição de Nietzsche, como a passagem de O anticristo já nos permite antever,
confronta a moralidade que estabelece a supervalorização do não egoísmo. Essa crítica
se apresenta através de várias perspectivas ligeiramente diferentes, como, por exemplo,
a denúncia da parcialidade de uma moral do não egoísmo. Tomando Schopenhauer
como paradigma, facilmente se percebe que a argumentação em favor do não egoísmo
claramente busca identificá-lo com o único fundamento possível, verdadeiro e real da
moral. Schopenhauer não somente estabelece o não egoísmo como única motivação
verdadeiramente moral, como também pretende que reconheçamos como princípio
universalmente presente em todos os verdadeiros códigos morais, seja na história da
filosofia, seja na história das religiões. Sem maiores ressalvas, ele afirma: ―Em todos os
tempos, pregou-se muita e boa moral. Mas sua fundamentação andou sempre de mal a
pior‖ (SCHOPENHAUER, 2001, p. 12). Ou seja, Schopenhauer, ao desenvolver suas
reflexões acerca da moral, de modo algum coloca-se em posição polêmica contra os
princípios morais estabelecidos, mas traça outro caminho: seu problema é a justificação
desses princípios morais, a fundamentação da moral, da única e verdadeira moral.
Nietzsche, por sua vez, vislumbra um outro horizonte ao escrever sua crítica à moral,
pois, em primeiro lugar, seu discurso não propõe a existência de moralidades
verdadeiras e universalmente válidas. Todas as tábuas de valores, princípios e costumes
morais teriam suas origens em dois gêneros básicos de valorações morais: o modo nobre
e o modo escravo de valorar (cf. NIETZSCHE, 2005, p. 155). Tais modos de valorar
não seriam, a princípio, verdadeiros ou falsos em si mesmos e, muito menos, redutíveis
um ao outro. Não existiria, portanto, uma única ―essência‖ dos atos morais e, no limite,
sequer uma única moralidade verdadeira. Interpretações como a de Schopenhauer não
passariam, portanto, de uma limitação de perspectiva, uma recusa de investigar de modo
mais profundo, mais íntimo e, inclusive, mais histórico, a proveniência dos valores
morais.
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Interessa-nos, entretanto, apresentar mais detalhadamente outro elemento da crítica
nietzschiana à moral do não egoísmo: desejamos expor a hipótese do surgimento de
morais do não egoísmo defendida por Nietzsche. Esse problema é interessante pois, para
Nietzsche, as moralidades, seja ela nobre ou escrava, não são frutos de acasos,
raciocínios abstratos ou ainda de uma pretensa ―liberdade‖ humana de valorar de modo
completamente desvinculado com sua condição no mundo, pelo contrário, têm suas
proveniências nos impulsos que constituem estruturalmente os ―corpos‖ dos indivíduos,
das culturas ou das sociedades que valoram. Como Nietzsche propõe em Além de bem e
mal: ―[...] as morais não passam de uma semiótica dos afetos [Zeichensprache der
Affekte]‖ (NIETZSCHE, 2005, p. 76). No entanto, se todas as valorações morais tem
sua origem nos afetos e todos os afetos são, em sua condição mais íntima, vontade de
potência (Wille zur Macht), como é possível uma valoração moral que aparentemente
aja em sentido oposto aos afetos que claramente identificamos com a vontade de
potência, como os afetos de exploração, comando, dominação, crueldade, etc? Voltando
a apenas um passo adiante de nosso ponto de partida: como é possível que nesse
universo entendido como vontade de potência, no qual a infinita multiplicidade do
existente luta em cada e contra cada uma das suas infinitas partes, exista uma valoração
não egoísta, compassiva e abnegativa?
Nietzsche propõe uma curiosa origem para os sentimentos não egoístas: a má
consciência (schlechte Gewissen, cf. NIETZSCHE, 1998, p. 76). A relação entre má
consciência e não egoísmo, por si só, não constitui uma grande novidade da teoria
nietzschiana em relação a outras. Ela pode ser vista, por exemplo, na filosofia
schopenhaueriana, que usa o sentimento de remorso (também chamado em alemão de
―mordida de consciência‖, Gewissensbiss) para argumentar a favor da tese da vontade
una . O elemento curioso somente torna-se claro quando investigamos a proveniência da
má consciência em Nietzsche. Ela não provém de alguma evolução progressiva das
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faculdades e sentimentos humanos em direção a uma convivência mais tranquila e
uniforme entre os membros de uma sociedade; também não provém do reflexo de uma
pretensa unidade metafísica ou interferência divina qualquer em favor de uma
moralidade da compaixão. A má consciência não é, a princípio, uma ―régua‖ com a qual
poderíamos ―medir‖ o quanto a nossas ações estão de acordo com os ―princípios éticos
universais‖, sejam eles quais forem.
Para Nietzsche, a compaixão, a valorização das ações não egoístas e a própria má
consciência têm sua origem na crueldade (Grausamkeit). Ou seja, no limite, elas têm a
mesma origem de todas as outras ações que são normalmente classificadas oposta a elas.
Nos ―subterrâneos‖ de todas as ações considerada ―virtuosa‖ pela moral da compaixão
está, na verdade, o impulso que comumente é interpretado como seu oposto essencial:
está a crueldade, isto é, uma ―maldade desinteressada‖ (uninteressirte Bosheit). Assim,
como nas ações consideradas imorais a crueldade é o componente fundamental, ela
também está presente nas ações ditas ―virtuosas‖. Mas como isso pode ser? Como a
maldade desinteressada pode vestir-se de altruísmo, como pode tomar bem do outro
como superior e mais estimado do que o próprio bem?
Isso acontece porque as ações não egoístas não toma o bem do outro como fim da ação,
como suporiam diversas teorias moralistas contemporâneas a Nietzsche (e.g. Hume,
Schopenhauer, etc). A má consciência e a moral do não egoísmo são, na verdade,
crueldade voltada contra nós mesmos. Antes de uma ação voltada ao outro, o altruísmo
é a inversão do sentido mais natural da crueldade, que, ao invés de expor-se para fora,
impõe-se para dentro. São os cães selvagens do homem ainda não completamente
―domesticado‖ que, plenos de instintos selvagens, implodem aqui ou ali o próprio
cativeiro; ou ainda, é como uma doença que corrói e transforma o homem internamente;
mas uma doença que tem sua origem no próprio homem, não em um corpo estranho.
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Podemos perceber que não há aqui propriamente uma defesa um egoísmo no sentido
clássico. Neste sentido clássico, encontramos, por exemplo, a seguinte máxima de
Schopenhauer usada para definir a postura da ação egoísta: ―neminem iuva, imo omnes,
si forte conducit, laede [não ajudes a ninguém, mas prejudica a todos, se isto te for útil]‖
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 72). Entretanto, de acordo com Nietzsche, o impulso
mais elementar do viver não é um impulso de conservar-se na existência ou ainda de
procurar em toda e qualquer ação o próprio bem-estar. Contra esse tipo de interpretação
do egoísmo, que entende que toda ação tem por finalidade o bem-estar ou conservação
do agente, ele dirige diversas críticas, como por exemplo esta famosa passagem de
Assim falou Zaratustra em que a vida fala ao profeta persa:
―[…] Certamente não encontrou a verdade aquele que lhe desfechou a expressão 'vontade de existência' [Wille zum Dasein]: essa
vontade – não existe!
Porque: o que não existe não pode querer; mas, o que é existente, como poderia ainda querer existência!
Onde há vida também há vontade: mas não vontade de vida [Wille zum Leben], senão – é o que te ensino – vontade de potência [Wille
zur Macht]!
Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto que a própria vida; mas, através mesmo da avaliação, o que fala é – a vontade de potência
[Wille zur Macht]!‖ – (NIETZSCHE, 2008a, p. 144, tradução modificada)
O surgimento da consciência moral (Gewissen), para Nietzsche, é resultado de uma
mnemotécnica instituída a partir da dor, ou seja, da fixação de ideias a partir dos mais
diversos e criativos sistemas de crueldade. Essa condição lentamente molda o homem,
tornando-o confiável, constante e previsível, para os outros e para si mesmo. O homem
forte, depois desse longo processo preparatório, torna-se capaz de fazer promessas, pois,
a partir desse momento, torna-se senhor de seu próprio futuro e de sua própria vontade.
A este homem soberano é permitido fazer promessas, pois dotado de sua memória e
consciência
moral,
possui
o
―privilégio
extraordinário
da
responsabilidade
[Verantwortlichkeit]‖ (NIETZSCHE, 1998, p. 50), i.e., é capaz de responder por si
mesmo.
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Neste ponto, entretanto, a consciência (Gewissen) ainda não conhece a má consciência
(schlechte Gewissen). Não há aqui ainda a noção de consciência da culpa (Bewusstsein
der Schuld). Sobretudo não há ainda aqui a separação entre as boas e más ações nos
termos da moral de rebanho. A consciência não serve ao homem nobre, até aqui, como
um indicativo do valor do não egoísmo, também não indica uma mordida de
consciência (Gewissensbiss, remorso). A má consciência tem a sua origem e com ela a
valoração das ações não egoístas como ―morais em si mesmas‖ apenas no momento em
que a crueldade é posta para dentro pelo homem fraco, pelo escravo. Diferentemente do
homem forte que manifesta seus impulsos expondo-os, o homem fraco não consegue
manter a saúde da consciência e reverte o sentido mais natural da crueldade
interiorizando esses instintos, sendo cruel consigo mesmo. A compaixão torna-se valor
moral não pela satisfação que traria ao fazer o bem ao outro, mas pela satisfação de ser
cruel consigo mesmo, ela se torna condição de existência do fraco.
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. P. C. de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. M. da Silva.
17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008a.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. P. C. de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
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______. O anticristo; Ditirambos de Dionísio. Trad. P. C. de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
______. Sobre Verdade e Mentira. Trad. F. de M. Barros. São Paulo: Hedra, 2008b.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Trad. M. L. Cacciola. 2ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA TRAGÉDIA EM NIETZSCHE - Lucas
Sariom de Sousa
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
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Desde o início do nascimento da tragédia, Nietzsche pretende já introduzir os dois
conceitos chave que permearão toda a obra – isto que ele chama de apolíneo e
dionisíaco. São essas duas noções que devem tecer a nossa compreensão de arte, ato
este de uma construção não somente lógica: aqui o que nos é insinuado é de que a
intelecção não deve ser meramente racional, mas, longe disso, percebida intuitivamente,
formulada por essa experiência de idéias, noções, imagens que pouco a pouco, através
de todo o texto, vão se urdindo em nossa mente, tal como um romance enreda em nós
sua trama – e sua resolução.
Essas duas noções não nos devem fazer imaginar simplesmente os dois deuses gregos,
Apolo e Dionísio, mas tê-los como representantes de duas forças ou impulsos, tal como
nos oferece o espírito grego, através da própria compreensão construída através do
desenvolvimento de sua cultura. Ambos os impulsos caminham juntos, de modo que
podem ainda trazer para nós junto a si a própria noção que temos daquilo que é duplo:
positivo e negativo; preto e branco; seleto e disperso; claro e escuro; harmônico e
desarmônico; figurado e desfigurado; o sol e a lua; consonância e dissonância etc., etc.,
etc. Destarte assim outorgando uma dessas qualidades, as apolíneas, às artes plásticas e
um tanto da poesia – originado pelos efeitos dos sonhos; e as dionisíacas à música –
com sua essência na embriaguez. Sendo opostos, ao caminharem tão juntamente são
como os irmãos gêmeos que brigam entre si, ou o homem e a mulher que se unem
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mutuamente, de onde as faíscas resultantes geram o que mais abaixo se compreenderá
como o que há de mais nobre na arte, e é desse milagre que nasceu entre os áticos isso
que reconhecemos como a tragédia grega.
Quando digo que as artes plásticas e parte da poesia tiveram sua origem pelos sonhos,
digo que Nietzsche colocou a gênese das criações de Lucrécio como provindas das
fascinante e prazerosa experiência onírica. É claro que ele não se refere, e nem teria
como se basear nisso se este fosse o caso, a que todos os verdadeiros gênios escultores,
pintores e poetas antes de nos presentear com suas magnificências investigaram em seus
sonhos as formas de tal irrealidade incrível. Aqui nos é trazida, tal como antes
prometido, a oportunidade para aquela certeza imediata da introvisão: o sonho pode,
talvez, ser entendido como certa capacidade imaginativa de formulação de imagens
mentais, ainda que nos seja precisamente incompreensível em sua exatidão, algo que
somente o gênio em sua experiência direta, no ato, poderia absorver. Dessa alucinação
onírica, da qual enquanto reles espectadores só podemos provar sua fraca fragrância, da
verdade dessa bela ilusão é que sai o poetar do poeta, a pintura do pintor. Eis aquela
transluzente sensação de aparência na qual temos a propensão de pensar que vemos
outra, camuflada, que nos dá as formas imaginárias sem que propriamente as
imaginemos, mas percebamos. Tal dimensão, que somos impelidos a elucubrar somente
como ‗incompreensivelmente onírica‘, é de onde o artista traz suas obras – observandoas ―precisa e prazerosamente, pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base
nessas ocorrências exercita-se para a vida‖ (NIETZSCHE, pg. 28 e 29). Deve-se ainda
lembrar que juntamente a toda a perfeição desse círculo está a sapiente tranqüilidade, a
calma e a serenidade, trazida pela ingênua confiança no princípio de individuação,
excluindo tudo que chegue perto de paixões arrebatadoras ou emoções selvagens.
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Dionísio. Este é o outro impulso, contrário ao apolíneo. Na mesma medida em que um é
algo, este é exatamente o outro: terror, ruptura e perda do princípio de razão. Apesar de
todas as noções até então no presente texto passadas, contrapõe-se agora esta outra: um
delicioso e esplêndido êxtase – ascende do fundo mais íntimo do homem a essência do
dionisíaco quando brota em nós a alegria da beberagem, da dança, da primavera, da
alegria inefável, e é justamente toda essa violência báquica que nos traz o
esvanecimento completo do subjetivo. Esse impulso diz respeito deveras ao caos mais
absurdo, à perda mais completa de si, sob tal feitiço é que ―ele‖, o homem,
―desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares‖
(NIETZSCHE, pg. 31). Densa e grandiloqüente é a descrição de Nietzsche quanto ao
dionisíaco, eu, porém, concederei que o texto no seu decorrer construa melhor esta
noção.
Poderemos ponderar melhor ainda quanto à essência da arte caso pensemos esses dois
deuses, representantes dos dois impulsos respectivamente, como aqueles dos quais a
arte se procria como que diretamente: o artista (o humano) aqui de nada vale – por
assim dizer – quando se pensa a arte como irrompendo da própria natureza: por isso o
artista não cria, mas permite, através de sua imitação, a manifestação desses impulsos
anteriores a ele, pois ele não passa de um contemplador em qualquer das suas duas
experiências possíveis, sejam oníricas, sejam inebriantes. Ao lembrarmo-nos da incrível
capacidade plástica dos gregos, dote de seus olhos apaixonados; e daquelas festas
dionisíacas bárbaras, externas aos gregos em diversas maneiras, com sua desenfreada
licença sexual, selvageria, volúpia e crueldade, ou, enfim, o que já compreendemos
como o espírito dionisíaco; quando nos lembramos desses dois reflexos culturais
completamente opostos e do tímido florescer de uma miscigenação de impulsos entre os
gregos num preciso momento de seu desenvolvimento, podemos intuir de certa forma
essa tão prometida e importante reconciliação, geradora da tragédia, a terribilíssima –
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interessantíssimo momento esse que só se consegue entender ao percebê-lo como o
momento em que a própria natureza alcança sua primazia, sua alegria, de modo que
aquela desvairada destruição do subjetivo possa se tornar isto: um fenômeno artístico:
―somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos afetos do entusiasta dionisíaco
lembra – como um remédio lembra remédios letais – aquele fenômeno, segundo o qual
os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos. Da
mais elevada alegria soão grito de horror ou o lamento anelante por uma perda
irreparável‖ (NIETZSCHE, pg. 34).
E a música... Finalmente aqui podemos começar a mostrar como ela promove seu papel
fundamental. É muito claro e evidente que não fora um espírito báquico que, adentrado
entre os gregos, promoveu a lutieria, pois a música já existia naquele primeiro
momento, quando Apolo ainda tinha seu trono único e privilegiado. Ela, a arte das
musas, porém, seguia seus decretos: as imagens e formas, brilho e clareza só poderiam
ser figuradas por um ritmo calmo e constante, tal como bem perceberam aqueles que já
tiveram a oportunidade de ouvir, e.g., alguma reprodução dos Hinos Délficos a Apolo;
seus sons são somente insinuados, tal como na cítara grega, de som plácido e acatado;
finalmente, assim como Nietzsche expõe perfeitamente, a música apolínea era
arquitetura dórica em sons, com toda a sua beleza e majestade de forma. É fundamental
aqui o papel da música porque, no momento em que Dionísio entrou em jogo, entrou,
junto dele, sua sonora violência patética, e por onde? Por nada menos que a pungente
melodia junto à harmonia aterradora: essas duas características essenciais da música
antes aparecendo sempre com timidez e inibição, agora o homem é incitado
incomparavelmente à máxima intensificação das suas capacidades simbólicas –
símbolos novos para a manifestação da essência da natureza agora de acordo com a
nova possibilidade provida pela melodia, harmonia, etc.
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Até a pouco dizia que o impulso apolíneo é responsável não só a formas e a ordem e a
beleza, mas também a um tanto da poesia. Isso bem analisado nos exibe um problema:
quando pensamos nos impulsos geradores da tragédia em sua mais primeira expressão,
pensamos certamente em Homero e Arquíloco, o primeiro como o poeta, sonhador,
artista apolíneo; o segundo, belicosa e selvagemmente tangido pela existência, seu
simples contrário. Imediatamente, porém, surge-nos que é de se notar o quão seria
errôneo tratá-los como contrapostos um ao outro quanto a ser um objetivo e o outro
subjetivo, visto que ―só conhecemos o artista subjetivo como mau artista e exigimos em
cada gênero e nível da arte, primeiro e acima de tudo, a submissão do subjetivo, a
libertação das malhas do ―eu‖ e o emudecimento de toda a apetência e vontade
individuais, sim, uma vez que sem objetividade, sem pura contemplação desinteressada,
jamais podemos crer na mais ligeira produção verdadeiramente artística‖ (NIETZSCHE,
pg. 43). Assim, diante disso, o problema que deveras surge é o de como o poeta lírico é
possível quando ele é aquele que sempre diz ―eu‖? Analisado mais de perto, o poetar
mostra momentos antes do poetar efetivo, na preparação, não uma série de imagens,
mas um estado de ânimo musical – a poesia só se forma posteriormente. Isso mais o fato
de que a lírica antiga unia-se tão perfeita e facilmente com a música, ―poderemos então,
com base em nossa metafísica estética anteriormente exposta, explicar da seguinte
maneira o caso do poeta lírico. Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco,
totalmente um só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica
desse Uno-primordial em forma de música, ainda que esta seja, de outro modo,
denominada com justiça de repetição do mundo e de segunda moldagem deste: agora
porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho, sob a
influência apolínea do sonho‖ (NIETZSCHE, pg. 44). Desde o princípio o artista já
havia renunciado à sua subjetividade e sua unidade não passa de lampejo onírico: aquele
―eu‖, portanto, não poderia nunca ser fruto da subjetividade, mas, pelo contrário, do
mais íntimo do ser. É mui claro que ele em seu poetar necessita dizer ―eu‖, porém esta
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expressão não nos leva àquele homem, mas sim o único eu verdadeiro, total, eterno,
fundante, ou seja, o gênio universal. Quando a magia dionisíaca captada pelo lírico é
expressa por aquelas imagens, símbolos, palavras, que são sua forma final, não há aí as
mesmas imagens que o escultor plasma, nem a dor daquela música ouvida, nem há aí
Arquíloco! O artista, o verdadeiro artista, não é mais homem, não é mais indivíduo: é
medium, pois está liberto de uma vontade individual, e só isso é que possibilita as festas
da verdadeira e única seidade. Eia que aqui nos lembramos do que a pouco se disse: a
arte não é representação nossa, nem poderia existir por nossa causa, pois sequer somos
seus criadores! Nossa dignidade está no máximo em permitir que esse impulso se
realize, enquanto nós mesmos nos permitimos ser moldados enquanto supomos moldar
algo. Daí a belíssima frase que Nietzsche nos dá: ―Somente na medida em que o gênio,
no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele
sabe algo a respeito da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se,
miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos
e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo
tempo poeta, ator e espectador‖ (NIETZSCHE, pg. 47 e 48).
Arquíloco ainda pode nos favorecer com mais um dado: foi ele quem nos introduziu a
canção popular. Tão grandiosa é a arte apolíneo-dionisíaca que se pode dizer de certo
perpetuum vestigium, i.e., os frutos de uma arte tão magnífica geram frutos tais que
permanece e perdura de alguma forma em algum povo, ainda que tenha decaído
aparentemente por completo, e somente algo tão ingênuo e simples como a canção
popular poderia tocar um povo de modo a permitir seu mantenimento. Essa
característica provém da forma estrófica, é aí que Dionísio, revirando-se em busca de
alguma forma de manifestação encontrou uma aparência possível: a melodia ao
encontrar-se com a poesia é que dá belos frutos, mas não por qualquer combinação, mas
pela melodia, que, incessantemente geradora, ―lança à sua volta centelhas de imagens,
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as quais, em sua policromia, em sua abrupta mudança, em sua turbulenta precipitação,
revelam uma força selvagemmente estranha à aparência épica e ao tranqüilo fluir‖
(NIETZSCHE, pg. 49). Em Arquíloco começa um novo universo da poesia, e que se
mostra como a única relação possível entre palavra e som, quando se coloca a
linguagem no trabalho de imitar a música, buscando uma expressão análoga à música,
sofrendo, por assim dizer, o poder da música. E essa descarga da música em imagens,
enquanto imitadora em conceitos, só nos aparece de um modo: como vontade. A música
em sua essência não pode ser vontade, pois a vontade é o inestético, ela, porém, aparece
como vontade: como poderia ser a vontade se a música teve todo um processo para seu
aparecimento? Na medida em que se interpreta a música em termo de imagens, aí já há
a serenidade propriamente apolínea: a poesia lírica depende da música – a música,
porém, tolera a poesia. Oras, nada que a poesia pode expressar já não se encontra na
música, e é por isso que a linguagem nunca alcançará completamente o simbolismo
musical.
Mas a música é ainda mais importante quando pretendemos compreender a tragédia
grega e quando procuramos compará-la com o mito trágico, evidenciamos exatamente
isso. O que há de mais notável quando se tem em mente a tragédia, Nietzsche deixa
claro: é a co-presença de dois processos que subsistem lado a lado, i.e., o de olhar para
tal cena e querer ao mesmo tempo ir além deste olhar. Quando penetramos naquele
mundo interno de motivos, é como se pressentíssemos algo que ele chama de imagem
similiforme, de modo que o que queremos é ver essa imagem arquetípica jazida por
traz; nosso desejo é rasgar este véu, mas o que ocorre é um feitiço que impossibilita o
olho de ver tal nível. Este efeito é algo inatingível para uma arte simplesmente apolínea
– somente aliar-se à música pode dar esse efeito. Aqui, compartilha-se com a arte
apolínea o prazer da aparência, ainda que seja ao mesmo tempo possível negá-lo por um
prazer ao mesmo tempo maior, o da explosão, destruição da aparência. O interessante
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começa quando observamos que apesar daquela parte de tipo épica, a glorificação do
herói, é contraposta por dores, expiações, torturas, feiúra, contradições, e desarmonia
enfim. ―Ó céus‖, poderíamos pensar, ―de onde vem este prazer infernal, provindo de
coisas grotescas tais?‖. Oras, sequer há uma explicação – há somente uma maneira de
intuir por aquela certeza imediata: o prazer que o mito trágico gera é análogo à gozosa
sensação da dissonância na música, o néctar dos deuses, o valioso conteúdo do vaso de
Hermes – é algo que poderíamos dizer que vem naturalmente da relação homem-obra, a
simples percepção de tensão-relaxamento (se houve uma tônica e, em algum dado
momento uma quinta, é mui claro que logo após ouçamos novamente a tônica, ou se
estabelecerá outra tensão que, ainda assim, necessitará voltar, de alguma forma, à tônica
previamente estabelecida – eis com simplicidade a lei da dissonância). E tal como o
mito relaciona-se com a dissonância, o dionisíaco, com seu prazer na dor e no
sofrimento, é a matriz comum de um e de outro, da música e do mito trágico. Assim,
quando se estabeleceu acima que a tragédia dava-nos aquele querer incompreensível e
algo além do que víamos, que estava ali, mas que não conseguíamos nos desenfeitiçar
para isso; esse querer deve agora ser compreendido também analogamente. Quando
queremos na música ouvir, para além do que ouvimos, é esse infinito querer ouvir que
se relaciona com o querer ver da tragédia – é o mesmo: eis a sabedoria que se extrai da
música.
Assim, visto que o dionisíaco é o comum existente entre o trágico e a dissonância, a
música e o trágico, na verdade, aparecem como simplesmente inseparáveis: estão além
do impulso apolíneo; sua expressão se arrasta até as regiões terríveis do mundo e da
dissonância; ambas enlaçam-se e enredam-se com prazer através da dor. Ao
lembrarmos-nos do homem como criação da natureza, moldado por ela quando
pensamos ser ele o moldador, nos possibilitamos a pensar, tal como Nietzsche, não só
no homem como encarnação simplesmente da música, mas da própria dissonância, do
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trágico, do dionisíaco: e ele, assim, só poderia viver com uma ilusão extraordinária e
magnífica que o iludisse belamente em sua triste e dolorosa existência – daí Apolo.
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo.
Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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A LEITURA FILOSÓFICA NO ENSINO DE FILOSOFIA NO NÍVEL MÉDIO Ezequiel Cardozo da Silva
Acadêmico da Licenciatura em Filosofia da UFSM
Bolsista Pibid-Capes
Introdução
Um ponto em grande parte consensual no ensino de filosofia no nível médio é a
necessidade da presença do texto filosófico (clássico). Mas devido ao caráter abstrato de
tais escritos surge a questão de como compreendê-los, como torná-los acessíveis ao
leitor iniciante do ensino médio. Ora, a nosso ver, precisamos, então, desenvolver no
âmbito do ensino médio habilidades de leitura próprias a esse gênero textual, pois só
assim o aluno poderá adquirir uma atitude crítica diante dos textos e entrar em diálogo
com o pensamento filosófico. Assim, o objetivo de nossa pesquisa é mostrar aspectos
metodológicos básicos que devem fazer parte de uma leitura genuinamente filosófica no
ensino médio.
Propostas metodológicas
A leitura e a escrita são o fundamental numa aula de filosofia, sendo que a primeira
evidentemente possui íntima relação com a segunda. As obras que tomamos como
referência enfatizam que a leitura filosófica é algo distinto de outro tipo de leitura,
exigindo certos procedimentos e o desenvolvimento de certos hábitos para a
compreensão dos textos filosóficos. Por isso, trataremos inicialmente, a partir de
algumas propostas de leitura filosófica, da questão que enxergamos como a central: O
que é ler um texto filosófico ?
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Para Porta (2002), a filosofia procede basicamente por certos problemas. Portanto, o seu
ensino e a leitura dos textos filosóficos deve ter como foco o problema que um filósofo
se coloca, que muitas vezes não se apresenta de modo explícito no texto. Mas para
chegarmos à compreensão de um texto filosófico é preciso que sejamos capazes de fazer
o que ao autor denomina tradução do texto, que é uma reconstrução do pensamento do
autor de modo que nos possibilite explicá-lo a outras pessoas. Essa tradução se dá, por
sua vez, em quatro momentos: a re-tradução semântico gramatical, etapa na qual
procura-se explicitar o significado de termos que dificultam a compreensão; transformar
frases complexas em frases simples; eliminar conectivos; a re-tradução técnica, onde
identifica-se os termos técnicos e suas definições, pois o filósofo pode usar termos do
nosso vocabulário comum,mas com outro sentido; a taxonomia semântica: que traz os
elementos propriamente filosóficos, como os argumentos, as definições, a tese, etc., mas
todos esses aspectos tendo como centro o problema e a tese; e enfim a re-tradução
lógica: nessa fase final trata-se de ordenar logicamente o texto a partir do problema e
da tese, obtendo um versão mais reduzida, eliminando, desse modo, elementos
secundários. É importante ressaltar-se outra questão importante para a compreensão do
texto, o que o autor chama de modalização veritativa1, isto é, o momento em que o
leitor passa a confrontar suas crenças com o pensamento do filósofo, assumindo uma
posição.
Assim, a leitura filosófica de um texto, a partir de Porta (2002), depende desse trabalho
de re-tradução e caracteriza-se pela identificação dos elementos centrais do texto: o
problema, a tese e os argumentos.
1
PORTA, 2002, p.72.
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Já em Metodologia filosófica, a leitura dos textos filosóficos também precisa de certas
regras, de certo caminho, portanto, de método. Porém, a proposta da obra insiste que
uma reflexão sobre como acessar à Filosofia não se separa do próprio ato de pensar
filosoficamente, pois uma metodologia de leitura filosófica, para Folscheid &
Wunenburger (1997), é inseparável do pensar sobre o que é a Filosofia. Por isso, a
metodologia filosófica não é apenas um conjunto de técnicas a serem aplicadas
exteriormente aos textos:
(...) A preocupação metodológica ultrapassa, assim, largamente, a ambição utilitarista,
uma vez que segue o movimento pelo qual a reflexão espontânea se transforma em
pensamento filosófico. Ao praticar exercícios de filosofia, trata-se de impregnar-se
ainda mais de filosofia e, finalmente, de melhor filosofar. 2
Desse modo, o exercício a que os autores se referem é o de confrontação pelo leitor com
os pensamentos já constituídos na tradição. No entanto, o que orienta o leitor para a
compreensão de um texto, para os autores, é a noção de explicação, que deve identificar
os seguintes elementos, formando um esquema: o tema, a tese, os objetos de discussão
(o que está implicado nas teses do autor, o que está sendo discutido, embora de modo
periférico), os movimentos do texto (a sua estrutura) e as noções fundamentais. Assim,
para esses autores, a leitura filosófica mede-se pela capacidade de construir essa
explicação, buscando reconstituir o movimento do pensamento do autor que se expressa
no texto através desses componentes.
A outra proposta de leitura que trouxemos para revisão é a de Cossutta (2001). Para o
autor, o acesso aos textos filosóficos também depende de método, pois as dicas de
comentadores só tornam a Filosofia um privilégio de mentes brilhantes. O texto
filosófico é um todo cujas partes são re-agenciáveis e formam uma unidade de sentido.
2
FOLSCHEID; WUNENBURGER, 1997, p. 08.
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No entanto, tal sentido não é dado de antemão, mas é preciso a sua reconstituição. Isso é
possível por que a Filosofia, para o autor, possui certas características e nos textos
filosóficos mais variados podemos encontrar certos traços em comum:
Isso nos encoraja a procurar os mecanismos gerais pelos quais a filosofia se produz
como tal através dos textos: parece que, apesar da diversidade dos gêneros, das teses,
dos modos de exposição, pode-se apreender funções bastante gerais que determinam
aquilo que torna um texto propriamente filosófico. 3
Com isso, a leitura precisa orientar-se pelas seguintes funções: a primeira é a função
sujeito, que é o próprio autor, como ele deixa certos registros enunciativos (dêiticos,
pronomes demonstrativos, etc.) de sua presença no texto; a seguinte é a função de
endereçamento, isto é: o lugar do leitor já estipulado e implicado no modo como autor
escreve; e a outra é a função intertextual, que é dimensão dialógica do pensamento do
autor com o seu contexto: a filosofia à qual o autor se opõe ou da qual se apropria, os
saberes ou práticas do seu tempo que ele pretende questionar, etc. É preciso lembrar que
a função sujeito desempenha um papel central para o autor:
(...) Mostraremos que, na verdade, os textos que colocam em cena o sujeito enunciador
em primeira pessoa são bastante numerosos e que, se essa função parece
frequentemente ausente, múltiplos rastros das operações enunciativas permanecem e
desempenham um papel importante na estruturação das argumentações, análises
conceituais e modos de exposição. 4
Esta estrutura geral, desse modo, é um espaço que deve ser preenchido por outras
funções textuais que a leitura deve encontrar, como a função: conceitual, referencial,
metafórica, dentre outras. O resultado obtido é o que o autor chama de cena filosófica,
ou seja: o próprio processo de pensamento do filósofo. Assim, para Cossutta (2001), a
3
4
COSSUTTA, 2001, p. 05.
Ibid., p.14.
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leitura filosófica passa pela compreensão da relação entre as pessoas (autor-leitorcontexto) e a análise pela explicitação das operações que efetuam o sentido do texto
(como as que mencionamos: a construção conceitual, etc.):
(...) Ler um texto supõe a compreensão intuitiva das relações assim colocadas pelas
pessoas; analisar um texto obriga a explicitar as regras graças às quais um conjunto
complexo de efeitos textuais está assim determinado.5
A leitura filosófica: exegese ou pensamento?
Parece-nos que, portanto, já temos boas indicações do que seja uma leitura dos textos
de filosofia6. Pois vimos que nas obras nas quais estamos nos pautando é possível
perceber-se características comuns. Como, por exemplo, a noção de que podemos
compreender um texto (acessá-lo...) ao apreendermos alguns elementos comuns do
discurso filosófico, tais como: a argumentação, a conceitualidade, a problematização e,
consequentemente, a afirmação de teses e a implicação, com isso, de conseqüências. A
leitura filosófica, então, é o ato de reconhecer esses elementos constituintes do
pensamento filosófico. Porém, também ficou evidente que a leitura filosófica não se
separa do próprio ato de filosofar, pois nos coloca em contato direto com pensamento de
um outro, a saber: o filósofo.
Este último aspecto da leitura vem de encontro ao pressuposto de que no ensino de
filosofia não se deve separar o ato de filosofar da própria filosofia constituída7, do já
pensado, ou seja, a sua história. Com isso, vê-se que a leitura tem um papel central, pois
5
Ibid., p.13.
6
Assim como ler filosoficamente outros textos, como os do gênero literário.
7
Cf. podemos encontrar em Obiols (2002), Gallo (2002), Gallo; Kohan (200), e outros.
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só através dela o educando pode colocar-se em diálogo com a tradição filosófica. A
partir daí, queremos destacar dois aspectos fundamentais que dizem respeito à leitura
filosófica no ensino de filosofia no nível médio.
Um deles que vemos presente na literatura é o de que a leitura filosófica não se separa
do próprio pensar: ―Ler textos filosóficos é entrar em relação com pensamentos
filosóficos já advindos, para penetrá-los e apropriar-se. A leitura filosófica é portanto
indissociável do próprio pensamento‖.8 Ou seja: entendemos que embora seja preciso de
método, isso não é uma mera aplicação de técnicas externas ao texto, mas a apreensão
de tais elementos do discurso filosófico só pode ser efetuada mediante o próprio
pensamento do leitor, de seu ―choque‖ com o pensamento do autor, como no caso que
falamos antes da ―modalização veritativa‖. E a compreensão do texto filosófico, desse
modo, é ao mesmo tempo a ocasião de nos iniciarmos ao filosofar na medida em que
desvendamos suas operações básicas, seu modo de se constituir. Isto é: a leitura é o que
nos proporciona aprender a pensar filosoficamente:
Ler um texto filosófico, portanto, não é somente informar-se do conteúdo de uma
doutrina, é muito mais reapropriar-se dos gestos, familiarizar-se com os sistemas de
atos pelos quais ela se engendra. E, além disso, é simplesmente aprender a pensar. 9
O outro aspecto que, para nós, envolve a leitura de textos filosóficos é o papel formador
da Filosofia no ensino médio, consequentemente também da leitura filosófica. Enquanto
é pela leitura que o educando pode defrontar-se com o pensamento de outrem, ele tem a
ocasião, então, de ter um paradigma de como pensar certas questões da existência
humana. Com isso, espera-se que o educando assuma uma atitude característica da
filosofia de pôr em questão o que se apresenta como natural ou comum a todos nós,
8
9
FOLSCHEID; WUNENBURGER, 1997, p.09.
COSSUTTA, 2001, p.216.
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passando, então, a buscar novos fundamentos para seu próprio pensar e, desse modo,
libertar-se de opiniões infundadas e preconceitos:
Pensamos que o justo seria educar, hoje, para que o aluno seja outro e não um
mesmo, um mesmo que qualquer modelo, ou seja, que ele seja ele. O justo é educar
para oferecer condições para o educando conquistar pensamento autônomo. O
pensamento que conhece suas razões, que escolhe seus critérios, que é responsável,
consciente de seus procedimentos e conseqüências e aberto a se corrigir. Pensamento
criativo, capaz de rir de si mesmo, buscador de compreensão, sempre atento ao seu
tamanho justo. Esse pensamento não se permite obediência à regra inquestionável do
consumo automático, infundado e sem fim. Esse pensamento não se permite tornar-se
ação baseada nos critérios da indústria.10
A partir, então, do que nos diz a autora, vê-se que a filosofia possui uma função social
na medida em que o pensar filosófico pode fornecer ao educando bases para pensar a si
mesmo e a sua própria realidade e, assim, transformar o mundo11, postura que
percebemos também no que nos dizem Horn; Valese (2010):
A leitura e sistematização de textos filosóficos para além da inteligibilidade têm ainda
outra função: a de permitir com que o estudante possa posicionar-se frente às
polêmicas existenciais e problemas sociais e políticos que o cotidiano lhe apresenta.12
Assim, a leitura filosófica transcende a mera compreensão-pela-compreensão de textos
ao ser o momento de o educando experienciar o modo de pensar próprio da filosofia
presente na tradição.
CONCLUSÃO
10
ASPIS, 2004, p.309.
Cf.também Gallo (2002, p.208), ao nos dizer que ―A ‗oficina de conceitos‘ é um local perigoso, de
onde podem brotar conceitos que sejam ferramentas para mudar o mundo.‖
12
HORN; VALESE, 2010, p.33.
11
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Vê-se, com isso, que por mais que não devamos transpor métodos de leitura praticados
no ensino universitário de filosofia para o ensino médio, é central para o professor de
filosofia no ensino médio procurar desenvolver nos estudantes certas habilidades de
leitura em filosofia13, pois a natureza dos textos filosóficos exige certo trabalho
metódico.
Do mesmo modo, percebe-se que o caráter da leitura filosófica não é apenas uma
exegese ou mera compreensão, pois na medida em que praticamos o exercício de
reconstituir o pensamento de um filósofo também passamos, de algum modo, a pensar
com ele. Assim, se a presença dos textos clássicos é fundamental no ensino de filosofia
na escola também o é o cultivo de certos procedimentos de análise de texto.
REFERÊNCIAS
ASPIS, Renata P. L. O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio
como experiência filosófica. Cad. Cedes, v.24, n.64, p.305-320, 2004.
COSSUTTA, Frédéric. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques. Metodologia filosófica.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
13
Cf. Orientações curriculares para o ensino médio, (p.32).
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GALLO, Sílvio. A especificidade do ensino de filosofia: em torno dos conceitos. In:
PIOVESAN, Américo. (et. al.). Filosofia e ensino em debate. Ijuí: UNIJUÍ, 2002.
____________; KOHAN, Walter O. Crítica de alguns lugares comuns ao se pensar a
filosofia no ensino médio. In: GALLO, Sílvio; KOHAN, Walter O. (Orgs.). Filosofia
no ensino médio. Petrópolis: Vozes, 2000.
HORN, Geraldo B.; VALESE, Rui. O sentido e o ―lugar‖ do texto filosófico nas aulas
de filosofia do ensino médio. In: NOVAES, José L. C. (et. al.). A filosofia e seu ensino:
desafios emergentes. Porto Alegre: Sulina, 2010.
MEC/SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Orientações curriculares para o
ensino médio. Ciências humanas e suas tecnologias: conhecimentos de Filosofia.
Brasília: MEC, 2006. Vol.3.
OBIOLS, Guillermo A. Uma introdução ao ensino de filosofia. Ijuí: UNIJUÍ, 2002.
PORTA, Mário A. G. A filosofia a partir dos seus problemas. São Paulo: Loyola,
2002.
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A LIBERDADE COMO O SENTIDO DA REVOLUÇÃO EM HANNAH
ARENDT - Altair de Souza Carneiro
Mestrando/UNIOESTE
Bolsista do Observatório da Educação – CAPES/INEPE
[email protected]
―a ideia central da revolução é a instituição da liberdade, ou seja, a criação do
corpo político que assegure o espaço onde a liberdade possa aparecer14‖.
No presente texto objetivamos, a partir de apontamentos acerca da obra Da revolução
de Hannah Arendt, discorrer e articular de forma preliminar duas das teses principais
apresentadas pela autora na obra referida: 1- a idéia de que as revoluções surgem como
rupturas na história e como a manifestação concreta de um novo começo que vem ao
mundo por meio da ação e não como mera restauração ou retorno a uma ordem préestabelecida. 2- O argumento de que as revoluções modernas, americana e francesa,
visavam, acima de tudo, um tipo específico de liberdade, que não deve ser confundida
com a mera libertação, com salvaguardas civis ou com a simples resolução das questões
sociais e econômicas. Analisar e articular sumariamente os argumentos de Arendt
acerca dessas duas teses e explicitar com que conceito de liberdade Arendt opera ao se
referir às revoluções modernas é o objetivo central deste texto.
Para Arendt as revoluções modernas dizem respeito à possibilidade do novo, isto é, a
capacidade humana de ser livre, de agir e instaurar novos começos no mundo. Desta
forma, a revolução trouxe à tona a experiência de ser livre, uma experiência inédita da
14
ARENDT, 1990, p. 100.
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capacidade do homem de iniciar algo novo, na qual a novidade estava relacionada com
a ideia de liberdade. Cabe esclarecer, portanto, que para Arendt Revolução não se
confunde com rebelião ou com o retorno a uma velha ordem pré-estabelecida. Nesta
mesma perspectiva Oliveira esclarece:
Aqui temos a Revolução como uma garantia concreta de que o homem é potencial e
concretamente começo e recomeço, isto é, o surgimento do fenômeno revolucionário é
um marco que registra a realização do potencial humano da natalidade política. Podese dizer também que a natalidade, neste caso, é compreendida como uma categoria de
potencialidade política que se concretiza por meio da novidade revolucionária15.
Assim, a Revolução em hipótese alguma se parece ou imita o reformismo religioso,
tampouco se resume às revoltas, sublevações populares ou guerra civis que visam, em
geral, a restauração de antigos direitos e não um novus ordum saeclorum. A ideia de
novidade que Arendt relaciona com a revolução se distancia ainda da concepção cíclica
das mudanças das formas de governo, defendidas por Platão e retomadas por Políbio na
filosofia política clássica. De acordo com a autora, as mudanças referidas não
interrompiam o decurso daquilo a que a idade moderna chamou de história e, por sua
vez, não criavam um novo princípio nem visavam estabelecer uma nova ordem. Pois
para Arendt, é crucial, portanto, para a compreensão das revoluções da Idade Moderna,
que a ideia de liberdade e a experiência de um novo começo sejam coincidentes
(ARENDT 1990). Sobre isso comenta Arendt:
[...] o que a revolução trouxe a luz foi a experiência de ser livre, e essa foi uma
experiência nova [...] E essa experiência relativamente nova, pelo menos para aqueles
que a viveram, foi, ao mesmo tempo, a experiência da capacidade do homem para
iniciar alguma coisa nova16.
15
16
OLIVEIRA, 2007, p. 90.
Idem, p. 27.
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A consciência de uma nova ordem ficava evidente, entre outras coisas, ―pela instituição
do calendário revolucionário, onde o ano de execução do rei e da proclamação da
república foi contado como o ano primeiro17‖. Para Arendt (1990), mesmo que nos
primeiros períodos os revolucionários ainda pensavam ser restauradores de uma antiga
ordem, buscando velhos direitos perdidos, Arendt afirma que com o decurso da história
e dos acontecimentos o seu significado mais profundo tornava-se manifesto, era
indiscutivelmente o aparecimento da liberdade. O que está em jogo, portanto, para ela,
nas revoluções do século XVIII era a ruptura política e histórica com as antigas
ordenações e a busca pelo estabelecimento de um novo Estado, de uma nova forma de
governo, que visava a completa mudança da estrutura do domínio político, isto é, o que
estava em jogo era a fundação de uma República.
Podemos dizer, com efeito, que Arendt identifica o ato revolucionário como um ato de
ruptura na história, e por sua vez, com a liberdade entendida como a capacidade e
potencialidade humana de iniciar algo novo politicamente por meio da ação em
conjunto. Contudo, a revolução também tem a ver com a liberdade em um outro sentido.
Trata-se do objetivo de instituir e garantir um espaço público que assegure a liberdade
concreta e efetiva dos cidadãos, entendida como o exercício e a participação ativa e
constante dos indivíduos nas questões que dizem respeito a todos. É essa segunda
concepção de liberdade que passamos a analisar agora.
Para Arendt este tipo de liberdade que a república deve prover e que a revolução visa,
difere essencialmente da busca por segurança, ou do provimento para as carências
sociais e econômicas. Também não se resume aos direitos civis, de opinião,
deslocamento, liberdade de culto etc. Todas essas liberdades, de acordo com a autora,
17
AREDENT, 1990, p. 23.
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ainda estariam na esfera da ―libertação‖ e seriam essencialmente ―negativas‖. Sobre isso
esclarece a autora:
Pode ser um truísmo dizer que libertação e liberdade não são a mesma coisa; que a
libertação pode ser a condição da liberdade, mas que de modo algum conduz
automaticamente à ela. Que a noção implicada na libertação só pode ser negativa, e,
portanto, que até a intenção de libertar não é idêntica ao desejo de liberdade18.
Desta forma, podemos dizer que o fenômeno revolucionário, em Arendt, não tem a
finalidade principal de resolver problemas econômicos e sociais e sim fundar um novo
corpo político em que o espírito seja a liberdade, entendida em seu sentido ―positivo‖.
Para Oliveira, ―trata-se de possibilitar a durabilidade da novidade que foi inaugurada. É
uma tarefa que norteia o papel da fundação de novas realidades políticas 19‖. Nessa
mesma esteira Robespierre, líder revolucionário francês, enunciou: ―a palavra
revolucionário só pode ser aplicada à revolução cujo objetivo é a liberdade20‖. Arendt
nos adverte ainda que as experiências de liberdade interior e individuais são
caracterizadas por aspectos que pressupõem sempre uma retirada do mundo onde a
liberdade foi negada para uma interioridade na qual ninguém mais tem acesso.
Segundo Torres:
Compreende-se, então, porque Arendt considera a liberdade e a ação política como
sinônimas, haja vista que não é enclausurando-se em si mesmo, utilizando-se
unicamente da capacidade de pensar ou de querer, que um indivíduo passa a ser livre,
a liberdade existe onde a condição plural do homem não seja desconsiderada, sendo
nada mais que ação, em outras palavras, o indivíduo só é livre enquanto está agindo,
nem antes, nem depois. Ressalte-se, todavia, que a ação política só pode ser entendida
como liberdade se a mesma não sofre qualquer forma de funcionalização, de
instrumentalização, como a presente nas atividades do labor e do trabalho, cujo valor
18
Idem, p. 24.
OLIVEIRA, 2007, p. 141.
20
ARENDT, 1990, p. 23.
19
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não estaria, ao contrário da ação política, no desempenho em si mesmo, mas sim em
algum resultado, um fim a ser alcançado quando termina o processo produtivo21.
É diante dessa preocupação que a autora retorna à polis grega para descrever o ideal de
liberdade, que segundo ela, se repetiu na revolução. A Liberdade, como fenômeno
político, foi contemporânea das cidades-Estados gregas. Desde Heródoto, ela foi
entendida como uma forma de organização política em que os cidadãos viviam juntos
em condições de não-mando, sem uma distinção entre governantes e governados. Essa
noção de não-mando pressupõe a isonomia arraigada nas formas de governo; isonomia
que provia a igualdade entre os desiguais a partir da instituição da pólis.22 Para os gregos
a liberdade não era só libertação ou a liberdade do indivíduo, significava participar
ativamente na vida e negócios da polis. Desta forma, a liberdade necessita de um espaço
político, isto é, ―a ágora, o mercado público ou mesmo a polis, locais em que as pessoas
pudessem se encontrar23‖. Tratava-se do compartilhamento de poder por parte dos
cidadãos e não meras liberdades civis e negativas. Para Arendt é este tipo de liberdade
que os revolucionários tinham em mente e que pretendiam fundar a partir de uma nova
forma de governo, isto é, a forma republicana.
Revolução e liberdade, em Hannah Arendt, significa, portanto, possibilitar o poder e o
agir, o opinar e o criar novos espaços de convivência na história, a qual é construída
pelas ações humanas. Deste modo, as Revoluções são momentos privilegiados de
manifestação do ―político‖, como uma concretização da liberdade que é a capacidade de
participar da coisa pública. Pois, segundo Arendt, ―é na atividade pública, onde,
intencionalmente ou muitas vezes inesperadamente, começam a construir aquele espaço
21
TORRES, 2007, p. 4.
Ibidem.
23
Idem, p.25.
22
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onde a liberdade pode revelar os seus encantos e torna-se uma realidade visível e
tangível24‖. Arendt acreditava que as experiências revolucionárias americana e francesa,
a despeito de suas diferenças e dos resultados de cada uma, foram tentativas de instaurar
uma república, isto é, uma forma de governo que reconhece e possibilita a capacidade
do homem para iniciar algo de novo e exercer a vida política25.
Mostrar a participação do povo no âmbito do corpo político pleiteado pelas duas
Revoluções
do século
XVIII constitui
um
dos
aspectos
necessários para
compreendermos a concepção política arendtiana. Essa é uma concepção de um corpo
político com fundamentos em discussões e deliberações nascidas no meio do povo. O
resultado disso é a gestação de um tipo de poder político pautado na horizontalidade que
se apresenta diferentemente da verticalidade dos poderes assentados em obediência. Na
qual, a autora chamar a atenção para a importância que a noção de constituição tinha
para os revolucionários.
Para os homens do século XVIII, ainda era natural precisar de uma constituição para
estabelecer as fronteiras do novo domínio político e definir suas regras, e que tivessem
que fundar e construir um novo espaço político dentro do qual a ―paixão pela liberdade
pública‖, ou a ―busca da felicidade pública‖, pudesse ser livremente cultivada pelas
gerações
futuras,
assegurando
a
sobrevivência
do
seu
próprio
24
espírito
ARENDT, 1990, p. 27.
Para Arendt enquanto a revolução americana logrou certo êxito a revolução francesa degenerou em
violência e falhou em seu objetivo primordial que era o de fundar uma república livre. A Revolução
Francesa foi vista por Arendt, como movimento pela emancipação do povo e de suas questões sociais,
fato que acabou desviando-a para objetivos libertários que a conduziram ao surgimento do terror e
ausência de liberdade. Já a Revolução Americana apostou numa alteridade política que se fez presente por
meio de pactos, promessas e compromissos mútuos, e de uma constituição sólida, que foram
encaminhados no âmbito do novo corpo político.
25
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―revolucionário26‖. Por felicidade pública Arendt entende a participação no poder
público, vejamos: [...]―felicidade pública‖, consistia no direito de acesso do cidadão à
esfera pública, em sua participação no poder público, em ser um participante na gestão
do governo27‖.
O público é o reino da liberdade. "Público" remete para dois fenômenos distintos
embora correlacionados. Em primeiro lugar "público" centra-se na ideia de
acessibilidade: tudo o que vem a público está acessível a todos: pode ser visto e ouvido
por todos. Quando divulgamos um pensamento ou um sentimento através de uma
estória, bem como quando divulgamos experiências artísticas individuais o privado
torna-se de acesso público. A garantia deste fenômeno depende de uma condição
essencial: os outros têm de partilhar a realidade do mundo e de nós mesmos.
Deste
modo, a paixão pela liberdade e a felicidade pública, que impulsionava os homens da
revolução, é um desenho sóbrio do cidadão comprometido com o espírito público, diz
Arendt, O ―gosto pela liberdade‖ cria uma nova situação de poder e um novo princípio
público instaurando o poder no contrato mútuo das promessas livres e sinceras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ato de fundar o novo corpo político e de idealizar a nova forma de governo constituíase elemento do espírito revolucionário, que envolvia preocupação com a estabilidade e
com a durabilidade da nova estrutura. Por conseguinte, a forma republicana de governo
atraía os pensadores políticos pré-revolucionários pela sua promessa de durabilidade e
liberdade. Deste modo, fundação era o objetivo e o fim da revolução. O espírito
revolucionário, então, não consistia em simplesmente dar início a uma coisa nova, mas
26
27
ARENDT, 1990, p.101.
Idem, p. 102.
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em iniciar algo permanente e duradouro. Estes são os dois sentidos de liberdade a que
nos referíamos no início do texto e que se inter-relacionam nas análises de Arendt do
fenômeno revolucionário: 1- a liberdade enquanto o próprio ato de ruptura, isto é,
enquanto novidade revolucionária; e 2 - a liberdade fundada e instituída a partir de um
ordenamento político que possibilita o exercício plural e ativo dos cidadãos na vida
pública.
Disso concluímos que, para a autora, nas revoluções, política e liberdade se autoidentificam, não podendo se conceber uma sem a outra, a não ser que admitamos o
equívoco da tradição separando um do outro. Só nesse equívoco se poderia admitir a
política como negadora do espaço público e, conseqüentemente, da pluralidade, da ação
e do discurso; só assim poderíamos encontrar política e liberdade destoando. Fora disso
uma identifica a outra, já que a política é o espaço acolhedor da liberdade, e a liberdade,
seu sentido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, H. Da Revolução. 2ª Ed. Trad. Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Ática,
1990.
CHAVES, E. R. Modernidade, Revolução e Fundação da Liberdade: As Revoluções
Americana, Francesa e Alemã. Revista de História, [13]; João Pessoa, jul./ dez. 2005.
OLIVEIRA, J. L. de. A Fundação do Corpo Político no Pensamento de Hannah
Arendt. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da FAFICH/UFMG, 2007.
_________. A estrutura de organização do corpo político na concepção de Hannah
Arendt. Filosofia a Unisinos, 10(3): 265-277, set/dez 2009.
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TORRES, A. P. R. O sentido da política em Hannah Arendt. Trans/Form/Ação, São
Paulo, 30(2): 235-246, 2007.
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A NEUROFILOSOFIA DE PATRICIA CHURCHLAND: APONTAMENTOS
INTRODUTÓRIOS - João F. Christofoletti
Acadêmico da Unioeste
[email protected]
Nossos estados mentais são apenas as expressões fisiológicas de nossos sistemas
neurológicos? Melhor dizendo, um pensamento qualquer – fosse ele um raciocínio
lógico ou uma crença, desejo ou a representação de algo – seria apenas certa
configuração neurológica do cérebro ou do sistema nervoso? Dar uma resposta
afirmativa a tal questão pode soar estranho e mesmo perturbador para alguns. Afinal,
isto implicaria em assumir a provável eliminação de aspectos mentais como consciência
e livre arbítrio, os quais estamos habituados a acreditar que possuímos e cujas noções
são fundamentais para compreendermos e descrevermos nossos estados emocionais e
nossa racionalidade. Em outras palavras, assumir a equivalência entre estados mentais e
cerebrais implica a necessidade de reconsiderarmos o modo como pensamos sobre nós
mesmos, reavaliarmos o entendimento que temos do que somos e redefinirmos, ou
mesmo descartarmos, aquilo que chamamos de ―eu‖.
Dentre os autores da corrente materialista que defende que os estados mentais são
equivalentes aos estados neurológicos, encontra-se Patricia Churchland (1986) que,
além de apoiar tal tese, argumenta que vários dos termos e conceitos (tais como mente,
crença ou desejo) que utilizamos para descrever e refletir sobre os padrões de
comportamento são vagos e, por isso, inadequados. Aliás, alguns desses termos (por
exemplo, ―mente‖) não se referiria a nada que, de fato, existisse.
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A intenção deste breve ensaio é apresentar e comentar, de modo introdutório, algumas
das idéias de Patricia Churchland, referentes às questões sobre a redução de estados
mentais a estados cerebrais. Para tanto, ele é na obra Neurophilosophy, principalmente
na parte dois, que aborda o tema da redução inter-teórica nas teorias científicas, bem
como o problema da mente e corpo, que é um tópico central na filosofia da mente.
1. Redução inter-teórica para fundamentar uma ciência da mente
Antes de abordar as críticas que Churchland faz aos dualismos que fazem distinção
entre a estrutura neurobiológica material e uma mente imaterial, faz-se necessário uma
breve apresentação que explique o papel de tal debate em sua filosofia, pois apesar de
sua relevância, ele não é o tema central da filosofia dessa autora. Na verdade,
Churchland tem a intenção de apresentar uma fundamentação filosófica para uma
ciência empírica, que tenha por objeto a mente (ou seria o cérebro, já que o conceito de
mente, provavelmente, precisaria ser re-configurado?). Em outras palavras, ela procura
explicar como deve ser uma ciência que consiga explicar e demonstrar empiricamente o
funcionamento da mente/cérebro. Nesse sentido, ela justifica a necessidade de tal
ciência ser próxima a uma neurofisiologia que explique os fenômenos que atualmente
são pensados e discutidos pela psicologia, tais como mente, crença e desejo. Para tanto,
Churchland argumenta que é necessário que as teorias psicológicas atuais sejam
reduzidas às teorias de uma neurociência empírica.
Redução inter-teórica significa um tipo específico de relação entre duas teorias, de tal
modo que uma delas passa a ter seus fenômenos interpretados e explicados a partir dos
conceitos e princípios de outra teoria, mais básica. Pode-se dizer que uma teoria é
reduzida à outra, quando a primeira é incorporada pela segunda, que é mais básica, no
sentido de apresentar interpretações e explicações a partir dos aspectos mais simples e
fundamentais dos fenômenos tratado por ambas as teorias. Uma teoria raramente é
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reduzida a partir de sua estrutura e organização originais. Ela, usualmente, sofre
pequenas alterações que permitam uma equivalência maior e mais precisa entre seus
conceitos, leis e fenômenos com os da outra teoria.
Ao se estabelecer uma redução inter-teórica, os conceitos da teoria reduzida são
redefinidos ou simplesmente substituídos por outros, para poderem ser incorporados
pela outra teoria. Dessa forma, essa redução permite uma simplificação ontológica, uma
vez que fenômenos anteriormente identificados como distintos passam a ser
reconhecidos como um único; e uma unificação explicativa, pois os fenômenos em
questão passam a serem descritos e compreendidos a partir de princípios elementares
(Churchland, 1986, p. 280-282). O exemplo paradigmático é entre a teoria cinética dos
gases e a termodinâmica, em que a temperatura de um gás passa a ser compreendida
(aliás, definida) como a movimentação das moléculas do gás, a qual também passa a ser
o aspecto que explica as relações entre temperatura, volume e pressão.
Para Churchland (1986, p. 303-304), faz-se necessária a redução inter-teórica entre as
teorias da psicologia do senso comum1 e das neurociências, pois a maioria dos conceitos
criados e usados pela primeira, referentes à mente e ao cérebro, bem como seus estados,
propriedades e processos (tais como percepção, aprendizado ou memória, entre outros)
possuem um caráter lógico-racional, mas não causal. Em outras palavras, a psicologia
do senso comum, ao se basear nas noções de crença e vontade para explicar um
comportamento qualquer, na verdade, apóia-se em conceitos auto-evidentes, lógica e
racionalmente adequados para fornecer uma explicação ao fenômeno, mas que não
possuem evidências observáveis (Churchland, 1986, p. 290-291). Tais noções, no
1
Utilizo a expressão ―psicologia do senso comum‖ como equivalente à ―folk psychology‖. Embora
―psicologia popular‖ seja literalmente mais adequada, ela sugere um uso amplo, enquanto a primeira
remete à idéia de características elementares e pouco sofisticadas, que é o sentido usado pela autora.
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contexto da psicologia do senso comum, seriam definidas a priori, para explicar
comportamentos observáveis. Contudo, elas não se remeteriam a algo que tivesse, de
fato, existência, pois não há algo específico no processo comportamental que pode ser
chamado de ―crença‖ ou ―vontade‖. O que existe é uma explicação baseada na
circularidade de proposições sobre fenômenos pobremente entendidos que, de várias
maneiras, regulam as tomadas de decisão. Vontade, às vezes, parece ser pensada em
analogia a um músculo, mas não há nada ali comparável a isso. Similar é o caso da
memória que, até meados dos anos 50, era entendida como algo que possuía uma função
única e unificada. Mas atualmente, concorda-se que várias partes do sistema nervoso
possuem diferentes funções correspondentes a diversos aspectos do que chamamos
memória. Por exemplo, a memória relativa ao processo de andar de bicicleta é uma
função diferente, localizada em áreas distintas do cérebro, da memória usada para se
lembrar o nome de alguém. Nesse sentido, o conceito de memória acabou sendo
fracionado em várias subcategorias que são reguladas por uma grande variedade de
processos e caminhos neuronais (Churchland, 2010).
Tal processo de redução seria, ainda, algo recorrente na história das ciências. Teorias do
senso comum de outras ciências já passaram por algo semelhante. Por exemplo, no
contexto da física newtoniana, o velho conceito de impetus foi descartado (Churchland,
2010). Assim, na medida em que a neurobiologia passa a se entrelaçar com conceitos
mais complexos e sofisticados, é provável que ocorrerão mudanças nos conceitos
próprios da psicologia do senso comum. Contudo, para que seja possível a redução
inter-teórica da psicologia do senso comum à neurociência, de maneira a se constituir
uma ciência empírica sobre os processos tidos como mentais, faz-se necessário se
superar argumentos anti-reducionistas que se embasam em filosofias que defendem o
dualismo (tanto de substâncias quanto de propriedades) da mente e cérebro ou uma
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perspectiva emergentista de um a partir do outro. São esses argumentos que apresento e
comento a seguir.
2. O problema do dualismo de substância
O dualismo de substância possui sua origem na filosofia cartesiana, que, simplificando,
concebe o ser humano como uma entidade composta por duas substâncias distintas,
sendo uma delas física, material, não consciente e determinada enquanto a outra é
mental, imaterial, consciente e livre. A primeira seria a substância do cérebro e a
segunda da mente.
O principal problema de tal teoria se resume na seguinte questão: sendo diferentes
substâncias, como elas interagem? Enquanto a perspectiva dualista não consegue
fornecer uma resposta razoável, a perspectiva materialista é mais eficiente, segundo
Churchland (1986, p. 319-321), que afirma que a relação entre estados cerebrais e
mentais é bastante óbvia, uma vez que drogas e lesões neurológicas, que afetam,
estritamente, a dimensão material (a substância extensa) do ser humano, também
possuem efeito no que seria sua dimensão mental (sua substância espiritual). Além
disso, a perspectiva dualista não fornece respostas satisfatórias para o problema que
teorias evolucionistas trazem. Ora, se organismos mais complexos evoluíram de outros
mais simples, quando o ser humano material/biológico passa a se relacionar com a
substância mental? Quando ele recebe sua mente?
Par Churchland (1986), o materialismo é mais adequado para dar respostas a essas
questões. No caso do processo evolutivo, ao entendermos os estados mentais como
configurações cerebrais, raciocínios, representações e outros processos mentais serão
entendidos como simples manifestações causadas por uma estrutura corporal que
evoluiu ao longo do tempo. Assim, a perspectiva materialista explica melhor a interação
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entre mente e corpo, do que o dualismo de substância, uma vez que não há, de fato,
interação. O que se entenderia por processos mentais seriam apenas descrições, na
perspectiva comportamental, de nossas configurações neurobiológicas.
De fato, a autora considera que os argumentos vindos do dualismo de substância são os
mais simples e facilmente refutáveis, uma vez que há uma tendência a se reconhecer um
viés materialista no que se refere ao corpo e a mente. Contudo, outros aspectos, como o
problema da experiência subjetiva, merecem sua atenção.
3. O problema da experiência subjetiva
Mesmo aceitando o monismo em termos de substância, há ainda um dualismo em ermos
de propriedades de tal substância. Haveria uma propriedade emergente a partir das
estruturas neurobiológicas. A propriedade emergente que ela coloca sob análise é a
experiência subjetiva, atribuída à mente.
Um dos argumentos que ela discute é proposto por Thomas Nagel, em seu artigo ―O que
é ser como um morcego?‖, que pode ser exposto da seguinte forma:
1. experiências subjetivas são conhecidas pela introspecção;
2. estados cerebrais não são conhecidas pela introspecção;
3. experiências subjetivas são diferentes de estados cerebrais.
Embora a forma seja válida, Churchland (1986, p. 328-329) argumenta que segunda
premissa não é verdadeira, o que torna o argumento falacioso. Ela chama a atenção para
o fato dessa premissa assumir como verdadeiro, aquilo que o argumento é usado para
demonstrar. Para que estados cerebrais não sejam conhecidos por meio dela, eles,
obviamente, precisam ser diferentes daquilo que se conhece pela introspecção, isto é, as
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experiências subjetivas são diferentes de estados cerebrais. Assim, o argumento acaba
assumindo o conseqüente, isto é, ele funciona em círculo.
Aqui, um breve comentário se faz necessário. Embora aparentemente coerente,
Churchland parece cometer a mesma falha atribui a Nagel. Enquanto ele parece assumir
gratuitamente a veracidade da segunda premissa, Churchland assume, também
gratuitamente, sua falsidade. Nesse sentido, o problema parece se reduzir a uma questão
de gosto que demanda uma argumentação mais efetiva de qualquer uma das partes.
Pode-se assumir que Churchland, aqui, tem apenas o papel de desconstruir a
argumentação contrária à dela. Contudo, não apresentar uma argumentação que sustente
sua proposição pode ser visto como uma falha, já que nada garante que a exclusão de
experiências subjetivas leva, necessariamente a se ter como verdadeira, sua proposta.
O segundo argumento analisado é o Epiphenomenal qualia, de Frank Jackson.
1. Mary sabe tudo que é possível saber sobre estados cerebrais e suas
propriedades;
2. Mary não possui conhecimento sobre sensações específicas e suas
propriedades;
3. sensações (estados mentais) são diferentes de estados cerebrais.
Como anteriormente, Churchland (1986, p. 331-332) sustenta que as premissas acabam
por tornar o argumento falacioso, apesar de sua forma ser válida. Ela sugere que a
expressão ―conhecer sobre‖ é usada com sentidos distintos em cada uma das premissas,
o que impediria a igualdade de termos e, portanto, a validade do argumento. A primeira
premissa empregaria a expressão ―conhecer sobre‖ no sentido de ―manipulação de
conceitos‖, enquanto na segunda, o ―conhecer sobre‖ se referiria a uma apreensão préXVI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste
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linguística de um conceito derivado de uma sensação. Churcland (1986, p. 332), para
ilustrar a diferença entre essas duas formas de ―conhecer sobre‖, usa a idéia de gravidez.
Embora alguém possa estudar tudo que seja possível sobre gravidez, apenas algumas
pessoas podem ter a experiência de vivê-la.
Contudo, isso sugere uma diferença sobre o conteúdo de tal conhecer, não sobre a noção
de ―conhecer sobre‖. Isso remete à idéia de diferença entre conhecimento que é
construído apenas a partir da reflexão ou intelectualmente e outro que se dá através de
experiências corporais. Nesse sentido, poderia haver, de fato, algum tipo de
conhecimento, próprio da experiência subjetiva, que só é possível pela experiência
pessoal e que corresponde a uma dimensão específica do ser humano. Mais
precisamente, no caso do se humano, parte de nosso conhecimento não funcionaria
apenas a partir de inputs e outputs estabelecidos a partir de certa computação, uma vez
que também atribuímos significado e somos movidos por intencionalidade que, aliás,
são outros aspectos anti-reducionistas abordados, em conjunto, pela autora.
4. Encerrando o texto, mas mantendo aberto o debate
Na busca de justificar sua proposta de uma ―neurofilosofia‖, Churchland busca esvaziar
a questão sobre o problema do corpo e mente, de maneira a considerar a possibilidade
de pensarmos a mente apenas a partir de uma perspectiva material. Embora sua
argumentação (apenas parcialmente apresentada aqui, em função das limitações de
espaço) sejam coerentes e relevantes, ela parece deixar passar questões importantes
relacionadas à idiossincrasia peculiar de nossa consciência. Além disso
Contudo, isso ainda não resolve o fato de computadores atribuírem significado àquilo
que produzem. Aqui, um contra-argumento que ela não menciona (talvez Porter sido
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produzido depois do livro ser publicado) é o ―argumento do quarto chinês‖ de Searle.
Ele lembra que trabalhar segundo regras não significa atribuir significado.
Vale aqui, mencionar a idéia rapidamente citada acima, que o fato de sermos corporais é
um fator que talvez mereça ser considerado na argumentação que tente sustentar ou
contestar a relação entre estados mentais e cerebrais.
REFERÊNCIAS
CHURCHLAND, P. M. Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à
filosofia da mente. São Paulo: UNESP, 2004.
CHURCHLAND, P. S. Neurophilosophy: toward a unified science of the mind/brain.
Cambridge: MIT, 1986.
CHURCHLAND, P. S. Pat Churchland on eliminative materialism. Entrevista
concedida a Nigel Warburton, 19 jun. 2010.
KIM, J. Philosophy of mind. Oxford: Westview, 1998.
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A NOÇÃO HEIDEGGERIANA DE MUNDO E A ESPACIALIDADE
EXISTENCIAL DO DASEIN - Taciane Alves da Silva
Graduanda em Filosofia pela Unioeste/ Campus de Toledo
[email protected]
Palavras-chave: Mundo, espaço, Dasein, ser-em, interioridade
O tratamento fenomenológico-hermenêutico que Ser e Tempo, de Martin Heidegger,
dispensa ao conceito de mundo difere em muito das considerações realizadas no
decorrer da história da metafísica. Não se trata de concebê-lo como o âmbito próprio em
que determinado conjunto fenomênico se dá; uma substancialidade originária, que
contém em si as demais substâncias, ou o correlato objetivo da capacidade
representativa de um ego. No cerne do pensamento heideggeriano, mundo não é
totalidade abarcante, isto é, um continente universal, tutelado por leis causais, de um
encadeamento ôntico. Não devendo ser caracterizado ainda como um receptáculo no
qual os entes surgem e vêm ao encontro de um sujeito que, em si mesmo, possui
mecanismos de abertura de mundo, mas também nele se encontra circunscrito espaçotemporalmente. Mundo não é uma determinação fática.
Em Sobre a essência do fundamento, texto de 1928, Heidegger lança uma visada sobre
a história da ontologia, a fim de delinear os diversos significados adquiridos pela noção
de mundo durante a epocalidade do ser. Após o caracterizarmos negativamente,
cumpre-nos compreender as especificidades da análise heideggeriana deste conceito. O
autor de Ser e Tempo o concebe como a estrutura referencial que determina o Dasein,
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esta amálgama de referências é a expressão ser-no-mundo (In-der-welt-sein), cujo
pressuposto é o ser em virtude de (worumwillen) deste ente, sua autotelia. Mundo é
fenômeno desvelado, um acontecimento oriundo ontologicamente da autocompreensão
do um ser junto a. Seu significado transcendental remete à liberação perspectivada do
horizonte que permite a ultrapassagem do ser em virtude de. Desta concepção, derivamse a totalidade e a ultrapassagem (transcendência) do ser em virtude de, a facticidade, as
possibilidades de existência, bem como a ocupação e o comportamento.
Desse modo, o texto Sobre a essência do fundamento é relevante para compreendermos
a gênese histórica do conceito de mundo. Não há um mundo preexistente, no qual o
Dasein surge a cada vez, há somente uma rede de articulação à qual os entes podem se
dar. Outra obra importante para a ―apreensão‖ fenomenológica de tal horizonte é Ser e
Tempo (1929), cuja análise do mundo circundante (Umwelt) serve como ponto de
partida para o delineamento da seguinte questão: O que determina a transcendentalidade
de mundo em sua constituição originária? O objetivo deste trabalho é apresentar a
concepção elementar de mundo circundante, na medida em que se mostra como ponto
de partida incontornável para o problema da espacialidade. Logo, as considerações
concernentes a essa investigação prévia possuem um fio condutor: o ser-no-espaço do
Dasein. No decorrer do texto, perceber-se-á que o caráter espacializante deste ente
recebe sua fundamentação hermenêutica da mundanidade do mundo.
No parágrafo dezoito de Ser e Tempo, Martin Heidegger define mundo (Welt) como ―o
contexto em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um
deixar e fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura‖ (HEIDEGGER, 2006,
p. 131). A mundanidade (Weltlichkeit), o ato de mundo acontecer enquanto elemento
próprio da transcendência, é definida como a ―estrutura da perspectiva em que Dasein
se refere‖ (Ibidem). Segundo o autor, ao perguntarmos pelo contexto de remissões não
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está subentendido o questionamento sobre uma região fenomênica própria ou a
configuração ontológica dos entes que se dão neste horizonte possibilitador, muito
menos
o
delineamento
quantitativo
e
qualitativo
de
entes
intramundanos
(Innerweltlich). Inquirir pelo mundo é visar ontológico e fenomenologicamente a
mundanidade enquanto existencial (Existenziale) do Dasein, pois, sendo a autotelia
deste, condiciona a sua ipseidade.
Como caráter do próprio Dasein, mundo possibilita a irrupção do ser do manual, a
manualidade (Zuhandenheit), que guarda uma remissão ontológica à mundanidade. Em
todo surgimento do manual, o mundo já acontece como mundo, ―a estrutura referencial
que caracteriza o Dasein enquanto tal‖. Se o Dasein é um ser em situação, ―ocorrência
fatual‖ em meio ao ente, comportando-se com entes que não possuem seu modo de ser,
além de relacionar-se consigo mesmo e com o seu ―semelhante‖, isso se deve a esse
fenômeno existencial, que é condição de possibilidade de seus mecanismos
comportamentais. Como diz Heidegger em Sobre a essência do fundamento, é a partir
de mundo que Dasein se dá a entender, sendo o mesmo pré-requisito de sua ipseidade,
pois ―neste vir-ao-encontro-de-si a partir do mundo o Dasein se temporaliza (Zeitgt)
como um mesmo, isto é, como um ente que foi entregue a si mesmo para ser‖
(HEIDEGGER, 1973, p. 313). Tal ser caracteriza-se por um poder-ser (Seinkönnen), a
possibilidade enquanto tal, destituída de qualquer conteúdo. O mundo como
condicionante prévio do aparecimento do manual não está presente de modo a tornar-se
objeto de uma captação teórica: a rigor, ele acontece de forma não temática.
Tecidas algumas considerações sobre a concepção heideggeriana de mundo, faz-se
necessário vinculá-la ao conceito de espaço (Raum), pois o problema da espacialidade
existencial recebe sua base e fundamento da abertura de mundo, promovida pelo ―ser
junto a‖ (Sei bei). O trabalho almeja compreender de que modo o ser-em (ser junto a),
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constitutivo ontológico exclusivo do Dasein, pode ser definido a partir do ―ser-noespaço‖ e em oposição à interioridade (Inwendigkeit). Dito de outro modo: Que
existenciais normatizam a abertura e instalação de locais, regiões e conjunturas
promovidas por aquele que lida familiarmente, na ocupação, com o manual
intramundano? Quais horizontes e campos fenomênicos, descobertos pelo ser-no-mundo
do Dasein, possibilitam a aproximação do que se acha à mão no mundo circundante em
sua espacialidade? Para circunscrever devidamente a noção heideggeriana de
circumundanidade, que pressupõe a explicitação da espacialidade característica do
mundo circundante, do ente intramundano e do Dasein, é imperativo concatená-la a dois
termos supramencionados: ser-em (In-sein) e interioridade. Somente por meio da
diferenciação desses dois conceitos que se poderá liberar um a priori do Dasein: o ―serno-espaço‖ (cf. HEIDEGGER, 2004, p. 94).
Quanto ao ser-em, deve-se primeiramente caracterizar este momento estrutural de modo
negativo: 1) ele distingue-se da interioridade de algo simplesmente dado
(Vorhandenheit) em um outro; 2) não é propriedade de um sujeito simplesmente dado,
separado, ou apenas provocada pelo ser simplesmente dado do ―mundo‖; 3) É um modo
de ser essencial do próprio “sujeito”. O “sujeito” em questão é o Da-sein. O termo Da
é essencialmente constituído pelo ser-no-mundo e seus significados correntes são ―aqui‖
e ―lá‖. Dasein é originariamente espacializante, pois descobre e ―instaura‖ espaços.
―Aqui‖ e ―lá‖ fundam o distanciamento (Entfernung) e o direcionamento (Ausrichtung),
característicos do ser-em, e determinam a espacialidade do Dasein, descoberta na
circunvisão (Umsicht) das ocupações (cf. HEIDEGGER, 2006, pp. 189-191) Já a
interioridade é definida como o ―modo de ser no espaço‖ distintivo do ―ente interior‖ e
do ―ente circundante‖, ambos subsistentes em um meio abarcante, ocorrências fáticas
intramundanas. O primeiro momento estrutural do ser-no-mundo, o mundo circundante
(Umwelt), possibilita uma espacialidade existencial.
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A ―partícula‖ Da aponta para a presença de mundo como ser-em. A condição
fenomenonalizante do existir humano é o ser junto ao mundo. Ser-em ―é e está
igualmente ‗presente‘ como aquilo em função de que o Dasein é‖. Ser em virtude de,
logo acrescentaríamos o seguinte complemento: de algo. No entanto, Dasein é um puro
estar em virtude de que aponta para sua concreção mais própria, por isso é abertura de
toda significação, o modo existenciário de um poder-ser junto com. A esta expressão
implica dizer que Dasein, enquanto possibilidade de ser, possui modalidades diversas de
ocupação com o ―mundo‖ e de preocupação com os outros, todas lançadas a partir da
perspectiva que já se abriu para si mesmo. Poder-ser significa superação de um estado
ou condição fatual, superação de si mesmo. A possibilidade recebe seu fundamento da
compreensão (Verständnis), isto é, o ser do Dasein se revela como o existir, que não
pode ser encapsulado, por que está imerso no aberto. As mesmas estão concatenadas à
função e à significância (Bedeutsamkeit), sendo esta ―a perspectiva em função da qual
mundo se abre como tal‖. Para a compreensão, é necessário um já estar-lançado. O
existir fático do Dasein define-se pela abertura de um ―poder-apreender as significações
daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira‖. A essa potência de
apreensão damos o nome de significância.
Por constituir um momento privilegiado da transcendentalidade de mundo, ser-em (Insein) não admite uma interpretação primariamente espacial, configura-se por um ser
familiarizado com, estar habituado a, morar, habitar, cultivar, deter-se, possui a
conotação de estar junto, no sentido de empenhar-se em uma região. Esta estrutura é a
expressão formal e existencial do ser do Dasein. A primeira compreensão que temos de
ser-em remete a um estar ―dentro de...‖. Um ente cujo ―ser é constituído em si mesmo
pela extensão é circundado pelos limites extensos de alguma coisa externa‖ (Idem, p.
154). O chá está na xícara, a caneta ―dentro do estojo‖, dois entes subsistentes em uma
mútua imbricação de continente e conteúdo. ―Dentro‖, interioridade, significa a
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reciprocidade ontológica de dois ―entes extensos ‗dentro‘ do espaço, no tocante a seu
lugar neste mesmo espaço‖ (Idem, p. 91). Os entes extensos, cujo caractere ontológico é
a interioridade, têm o mesmo modo de ser dos entes subsistentes, pois ocupam um
―lugar‖ no mundo e são simples ocorrências factuais intramundanas.
Simplesmente junto com algo dotado do mesmo modo de ser, no sentido de uma
determinada relação de lugar, são caracteres ontológicos que chamamos categorias.
Tais caracteres pertencem ao ente não dotado do modo de ser do Dasein‖ (Idem, p.
92).
O ser-em, ao contrário, não deve ser entendido como um traço ontológico distintivo dos
entes presentes. Sendo um dos momentos constitutivos do fenômeno ser-no-mundo,
possui um primado ontológico mais elevado, expressando a compreensão existencialontológica da espacialidade do Dasein. Para tanto, não terá a mera conotação ôntica de
um ―estar dentro de‘ em que dois entes extensos estão imbricados sob o modo de
continente e conteúdo. Enquanto a ―interioridade‖ é uma categoria, que abarca a
constituição ôntico-extensiva de entes simplesmente presentes, ele é ―a expressão
formal e existencial do ser do Dasein que possui a constituição de ser-no-mundo‖
(HEIDEGGER, 2008, p. 100).
A interioridade, em contrapartida, é o ―modo de ser no espaço‖ distintivo do ―ente
interior‖ e do ―ente circundante‖, ambos subsistentes em um meio abarcante.
Contrapondo-se à mesma, o Dasein possui um espaço vislumbrado essencialmente,
despido de qualquer ―continente espacial‘. Por mais que o ‗modo de ser no espaço‘ do
ente intramundano seja esclarecido por meio de nexos categoriais, ele, ainda assim,
possui uma espacialidade constitutiva, fundada em uma remissão originária ao mundo.
No entanto, qual a natureza da co-pertença entre espaço e mundo? Mundo e
mundanidade possibilitam a irrupção do espaço como um a priori.
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De modo especial, há de se mostrar como o circundante do mundo circundante, a
espacialidade específica do próprio ente que vem ao encontro no mundo circundante,
funda-se na mundanidade do mundo e não o contrário, isto é, que o mundo seria
simplesmente dado no espaço (Idem, p. 94).
A mundanidade do mundo libera a espacialidade do manual intramundano. Esse caráter
norteia a espacialidade constitutiva do Dasein, bem como a determinação espacial do
mundo. Assim, deve-se salientar a relevância apresentada por outros conceitos conexos
no que concerne à apreensão fenomenológica da ―abertura e instalação de espaços
promovidas pelo Dasein‖. ―A espacialidade do Dasein não é uma mera posição estática
num espaço imóvel e absoluto em sua estrutura, mas que o espacial e o espaço do
Dasein é uma abertura e instalação de espaços‖ (Idem, p. 163). Não se trata de falar de
um espaço puro, exclusivamente abstrato, mas de uma instância aberta e articulada pelo
jogo ocupacional regido pela circunvisão. Dasein é espacializante. O espaço não se
encontra no sujeito. ―O sujeito não está no mundo como se‖ estivesse no espaço. ―O
espaço está no mundo na medida em que o ser-no-mundo constitutivo do Dasein já
descobriu sempre um espaço‖ (Ibidem).
A espacialidade do manual não é constatada por meio de cálculos para mensurar
distâncias. O espaço não é objetivável, ele é prelineado por uma rede aberta. A
proximidade do manual está fundada no contar com da circunvisão. Através de uma
totalidade conjuntural previamente aberta o instrumento (Zeug) desempenha um caráter
funcional (servir para). Estar em um espaço, um continente absoluto ou relativo, não é
ocupar um local circunscrito estaticamente, o espaço é dinâmico, um sistema de
referências cujos locais não são fixos, mas ―abertos‖, arranjados, instalados, dis-postos
sob a subordinação à multiplicidade de referências do ―ser-para‖.
Portanto, o ―predicado ser-no-espaço‖ pertence ao Dasein não como algo que é
acrescentado posteriormente à sua concretude imediata, uma espécie de propriedade
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entitativa. Sua espacialidade está fundada no ser-em, um dos horizontes transcendentais
da mundanidade do mundo, a condição de possibilidade do distanciamento (Entfernung)
e do direcionamento (Ausrichtung). Ambos regulam o vir à proximidade do ente
intramundano no horizonte ocupacional do Dasein. ―Porque o Dasein é essencialmente
espacial, segundo os modos do distanciamento, o lidar com as coisas sempre se mantém
num ‗mundo circundante‘, cada vez determinado pela distância de um certo espaço de
jogo‖ (Idem, p. 167). A liberação espacial dos entes em uma totalidade conjuntural
ocorre em concomitância com a abertura de mundo. A esta pertence a significância,
conceito que também perpassa a abertura essencial do espaço, pois ―de acordo com seu
ser-no-mundo, o Dasein já sempre dispõe previamente, embora de forma implícita, de
um espaço já descoberto‖ (Ibidem).
REFERÊNCIAS
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Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
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HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antonio Casanova.
2ª edição. São Paulo: Editora WMF Martins fontes, 2009.
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Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
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__________. Seminários de Zollikon. Tradução de Gabriella Arnhold e Maria de Fátima
de Almeida Prado. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 2001.
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Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.
__________. Sobre a essência do fundamento. Tradução de Ernildo Stein. In: Os
pensadores. 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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OS DESAFIOS DA APLICAÇÃO DE UMA AULA TEMÁTICO-REFLEXIVA Claudeonor Antônio de Vargas
Graduando Filosofia1
UPF - Universidade de Passo Fundo
[email protected]
Palavras-chave: educação - reflexão – diálogo-– poder - realidade - desafios
Introdução
O objetivo do trabalho ora apresentado resulta de experiência vivida enquanto
estagiário de Filosofia no ensino fundamental, levada a termo em uma escola da cidade
de Passo Fundo, RS. Entre tantas questões surgidas, optei por me deter em uma que
emerge justamente da análise relativa à possibilidade do ato dialógico com o corpo
discente, sendo este vital para uma aula nos termos propostos. Especificamente falando,
preocupa-me a possibilidade de que, ao estruturar um plano de ensino de Filosofia com
base no que se convenciona denominar de ―aula temático-reflexiva‖ e na constatação
prática de que sua efetividade só se viabiliza através do diálogo, termine-se por
disponibilizar algo utópico aos educandos. Isto porque, na realidade vivenciada pelos
1
Artigo produzido para a fundamentação do estágio na disciplina de Estágio Supervisionado I – A,
ministrada pelo Prof. Dr. Altair Alberto Fávero no primeiro semestre de 2011, na UPF - Universidade de
Passo Fundo.
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estudantes em questão, praticamente inexiste a dialogicidade. Pergunto-me então:
Como irá o aluno interpretar e lidar com o choque resultante da proposta
educacional por mim abraçada e apresentada e a realidade de seu universo
existencial pessoal? A resposta que surge em um primeiro momento me causa
considerável angústia: talvez ele desenvolva um possível aumento do desencanto com a
instituição escolar.
Para melhor organizar a explanação conceitual e crítica do que acima descrevi,
apresentarei a fundamentação teórica do conceito de aula temático-reflexiva com base
em texto alusivo à questão do Prof. Dr. Gerson L. Trombetta, docente da Universidade
de Passo Fundo, em seu artigo O papel da operação reflexiva no ensino e no exercício
da Filosofia; o assunto do diálogo em sala de aula e as questões que surgem do fato de a
escola enquanto instituição ser uma fonte geradora de poder será trabalhado com o
apoio do pensar do Prof. Elli Benincá em seus textos O diálogo no cotidiano do
educador e O diálogo como princípio pedagógico.
Uma proposta de reflexão temática
Em tal perspectiva de aula adota-se um percurso priorizando o que se denomina
modo temático-reflexivo de se trabalhar filosofia, a saber, a condução da aula no sentido
de disponibilizar a todos, professor e alunos, espaço no qual se desenvolverá, com base
em argumentos plausíveis, o que convencionamos chamar de capacidade reflexiva.
Esta, no dizer de Trombetta, dá-se como ―[...] reflexão enquanto operação da
consciência, diferente da constatação ou do apreender uma informação [...]‖ (2002, p.
237) isto é, na livre, sem deixar de ser lógica, construção de identidade a partir da
autonomia do pensamento individual.
Tem-se assim a prática filosófica como um contínuo caminhar atrás de
definições e consensos validativos do conceito reflexivo. Ou seja, uma proposta de aula
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alicerçada no exercício reflexivo deve levar o educando ao desafio de pensar
qualitativamente as questões, objetivando saber por si mesmo, tendo no outro apenas
um parâmetro tensionador ao seu modo de conceber as coisas. Kant, em seu artigo
Resposta à pergunta: Que é o “esclarecimento” (“Aufklärung)? coloca com maestria a
questão:
ESCLARECIMENTO é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele
próprio é o culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio
culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo
sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu
próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung]. (1985, p.
100)
A necessidade de instituir um ambiente dialógico em sala de aula
Pronunciar-se e escutar o pronunciamento do outro, portanto dialogar
significa comprometer-se. (BENINCÁ, 2010. p. 5)
No contexto da formação educacional formal, tem-se do termo ―diálogo‖ a
concepção de que se trata de importante elemento a ser manuseado no cotidiano escolar.
Apresenta-se o mesmo ainda como um princípio pedagógico estimulador das
transformações objetivadas pelo processo educativo institucionalizado. Transformações
estas que visam contribuir na constituição de um sujeito autônomo - nos termos
kantianos (1985, p.100) -, senhor de si, capaz de refletir com base no seu próprio
conhecer, movimentando-se sócio-culturalmente em conformidade com as mais
elevadas aspirações de Humanidade.
Construir um ambiente em sala de aula com base na concepção dialógica acima
discriminada significa não somente abdicar da prática tradicional de ensino
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verticalizado. Para que tal ambiente seja constituído necessário é que haja por parte do
profissional educador um duplo movimento: no primeiro concede ao seu educando um
voto de absoluta confiança e no segundo posiciona-se com humildade ante o mesmo.
Trazendo aqui o imbricamento com a citação inicial desta parte do texto, onde o
professor Elli Benincá agrega um necessário comprometimento ao ato de pronúncia e
escuta inerentes ao conceito de diálogo, apresenta-se a questão da postura diante do
mundo. Tal postura deve primar por uma atitude de co-responsabilidade perante a
interação dialógica, face aos efeitos que a fala produz e em função do agir implícito ao
falar, ao comunicar. Os argumentos apresentados deverão ser factíveis, plausíveis,
fundamentados cognitivamente, passíveis de defesa caso gerem controvérsia e,
concomitantemente com isto, deverão também conter a devida flexibilidade diante da
argumentação contrária, pois é possível que dela resulte o abandono da posição
anteriormente assumida.
A instituição escolar como fonte geradora de poder
Benincá, no texto ―O diálogo como princípio pedagógico‖
2
identifica e
pontua a relação professor-aluno como sendo assimétrica, ou seja, com um desnível
aceito como lógico e natural em função da existência de exercício de poder de um, o
professor, sobre o outro, o aluno. E cita como origem desta referida assimetria da
relação pedagógica professor-aluno a instituição de ensino formal na qual os dois
interagem. E é nesta, com seus diversos papéis constitutivos e determinantes da
2
BENINCÁ, Elli. O diálogo como princípio pedagógico. In: MÜHL, Eldon H. (org.) Educação: práxis e
ressignificação pedagógica. Passo Fundo: Editora UPF, 2010. p. 183.
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condição das relações, que surgem as dificuldades relativas à prática efetiva de diálogo,
já que a mesma estabelece para si prerrogativas e instâncias verticalizadas, gerando um
núcleo de poder operacional institucionalizado.
A possibilidade efetiva da existência de relações dialógicas no contexto
institucional de ensino formal
Assumindo a condição horizontal de interação, ou seja, o diálogo sujeito-sujeito,
dentro do qual se reconhece a existência de saberes nos dois pólos, está confeccionado o
ambiente no qual podem se confrontar tais saberes sem constrangimento, antes pelo
contrário, com os mesmos motivando a reflexão conjunta e a identificação das melhores
alternativas. Entra aqui em cena a questão que envolve a objetividade e a subjetividade
e é no tensionamento das duas dimensões citadas acima, objetiva e subjetiva, que se
pode encontrar o caminho para a concretização do diálogo e obter neste melhores
resultados em termos pedagógicos, socializantes e integrativos e conduzir de forma mais
adequada à constituição de cidadãos capazes e interessados na reflexão construtiva,
comprometidos com a causa público-coletiva e, seguindo Kant, em pleno uso de suas
faculdades possibilitadoras da maioridade, conceito kantiano que pressupõe ser o sujeito
capaz de refletir e de agir por conta própria, sem a direção de outrem.
A realidade encontrada na comunidade trabalhada
O entorno escolar em questão apresenta-se crivado de sérios problemas sóciomorais, culturais e materiais. Famílias desfiguradas, renda baixíssima e até inexistente,
ausência efetiva das figuras de autoridade e anêmica presença do afeto do pai e da mãe,
cultura dominante da sobrevivência, alienação de si, entre outras anomalias sociais de
nossa época, marcam o dia-a-dia das crianças que chegam à escola. Há fartura de relatos
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de agressão física e verbal no ambiente ―familiar‖, de humilhações e de desrespeito. O
diálogo, aqui, além de desconhecido conceitualmente, é praticado em uma estrutura
rígida e vertical, perdendo o seu sentido filosófico, isto é, na prática rotineira o ―mais
velho, mais forte, é o que sabe‖ e transmite o seu saber.
Uma possível e angustiante razão para o desencanto com a escola
Ensinar, e ensinar, tanto quanto possível, Filosofia, eis o enigma que se
apresenta a nós que acreditamos nas possibilidades contidas na educação formal de
contribuir com a lapidação do ser que adentra na vida social, composta de regras e leis
cuja finalidade anunciada é a do refreamento e, quiçá, da eliminação da barbárie. Belas
palavras, entretanto não fazem calar a persistente pergunta inicial. O propósito do
trabalho a que me dedico neste instante é o de pensar a respeito da possibilidade de que
a aula dita com pretensões de contribuir com o aluno no sentido de ampliar sua
capacidade de observação crítica diante do mundo que o circunda redunde em mais um
elemento desestimulante.
Ora, na referida proposta de aula temático-reflexiva, o aluno recebe o desafio de
repensar suas posições, de ouvir respeitosamente a outrem, transformando e utilizando
este ato dialógico em um instrumento de esclarecimento de sua compreensão do mundo.
Fiel a tal concepção de ensino, segue que o professor, iluminado e agregador, em um
instante mágico da sua atividade, capta a atenção do educando, dá a ele o espaço, a
confiança e a orientação adequada para que o mesmo consiga expressar-se. Na esteira
desta projeção otimista, percebe o educando que ele não só pode opinar como também
que a sua opinião é ouvida e respeitada, justamente por ser parte integrante de um
diálogo. Da tensão natural dos primeiros contra-argumentos a assimilação de que o
pensar diferente não é um ato do inimigo pode ultimar uma evolução da compreensão
anterior. O aluno, uma vez assim recebido e orientado em sala de aula pode vir a sentirXVI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste
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se bem, participante da construção e/ou reconstrução do saber e há de querer - espera-se
que sim - reproduzir isto em sua vida extra-escolar.
Agora então precisamos lidar com a realidade vivida pelo aluno no contexto fora
da escola, e urge considerar a possibilidade de que ele não obtenha de seus pares a
mesma disposição manifestada pelo professor em sala de aula. Necessário também
observar que, face às descobertas realizadas no educandário, pode o estudante perceber
os possíveis desacertos contidos no pensar e no agir de seus reais - mesmo que falhos e
deficientes – mantenedores.
É preciso considerar que a aula ministrada sob os auspícios da tematização
reflexiva, tendo sua condução lógica norteada pelo diálogo em termos filosóficos e
obtendo a partir desta estruturação pedagógica o resultado idealizado, pode remeter o
aluno ao desastre prático-vivencial. Tal desastre, uma vez configurado, pode tornar-se
elemento altamente desestimulador para a permanência em um universo escolar já em
adiantado estado de anemia, enfraquecido e em decomposição em termos qualitativos,
com o seu transitar meio que cego no interior de um labirinto obscurecido pela
desvirtualização dos propósitos da educação enquanto possibilidade de bildung3.
Finalmente, se somarmos o elencado acima as condições sócio-culturais e a
prioridade que é dada a mera sobrevivência - justamente, creio eu, por conta de tais
condições - possivelmente o que resta para o aluno é perceber e concluir pela
impraticabilidade da promessa educacional fundada na tematização reflexiva e
sustentada pela relação dialógica.
Considerações finais
3
Expressão alemã significando autoformação e aperfeiçoamento individual.
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A dúvida que perpassa o presente texto de fundamentação pode ser vista a partir
da questão da influência do meio sobre o sujeito e deste sobre o meio, afinal o aspecto
gerador de minha angústia está justamente no confronto da capacidade do ser humano
de sobrepor-se aos desafios encontrados no meio em que está inserido, ou, ao contrário,
da sua rendição ao mesmo. Trata-se de optar por um ou outro lado desta antiga questão
ou, de uma forma mais contemporânea, movimentar-se consciente de que ambas as
concepções fazem-se presentes na vida real dos indivíduos. E é exatamente nesta
concepção de coexistência das influências que quero encontrar o bálsamo para minha
reconhecida e anunciada angústia e, reconhecendo a força extraordinária da ação do
meio sobre o sujeito, ancorar definitivamente minha adesão a forma proposta de ensinar.
Opção que busca assim contribuir com os alunos no sentido de que eles possam fazer o
enfrentamento de suas realidades atuais, não definitivas, municiados pelas próprias
reflexões, desta feita de maneira estruturada racional e conscientemente.
Em resposta a questão norteadora das reflexões aqui apresentadas – recordando,
Como irá o aluno interpretar e lidar com o choque resultante da proposta
educacional por mim abraçada e apresentada e a realidade de seu universo
existencial pessoal? - eu diria que é perfeitamente possível que o aluno, uma vez
confrontado com as discrepâncias entre o proposto a nível educacional e a sua realidade
cotidiana faça exatamente o exercício reflexivo proposto na sala de aula. E considero
mais, que o aluno, ao refletir adequadamente, encontre por si mesmo, em seu viver
particular, uma maneira saudável de conviver com as adversidades, agora tendo em
mente que existe ao menos mais uma opção: a de construir, a partir dele próprio,
melhores, mais justas e mais adequadas condições de vida.
REFERÊNCIAS
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e Terra, 1982. p. 111.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? (Aufklärung) In:
KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 100-117.
TROMBETTA, Gerson L. O papel da operação reflexiva no ensino e no exercício da
Filosofia: contribuições para uma idéia de Filosofia no Ensino Médio. In: FÁVERO,
Altair; RAUBER, Jaime José; KOHAN, Walter Omar. (Orgs.) Um olhar sobre o ensino
de Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2002.
p. 235-247. – (Coleção Filosofia e Ensino).
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A PERCEPÇÃO OU A COISA E A ILUSÃO NA FENOMENOLOGIA DO
ESPÍRITO DE HEGEL - Christiano Tortato
Graduando em Filosofia/Bolsista PET – Unioeste, campus de Toledo/PR
[email protected]
Palavras-chave: Percepção, Fenomenologia, Dialética.
O universal aparece como resultado do desenvolvimento dialético da certeza sensível.
Aparece como princípio essencial dessa certeza, como o verdadeiro, indiferente a ser
isto ou aquilo, ou ainda, como não-isto. Mas o não-isto, enquanto suprassumido1, não
vem-a-ser um nada, vem-a-ser um nada determinado através do qual ―o sensível mesmo
ainda está presente, mas não como estaria na certeza imediata, como o singular objeto
de opinião e sim como o universal, ou como o que se determinará como propriedade‖
(HEGEL, 2005, p. 358). Assim, o objeto da percepção é o universal.
O primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito encontra-se estruturado em três
momentos: primeiro, do Objeto; segundo, da Consciência; e terceiro, a união dos dois
primeiros momentos. O segundo capítulo, ―A Percepção ou a coisa e a ilusão”, é
apresentado com essa mesma estrutura. Mas é importante ressaltar que, embora o
caminho seja ―o mesmo‖ do capítulo precedente, aqui, na percepção nos encontramos
1
―O suprimir apresenta sua verdadeira significação dupla que vimos no negativo: é igualmente um negar
e um conservar‖ (HEGEL, 2005, p. 358).
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num nível mais elevado da trajetória experienciada pela consciência, pois mesmo os
seus momentos devem ser considerados universais e, além disso, como afirma o próprio
Hegel:
A riqueza do saber sensível não pertence à certeza imediata na qual ela estava presente
apenas como um jogo marginal de exemplos, e sim à percepção. Com efeito, somente
a percepção possui a negação, a diferença ou a multiplicidade na sua essência 2
(HEGEL, 2005, p. 358).
Nessa perspectiva, Hegel inicia a exposição da Percepção apresentando as
contradições internas do objeto, o verdadeiro ou o percebido que é independentemente
de estar em uma relação com um ser percipiente, daí sua primazia.
Do Objeto
Como o universal é o princípio mediatizado do objeto, ele (o objeto) deve expressar
essa universalidade em sua constituição interna. Assim, de acordo com Hegel, o objeto
se apresenta como a coisa de muitas propriedades3 e num primeiro momento, a
2
É importante lembrar que embora o autor afirme que somente a percepção possui a negação, a negação
mesma já nos havia sido apresentada no desenvolvimento da Certeza Sensível mediante a superação dos
seus devidos momentos: 1) do objeto, no qual ocorre a primeira negação; 2) do Eu ou da Consciência, no
qual ocorre a negação da negação através da qual, chegamos a um novo momento o qual reuni os dois
primeiros momentos e ao mesmo tempo eleva-se para um novo saber, o que nos leva a refletir acerca da
exposição da obra. Ora, apesar de, os dois primeiros capítulos nos terem sido apresentados
metodologicamente separados, na verdade, encontram-se intimamente ligados, ou quem sabe, poderíamos
ariscar a dizer que a percepção encontra-se embrionariamente presente na certeza sensível.
3
(HEGEL, 2005, p. 358).
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consciência capta o objeto enquanto um simples universal ou um meio4 no qual
encontramos uma série de determinidades indiferentes entre si e indiferentes com
relação ao próprio meio em que se encontram. Logo, tanto o meio quanto as
determinidades que ali se encontram devem ser concebidas como entidades livres ou,
ainda, como um puro relacionar-se consigo mesmo5.
Esse primeiro momento, Hegel denomina de ―Momento da Universalidade Positiva‖, e
para exemplificá-lo, nos traz à consciência a imagem de um minúsculo cristal de sal.
Ora, o que poderíamos dizer sobre um minúsculo cristal de sal? Que é branco e também
sápido, e também de forma cúbica, e também de determinado peso, etc. Ou seja, trata-se
de um indiferente também ou um simples universal constituído de uma série de
determinações. Mas porque Hegel afirma que nesse primeiro momento essas
determinidades são concebidas enquanto indiferentes entre si? Pelo fato de que o
4
Hegel emprega uma série de conceitos que expressam esse simples universal ou meio. Nesse segundo
capítulo encontramos: simples universalidade igual a si mesma, puro referir-se consigo mesmo, meio
universal abstrato, coisidade em geral, pura essência, também, os quais encontram-se diretamente
vinculados à alguns conceitos apresentados no primeiro capítulo como: aqui, agora, ou simplesmente
universais.
5
Aqui, porém, devemos destacar uma das principais características metodológicas empregadas por Hegel:
o desenvolvimento do conceito. Vejamos o que ele mesmo nos diz: ―Exprimindo-se na simplicidade do
universal essas determinidades que, em rigor, são propriedades somente ao sobrevir uma determinação
ulterior, relacionam-se consigo mesmas, são mutuamente indiferentes, cada uma para si, livre com relação
às outras‖ (HEGEL, 2005, p. 358). Chamo a atenção para a seguinte proposição ―... determinidades que,
em rigor são propriedades somente ao sobrevir uma determinação ulterior...‖, ou seja se trata do
desenvolvimento de um único e mesmo conceito, porém exposto, em momentos e níveis diferentes. Num
primeiro momento enquanto determinidade e num segundo momento, posteriormente desvelado,
enquanto propriedade. Mas o que seria, afinal de contas, essa determinação ulterior responsável pela
transição efetuada pelo conceito de determinidades para o de propriedades? Hegel nos apresenta a
resposta para tal questão somente em algumas páginas posteriores, mais especificamente no segundo
momento da percepção com relação ao objeto.
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branco não afeta nem modifica o cúbico, ambos não afetam nem modificam o sápido,
etc6.
Mas, se realmente essas determinidades fossem simplesmente entidades indiferentes
entre si ou um simples relacionar-se consigo mesmas, não seriam entidades
determinadas, pois a determinação é resultado de uma relação existente entre entidades
opostas, ou ainda, divergentes entre si. Assim, a partir de então não podemos mais
conceber essas determinidades enquanto entidades presentes em um simples também
absolutamente indiferente. A partir de agora a unidade existente entre meio e
determinidades deve ser concebida enquanto unidade exclusiva e negadora e não mais
como unidade positiva (indiferente), ou seja, estamos no segundo momento da
experiência realizada pela consciência perceptiva: ―Momento da Universalidade
Negativa‖. E, a partir daqui, Hegel nos dá condições de elaborar uma resposta adequada
para a questão levantada na nota de rodapé número cinco, ―Ora, a propriedade é
somente em um uno e determinada somente em relação com outras‖ (HEGEL, 2005, p.
361), e assim, constatamos a transição do conceito de determinidades para o de
propriedades.
O problema é que a Universalidade Negativa sofre com as mesmas conseqüências
enfrentadas pela Universalidade Positiva. Caso as propriedades apresentassem
determinação exclusiva simplesmente tornar-se-iam, automaticamente, indiferentes
entre si umas com relação às outras, respectivamente. Enfim, até aqui Hegel nos
apresenta a Coisa constituída dialeticamente por dois momentos: o primeiro, da
Universalidade Positiva que visa o Também ou o Meio Universal Indiferente, e um
segundo, o da Universalidade Negativa e Exclusiva que visa as Propriedades
6
(HEGEL, 2005, p. 359).
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excludentes. Em seguida, nos conduz por uma via na qual se desvelará um terceiro
momento, o qual emerge da união dos dois primeiros, sendo ―o ponto da singularidade
irradiando na multiplicidade, no meio da subsistência‖ (HEGEL, 2005, p. 359).
Da Consciência
Mas o que nos diz Hegel acerca da experiência realizada pela consciência? Na verdade,
a consciência simplesmente acompanha o desenvolvimento das contradições internas ao
objeto apreendendo-o sem, no entanto, lhe acrescentar ou retirar algo. Caso contrário,
estaria alterando a verdade. Além do mais, como o objeto é o verdadeiro da percepção,
―Seu critério de verdade é, portanto, a igualdade-consigo-mesmo [do objeto], e seu
comportamento consiste em apreender o que é igual a si mesmo‖ (HEGEL, 2005,
p.360); por isso, qualquer contradição encontrada na relação entre percipiente e
percebido deve ser concebida como falha ou engano da consciência percipiente. Por
isso, podemos afirmar que a consciência se equivocou quando admitiu a coisa enquanto
constituída de meio e determinindades livres e indiferentes entre si, bem como quando
admitiu o oposto aceitando a determinação exclusiva das propriedades pertencentes a
um uno. Assim, podemos ―cair em tentação‖ e afirmar que, na verdade, a consciência
percipiente é a principal responsável pelos resultados até então conquistados.
Em essência trata-se, realmente, de uma experiência realizada pela consciência que
realiza uma reflexão em si mesma a partir do verdadeiro (o objeto), pois afinal de contas
o sal somente é branco quando diante dos nossos olhos, é sápido quando em contato
com nossa língua, e assim por diante. Dessa forma, a consciência aparece como meio
universal e mantém a unidade exclusiva do objeto assumindo a diversidade apreendida
como resultado de sua atividade.
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É a partir desse exercício que a consciência consegue se distanciar e elevar o nível de
suas apreensões com relação às da certeza sensível. Através da atividade perceptivoreflexiva, a consciência se torna capaz de reconhecer que a não-verdade das apreensões
é fruto de sua autoria7. Reconhecendo esse ato falho, torna-se capaz de corrigi-lo,
assumindo, automaticamente, a verdade do perceber. Nessa perspectiva, a consciência
deixa de ser concebida como uma entidade meramente passiva de apreensões simples e
puras, pois se torna consciente de sua reflexão em si.
Hegel, porém, reverte novamente a situação através do seguinte raciocínio: se levarmos
em conta o modo como vínhamos concebendo a relação existente entre propriedades e
meio enquanto uma unidade exclusiva, na qual as primeiras encontram-se voltadas para
si, não podemos afirmar que a diversidade das determinações apreendidas do objeto
resultam da atividade reflexiva exercida pela consciência perceptiva:
O branco é tal somente em oposição ao preto etc., e a coisa é algo uno exatamente
porque se opõe a outras. Mas na medida em que é algo uno, ela não exclui de si as
outras, já que ser algo uno significa o universal relacionar-se-consigo-mesmo e pelo
fato de ser algo uno a coisa é, antes, igual a todas as outras; o excluí-las vem em razão
da determinidade. Portanto, as coisas mesmas são determinadas em si e para si; tem
propriedades por meio das quais se distinguem de outras (HEGEL, 2005, p.362).
Ou seja, as propriedades pertencem à coisa mesma e constituem dessa forma suas
determinações internas e, assim, Hegel chega à seguinte conclusão: primeiro, a coisa é
verdadeira, ou seja, é em si mesma e suas determinações correspondem a sua essência
interna; segundo, as propriedades que aí encontramos não são em razão de outras
7
―Com isso sucede agora o que tinha lugar na certeza sensível, ou seja, no perceber apresenta-se um lado
pelo qual a consciência é impelida de volta a si mesma, mas não no sentido em que tal acontecia na
certeza sensível, a saber, como se a verdade do perceber recaísse na consciência‖ (HEGEL, 2005, p. 361).
E o que garante, afinal de contas, essa nova postura é a efetivação do reconhecimento e da atividade de
auto-correção.
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entidades ou simplesmente para outras entidades, são nela mesma; terceiro, estando na
coisidade (meio), as propriedades são em si e para si e indiferentes entre si.
A partir dessa nova realidade efetiva, contemplamos uma nova inversão no percurso da
experiência realizada pela consciência perceptiva, pois o conteúdo até aqui expresso
passa por uma nova atualização: o objeto volta, novamente, a ser considerado como o
subsistir de muitas propriedades diversas e independentes (HEGEL, 2002, p. 363), ou
seja, acaba comportando a diversidade, e o seu oposto, a unidade, acaba sendo
concebida como fruto da atividade perceptiva. Com essa re-atualização, o que
denominávamos propriedade passa a ser designado como matéria-livre.
Ora, o desenvolvimento contraditório experienciado pela consciência torna-se cada vez
mais explícito no desenrolar da obra de Hegel. E nesse sentido, seu avanço aparece
como resultado de um processo conturbado, assim como o de um turbilhão que joga, de
um extremo ao outro, tudo aquilo que se contrapõe a sua força:
a consciência faz de si mesma e da coisa alternativamente ou o puro uno sem
multiplicidade ou um também dissolvido em matérias subsistentes. Por meio dessa
comparação a consciência descobre, pois, que não é somente a sua apreensão do
verdadeiro que tem em si a diversidade do apreender e do retornar em si, mas
outrossim que a coisa, o próprio verdadeiro, se apresenta nessa dupla maneira de ser
(HEGEL, 2005, p. 363).
O objeto aparece agora como totalidade do movimento realizado pela consciência.
Aparece como um ser duplicado: um ser para si e também para um outro: ―A coisa é
algo uno, refletido em si; é para si mas é também para um outro e, na verdade, é um
outro para si tanto quanto ela é para um outro‖ (HEGEL, 2005, p. 363) e, se num
primeiro momento a coisa aparecia como verdadeira, portadora de uma identidade
absoluta (apenas um ser-em-si e para-si), agora, aparece também como portadora de
uma multiplicidade, apresentando-se como um ser-em-si e para-si e ao mesmo tempo
como um ser-para-um-outro, e essa relação propriamente dita da coisa com outras é o
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tema abordado por Hegel no terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito: o
entendimento.
REFERÊNCIAS
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo
Menezes. Ed. Vozes: Rio de Janeiro, 1992.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Seleção, Tradução e
Notas de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Ed. Nova Cultural: São Paulo, 2005. (Coleção
Os Pensadores)
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em
Compêndio (1830): A Filosofia do Espírito – Livro III. Tradução de Paulo Meneses
com a colaboração do Pe. José Machado. Ed. Loyola: São Paulo, 1995.
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A REALIDADE DOS EVENTOS MENTAIS SEGUNDO POPPER - Mauricio
Smiderle
Graduando em Filosofia – UNIOESTE/PIBIC – Fundação Araucária
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Palavras-chave: Indivíduo, Corpo, Mente
Uma questão muito discutida atualmente é a relação entre o corpo e a mente, o
problema de saber se os seres humanos são apenas máquinas ou se são seres dotados de
estados mentais. Em geral, o materialismo1 é a concepção segundo a qual os homens são
maquinas, não podendo existir estados mentais; e se estes existem, não interferem no
comportamento da matéria ou corpo físico. Um dos principais críticos a esta concepção
foi o filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994), que para defender e provar a realidade
de eventos mentais e também da existência de uma relação entre eles e o mundo físico,
propõem o Interacionismo e oferece a teoria dos Três Mundos: Mundo 1, Mundo 2 e
Mundo 3.
Para melhor compreender os argumentos dos filósofos materialistas é preciso dividi-los
em duas correntes: os que não admitem estados mentais; e os que admitem a existência
desses estados, porém afirmam que os eventos mentais não modificam a matéria, pois o
1
Esta doutrina sofreu diversas mudanças durante a história, pode-se dizer que ela ultrapassou os seus
próprios objetivos clássicos. Alguns de seus primeiros adeptos foram Demócrito, Epicuro, Leucipo, até
chegar aos pensadores mais atuais, como Einstein e Wheeler.
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mundo material é fechado causalmente. Ambas as correntes crêem que os homens não
têm eventos mentais, não possuem fins neles mesmos e não passam de meras máquinas
que não conseguem gozar da existência. Popper é totalmente contra esta visão, para ele
os homens tem estados mentais, são insubstituíveis e as pessoas possuem fins nelas
próprias, porque os seres humanos são capazes de aproveitar a vida, de sentir prazer e
dor, tendo os seus fins neles mesmos, não sendo apenas máquinas. Uma máquina possui
valor se ela for rara, todavia, se haver muitas cópias elas são eliminadas. Já os homens
são valiosos independentemente de existirem muitos ou poucos, pois até mesmo a vida
de um assassino é respeitada.
A idéia inicial do materialismo foi superada por sua própria doutrina, ocorrendo uma
mudança na forma de ver o homem e os estados mentais. O materialismo clássico tinha
como origem a teoria de que a matéria ocupava um lugar no espaço, esta matéria era
uma essência ou substância estável que não estava no devir, ou seja, não sofria
modificações, além disso, ela não precisa de grandes explicações. O que fazia
impulsionar a mudança era o impacto ou ―empurrão‖ de matérias, isto gerava a relação
causal. O mundo era considerado como ―[...] um mecanismo automático de corpos que
se empurram uns aos outros como as rodas dentadas de um relógio‖ (POPPER, 1995, p.
22). O ser humano era visto como uma máquina, onde o choque de partículas o
transformava.
Com a idéia de gravidade de Newton houve uma ruptura na estrutura inicial do
materialismo, pois destruía a concepção do empurrão como algo necessário, mas, logo
este novo pensamento foi acrescentado como uma característica da matéria, não
precisando de grandes informações. Entretanto, um dos fatores mais marcantes que deu
origem a uma nova idéia de materialismo foi a descoberta do elétron, porque destruiu a
antiga visão de que o ―empurrão‖ era fundamental, agora a interação causal poderia ser
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explicada através da repulsão elétrica. E ainda a matéria, que era estável, passou a ser
considerada como instável, ou seja, como um processo de energia condensada, podendo
ser alterada, criada e destruída.
A física moderna acabou sugerindo que a idéia de essência ou substância precisava ser
abandonada, pois, como comentei acima, não existe uma essência que seja imutável e
estável. ―O universo mostra-se agora não como uma coleção de coisas, mas como um
campo de interação de eventos e processos [...]‖ (POPPER, 1995, p. 24). Assim, com a
explicação da matéria e de suas características, a física moderna acabou transcendendo
o materialismo clássico.
A teoria física da matéria procurava explicar as partículas físicas, mas isso acabou com
a descoberta de que a matéria pode se transformar em energia e a energia em matéria,
ou seja, a matéria não possui mais aquele seu aspecto de origem, onde ela era
considerada como uma essência imutável e física. A teoria física da matéria passou a ser
a teoria da matéria. Ao tentar explicar a matéria, a física ultrapassou o seu programa
original, passando a explicar algo que dificilmente pode ser chamado matéria.
Com a transcendência do materialismo, o homem, que era considerado como uma
máquina passou a ser pensado como uma máquina eletroquímica, considerando forças,
campos de forças e energias como partes de si. No entanto, mesmo com essa importante
mudança e maior especificação a respeito do homem, Popper ainda não admite a
concepção de que os homens são máquinas. Porque, mesmo com essa modificação, não
se aceita a realidade de estados mentais, ou ainda a interação da mente com o corpo.
Mas como saber se os eventos mentais são ―reais‖? Primeiramente Popper supõe que
seja real aquilo que possui um tamanho considerável, como aviões, pirâmides,
rinocerontes e javalis. Isto se estende até os objetos de menor porte, como líquidos,
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gases e átomos. E em segundo lugar, também é real o que pode se relacionar
causalmente com os objetos de tamanho ordinário. As alterações que surgem no mundo
corriqueiro podem ser explicadas por entidades ditas como reais, porque quando algo
modifica um determinado objeto, se supõe que a transformação procedeu devido certo
elemento, que independentemente de suas condições, existente ou real. Deste modo, é
admissível ilustrar as mudanças que ocorrem no mundo comum, através de entidades
que se relacionam com estes objetos de tamanho trivial, logo, quando acontecer uma
interação com estes objetos, supõe-se que existe ―algo‖, sendo este ―algo‖ real. ―Devese então admitir que as entidades reais podem ser concretas ou abstratas em vários
graus‖(POPPER, 1995, p. 27). Deste modo, são reais os objetos como computadores,
canetas, livros, e também os líquidos, gases, átomos e campos de forças, porque tudo
isto está em interação.
Assim, Popper concorda com os materialistas que os objetos concretos e abstratos são
reais, no entanto, ele vai além, atribuindo realidade aos eventos mentais, pois estes
interagem com o corpo. Por exemplo, um alpinista, que está escalando uma grande
montanha, está muito cansado fisicamente, mas mesmo assim ele não desiste, fazendo o
seu corpo continuar a escalada com a força da determinação de chegar ao topo, não
deixando se abater até atingir seu objetivo. Tal objetivo não é vital, ou seja, foi
livremente estabelecido e cumprido, não havia necessidade alguma imposta pelo
ambiente externo ou de seu corpo.
Com a existência de diversas teorias a respeito da relação da mente com o corpo, esta
questão ficou reconhecida com o problema corpo-mente. O interacionismo, que é
conhecido como um programa de pesquisa que gera diversas questões e exige muitas
respostas, oferece uma possível descrição para esse problema. Ele procura detalhar o
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problema corpo-mente com o problema cérebro-mente, porque acredita que se existir
uma relação da mente com o corpo, esta relação ocorre no âmbito cerebral.
Para Popper dificilmente um conhecimento total acerca de algo será obtido. Durante a
história existem vários exemplos de quando se acreditava que foi atingido um
conhecimento completo, logo, surgiam novas teorias que a contradiziam. Um exemplo
disto é a transcendência do materialismo, que foi mencionado anteriormente. Acreditase que este conhecimento total não poderá ser alcançado nem mesmo no problema
cérebro-mente, porém um conhecimento parcial e mais detalhado sobre esta questão
pode ser possível de ser atingida.
Não procurando dar uma resposta final, mas para melhor detalhar e esclarecer o
problema cérebro-mente, Popper sugere uma divisão de mundos: Mundo 1, Mundo 2 e
Mundo 3. O primeiro seria o mundo dos objetos físicos, os produtos deste mundo são
admitidos como reais, pois possuem um tamanho considerável, como por exemplo,
camisetas, garrafas, submarinos, líquidos, gases e até mesmo os átomos. O segundo é o
mundo dos objetos mentais, da subjetividade, tais como os estados de consciência e os
estados de inconsciência. E o terceiro é o mundo dos objetos abstratos criados pela
mente do ser humano, como as teorias científicas, mitos e estórias.
É preciso dar ênfase no Mundo 3 para poder tornar mais claro o problema cérebromente. O Mundo 3 interage com o Mundo 1, portanto é real, esta interação se dá por
intermédio do homem, principalmente quando isso ocorre de forma consciente. Com
isso, o Mundo 2 e o Mundo 3 se relacionam, admitindo também a realidade dos estados
mentais. Um exemplo dessa relação que pode contribui para o entendimento ocorre no
processo tecnológico: ao propor um novo instrumental (Mundo 1), o profissional é
levado a demonstrar sua facticidade com recursos fornecidos pela ciência existente
(Mundo 3), lançando mão dos elementos e processos objetivamente possíveis para a
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constituição do artefato (esta percepção, que acontece de forma consciente, é o Mundo
2), e assim torna factível o seu instrumento em conformidade com os recursos das
ciências vigentes. É de se esperar, entretanto, que haja problemas a ser transpostos nas
três instâncias de ação humana, tanto pode o proponente encontrar limitações no estágio
de desenvolvimento da ciência (Mundo 3), como pode não ter as intuições intelectuais
necessárias para a completa configuração do artefato (Mundo 2), como ainda, pode não
ter a tecnologia a altura para fabricar o objeto proposto (Mundo 1). Assim, a interação
entre os três mundos é a forma pela qual ocorre a ação positiva do homem e do mundo,
mas também é onde o conjunto dos problemas se aloja.
O processo de criação em que o Mundo 2 gera o Mundo 3 é semelhante ao processo da
percepção visual. Agindo por meio de uma seleção crítica, onde a consciência faz uma
escolha de objetos para invenção de uma teoria. Por exemplo, um homem ao escrever
um livro não vai colocar tudo que está presente em sua mente, mas vai selecionar as
melhores idéias, para que possa deixá-lo muito melhor. Então, se percebe que os estados
mentais são de extrema importância, porque eles possuem um papel ativo.
Através do relacionamento dos três mundos, percebe-se que, como o Mundo 3 é o
produto do ser humano, o homem também é um produto do Mundo 3. Fica evidente que
as teorias transformam a pessoa, porque modifica o comportamento e o caráter do
individuo. Quando se lê um livro de filosofia, que diz respeito a uma nova idéia ou
teoria, e concorda-se plenamente com ele, o sujeito modifica o seu comportamento a
favor de suas novas concepções.
Outro forte argumento apresentado por Popper, que sustenta a existência dos três
mundos, é a linguagem. O ato da linguagem não faz parte da genética do homem, isto é,
―[...] não é um processo geneticamente regulado, portanto não-natural, e sim cultural;
um processo do Mundo 3‖ (POPPER, 1995, p.73). Contudo, ela possui uma base
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genética, a linguagem surgiu através do relacionamento de disposições geneticamente
fundadas, que apareceram devido uma seleção natural, com um processo consciente de
aprendizagem, que tem como origem a evolução cultural. Com ela é que ocorre uma
relação com as outras pessoas e com os outros objetos do seu ambiente. Através deste
contato com os outros ―eus‖ é que o homem toma consciência de si ou a consciência do
―eu‖, sendo tudo isso possível por intermédio da linguagem.
Com os estados mentais e com a consciência do ―eu‖ sendo reais, fica obvio que, o ser
humano possui sentimentos, tais como dor, prazer e sofrimento. Com isso, ele pode
aproveitar a vida e ter até mesmo a consciência da morte, portanto, sendo fim em si
próprio, não apenas máquinas como afirma os materialistas.
Com a teoria dos três mundos, Popper demonstra a realidade dos eventos mentais, e da
interação destes com o corpo, esclarecendo e oferecendo uma possível solução para o
problema corpo-mente ou ainda cérebro-mente. Ele também destaca o Mundo 3, porque
este tem uma importante participação na formação do caráter do indivíduo humano. E
afirma que os homens não são maquinas, mas são seres insubstituíveis que possuem
consciência, contrariando assim a concepção dos materialistas.
REFERÊNCIAS
POPPER, Karl e ECCLES, John. O eu e seu cérebro. Tradução de Sílvio Meneses
Garcia, Helena Cristina Fontenelle Arantes e Aurélio Osmar Cardoso de Oliveira.
Campinas, SP: Papirus, 1995.
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A RELAÇÃO ENTRE HOMEM E MUNDO EM SARTRE - Thayla Gevehr
Graduanda em Filosofia – Unioeste, Campus de Toledo/PET
Orientador: Claudinei Aparecido da Silva.
[email protected]
Palavras-chave: Ser, não ser, Em-si, Para-si, homem, mundo.
A preocupação de Sartre em ―O Ser e o Nada‖ consiste em determinar o fundamento da
realidade. O título da obra não é meramente sugestivo; muito pelo contrário, demonstra
que toda a investigação é pautada na relação entre ser e nada.
Se a intenção é fundamentar ontologicamente a realidade e esta é o conjunto de tudo
que se manifesta, então a investigação exige, logo de início, a compreensão dos
―fenômenos‖, porque fenômeno deve ser entendido como aquilo que se manifesta.
Posto assim em evidência, o fenômeno necessita de um para-quem aparecer, e este paraquem é o homem. Por isso, reconhecemos que há relação entre a realidade e o homem,
entre o fenômeno e a consciência. Desde já, mesmo grosso modo, podemos acrescentar
que a realidade do fenômeno estará enraizada no que Sartre chama de ser-Em-si, isto é,
aquilo que é igual a si mesmo, e que não pode ser outro porque é sempre si mesmo.
Noutras palavras, o ser-Em-si é ―maciço‖ (Sartre, 2009, p.39) e não se altera porque é
sempre plena positividade. Já a consciência, que é chamada de Para-si, é negatividade, é
falta, porque nunca se completa, e se mostra sempre com o Em-si, não por conferir
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existência a ele, mas lhe conferindo sentido. A diferença entre essas duas regiões,
unificadas no Ser, pode ser assim exposta:
O Em-si não se reduz à sua aparição à consciência, não necessita do Para-si para
existir enquanto aparição ou fenômeno (assim como não preciso de um espelho para
existir, mas para aparecer a mim). A consciência é que faz com que o Ser ―se mostre‖.
Ela não cria o mundo: apenas o constata. (Perdigão, 1995, p.39)
Isso justifica a retomada de Sartre à tese husserliana da intencionalidade: ―Toda
consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa‖ (Sartre, 2009, p. 22), pois
―não tem, por si mesma, qualquer suficiência de Ser, e, de saída, nos remete à coisa.‖
(Yazbek, 2006, p. 39) A partir do reconhecimento da relação entre Em-si e Para-si,
fenômeno e consciência, perguntamos: como esta relação entre diferentes ocorre,
estando juntos na mesma unidade de Ser?, ou ainda, como a plena positividade pode ser
vista junto com a negatividade, no tocante à fundamentação do real?.
Sartre inicia investigando os fenômenos, ou seja, a experiência mais concreta e
imediata, deixando evidente a importância ontológica da relação entre homem e mundo.
Ele retoma as palavras de Heidegger, afirmando que o homem é ―ser-no-mundo‖;
ocupar-se com o fundamento da realidade implica a consideração do homem. Em
grande medida, a preocupação do filósofo não é apenas a de não distanciar um do outro,
mas, antes, de colocá-los juntos, como momentos da totalidade que deve ser
questionada. Como homem e mundo correspondem à relação sintética do Ser,
identificados como Para-si e Em-si, somente por esta relação o ―mundo pode irromper
em realidade humana‖. (Id., p.40). Isso significa que se tudo fosse Em-si (positividade),
e o homem (negatividade) fosse apartado do mundo, então não teria sentido a pergunta
sobre a realidade ou a investigação sobre o fundamento da relação entre estes dois polos
unificados no ser, porque não haveria pergunta, nem tampouco investigação (não
haveria sentido). A razão mesma da questão se dá na relação. Se não fosse assim, só
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teríamos a plenitude do Em-si; mas este, sozinho, ―ignora necessariamente qualquer tipo
de alteridade, de sorte que é maciço em sua plenitude [...] se esgota em Ser o que ele é, e
isso de modo tão radical que consegue escapar a qualquer relação.‖ (Id., ib.). A
diferença substancial que atinge homem (Para-si) e mundo (Em-si) se dá no próprio
reconhecimento da ligação necessária entre eles, isto é, ―se a consciência é Para-si,
opõe-se ao outro que não ela, opõe-se ao Em-si‖ (Bornheim, 2003, p. 38), ao mesmo
tempo em que depende dele porque a consciência é consciência do fenômeno. Mas
como chegarmos ao âmago da questão sobre a relação homem-mundo?
Para iniciar a investigação dessa unidade sintética, Sartre analisa uma conduta humana
―específica‖. Tal conduta precisa ter sua ―escolha‖ comprovada objetivamente (por sua
necessidade) e não ser apenas como opção subjetiva:
cada uma das condutas humanas, sendo conduta do homem no mundo, pode nos
revelar ao mesmo tempo o homem, o mundo e a relação que os une, desde que as
encaremos como realidades apreensíveis objetivamente, não como inclinações
subjetivas que só podem ser compreendidas pela reflexão. (Sartre, 2009, p.44).
Mesmo existindo essa diversidade de condutas, há uma em que Sartre se detém, porque
sua análise daria conta do problema em questão. A análise do filósofo recai sobre a
conduta interrogativa. Podemos perguntar: por que a interrogação, e não outra conduta
qualquer, como a lembrança ou a sensação, é escolhida?
É sob a forma de uma interrogação que o Ser pode ser posto em questão, que a estrutura
do mundo pode ser posta em evidência. Da mesma forma, através de uma conduta
interrogativa até mesmo a lembrança e a sensação podem ser tematizadas. Sem tal
conduta, o sentido do mundo esboçaria a completude e opacidade pertencentes ao Emsi, e expulsaria o homem. A interrogação consegue quebrar esta opacidade, trazendo ao
mundo o ―desgarrar-se‖ do Ser. Ela o faz porque põe a ―espera‖ da resposta do Em-si
como cisão entre consciência e mundo objetivo. Por isso, toda conduta humana
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pressupõe a conduta interrogativa: há espera em todas elas. Quando o homem quer se
lembrar de algo, busca dentro de si o pretende seja lembrado, porque espera conseguir
lembrar. Assim, questiona a memória para tentar obter a lembrança desejada, isto é,
espera a confirmação da memória, que atua como substituta do Em-si. Por essa espera,
surge o não como possibilidade – pode-se não lembrar o que era buscado. Se por um
lado os fatos que ocorreram no passado [encontrados pela memória/lembrança] parecem
conter plena positividade, como se fossem imagens do Em-si, por outro, eles só podem
estar assim fixados porque um dia houve expectativa quanto ao que ocorreria no futuro.
Eu lembro do que um dia foi espera de um porvir, lembro uma conduta de espera
interrogante. Ou seja, mesmo uma atividade que não parece conter nada de expectativa,
por lidar com o que já está determinado, é atravessada pela postura de uma espera, raiz
da interrogação.
A conduta interrogante implica, assim, um interrogado e a espera por uma resposta. A
resposta que advém de toda e qualquer pergunta é sempre positiva ou negativa. Pois,
como a conduta interrogativa é humana, a resposta que vem do Em-si é sempre uma
confirmação ou negação dos termos da pergunta. Se não fosse assim, não haveria
sentido na ideia de ―lançar uma questão‖, qualquer que fosse. Somente devido à espera
por uma resposta, encontramos como momentos da realidade a existência efetiva do ser
(afirmação) e do não ser (negação). Enquanto chamamos a estas possibilidades de reais,
já indicamos que fazem parte da constituição de mundo e, consequentemente, de
homem. Desde os exemplos mais banais que poderiam ser citados, até àquilo que atinge
toda a nossa investigação, ―ser‖ e ―não ser‖ são reais: aquele que interroga, no momento
em que interroga, experimenta a espera no seu todo, porque não sabe de fato qual
resposta virá: se afirmativa ou negativa, se o que ele espera ―é‖ ou ―não é‖. Para o
interrogador existe a ―possibilidade permanente e objetiva de uma resposta negativa‖
(Sartre, 2009, p. 45). Isto significa: a possibilidade permanente de não se dar aquilo que
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ele esperava revela que o não ser está tanto fora, quanto dentro dele, isto é, pertence ao
real. O saber do homem sofre com a espera porque ele não sabe o que será, e a
experiência mesma pode revelar o não ser, enquanto se esperava o ser, e vice-versa.
Nota-se, portanto, que o momento essencial desta ―ocorrência do mundo‖ é a negação,
isto é, a capacidade do Para-si de desgarrar-se do Ser, de cindir a plenitude própria ao
Ser pleno do Em-si e ultrapassá-lo rumo ao não-ser- em vocabulário sartreano.
(Yazbek, 2006, p. 38)
Diante disto, a negação da existência deste não-ser implicaria que o mundo fosse plena
positividade, e nunca negatividade. Não há como negar que, de fato, o ―não‖ se mostra
no mundo e se mostra de muitas maneiras, porque, antes de qualquer coisa, não falamos
de um não ser subjetivo, mas de um não-ser que se comprova objetivamente, que de fato
compõe o real. O interrogar, como conduta humana, exige uma relação de ser com ser.
Por meio desta, interrogamos, num primeiro momento, o ser-Em-si mesmo, no que toca
ao homem. De fato, se temos um problema (como diz Sartre) com o relógio, a questão
se direcionará às peças e mecanismos do relógio (ao ser), o interrogado é o relógio e o
interrogador será aquele que deseja encontrar o problema do não funcionamento. E,
mesmo quando a interrogação acerca do relógio é feita de um homem para outro, ainda
assim a resposta só será identificada quando a pergunta for dirigida ao portador do
problema, ou seja, o relógio. Aí somos levados ao nada: a pergunta pode atingir um
local ou peça (ser) que não é causa do não funcionamento; à medida que obtemos o não
como resposta, somos jogados a outra possibilidade de ser – mas só somos jogados a
outra possibilidade porque o não-ser se confirmou como resposta. Perguntar é colocar
como possibilidade um ―não-ser‖.
Interrogar depende ontologicamente da realidade do não-ser. Nossas questões se
dirigem ao Em-si, mas é o Ser, que inclui Para-si e Em-si, que dá o fundo estrutural da
resposta: a contínua possibilidade ou alternativa entre sim e não. A afirmação feita
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perante o que aparece só pode ser feita da seguinte forma: isto é de determinada
maneira, e não de outra. Ou seja, existe a afirmação do ser, mas por meio dessa
afirmação encontramos já a negação.
A partir da conduta interrogativa, vemos que o Para-si com relação ao Em-si traz ao
mundo a negatividade, devido à falta que o constitui. É a incompletude da consciência
que sempre age com a completude do fenômeno. Pois, para consciência ser consciência
de algo e assim ter existência, é necessário que esteja ligada a algo que não seja ela
mesma, que tenha outro modo de ser, e isto é o fenômeno (o que se manifesta à
consciência).
Diante disso, podemos estabelecer que o nada, o não ser, surge no mundo justamente
por esta relação, que fica mais bem exposta na atitude de questionar. Tal atitude
consegue unir esses dois polos diferentes na mesma unidade de Ser, fazendo surgir,
como ―espera‖, a possibilidade ―real‖ de ser e de não ser que expõe a unidade e a
diferença entre Para-si e Em-si. Assim, a característica principal da consciência é a
plena negatividade, enquanto o fenômeno é plena positividade. Logo, a relação que
reconhecemos entre homem e mundo só se faz relação pela recorrência e dependência
de um a outro. O não-ser de um depende do ser de outro:
o Nada só pode surgir em relação ao Ser, implícito no Ser e fundamentado em algo
concreto, pressupondo o Ser para negá-lo. Inevitavelmente ele aparece sobre um fundo
de ser e em ligação com o Ser, dentro dos limites do Ser e jamais fora dele. Todo Nada
é Nada de alguma coisa concreta. (Perdigão, 1995, pp.40,41)
A negatividade surge no modo de relação do homem com o mundo. Ou seja, o homem
reconhece que não é o mundo e, portanto, que é diferente do pleno ser Em-si. Quando
lança o olhar interrogativo, a partir deste reconhecimento, pressupondo encontrar uma
resposta que justifique não só a diferença entre eles, mas também o motivo pelo qual
existe essa diferença, então infesta o Ser de negatividade.
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O ser é anterior ao nada e o fundamenta. Entende-se isso não apenas no sentido de que
o ser tem sobre o nada uma precedência lógica, mas também que o nada extrai
concretamente do ser a sua eficácia. [Por isso é possível dizer] que o nada infesta o
ser. Significa que o ser não tem qualquer necessidade do nada para se conceber. (...)
Mas, ao contrário, o nada, que não é, só pode ter existência emprestada: é do ser que
tira seu ser, seu nada de ser só se acha nos limites de ser (Sartre, 2009, p. 58)
A interrogação, que conta com a realidade da possibilidade do ‗não ser‘, tem o poder de
colocar em questão o próprio Ser no seu modo de ser. Por isso, como diria Sartre, a
―condição necessária para que seja possível dizer não é que o não ser seja presença
perpétua, em nós e fora de nós. E que o nada infeste o ser‖. (Sartre, 2009, p. 52). O juízo
negativo que aparece faz com que o nada da consciência, a incompletude, se mostre no
mundo como efetividade. Isso significa que o não já está no mundo, mas que só a
consciência, pela relação com o fenômeno, pode mostrar esse nada. É a atitude
interrogativa em geral que faz com que este apareça. O reconhecimento de Em-si e
Para-si numa conexão já é a pura demonstração desta realidade; positividade e
negatividade se conformam como partes indissociáveis do que chamamos de realidade
humana. O sentido pleno de o mundo poder irromper em realidade humana reside em
que a partir do humano o Em-si, plena positividade, aparece (junto ao Para-si) como
momento do ―mundo‖. Daí termos que reconhecer que o Ser, que abarca tudo, até
mesmo a consciência, inclui necessariamente a negatividade.
REFERÊNCIAS
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada. Petrópolis: vozes, 2009.
BORNHEIN, A. Gerd. Sartre. Perspectiva, 2003.
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DANTO, C. Arthur. As ideias de Sartre. Cultrix, 1978.
PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Porto
Alegre: L&P, 1995.
YAZBEK, C. André. ―A ‗desorganização interna‘ do Ser e o surgimento da ‗realidade
humana‘ em O Ser e o Nada‖. Dois Pontos. Revista do Departamento de Filosofia UFPR. Curitiba: UFPR, 2006.
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A RELAÇÃO ENTRE MORALIDADE E MAL EM IMMANUEL KANT Ramon Alexandre Matzenbacher
Aluno do PPGF da UFSM
Bolsista Capes
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Palavras-chave: Moralidade; Mal; Propensão
Em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant busca explicitar o
fundamento das ações morais. Para tal empreitada ele leva em consideração o caráter
objetivo e subjetivo das normas que levam o sujeito a agir. É nesta obra que Kant
estabelece que é à razão que cabe fixar um princípio moral autônomo, que se distancie
do senso comum e que se oponha às teorias morais clássicas - heterônomas. A razão
―realiza‖ esta tarefa quando se eleva do conhecimento vulgar ao princípio supremo da
moralidade e, ao fazer o caminho inverso, partindo desse princípio e das suas origens,
às consequências concretas de sua aplicação. Somente após isso é que a razão estaria
apta a estabelecer bases seguras para a moralidade.
Ao tratar do fundamento último da moralidade, Kant, nos mostra que este está fixado
em bases metafísica. Portanto, segundo o autor, propor a vida moral de acordo com tais
exigências implica não apenas a simples decisão de negar as inclinações empíricas e
tudo aquilo que provém da sensibilidade. É à razão que cabe assentar, de modo seguro e
definitivo, o princípio supremo da moralidade. Segundo Kant
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uma metafísica dos costumes é pois rigorosamente necessária, não só por motivo de
necessidade da especulação, a fim de indagar a origem a priori em nossa razão, mas
também porque a própria moralidade está sujeita a toda a espécie de perversões,
enquanto carecer deste fio condutor e desta norma suprema de sua exata apreciação.
Com efeito, para que uma ação seja moralmente boa, não basta que seja conforme com
a lei moral; é preciso, além disso, que seja praticada por causa da mesma lei moral
(FMC, IV, 342).
Uma ação praticada tendo-se em vista tão somente a lei moral é uma ação praticada por
dever. O valor moral de uma ação praticada por puro dever não reside no fim que deve
ser alcançado, mas na máxima que a determina. O valor moral, portanto, depende
―unicamente do princípio do querer, segundo o qual a ação foi produzida, sem tomar
em conta nenhum dos objetos da faculdade apetitiva‖ (FMC, IV, 342). Este princípio do
querer é o fundamento subjetivo que leva o sujeito a agir. Ele deve ser sempre um ato da
liberdade, pois do contrário o homem não poderia ser considerado moralmente bom ou
mau. Segue-se disso que o princípio da obrigação não deve ser buscado na natureza do
homem e nem mesmo na situação como este se encontra no mundo, mas somente a
priori nos conceitos da razão pura. A moralidade de uma ação então consiste em
executá-la por puro dever, ou seja, a máxima que o próprio sujeito se impõe deve estar
de acordo com a lei da moralidade.
Com isso fica claro que Kant considera que um ser racional não deve agir somente em
conformidade com a lei moral, mas praticar as ações por causa da lei moral. Somente
agindo dessa maneira é que a ação ocorrerá, indubitavelmente, segundo um fundamento
que possa ser proposto de modo universal e necessário. Nas ações realizadas somente
em conformidade com o dever, a legitimidade (em termos de valor moral) da ação se dá
apenas na correlação entre ato e lei externa. Com isso, toda e qualquer prescrição que
esteja assentada em princípios da experiência ou em qualquer princípio que não seja a
lei moral, mesmo que esteja de acordo com a condição de validade universal, pode
somente ser denominada regra prática, mas nunca lei moral.
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A partir das condições que fundamentam a teoria moral kantiana podemos vincular a
esta um problema, a saber, como o homem, mesmo sendo consciente da lei moral, adota
para si, em sua máxima um caminho diferente daquele que é proposto pela lei moral?
Segundo Kant, há um primeiro fundamento, que é inacessível para nós, da adoção de
máximas boas ou da aceitação de máximas más. Para ele,
o fundamento do mal não pode residir em nenhum objeto que determine o arbítrio
mediante uma inclinação, em nenhum impulso natural, mas unicamente numa regra
que o próprio arbítrio para si institui para o uso de sua liberdade, isto é, numa máxima
(Rel, p. 27).
Devemos sempre ter em conta que para Kant, a moralidade está sempre associada de
modo íntimo com o uso do livre-arbítrio. Este só pode ser julgado bom ou mau de
acordo com a avaliação de suas máximas. Disso se segue que o mal moral tem a sua
origem na aceitação de máximas deflexivas em relação à lei moral. Nesse caso, a
deflexão trata-se do abandono da lei moral enquanto móbil suficiente para reger a ação
em favor de outros móbiles que não advém da razão. Kant se vale da noção de
propensão para demonstrar porque o homem, mesmo tendo consciência da lei, acaba
não tomando esta como móbil suficiente.
Por propensão Kant entende, em um primeiro momento, ―o fundamento subjetivo da
possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concuspiscentia) na medida em que é
contingente para a humanidade em geral‖ (Rel p. 34). Por ser considerada um
fundamento subjetivo, se segue que esta deve ser admitida no arbítrio e que não pode ser
detectada através da experiência. A possibilidade de uma inclinação diz respeito aos
sentimentos de prazer e desprazer. O fato de essa propensão ser contingente não é
contraditório com a presença da mesma na humanidade em geral. Ela deve ser
considerada deste modo, pois do contrário, acarretaria uma explicação da espécie
humana pelo mal. Conforme o que nos diz Kant, ela deve, mesmo sendo contingente,
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estar em todos os homens, pois uma vez que se trata aqui da moralidade, não é possível
admitir que certo indivíduo tenha a propensão para o mal e outro não. Já em um
segundo momento, Kant entende que propensão ―é, em rigor, apenas a predisposição
para a ânsia de uma fruição; quando o sujeito faz a experiência desta última, a
propensão suscita a inclinação para ela‖ (Rel p. 34 n. 9).
Nesses termos a propensão é a aptidão para a busca de um prazer, e, ao se terminar esta
busca, a propensão dá origem à inclinação para o prazer que é buscado. Esta última, por
sua vez, sempre pressupõe o conhecimento do objeto do apetite. A propensão pode ser
concebida também como adquirida, quando é boa e contraída quando é má. Por
adquirida entende-se que a possuímos mediante o cultivo de algo bom e por contraída
compreende-se que esta foi apanhada através do contato com algo mau. A partir dessa
definição, Kant nos mostra que a propensão pode ser boa e está ligada a algo que se
conquista, e ao mesmo tempo, por ser adquirida ou contraída, ela não é fruto de uma
determinação natural.
Em a Religião nos limites Kant aponta que há três graus de propensão, a saber, ―a
debilidade do coração humano na observância das máximas adotadas em geral ou a
fragilidade da natureza humana‖. Em segundo lugar ―a inclinação para misturar móbiles
imorais com morais, i.e. a impureza‖ e por fim, ―a inclinação para o perfilhamento de
máximas más, i.e. a malignidade da natureza humana ou do coração humano‖ (Rel, p.
35).
Ao tratar da debilidade do coração humano no tocante à observação das máximas, Kant
pretende dizer que a lei moral é adotada na máxima enquanto móbil suficiente,
entretanto, no momento da observância da máxima, ocorre um descompasso e o sujeito
acaba se valendo de móbiles exteriores à lei moral. Segue na argumentação kantiana
que, o homem, devido a sua disposição originária para o bem possui consciência do
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caráter absoluto e incondicional da lei da moralidade. Entretanto, devido a uma
fragilidade da sua natureza o homem tem dificuldades em reconhecer tal caráter como
móbil suficiente para a ação. A fragilidade residiria então, não na máxima propriamente
dita, mas sim na sua efetivação na ação.
Este é um ponto um pouco confuso na argumentação kantiana. Uma vez que este se vale
da ação para justificar a corrupção pelo mal. Sendo que esta se dá no nível do arbítrio, a
fragilidade acaba não sendo plenamente justificada. Então, se o homem reconhece
genuinamente o caráter absoluto e incondicional da lei moral em sua máxima, a sua
realização na ação se torna mais provável. Com isso pode-se dizer que quanto ao grau
da fragilidade não há uma admissão total da lei moral como móbil suficiente. Pode se
dizer que o problema se manifesta na consolidação da máxima a não na sua efetivação
na ação.
O segundo grau da propensão se situa na impureza do coração humano, isto é, a lei
moral não foi acolhida enquanto móbil suficiente e há a necessidade de outros móbiles
além da própria lei para determinar aquilo que o dever exige. Neste ponto, vê-se que ao
se ter consciência da lei moral enquanto móbil suficiente e, ainda assim se admitir
outros móbiles junto a este, ocorre então uma mistura de móbiles morais com imorais.
A máxima é decerto boa segundo o objeto (o seguimento intentado da lei) e,
porventura, também assaz forte para a execução, mas não puramente moral, i.e., não
acolheu em si, como deveria ser, a mera lei como móbil suficiente (Rel, pp. 35-36).
O terceiro grau da propensão diz respeito à ―malignidade da natureza humana ou do
coração humano (Rel, p. 35)‖. Segundo Kant, trata-se de um estado de corrupção do
coração humano onde o arbítrio adota máximas que dão preferências a outros móbiles
em detrimento da lei moral. Tal propensão também pode ser chamada de perversidade
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do coração humano uma vez que ocorre uma inversão dos valores dos móbiles que
determinam o arbítrio.
O que temos que ter em consideração é que a propensão para o mal, na medida em que
está presente no arbítrio através da adoção da máxima suprema, acaba por se constituir
uma disposição de ânimo inerente à natureza humana. É preciso salientar que esta
máxima suprema, ou seja, fundamento do agir, orienta todas as máximas e está, dessa
forma, presente nelas. Ainda tratando desta questão, Kant trata a propensão como sendo
inata. Com isso ele quer dizer que ela é considerada
inata, porque não pode ser extirpada (para tal a máxima suprema deveria ser a do bem,
a qual, porém, nessa própria propensão, é acolhida como má); mas, sobretudo pela
razão seguinte: em relação a porque em nós o mal corrompeu precisamente a máxima
suprema, embora tal seja um ato próprio nosso, tampouco podemos indicar uma causa
como acerca de uma propriedade fundamental inerente à nossa natureza (Rel, pp. 3738).
Como já foi dito acima, para Kant, uma vez que a propensão age sobre a máxima
suprema, ela acaba por corromper todas as demais máximas que se originam a partir
dela. É justamente por isso que Kant diz que a propensão não pode ser extirpada, pois
para isso o fundamento do agir deveria ser bom e não mau. Para extirpar a propensão
deveria ser possível uma nova adoção de uma máxima suprema, sendo que esta então
deveria ser boa.
Somente desta forma é que a propensão poderia ser extirpada da natureza humana.
Tendo-se em conta o que foi dito até aqui, podemos ver que Kant reconhece que embora
essa adoção seja um ato do nosso arbítrio, não é possível indicar uma causa presente em
nossa natureza a partir da qual o mal se origina. Por isso, segundo ele, tratou-se de
procurar
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as fontes do mal moral unicamente naquilo que, segundo leis da natureza da liberdade,
afeta o fundamento supremo da adoção ou seguimento das nossas máximas; não no
que afeta a sensibilidade (como receptividade) (Rel, p. 38).
Mas se não podemos extirpar a propensão para o mal, o que nos resta fazer? De acordo
com Kant, é possível um progresso moral da humanidade. Em um primeiro momento,
ele trata a questão da seguinte forma: é possível um progresso moral porque deve ser
assim. "Pois se a lei moral ordena que devemos agora ser homens melhores, segue-se de
modo ineludível que devemos também poder sê-lo" (Rel, p. 56). Kant pressupõe que é
possível ao homem ter uma boa conduta moral, pois na ideia de dever já está implícita a
noção de que se pode fazer.
No que concerne ao progresso moral da humanidade, Kant trata a questão do mal na
natureza humana como um obstáculo que pode ser superado uma vez que o dever nos
ordena a fazer isso. Dessa forma, ele afirma que independente do estágio em que o mal
se encontra na natureza humana, o homem tem o dever de lutar por sua reabilitação.
Esta luta do homem por sua progressão moral não resultará na extirpação do mal, mas
sim em um domínio sobre este.
Concluindo este trabalho, percebemos que a partir da leitura da Fundamentação foi
possível compreender melhor a proposta kantiana de estabelecer um fundamento, sobre
bases seguras, para a moralidade. Ao passo que leitura da Religião nos Limites
proporcionou a criação do vínculo entre moralidade e mal. Vínculo que é tratado neste
trabalho através do conceito de propensão.
A leitura destas obras nos permite concluir que para Kant a moralidade, enquanto é
concebida como um uso do arbítrio nos dá a conhecer um ato livre. Com isso o bem ou
o mal moral não pode estar em nós por natureza na medida em que é tomado como um
fundamento de determinação do arbítrio que seja exterior à razão que se auto-legisla.
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Tampouco podemos encontrar o bem ou o mal em nossa natureza sensível, pois estes
têm origem na liberdade, da qual dispomos para, em termos de moralidade, controlar a
nossa natureza sensível.
Pode-se concluir ainda, que na natureza humana há uma propensão para o mal, que
mesmo sendo inata, depende de uma aceitação (livre) do homem para que venha a ser
vigente. Tal propensão para o mal está situada ao lado de uma disposição para o bem. E
mesmo não sendo possível exterminar a propensão da natureza humana, é possível, por
meio de um resgate da disposição originária, anulá-la. Esse resgate da disposição
originária para o bem também é um ato livre do homem perante a moralidade, sendo
dessa forma o domínio do mal dependente das suas próprias forças. Portanto, do mesmo
modo como o homem incorreu no mal livremente através do uso do seu arbítrio, este
deve retornar ao bem se valendo dos mesmos meios. Portanto, podemos dizer que para
Kant, a liberdade pode ser vista ao mesmo tempo como heroína e vilã da moralidade.
REFERÊNCIAS
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 1992.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo
Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP:
EDIPRO, 2003 (Série Clássicos Edipro).
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PINHEIRO, Letícia Machado. O conceito kantiano de mal radical e o resgate da
disposição originária para o bem. Santa Maria: UFSM, 2007. 142 p. Dissertação
(mestrado) - Programa de Pós-graduação em Filosofia. Universidade Federal de Santa
Maria, Santa Maria, 2007.
ZANELLA, Diego Carlos. A passagem da moral à religião em Immanuel Kant. Santa
Maria: UFSM, 2008. 106 p. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-graduação em
Filosofia. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2008.
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A RELAÇÃO TRABALHO – LIBERDADE – ALIENAÇÃO NA ANÁLISE DE
MARCUSE - Cleberson Odair Leonhardt
Unioeste / Mestrando
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Palavras-chave: Trabalho, liberdade, alienação
Para compreendermos o processo civilizatório do homem é imprescindível o
estabelecimento de conceitos como trabalho, riqueza, liberdade, alienação, repressão.
No entanto alguns conceitos não tinham a mesma importância no início do processo
civilizatório que tem atualmente (início este, conhecido e estudado por filósofos e
historiadores, e aqui apenas considerado no período antigo, da Grécia antiga,
desconsiderando outros povos e períodos pré-históricos). Ou, ao menos, esses conceitos
não eram compreendidos da mesma maneira, não tinham o mesmo universo de
significação que possuem hoje. Segundo Vernant (1989), os gregos não associavam a
origem da riqueza ao trabalho, o conceito de riqueza estava associado á natureza, como
uma divindade, ao esforço da terra que dava os alimentos. O trabalho por sua vez era
uma relação religiosa do homem com os deuses da terra, da natureza.
Além disso, o trabalho na visão dos gregos era considerado uma atividade menos
‗nobre‘, visto que dividiam os tipos de atividades em poiesis e práxis. Sendo que poiesis
significava o trabalho, a fabricação – e por isso uma atividade objetivada e destinada á
aqueles que não exerciam a práxis – atividade esta não objetivada e caracterizada pela
arte sem finalidade – as artes, a política. Esta última, portanto, vista como mais nobre e
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digna daqueles homens livres. Assim sendo, o conceito de liberdade estava atrelado á
aquelas atividades sem finalidade, dignas de homens livres e jamais ao trabalho.
No entanto, essa relação entre os conceitos aqui expostos muda radicalmente com a
ascensão do sistema capitalista. Neste, a riqueza passa a ser concebida enquanto
diretamente relacionada ao trabalho. E a liberdade antes ligada às atividades nobres e
sem finalidade, passa a ser uma questão interna do sujeito enquanto pessoa, enquanto
homem. No sistema capitalista o trabalho é visto como precondição para o homem obter
a liberdade, visto que a liberdade neste, tem relação direta com a propriedade privada.
Esta relação intrínseca e própria do modo de produção capitalista entre liberdade,
trabalho e propriedade privada, já identificada por Marx, pode aqui ser considerada uma
via mestra para o entendimento dos conceitos apresentados neste texto. A interpretação
de Marcuse a respeito deste tema em Marx é de que o homem livre pode dispor
livremente de sua única propriedade privada, sua força de trabalho, e que precisa vendêla para sobreviver. Ao vender a força de trabalho se relaciona com ela como uma
propriedade, uma mercadoria. O que se esconde por trás dessa faceta na verdade, é que
o próprio homem ao vender sua mercadoria (propriedade privada = força de
trabalho/liberdade), tornou-se mercadoria.
E uma precondição decisiva para essa sociedade é a liberdade do trabalho, na qual
todas as determinações do conceito cristão-burguês de liberdade se tornaram
realidade. Liberdade em relação a todos os bens terrenos significa aqui que o
trabalhador foi privado de todos os bens necessários à manutenção de sua vida;
liberdade do homem em relação a si mesmo significa que ele pode dispor livremente
da única coisa que ele ainda tem, sua força de trabalho: ele deve vendê-la para poder
viver. Na medida em que ele pode vendê-la ele se relaciona com ela como sua
―propriedade‖. A filosofia burguesa ensinou que a liberdade da pessoa somente se
realiza na propriedade livre. Na realidade da sociedade burguesa a própria pessoa se
transformou em propriedade, sendo oferecida como mercadoria no mercado (
MARCUSE, 1972, p.133).
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Esses conceitos tão atrelados acabam por se tornar um círculo vicioso, pois para se ter
liberdade dentro do sistema torna-se necessário a propriedade privada, e como a única
propriedade que o trabalhar possui é sua força de trabalho e de que dispõe livremente,
precisa vendê-la (a única coisa que lhe resta), sua força ou capacidade de trabalho, em
tese sua liberdade.
Mas deixemos de lado, ao menos por agora, esta questão, para nos atermos aos
conceitos propriamente ditos. A força de trabalho, que Marx denomina como a
capacidade do homem de produzir valor de uso, ele a define da seguinte maneira:
Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades
físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um
homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer
espécie. [...] a força de trabalho como mercadoria só pode aparecer no mercado à
medida que e porque ela é oferecida à venda ou é vendida como mercadoria por seu
próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para que seu
possuidor venda-a como mercadoria, ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre
[grifo meu] proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. (MARX, 1988,
p. 135).
Para Marcuse (1972, p.133), Marx percebeu que o conceito de liberdade no sistema
capitalista era marcado por uma unificação dualística e antagônica entre uma liberdade
interior e uma não liberdade exterior. Desse modo, há a esfera da não liberdade onde os
homens produzem e reproduzem sua vida, onde vendem (alienam) sua propriedade, sua
capacidade de produzir valor de uso e, a esfera onde são livres (possuidores de sua
pessoa e de sua força de trabalho) e iguais como pessoas, sem levar em consideração
sua existência material. A sociedade passou de uma relação de indivíduos concretos
para uma relação de compradores e vendedores abstratos.
O conceito de liberdade modificou-se torrencialmente. O que antes significava uma
capacidade de dedicar-se a artes sem finalidade agora está ligado estritamente à
propriedade privada e desse modo a liberdade de trabalho passou a ser precondição para
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a sociedade capitalista. E não se trata apenas de vender a força de trabalho como
mercadoria, para produzir meios de subsistência, o sistema precisa de mais força de
trabalho, e aqui Marx introduz o conceito de mais-valia, não basta o trabalhador
reproduzir a riqueza investida, mas produzir mais riqueza. E quando é introduzido no
sistema o dinheiro como moeda de troca, é o dinheiro pela força de trabalho do
trabalhador produzindo mais dinheiro. É o que Marx (1988) irá chamar de mais-valia.
Para ele a produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente
produção de mais-valia. Desse modo, o trabalhador produz para o capital, e não mais
apenas para si. Não bastando, portanto, que o mesmo produza em geral, e sim que
produza mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o
capitalista ou serve a autovalorização do capital.
A partir desse ponto é que se levanta o sentido contraditório da liberdade no sistema
capitalista visto por Marx, como já enunciado acima. O Mesmo homem obrigado a
garantir sua liberdade precisa fazer uso de sua única propriedade: sua força de trabalho.
No entanto sua força de trabalho é levada ao extremo para garantir a mais-valia, o
excedente do capital que alimenta o mesmo sistema. Onde acaba por perder a liberdade
que adquiriu. Um sistema fechado que sempre de novo se renova. No entanto, isso só
ocorre por meio de outro fator: a alienação.
Segundo Marx (2008), a alienação surge com a divisão social do trabalho, com a
separação entre os que comandam e os que executam o processo de trabalho, entre
patrão e empregados. O trabalhador é obrigado a buscar suas necessidades imediatas;
comer, beber, vestir, etc., para garantir sua existência. Com o ato de fazer de seu
trabalho um meio para outro fim, este deixa de ser livre e torna-se alienado, pois busca
algo, ou alguma finalidade que está fora, além de si, e mais ainda por ser uma finalidade
fora e necessária para a sua existência. Além disso, a alienação projeta no olhar do
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trabalhador a percepção de que o produto de seu trabalho é algo hostil e estranho. É o
confronto direto do produto com quem o criou: o trabalhador. Pois, outro, que não o
trabalhador, se apropriará do objeto criado pelo trabalhador, criando as condições
necessárias para a efetivação da propriedade privada, base de sustentação do sistema
capitalista como já expomos acima (propriedade privada como pressuposto da
liberdade, etc.).
Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho
como [com] um objeto estranho estão todas essas conseqüências. Com efeito, segundo
esse pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando
(ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele
cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto
menos [o trabalhador] pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto
mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador
encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto.
Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele
não é o que é o produto de seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto
menor ele mesmo é. A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto
tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência
externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora
dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência
(Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concebeu ao objeto se lhe defronta
hostil e estranha. (MARX, 2008, p.81).
Essa relação de alienação do trabalhador em relação ao trabalho e ao produto de seu
trabalho é de essencial importância para o pensamento de Marcuse. A produção de
mercadorias esta diretamente ligada ao capital. O detentor de capital é que emprega o
trabalhador. E quanto mais mercadorias, e consequentemente capital, o trabalhador
produz, mais poderoso se torna o capital e mais difícil se torna de o trabalhador se
apoderar de seus produtos.
Marx apresenta a alienação do trabalho como exemplificada, primeiro, na relação do
trabalhador ao produto de seu trabalho e, segundo, na relação do trabalhador à sua
própria atividade. O trabalhador na sociedade capitalista produz mercadorias. A
produção de mercadorias em larga escala requer capital, grandes acumulações de
riqueza empregadas exclusivamente para incrementar a produção de mercadorias. As
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mercadorias são produzidas por empresários privados independentes, para fins de
venda lucrativa. O operário trabalha para o capitalista a quem ele entrega, pelo
contrato salarial, o produto do seu trabalho. O capital é o poder de dispor dos produtos
do trabalho. Quanto mais o trabalhador produz maior se torna o poder do capital e
mais limitados os meios do trabalhador se apropriar dos seus produtos. O trabalho se
torna, pois, vítima de um poder que ele mesmo criou. (MARCUSE, Razão e
revolução, p. 254, 255).
Com a expropriação do produto de seu trabalho o trabalhador é atingido na sua própria
essência de homem. O trabalho que originalmente, serve a realização autêntica do
homem, para a satisfação e o prazer, é transformado pelo sistema capitalista em labor,
em trabalho forçado. Sua essência lhe é abstraída, e o homem já não busca nele a
liberdade (que vínhamos discutindo até aqui), mas, a busca fora do âmbito do trabalho.
Marcuse descreve essa alienação (usando-se de palavras de Marx na sua obra
Manuscritos Econômicos Filosóficos) e as implicações psicológicas da seguinte
maneira:
Na sua forma corrente, entretanto, ele [o trabalho no modo de produção capitalista]
deforma todas as faculdades humanas e proscreve a satisfação. O trabalhador ―não
afirma, mas contradiz a sua essência‖. ―Em lugar de desenvolver suas livres energias
físicas e mentais ele mortifica o corpo e arruína a mente. Por conseguinte, ele começa
a sentir que está consigo mesmo quando se livra do trabalho, e apartado de si quando
trabalha. Ele sente-se em casa quando não trabalha, e fora de casa quando trabalha.
Seu trabalho, por conseguinte, não é feito voluntariamente, mas sob compulsão. É
trabalho forçado. Por isso, o trabalho não é a satisfação de uma necessidade, mas
apenas um meio para a satisfação de necessidades que lhe são exteriores‖.
Consequentemente, ―o homem (o trabalhador) sente que só age livremente nas suas
funções animais, como quando come, bebe, procria... ao passo que nas funções
humanas ele nada mais é que um animal. O animal se torna humano, e o humano
animal‖. Isto vale tanto para o trabalhador (o produtor expropriado), como para aquele
que compra seu trabalho. O processo de alienação afeta a todas as camadas da
sociedade, deformando mesmo as funções ―naturais‖ do homem. (MARCUSE, Razão
e revolução, p. 256).
Esta análise nos leva a observar que a liberdade e a felicidade são reduzidas a um
sentido de posse. A única saída é a busca pela emancipação por parte dos próprios
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trabalhadores, segundo Marx. No entanto esse emancipar-se não é algo subjetivo. O é
enquanto ser, ser humano em geral, não apenas enquanto indivíduo isolado. E por isso é
o emancipar-se do processo que gera a possibilidade de libertação do trabalho alienado.
Além disso, para Marx só o trabalhador libertando-se, libertará toda a humanidade de
sua alienação. Quando a alienação não fizer mais parte do processo de trabalho, a
humanidade estará livre e capaz de reconhecer-se como ente-espécie.
E, sobretudo, é a partir deste molde de busca por libertação enquanto espécie, enquanto
humanidade, que Marcuse busca delinear possíveis saídas tangenciais das imbricações e
liames psicológicos e mesmo repressivos que norteiam a organização esquemática do
sistema capitalista, que não estão abrangidos aqui, mas que poderão ser tratados numa
futura investigação acerca destas teorias de Marcuse.
REFERÊNCIAS
MARCUSE, Herbert. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro, RJ: Tempo
Brasileiro, 1968.
__________________ Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. Trad. Fausto
Guimarães. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1972.
__________________ Razão e revolução: Hegel e o Advento da Teoria Social. Trad.
Marília Barroso, 2ª Ed., Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1978.
_________________Ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio
de Janeiro, RJ: Zahar, 1979.
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__________________ Eros e Civilização: Uma interpretação Filosófica do
Pensamento de Freud. Trad. Álvaro Cabral. 8ª Ed., Rio de Janeiro, RJ: LTC, 1999.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol.1. 3ed. Trad. Regis Barbosa
e Flávio R. Kothe. Ed. Nova Cultural. São Paulo, SP. 1988.
____________ Manuscritos econômicos-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. Ed.
Boitempo. São Paulo, SP. 2008.
VERNANT, J-P & NAQUET, P.V. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga.
Campinas: Papirus, 1989.
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ANÁLISE DA NOÇÃO CARTESIANA DE PENSAMENTO - Marcos Alexandre
Borges
Doutorando pela UNICAMP
[email protected]
Palavras-chave: Descartes; Pensamento; Consciência.
Segundo Descartes, há noções que são claras por si próprias, o que parece isentá-las da
necessidade de definição1. No artigo 10 da Parte I dos Princípios, o pensamento é
colocado entre essas noções: ―[...] o pensamento, a certeza, a existência, e que para
pensar era preciso ser e outras coisas semelhantes [são] noções [...] simples por si
próprias [...]‖ (AT IX, p. 29; DESCARTES, 1997, p. 30 – grifo nosso)2. O pensamento
está entre as noções consideradas tão simples que são conhecidas por si mesmas e, por
ser assim, o pensamento é uma noção primitiva. Uma noção primitiva é uma noção que
1
Ver o Artigo 10 dos Princípios, Parte I, que tem como título: ―Há noções tão claras por si próprias que
ficam obscurecidas quando queremos defini-las de forma escolar; e que não podem ser adquiridas pelo
estudo, mas nascem conosco‖ (AT, IX, p. 28; DESCARTES, 1997, p. 30).
2
Todas as obras de Descartes serão citadas segundo a edição de Charles Adam e Paul Tannery, Œuvres
de Descartes, indicada pelas iniciais AT, número do volume em numerais romanos e número de páginas
em numerais arábicos; e, se houver, segundo a edição em português. As traduções para o português das
Meditações, Discurso e Objeções e Respostas foram retiradas da edição DESCARTES, R. Discurso do
Método; Meditações; Objeções e Respostas; As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado
Júnior. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Col. Os Pensadores), as traduções dos Princípios da
edição portuguesa DESCARTES, R. Princípios da Filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.
Quanto aos demais textos que não foram traduzidos para o português, faremos nossa própria tradução.
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não depende de outras para ser conhecida, ao contrário das outras que, para serem
conhecidas, dependem das noções primitivas. Desse modo, o pensamento não deriva de
outra noção, ao passo que dele outras noções são derivadas. O significado cartesiano de
noção primitiva pode ser extraído de uma carta à Elisabeth, de 21 de maio de 1643,
onde Descartes afirma que ―[...] há em nós certas noções primitivas que são como
modelos originais, sob cujo molde nós formamos todos os nossos outros
conhecimentos‖ (AT III, p. 665 – tradução nossa). Como explica Raul Landim, ―As
noções primitivas são as categorias básicas ou elementares do sistema cartesiano; não
pressupõem nenhum outro conceito, e delas derivam todas as outras noções‖
(LANDIM, 1992, p. 39). Essas noções são chamadas ―primitivas‖ exatamente por serem
anteriores e independentes de outras, ao passo que as outras não são somente posteriores
e dependentes delas, mas também derivadas. Ou seja, a compreensão de certas noções
―não primitivas‖ depende da compreensão das noções primitivas. Deste modo, o
pensamento deve ser analisado anteriormente por ser uma noção primitiva, da qual
derivam outras noções que dependem da compreensão desta para serem compreendidas.
Não se pretende abordar aqui as noções primitivas em geral, tampouco trabalhar
especificamente o papel do pensamento como noção primitiva. Pretendemos aqui tão
somente apresentar uma análise da noção cartesiana de pensamento, a partir das
definições que Descartes apresenta nas Segundas Respostas e no artigo nove da
Primeira Parte dos Princípios da Filosofia.
Apesar de parecer isento de necessidade defini-lo nessas condições, o pensamento é
definido por Descartes ao menos em dois importantes textos: na Exposição Geométrica
presente nas Segundas Respostas e na Primeira Parte dos Princípios da Filosofia, mais
precisamente no artigo 9. Na Exposição Geométrica, Descartes expõe suas Meditações
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na ordem sintética3 e, assim, começa definindo o que há de mais elementar, o que não
depende do que vem posteriormente para ser definido, por não ser derivado de nenhuma
outra noção e, no entanto, tem o que segue como seu dependente. A primeira definição
da Exposição Geométrica é a de pensamento:
Pelo nome de pensamento, compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que
somos imediatamente seus conhecedores. Assim, todas as operações da vontade, do
entendimento, da imaginação e dos sentidos são pensamentos. (AT IX, p. 124;
DESCARTES, 1991, p. 251).
Nas Respostas às Terceiras Objeções, Descartes afirma que o pensamento pode ser
entendido em três aspectos: ―[...] algumas vezes pela ação, algumas vezes pela
faculdade, e algumas vezes pela coisa na qual reside esta faculdade‖ (AT IX, p. 135 –
tradução nossa). A ―coisa na qual reside esta faculdade‖ é a res cogitans, de modo que,
para Descartes, a própria res cogitans pode ser tomada por pensamento, já que esse é
seu atributo principal, como se verá adiante. A ―faculdade‖ não é outra coisa que a
capacidade ou o poder que a res cogitans tem de pensar; e já que essa res é uma coisa
pensante, não há dúvida de que ela possui essa faculdade, esse poder. A ―ação‖ está
relacionada tanto à ―coisa‖ quanto à ―faculdade‖, uma vez que é a atividade principal
dessa coisa, atividade essa possibilitada pelo fato de ela possuir tal faculdade. Ou seja, o
pensamento é a atividade da coisa pensante através de sua faculdade de pensar. Como
esses três aspectos do pensamento são completamente relacionados, não há dúvida de
3
Sobre as maneiras de demonstração analítica e sintética em Descartes, há uma vasta literatura com
ótimos trabalhos e longas discussões. Ainda assim, nada melhor que citar o texto de Descartes que
entende a síntese como um caminho em que, ―[...] examinando as causas por seus efeitos (embora a prova
que contêm seja amiúde também dos efeitos pelas causas), demonstra, na verdade, claramente o que está
contido em suas conclusões, e serve-se de uma longa série de definições, postulados, axiomas, teoremas e
problemas, para que, caso lhe neguem algumas conseqüências, mostre como elas se contêm nos
antecedentes, de modo a arrancar o consentimento do leitor, por mais obstinado e opiniático que seja‖
(AT IX, p. 122; DESCARTES, 1991, p. 248-249). Descartes mesmo confirma que suas Meditações são
escritas de maneira analítica, enquanto a Exposição Geométrica, de maneira sintética.
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que, na definição de pensamento da Exposição Geométrica, Descartes não deixa de se
referir à ―coisa na qual reside a faculdade de pensar‖ e à ―faculdade‖, mas como o
filósofo menciona as ―operações da vontade, do entendimento, da imaginação e dos
sentidos‖ como pensamentos, nessa definição, Descartes toma o pensamento como
ação, como ato da coisa que pensa. Não se deve entender que o pensamento seja
simplesmente mais um entre os diversos atos da coisa que pensa, pois o pensamento
consiste no seu principal ato, no ato essencial dessa coisa. Isso fica evidente no simples
fato de essa coisa ser chamada uma ―coisa que pensa‖. O pensamento não é uma mera
faculdade, mas é a própria coisa, portanto pensar não é um ato como entender, imaginar
ou sentir, pois todos esses atos são atos pensantes, ou seja, todos esses atos se reduzem a
ser pensamento, mas este não se reduz a um desses atos apenas. Como foi afirmado
antes, o pensamento é uma noção primitiva, não é derivado de noção alguma e, por sua
vez, outras noções são dele derivadas. Por isso os outros atos da coisa que pensa se
reduzem a ser pensamento e o pensamento não se reduz a algum desses atos somente,
pois todos os outros atos são derivados do pensamento que, por ser uma noção
primitiva, é a condição para a compreensão dos outros atos que dele derivam.
Descartes afirma que o pensamento é o que está no ego e é conhecido imediatamente.
Cabe, então, perguntar: O que é isso que está no ego e que é conhecido de modo
imediato? Evidentemente, é o pensamento. Cabe, porém, aqui a seguinte questão: O que
o ego conhece imediatamente: o pensamento como uma ação sua ou a presença de algo
que se manifesta pelo pensamento? O que está no ego imediatamente é o conhecimento
da presença de um pensamento ou o conhecimento da presença de algo que é pensado?
Por um lado, é preciso considerar que Descartes, nessa passagem, está tratando da
definição de pensamento sem se referir a algum tipo específico de pensamento; sem se
referir a outra coisa senão o que é o pensamento em geral, e não segundo as diferenças
que pode haver entre os pensamentos; não está se referindo ao pensamento sobre esta ou
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aquela coisa, mas ao pensamento em si mesmo. Por outro lado, é preciso considerar que
não há pensamento vazio, não há pensamento que não tenha um pensado referido, já que
todo o pensamento precisa ser preenchido. Se não há pensamento sem um pensado, o
conhecimento de que o ego possui um pensamento ocorre concomitantemente ao
conhecimento do que é pensado. Ou seja, o dar-se conta de que o ego tem um
pensamento acontece concomitantemente ao dar-se conta do pensado. Só se tem
conhecimento da presença de algo pensado através do pensamento, e só se tem
conhecimento do pensamento porque há algo que é pensado. Apesar de essa passagem
da Exposição Geométrica não se referir a outra coisa senão ao pensamento mesmo, seja
lá qual for o seu pensado, o que ―está em nós‖ e é ―conhecido imediatamente‖ é o
pensamento sobre algo, é o pensamento enquanto ação da res cogitans e algo pensado
que preenche tal ação.
Numa nota de sua edição das Respostas às Segundas Objeções, sobre a passagem acima
citada, Ferdinand Alquié afirma que Descartes considera o pensamento como sinônimo
de consciência. Com efeito, no texto em francês traduziu-se do original em latim conscii
por connaissants (conhecedores) e, segundo esse autor, teria sido melhor se traduzido
por conscients (conscientes)4. Se seguirmos a indicação de Alquié, pensamento é o que
torna o ego consciente e, assim, pode ser considerado sinônimo de consciência. Esta
definição de pensamento é muito próxima do que o filósofo afirma em sua definição de
ideia presente na Exposição Geométrica. A definição de ideia também envolve a noção
de consciência, até porque a noção de ―ideia‖ deriva da noção de ―pensamento‖. Tanto
na definição de pensamento quanto na definição de ideia da Exposição Geométrica, o
filósofo se refere ao que torna o ego consciente, sendo que a segunda definição (a de
4
O texto em latim diz o seguinte: ―Cogitationis nomine complector illud omne quod sic in nobis est, ut
ejus immediate conscii simus‖ (AT VII, p. 160).
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ideia) é dependente da primeira. Em ambas as definições, o filósofo se refere ao que
torna o ego consciente de seus pensamentos. O ego se torna consciente através da
percepção daquilo que está nele de modo imediato, através daquilo que ele acessa
diretamente. Ou seja, o ego se torna consciente daquilo que está nele de tal modo que
ele percebe imediatamente. Como o que está no ego desta maneira são seus
pensamentos, ele pode percebê-los por ser uma coisa que pensa.
Uma vez que Descartes define o ego (na Meditação Segunda) como uma res cogitans,
como uma coisa que pensa, o pensamento é considerado a característica principal do
ego. Entretanto, é preciso tomar cuidado para não incorrer no erro de Hobbes nas suas
objeções às Meditações que, segundo Descartes, confundiu o sujeito pensante com a
faculdade pensamento5. Ao afirmar que o ego é uma res cogitans, Descartes pretende
dizer que o ego da Meditação Segunda tem uma realidade inteligível, existe como algo
incorpóreo, somente pensante. Como a realidade do ego consiste em ser res cogitans,
coisa que pensa, o pensamento não é apenas uma entre as diversas características do
ego, mas a sua característica principal ou, mais que isso, é a sua constituição ontológica.
O pensamento não é meramente um modo da res cogitans, mas seu atributo principal, o
que o identifica e o diferencia do que esta res não é. O artigo 53 da primeira parte dos
Princípios não deixa dúvidas sobre isso: ―Cada substância tem um atributo principal; o
da alma é o pensamento, e o do corpo é a extensão‖ (AT IX, p. 48; DESCARTES, 1997,
5
Nas Terceiras Objeções, feitas por Hobbes, o filósofo inglês afirma que ser uma coisa que pensa não
impede que o ego seja um corpo, pois ele toma o pensamento tão somente como um ato do sujeito que
pensa. Segundo Hobbes, se por pensar posso concluir que sou um pensamento, posso concluir que sou
uma caminhada por caminhar. Em sua resposta, Descartes argumenta que, ao falar que o eu que pensa é
um pensamento, não está tomando pensamento como uma faculdade. Para o filósofo francês não há
relação nenhuma entre caminhada e pensamento, pois caminhada só pode ser tomado como ato, já
pensamento pode ser tomado como ato, faculdade e coisa na qual reside esta faculdade (AT IX, p. 134137).
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p. 46). Na definição de pensamento da Exposição Geométrica acima citada, a afirmação
de que ―[...] todas as operações da vontade, do entendimento, da imaginação e dos
sentidos são pensamentos‖ (AT IX, p. 124; DESCARTES, 1991, p. 251) indica que
essas operações mencionadas são modos derivados do atributo principal da res cogitans.
Além da Exposição Geométrica, encontra-se uma definição de pensamento nos
Princípios da Filosofia, definição essa que acompanha a citada anteriormente:
Pela palavra pensamento entendo tudo quanto ocorre em nós de tal maneira que o
notamos imediatamente por nós próprios; é por isso que compreender, querer,
imaginar, mas também sentir, são a mesma coisa que pensar. (AT IX, p. 28;
DESCARTES, 1997, p. 29-30).
As diferenças entre as definições da Exposição Geométrica e dos Princípios consistem
em algumas palavras somente, e não alteram o seu sentido fundamental. A definição da
Exposição Geométrica diz que o pensamento é ―tudo quanto está em nós‖, ao passo que
nos Princípios diz que é ‖tudo quanto ocorre em nós‖. Esta diferença não modifica o
significado da noção pensamento; mas nos Princípios, a referência ao pensamento como
uma ação do ego é mais enfática, tendo em vista que, nessa definição, o pensamento é
dito como o que ―ocorre‖ em nós, como um acontecimento no ego. Ao afirmar que ―o
pensamento é tudo quanto ocorre em nós‖, Descartes deixa claro que se trata de uma
ação do ego. É importante ressaltar que aqui o pensamento também é tido como o que o
ego ―nota‖ de modo imediato. Independentemente de qual seja seu pensado, o
pensamento é inerente ao ego, é imediato ao ego. Assim sendo, percebe-se que, tanto na
definição da Exposição Geométrica quanto na dos Princípios, o pensamento é tomado
como uma ação, como uma manifestação do ego. Entretanto, o ego se manifesta de
diversos modos, tendo em vista que ele pode ―agir‖ de diversas maneiras. Seria o
pensamento um modo privilegiado de manifestação do ego? Estaria o pensamento entre
os diversos modos do ego? Como já foi mencionado anteriormente, não. O pensamento
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não é um modo, mas um atributo essencial do ego, sendo que os modos são derivados
desse atributo. Isso fica claro com a colocação dos mais diversos modos de pensar no
mesmo patamar com esta afirmação: ―[...] compreender, querer, imaginar, mas também
sentir, são a mesma coisa que pensar‖ (AT IX, p. 28; DESCARTES, 1997, p. 30). Ou
seja, o pensamento é o atributo principal ou a natureza do ego que pode se manifestar
através de seus diversos modos que, por sua vez, são todos modos de pensar.
A diferença entre modo e atributo pode ser extraída dos Princípios da Filosofia. No
artigo 56 da Parte I, Descartes define essas noções:
Quando considero, porém, que a substância se dispõe ou diversifica de outra maneira,
sirvo-me particularmente do nome modo ou maneira. [...] quando penso mais
geralmente que esses modos ou qualidades estão na substância, considerando-os
apenas como dependências dessa substância, designo-os por atributos. (AT IX, p. 49;
DESCARTES, 1997, p. 47).
Esse trecho deixa claro que modo ou maneira designam as diferentes modificações que
podem ocorrer numa substância, designam diferentes maneiras como a substância pode
se dispor através de suas diferentes capacidades, faculdades ou poderes; por outro lado,
atributo designa o que depende somente da substância da qual ele é atributo e, por ser
assim, é o que não se modifica na substância, ainda que a substância se disponha de
diferentes maneiras, como se pode conferir no final desse mesmo artigo: ―E mesmo nas
coisas criadas, chamo atributo e não modo ou qualidade àquilo que nelas se encontra
sempre desta maneira, tal como a existência e a duração na coisa que existe e que dura‖
(AT IX, p. 49; DESCARTES, 1997, p. 47), da mesma forma o pensamento na coisa que
pensa. O atributo não deixa de ser na substância, não se transforma em outros atributos.
O pensamento é um atributo da res cogitans, pois, por mais que ela se manifeste de
modos variados, por mais que se diversifique, não deixará de ser pensamento, já que
―[...] todas as propriedades que encontramos na coisa pensante são diferentes maneiras
de pensar‖ (AT IX, p. 48; DESCARTES, 1997, p. 46). Os modos mencionados, tanto na
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definição da Exposição Geométrica quanto na definição dos Princípios, são
propriedades da coisa pensante e, apesar de o pensamento não poder se reduzir a
nenhum desses modos, todos ou qualquer um deles se reduzem a ser pensamento.
A diferença entre maneira ou modo e atributo é tratada com mais precisão no texto
Notae in programma, texto onde, inclusive, Descartes alerta para o risco na confusão
entre essas noções. Esse escrito é elaborado como resposta a um livreto de Regius que
contém considerações contrárias a algumas teses cartesianas. Entre tais considerações
está a de que o espírito humano pode ser como um modo da substância corporal, o que,
como se sabe, é incisivamente refutado por Descartes. Para responder a isso, em
primeiro lugar o filósofo faz uma advertência sobre o uso das noções atributo e modo, e
até aceita que ―[...] falando geralmente nós podemos dar o nome de atributo a tudo o
que foi atribuído a alguma coisa [...]‖ (AT VIII, p. 348 – tradução nossa); mas assim
somente se pode proceder ―falando geralmente‖, não no sentido preciso aplicado por
Descartes. Em seguida, o filósofo afirma que não tomou esses termos nesse sentido
―geral‖, pois ―[...] por esta palavra atributo se entende uma coisa que é imutável e
inseparável da essência de seu sujeito, como isso que o constitui e que, por isso mesmo,
é oposto ao modo‖ (AT VIII, p. 348 – tradução nossa). Esse trecho deixa clara a
diferença entre atributo e modo, bem como a necessidade de não confundir tais noções.
O atributo diz respeito ao que constitui o sujeito do qual é atributo, assim como o
pensamento constitui o ego entendido como uma res cogitans. Por constituir a coisa da
qual é atributo, o atributo é imutável, pois é o que dá identidade à coisa, é o que faz de
uma coisa ser o que ela é, como sua essência. Apesar de serem derivados do atributo, os
modos não são o mesmo que atributos na medida em que modo designa uma
configuração acidental, enquanto atributo designa uma configuração essencial. Para
Descartes, o pensamento não é meramente um modo da coisa que pensa, pois não é o
que muda nessa coisa.
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De acordo com as definições da Exposição Geométrica e dos Princípios, o pensamento
é o que está, ou o que ocorre no ego, e que o torna imediatamente consciente de que
possui um pensamento e, assim, é o que torna o ego consciente de que é uma coisa que
pensa, já que o pensamento é seu atributo principal. Apesar de poder agir de diversos
modos, em cada modo de pensar o ego se torna consciente de que pensa. Mesmo que o
ego queira, entenda, imagine ou sinta, ele é consciente de qualquer um desses modos,
pois querer é pensar que se quer, entender é pensar que se entende e assim
sucessivamente. Como o pensamento é o atributo principal do ego, cada diferente
manifestação desse ego é consciente, pois o pensamento participa de todos e de cada um
dos diferentes modos do ego. Todos ou qualquer um dos modos tornam o ego
consciente, pois são modos de pensar. Assim, todos os modos do ego são conscientes,
pois esse ego é uma coisa que pensa. Como pensamento é tudo o que acontece no ego
que é notado imediatamente, e como esse ego é uma coisa que pensa, todas as diferentes
manifestações do ego são notadas imediatamente, todas as manifestações do ego são
conscientes. Portanto, entendemos que o pensamento pode ser considerado como
sinônimo de consciência. Como diz Raul Landim, pensar é ―ter consciência‖ e, assim, a
coisa que pensa se caracteriza por ser consciência.
REFERÊNCIAS
DESCARTES, R. Œuvres. Paris: Vrin, 1996. 11 vol. Publiées par Charles Adam et Paul
Tannery.
_____. Œuvres philosophiques de Descartes. Paris: Garnier, 1988-89. 3 vol. Textes
établis, présentés et annotés par Ferdinand Alquié.
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_____. Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma.
Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Col.
Os Pensadores).
_____. Princípios da filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.
LANDIM FILHO, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Edições
Loyola, 1992.
_____. ―Pode o cogito ser posto em questão?‖. Discurso, São Paulo, v. 24, 1994, p. 9 30.
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APONTAMENTOS ACERCA DA NOÇÃO HUSSERLIANA DE MUNDO Devair Gonçalves Sanchez
Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
[email protected]
Palavras-chave: Fenomenologia Transcendental; mundo; subjetividade
O MUNDO CIRCUNDANTE E O EGO TRANSCENDENTAL
―El nebuloso horizonte, nunca plenamente determinable, está necessariamente ahí.‖
Husserl, Ideas, §27.
Diante da efetuação da redução transcendental o ego puro confere sentido a si, ao outro
e ao mundo. Na esfera originária das vivências próprias tem o ego o aparecer de um
mundo circundante que abarca os seres e as coisas. Nesse mundo circundante o ego nota
certas disposições da sua consciência, tais como, sentir, agir, esperar, tocar, entre outras.
A partir daí, cumprindo a exigência do método fenomenológico, cabe ao ego efetuar a
epoché, sobre as vivências obtidas nessa atitude natural. O programa de Husserl pode
ser precisamente definido como o método de coincidir rigorosamente com a descrição
de cada intuição, trazê-la à expressão e revelá-la como o lugar fundador de todo o
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conhecimento, como o lugar da evidência.1 Nesse caso trata-se de descrever a intuição
do mundo para o ego. A primeira instância onde ocorre a parenteziação trata-se do
mundo. Esse mundo que ao eu se apresenta é reduzido transcendentalmente. A pergunta
que se faz é a seguinte: o que resta a ser reduzido?
A epoché ou a redução fenomenológica permitirá um ―voltar-se‖ comprometido aos
fundamentos da constituição de sentido das possibilidades de conhecimento. O ―em si‖
torna-se um ―para mim‖, pois me aproprio de sua condição existencial, não apenas
enquanto objeto de conhecimento no âmbito empírico, mas como vivência intencional
nos fluxos da consciência. Deste modo, vê-se que, no exercício da epoché, o mundo não
é simplesmente descartado, a análise fenomenológica tem mundo como escopo, não
enquanto mundo existente, mas enquanto ―fenômeno de existência‖ (HUSSERL, 2001,
p. 59).2 Mundo é agora tematizado segundo a condição de puro possível como horizonte
potencial de experiências concordantes articuladas pelo ego.
A guinada efetivada por Husserl consiste na instauração da redução transcendental
como superação da redução psicológica, legado cartesiano. Se com o filósofo francês
tínhamos suspensos os juízos relativos à existência de tudo o que estivesse aquém do
sujeito pensante, em Husserl reduz-se (coloca-se entre parênteses) a existência natural
dos sujeitos, o que implica colocar os atos vividos (vivências).
[...] essa colocação entre parênteses (epoché) do mundo objetivo não nos põe diante de
um puro nada. O que, em contrapartida e justamente por isso, torna-se nosso, ou
melhor, o que dessa forma torna-se meu, [...], é minha vida pura com o conjunto de
seus estados vividos puros e de seus objetos intencionais, ou seja, a universalidade dos
1
Nabais, p. 13.
2
Todas as referências utilizadas para o texto Cartesianische Meditationen seguem a
tradução de Frank de Oliveira (Meditações cartesianas, editora Madras, 2001).
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fenômenos no sentido especial e ampliado da fenomenologia (HUSSERL, 2001, p.
38).
A noção de mundo a ser esclarecida nesse trabalho leva em conta a associação da idéia
que emerge a partir da análise da intencionalidade da consciência. Tal associação de
idéias permitirá a Husserl dar um novo sentido para o mundo. Mundo enquanto esfera
dos vividos. Apresenta-se a partir da análise de mundo vivido (Lebenswelt). Segundo
Husserl, aplicada a redução transcendental, o mundo desvela-se como fenômeno
apropriativo ao Eu cogito. No § 7 das Meditações Cartesianas, Husserl argumenta ―ao
mundo relaciona-se a atividade da vida cotidiana, assim como o conjunto das ciências,
as ciências de fato de forma imediata, as ciências apriorísticas de forma mediata como
instrumentos do método. (HUSSERL, 2001, p. 34) Na gênese do mundo vivido, que
também pode ser compreendida como a busca pela racionalidade do universo das
ciências humanas, ou seja, a busca pelo seu fundamento filosófico, através de frases e
proposições, cabe a pergunta: afinal, que valor têm estas frases e proposições que
pronunciamos ao falar do conceito de mundo da vida? Mundo da vida, sendo um nãolugar, não se referindo a um objeto, comporta a representação de um sujeito, algo da
ordem da subjetividade. Cada sujeito tem o seu mundo vivido e dele tem algo a dizer. E
mais, o mundo vivido, residindo na dimensão do já dado, anterior aos conceitos de
natureza, de mundo natural, de sujeito, de objeto, do conhecimento objetivo, de
substância, é anterior até mesmo à relação sujeito-objeto. ―O vivido, Erlebnis em
alemão, é aquilo de que se tece a nossa consciência enquanto nela escoa uma vida. O é
que Husserl evoca falando de vividos e de fluxo de vividos não é simplesmente o fato
de que temos um teatro íntimo, representações, pensamentos; é o fato de que uma vida
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primordial da consciência não cessa de se manifestar por vividos atados uns aos outros
em um fluxo.‖ 3
Em um segundo momento, em sua busca por uma evidência apodítica, Husserl coloca a
existência do mundo como uma evidência de caráter dubitável, ou seja, a anterioridade
da experiência do mundo não garante a sua apoditicidade. Sendo assim, a existência do
mundo e a sua evidência dada a partir da experiência sensível natural deverão ser
abandonadas. Se o que se busca é uma ciência fundada em princípios absolutamente
indubitáveis, a evidência do mundo deverá ser colocada em dúvida e, ao mesmo tempo,
sofrer um trabalho crítico que nos forneça o seu alcance. Portanto, a experiência natural
do mundo deverá ser excluída.
Pelo contrário, é da essência do mundo das coisas, como sabemos, que nenhuma
percepção, por muito perfeita que seja, dá no seu domínio um absoluto; do que resulta
essencialmente que toda experiência, por mais vasta que seja, deixa subsistir a
possibilidade de que o dado não exista, apesar da consciência persistente da sua
presença corporal e em pessoa. O fenômeno do mundo, apresentando-se com sentido
objetivo, destaca-se de um plano que podemos designar pelos termos: ―natureza que me
pertence‖. (HUSSERL, 2001, p. 110) O mundo torna-se apenar mera pretensão de ser.
Como ponto de partida o filósofo está diante de evidências mediatas e imediatas.
Não basta pôr fora de vigência todas as ciências que nos são previamente dadas, tratálas como preconceitos, temos também de subtrair à vigência ingênua o solo universal
delas, o da experiência do mundo. O ser do mundo não mais pode constituir para nós
um facto óbvio, mas somente um problema da vigência. (HUSSERL, 1992, p. 13)
3
SALANSKI, J. -M. Husserl. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. – São Paulo: Estação Liberdade,
2006.
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O mundo em geral é para mim apenas o que existe conscientemente e para mim vigora
em tais cogitationes. Todo o seu sentido e vigência de ser recebe-os ele dessas
cogitationes. Nelas decorre toda a minha vida mundana. Não posso viver, experimentar,
pensar, valorar e agir em nenhum outro mundo que não tenha o sentido e a validade em
mim e a partir de mim próprio. (HUSSERL, 1992, p. 15) Atingir o estatuto do eu puro
em Husserl, consiste na parenteziação dessa vida mundana e na apropriação da vida da
consciência. Atingindo essa esfera, todo o mundo como o eu, ganham um sentido
ontológico. Nas palavras de Husserl, a investigação acerca do mundo deve mostrar ―de
que modo é que o mundo é para mim o cogitatum das minhas cogitationes‖.4 O que
importa agora é desvendar o mundo restante, mediante inferências bem feitas e de
acordo com os princípios inatos do ego.5
Enquanto as ciências positivas – aqui fazendo referência à psicologia –, atuam na
verificação da vida psíquica no mundo objetivo, graças à epoché, a fenomenologia atua
no âmbito transcendental, doando sentido. É necessário entender que o ponto central da
fenomenologia não se trata do mundo. A investigação fulcral está voltada para o outro
pólo originário, a saber, o eu. No entanto, para se atingir tal camada, o sujeito meditante
deve voltar-se para o mundo, aplicando a redução fenomenológica, o que consiste na
parenteziação do mesmo. Tendo efetuado tal redução, o eu humano vivente na esfera do
mundo objetivo aniquila tal condição, mas permite a emergência do eu puro, estando o
mundo sempre aí, mas numa condição existencial transcendente.
Segundo Husserl ―após ter banido o mundo do meu campo judicativo como o que de
mim e em mim recebe o sentido de ser, sou então o eu transcendental que precede o
4
5
Ibiden, 1992, p. 23.
Ibiden, 1992, p. 16.
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mundo‖. 6 Dessa redução emerge o ego puro e o mundo passa a ter sentido a partir da
esfera fundamental da experiência transcendental. É sensato notar que Husserl não está
preocupado com a instauração de certo solipsismo teórico em sua filosofia. Ao
contrário, ele até demonstra nas Conferências de Paris, a necessidade de uma ciência
egológica. No entanto, já nessa obra, desponta o vislumbre do filósofo pela disposição
da intersubjetividade transcendental. Quanto ao mostrar-se do mundo é necessário antes
de qualquer investida, entender os modos de manifestação do mesmo. A manifestação
do mundo à consciência dá-se num âmbito primordial, através de um mostrar-se dos
vividos a auto-reflexão. A grande visada de Husserl talvez advenha com a inserção
metodológica da epoché. A partir desse instrumento de abstração dos juízos, o eu
desloca-se para um ponto de vista que permite uma auto-verificação de si mesmo
enquanto ente mundano, bem como do mundo dado e vivido na atitude natural.7
O espectador que de si se tornou transcendentalmente consciente enquanto eu
transcendental, tem o mundo apenas como fenômeno, isto é, como cogitatum da
respectiva cogitatio, como o aparente das respectivas aparências, como simples
correlato. (HUSSERL, 1992, p. 24)
De acordo com Husserl a evidência do mundo natural dá-se constantemente, não
precisando o sujeito abdicar de sua condição até mesmo de senso comum. No entanto, a
fenomenologia pretende ir além. No âmbito transcendental da análise do mundo, a
evidência do cotidiano passa ser um pressuposto da visada fenomenológica. O mundo
então destitui-se de qualquer pré-concepção e passa a ser entendido como âmbito e
vivências existenciais. Husserl comenta acerca da passagem que há na apreensão do
mundo circundante para o mundo vivido e de acordo com Pizzi
6
Ibiden, p. 19.
Cf. Ibiden, p. 24. ―O expectador transcendental põe-se acima de si próprio, olha para si e vê-se também
como eu antes votado ao mundo, e descobre-se em si, pois, como homem enquanto cogitatum‖.
7
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a evidencia que o sujeito, enquanto tal, tem um mundo ao seu redor e a ele pertencecomo os demais seres -, não necessitando recorrer à ciência experimental para afirmar
com certeza disso. Não se trata, portanto, do mundo na atitude natural, na qual os
interesses teóricos e práticos são dirigidos a ente (ou fenômenos) do mundo, mas é o
mundo histórico-cultural concreto, das vivências cotidianas com seus usos e costumes,
saberes e valores, ante os quais se encontra a imagem do mundo elaborada pelas
ciências (PIZZI, 2006, p. 63)
Husserl constata a co-presença de um mundo aí. Ao dizer ―o encontro aí diante de mim
imediata e intuitivamente, o experimento.‖
8
o mundo e as coisas encontram-se ―aí
adiante‖. Mas o mundo tal como o suporto enquanto fenômeno, bem como as coisas que
se mostram constantemente, não precisariam, estar em meu campo de percepção para
que só assim pudesse me ocupar dos mesmos. Mesmo se tratando o mundo de uma
intuição constantemente preenchida, sempre o será um dado a preencher. Clarificando a
evidência do mundo, o que resta? Resta um ―horizonte obscuramente inconsciente de
realidade indeterminada‖.
Ao afirmar que se encontra numa relação constante ao uno e mesmo mundo, Husserl
está seguro de que ―este mundo está persistentemente para mi ―ahí delante‖, yo mismo
soy miembro de él, pero no está para mí ahí como un mero mundo de cosas, sino, en la
misma forma inmediata, como un mundo de valores y de bienes, un mundo pratico.‖9
As coisas que se dão no mundo, apresentam-se com qualidades de valor que permitem
uma apreciação ontológica de sentido. O cogito tem no mundo circundante os seus
cogitatum.10 Sempre o eu sente algo no mundo, enxerga algo próximo, toca, sente enfim,
uma relação diretamente factual. Mas na existência emerge outro tipo de mundo com
estrutura opostas e não vividas diretamente. Trata-se do despontar do mundo aritmético.
8
Ideas, p. 64. (Tradução por minha responsabilidade)
Ibiden, p. 66.
10
Cf. ibiden, p. 67. ―No todo cogito em que vivo, tiene cosas, hombres, cualesquiera objetos o relaciones
de mi mundo circundante, por cogitatum.‖
9
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Quando Husserl se refere ao mundo circundante natural deve-se compreender o sentido
transcendental de tal afirmação. Para tanto só haverá um esclarecimento se levar em
conta a noção de tempo que perpassa esse mundo. Segundo Husserl, ―este mundo que
está ahí delante para mi ahora, y patentemente en cada hora de la vigília, tiene su
horizonte temporal infinito por dos lados, su conocido y su desconocido, su
inmediatamente vivo y su no vivo passado y futuro.‖11 Si mi cogito se mueve tan sólo en
los mundos de estas nuevas actitudes, queda el mundo natural fuera de mi
consideración; es para mi consciencia actual um fondo, pero no un horizonte que se
inserte un mundo aritmético. (HUSSERL, 1949, p. 63)
Considerações finais
Levando em conta as reflexões desenvolvidas por Husserl a partir de 1913, o sujeito tem
para si o mundo enquanto fenômeno de aparecimento constante. Seu correlato imediato
de percepções e de doação dos seres na atitude natural. Perguntar-se pelo modo como
tal mundo se doa enquanto primeira instância do surgimento dos fenômenos é a
preocupação husserliana a partir de Idéias. Tendo parenteziado o mundo via epoché,
qual o resíduo que restaria ao ego em suas vivências de consciência? Se no mundo
acontece o modo de doação originária dos fenômenos, estando ele posto fora de
circuito, como pode o ego apropriar-se fenomenologicamente de suas intuições? Eis a
ocupação de uma investigação fenomenológica do mundo.
11
Ideas, p. 65.
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REFERÊNCIAS
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Fenomenológica – Libro Primero: Introducción General a La Fenomenología Pura.
Trad.: José Gaos, Mexico: Fondo de Cultura Econominca, 1949.
_____. Méditations Cartésiennes. Trad.G. Peiffer e E. Lévinas, Paris: Vrin, 1996. Trad.
brasileira (Frank de Oliveira): Meditações Cartesianas. São Paulo: Madras, 2001.
PIZZI, Jovino. O mundo da vida: Husserl e Habermas. Ijuí: Ed., Unijuí, 2006
SALANSKIS, Jean-Michel. Husserl. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São
Paulo: Estação Liberdade, 2006.
SMITH, A.D. Husserl and the Cartesians Meditations. New York: Routledge, 2003.
SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. Tradução: Alfredo de Oliveira
Moraes.
São
Paulo:
Edições
Loyola,
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2004.
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CIDADANIA, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE - Rosa de
Lourdes Aguilar Verástegui
UEL
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Palavras-chave: cidadania, ética, educação.
Introdução
Quando falamos de cidadania estamos entre duas concepções que estão ligadas, uma a
Aristóteles e a outra à tradição moderna. A tradição republicana da doutrina do Estado,
que se remonta a Aristóteles propõe a idéia de cidadania com uma forte conotação éticocomunitarista. Nesta concepção, os cidadãos estão integrados na comunidade política
como partes de um todo, de tal modo que, sua identidade cidadã é entendida como fruto
de tradições comuns e ligações às mesmas instituições políticas.
De outro lado, a tradição liberal do direito natural se remonta a Locke. A cidadania é
concebida como uma situação fundamentada numa posição jurídica, na qual os
indivíduos permanecem exteriores ao Estado, contribuindo com sua conservação através
de pagamento de impostos e eleições e, recebendo benefícios organizacionais.
O status de cidadão depende do critério das pessoas que se orientam pelo bem comum e
estes critérios não são exclusivamente legais. Porque a lei limita e direciona, mas, não
necessariamente conscientiza. Quem é consciente é o individuo não a lei.
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Lembrando a concepção aristotélica temos que, a cidadania ―pode ser definida pelo
direito de administrar justiça e exercer funções públicas‖ (ARISTÓTELES, 1997,
1275b). Neste sentido, o ser humano capaz de exercer sua responsabilidade política é
um bom cidadão. O conceito moderno de cidadania é um dos temas principais a respeito
da posição da pessoa como membro de uma sociedade e desenvolve-se a partir do
conceito rousseauniano de autodeterminação.
Rousseau explica a noção de ―cidadão‖, como a qualidade de membros de uma
sociedade civil, que recebem o nome de povo e chamam-se em particular cidadãos,
enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do
Estado. Para este autor são quatro os principais pontos que devem ser observados
quando tratamos de cidadania. Assim para Rousseau ser um cidadão implica:
Primeiro, possuir certo status dentro do Estado. Isto significa ter certos direitos e
qualificações, assim como deveres e responsabilidades conferidos à pessoa pelas leis
positivas do Estado. (CANTO-SPENBER, 2003).
Segundo, participar na formação da legislação soberana. Um indivíduo não é
considerado realmente um cidadão se tem uma atitude passiva ante a legislação, mesmo
que esta o beneficie. Tampouco exerce a cidadania o indivíduo subjugado pela força ou
um poder inescapável; isto é servidão. Um cidadão é aquele que se encontra em pé de
igualdade e desempenha um papel igual a todas as outras pessoas, participando na
formulação das regras gerais comuns que ajudam a organizar suas vidas no Estado.
Terceiro, ter consciência do papel cidadão. A aquisição do status de cidadão introduz
nas pessoas uma mudança moral, a qual se reflete nos atos de indivíduos que estavam
até então apenas ―naturalmente‖ relacionados. Ao atuar como cidadão os indivíduos
exercem não unicamente sua força, mas também seus títulos e direitos; isto significa
uma justificação moral e civil para as suas ações.
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Quarto, ter igualdade de direitos e deveres. O status de cidadão é desfrutado de modo
idêntico por todos os membros do estado, sem exceção, e esse é o mais importante
status que qualquer indivíduo pode gozar. Uma pessoa pode ocupar outras posições no
Estado, mas nenhuma delas lhe da o direito de anular os títulos de cidadania de outrem.
Com efeito, todas as posições são autorizadas pelos cidadãos em sua condição de
membros do corpo soberano. Assim, alguns são governantes e alguns são governados,
mas aqueles que ocupam posições com autoridade só o fazem pela decisão de todos
atuando em sua capacidade de cidadãos (CANTO-SPENBER, 2003).
A expressão ―cidadania‖ vem sendo empregada não apenas para definir a pertença a
uma determinada organização estatal, mas também para caracterizar os direitos e
deveres dos cidadãos. Na filosofia do direito encontramos duas interpretações contrárias
e conflitantes acerca da cidadania ativa. Na tradição liberal do direito natural, que
remota a Locke, existe uma compreensão individualista e instrumentalista do papel do
cidadão; ao passo que, a tradição republicana da doutrina do estado que remonta a
Aristóteles, gira em torno de uma compreensão ética comunitária desse papel.
Na tradição liberal, a cidadania é concebida de acordo com o modelo de uma pertença
organizacional capaz de fundamentar uma posição jurídica. Neste caso os indivíduos
permanecem exteriores ao Estado, de tal maneira que sua participação e contribuição é
feita unicamente com a finalidade de conseguir benefícios organizacionais.
Na tradição republicana, a cidadania é vista através do modelo de pertença a uma
comunidade ético-cultural que se determina a si mesma. Os cidadãos estão integrados
na comunidade política como partes de um todo, de tal modo que para formar a sua
identidade pessoal e social, eles necessitam do horizonte de tradições comuns e de
instituições políticas reconhecidas (HABERMAS, 1997).
O cidadão deve respeitar as qualidades morais de sua cidade e cada forma de governo
impõe a suas, por isso a definição de cidadão que foi dada, corresponde ao cidadão de
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uma democracia. Mas, na relação entre Estado e cidadãos, passou-se da prioridade dos
deveres dos cidadãos à prioridade dos direitos. Ante esta situação emerge um modo
diferente de encarar a relação política, predominando a responsabilidade do estado e o
direito do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da
sociedade em contraposição à concepção organicista tradicional. Este modelo remontar
a uma tradição moderna, sobretudo à tradição jurídica que procura tratar de modo muito
técnico a problemática da cidadania.
Mas, a concepção de cidadania deve superar esse costume de delegar ao Estado a tarefa
de gerenciar políticas públicas ou investimentos em justiça social. Isso, sem dúvida, é a
condição para que a política se exerça de maneira saudável, mas não se pode considerar
cidadania uma atitude passiva, e muito menos representativa, que delega toda a
responsabilidade cidadã a representantes políticos investidos de poder para mandatos
eletivos que se escolhem por eleições periódicas. A cidadania ativa não pode ficar
limitada unicamente ao exercício do direito ao voto.
O conceito de cidadania além da definição político-jurídica que adquire na
modernidade, tem uma forte ligação com o conceito de homem como animal social,
político, que alcança sua plenitude quando exerce sua cidadania, quando desenvolve e
exercita suas capacidades pessoais e obviamente sociais e políticas.
Acreditamos que o conceito de cidadania que repousa numa tradição moderna,
sobretudo à tradição jurídica que procura preservar sobre tudo a liberdade, pode levar a
sociedade a grandes vícios. Um deles pode observar-se e é considerar que a cidadania
vem desenvolvendo-se porque cada vez mais conquistamos direitos. Esta crença pode
levar a considerar como legítimos um estado paternalista, que da todo, ou um
neoliberal, que permite todo. Tudo isto em nome dos direitos e da liberdade.
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Nesse sentido, a proposta Aristotélica da ética-comunitarista rejeita a visão da vida
social e política como um agregado de interesses privados, completamente livres e
independentes. A liberdade deve ser entendida junto com a responsabilidade, são
necessárias as conquistas de mais direitos, mas não podemos evadir o crescimento
também dos deveres. O problema radica em entender que, a cada direito corresponde
um dever. Este conflito que existe entre deveres e direitos na sociedade é um muito
antigo, surge com a declaração dos direitos do homem e o cidadão.
A igualdade e a liberdade podem ser impostas a través das leis. Assim temos que,
governos ditatoriais podem restringir a liberdade e impor a igualdade e, temos também
governos neoliberais que deixam uma margem tão grande à chamada ―liberdade‖ que
surgem as situações de exploração e abuso. Em ambos os casos a cidadania fica
desrespeitada. Aparentemente os problemas acabam se elaboramos uma constituição
que salvaguarde de maneira equitativa a liberdade e a igualdade.
Mas, unicamente com as leis não se solucionam estes problemas, que são de ordem
ética. E os castigos que a lei impõe podem servir de incentivo para melhorar as
estratégias de evadir a lei e suas punições. Então, qual pode ser a caminho mais
recomendável para procurar uma sociedade harmônica com exercício da cidadania.
Para pode exercer a cidadania da melhor maneira, isto é, equilibrando a liberdade e a
igualdade e, ainda, introduzindo a solidariedade é necessária uma conscientização. Para
internalizar os novos valores é necessária a educação, no conceito mais amplo.
O papel da educação na formação de cidadãos
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Não se pode falar de cidadania sem dois elementos imprescindíveis: ética e educação.
Ética são os princípios, os valores, representados pelas regras que nos permite a
sociabilização saudável, isto é preservando nossa dignidade. A educação é a forma que
encontra a sociedade para preservar seus valores de geração em geração.
A educação é um processo que nos permite o desenvolvimento e a inclusão na
sociedade. De tal maneira que, ―o principio da educação é, todavia, o fato de que as
mesmas forças que no indivíduo se unem para conformação de sua vida pessoal também
geraram o Estado, o costume, a ciência, a arte etc‖ (SCHILLER, 1994, p. 175). Quando
falamos de educação não nos referimos unicamente á educação formal senão a uma
tarefa e compromisso de todos os cidadãos de preservar os valores. Valores que formam
o indivíduo e a sociedade e podem ser epistemológicos (o verdadeiro e falso), valores
estéticos (o belo e o feio) e valores éticos (o bom e o mal). Todos esses valores ajudam
o individuo a construir sua vida, e esses valores movem também a sociedade e a
constroem.
A educação possibilita e evidencia uma meta de desenvolvimento pessoal em
concordância com a vida social. É insustentável falar do exercício da cidadania e do
direito de eleger representantes se não temos a capacidade de discriminar a proposta
política e a capacidade do candidato, se não temos um critério que permita escolher os
valores que respeitamos.
Assim como Platão, Schiller acredita que a educação tem a missão de formar o
indivíduo segundo suas predisposições particulares, isto faz com que a sociedade se
estruture em diferentes tipos de atividades e profissões. Esta tarefa faz com que a
educação seja um eixo que tente ordenar e equilibrar à sociedade. A educação na
democracia não treina, limita e obriga, a educação nos conscientiza, libera, e persuade.
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Para ter indivíduos livres, que respeitem e preservem a equidade devemos preservar a
democracia. E é através da educação que internalizamos o respeito às diferenças, a
valorização da individualidade, e a solidariedade, para que a sociedade se mantenha em
harmonia e coesa. Não basta desenvolver a individualidade é necessário também
desenvolver a sociabilização e o convívio. Não basta uma tolerância é necessária uma
cooperação. Não basta existirem diferentes senão perceber a necessidade de trabalhar
juntos, num objetivo comum, o bem da sociedade.
A lei pode ajudar a impor a liberdade, pode exigir um espaço para todos, mas só a
educação pode conscientizar da solidariedade, que mais que legal é ética. Por estas
razões, acreditamos que a educação é a forma de afiançar e fortalecer a democracia,
buscando a colaboração e o acordo, como as melhores saídas para o desenvolvimento.
Considerações finais
O indivíduo não deve ser rodeado unicamente por um cordão de direitos, que definem a
sua liberdade, tem que fazer evidente seus deveres e suas responsabilidades para poder
efetivamente ser livre. A liberdade não deve ser tomada como a ausência de restrições,
na capacidade do indivíduo de perseguir seus objetivos. Essa visão negativa da
liberdade é a raiz dos defeitos sociais, éticos e políticos desta forma de individualismo.
A liberdade como a felicidade são conceitos sociais. Dentro da sociedade que nos da
liberdade,
individualidade
e
oportunidades
devemos
crescer
e
permitir
o
desenvolvimento, não unicamente dos pares e semelhantes senão também das gerações
futuras. Isso é liberdade com responsabilidade ou com solidariedade.
Liberdade em seu sentido mais amplo só é possível em uma ordem social, em que todos
participam na formação das condições de vida em comum. A cidadania descansa na
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igualdade ante a lei, que permite um exercício pleno da liberdade e individualidade,
com sua respectiva responsabilidade, que é velar porque todos tenham igualdade e
liberdade. O papel da educação é conscientizar sobre estes valores.
A cidadania está em crise, tanto de representação como de participação. O exercício
livre das faculdades morais dos indivíduos tem como conseqüência o pluralismo moral
e cultural. Não é a sociedade que garante a virtude de seus membros e sem o inverso por
isso acreditamos que é necessária uma discussão sobre a cidadania e seu exercício. É
necessário que os membros de uma sociedade se eduquem e organizem para construir
uma sociedade melhor.
A questão da cidadania é uma problemática inerente a um povo. E esse povo que
conhece suas carências deve possuir as condições para transformar sua condição. Não
entanto, isto não é possível sem a educação e a organização da sociedade civil, sem a
mobilização das comunidades, sem a conscientização dos grupos minoritários, sem a
adesão aos projetos sociais que possam transformar seu cotidiano.
Então, a educação é a que garante nossa consciência, nos impulsiona para melhorar.
Ante a diversidade de problemas devemos unir nossos esforços. A colaboração entre
diferentes indivíduos enriquece e fortalece a construção de trabalhos. As organizações
não governamentais estão desenvolvendo-se cada vez mais, mas ainda precisamos
participar e trabalhar juntos, unindo nossas diversidades para atingir nossos ideais.
A mera ausência de restrição externa não é uma condição suficiente para a liberdade, é
necessário que exista o controle do estado e a participação responsável dos indivíduos
para garantir a liberdade. Os indivíduos devem participar e organizar-se. A sociedade
organizada é uma necessidade e nosso compromisso um dever cidadão.
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REFERÊNCIAS
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CANTO-SPENBER, Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos,
b2003.
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HABERMAS, Jünger. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de
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ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. São Paulo Editora Globo, 1999.
SCHILLER, Friedrich. Sobre a educação estética do ser humano numa serie de cartas e
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CONFLITO POLÍTICO E LIBERDADE NO PENSAMENTO DE MAQUIAVEL
- André Antoninho Fuhr
Universidade Estadual do Oeste Paraná
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Palavras-chave: Maquiavel; Liberdade; Humores; Conflito
À luz do pensamento tradicional acerca do conflito civil e da liberdade, Maquiavel é
responsável pela mudança de pensamento com relação aos conceitos de liberdade e de
ação política. Ao tomar como base para sua concepção política a teoria dos humores,
Maquiavel rompe com o pensamento tradicional é nesse sentido que o florentino se
propõe a descrever a verità effettuale delle cose. Desta maneira, a compreensão da
teoria dos humores circunscrita a partir da verdade efetiva, torna-se imprescindível, pois
é ela que denota a realidade de como se dá a ação política no estado. Diante disso, o
problema que se apresenta é compreender quais são as condições necessárias para a
existência da liberdade política no Estado, uma vez que Maquiavel abandona as visões
idealistas e imaginárias e propõe-se a analisar o Estado em sua realidade concreta.
Sendo assim, o desafio é compreender como é possível a existência de um Estado, cujas
instituições e as ordens políticas sejam capazes de manter estabilidade em uma realidade
marcadamente conflituosa em função da existência dos humores e do caráter insaciável
do desejo. Essa questão de como manter o Estado estável em uma realidade instável
apresenta-se a partir do conflito dos humores. Nesse sentido, as ordens necessárias para
o estabelecimento da liberdade política ocorrem em um processo de continua
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reformulação as quais visam em última estância evitar instauração do processo de
tirania e, por conseguinte da ruína do Estado.
Maquiavel apresentada, assim, os pressupostos que devem nortear a fundação política e
seus respectivos valores para a vida civil. Ele volta-se para o exemplo de Roma,
mostrando como os humores, representados pelos grandes e pelo povo, ganham sua
vazão política permitindo assim o estabelecimento da liberdade. Nesse sentido, a grande
diferença entre Maquiavel e os predecessores não está na importância atribuída às leis e
nem no valor do conceito de liberdade, mas sim na origem destes. Para Maquiavel, as
leis são frutos dos conflitos permanentes entre grandes e povo. E é por esse motivo que
não existe uma solução definitiva para o conflito, sendo estes de natureza oposta não
podem ser anulados por uma via constitucional. A questão dos humores desponta na
obra de Maquiavel sempre a propósito da possibilidade do entendimento das questões
ligadas à ação política. Vemos isso nas suas principais obras em que o referido termo
aparece na forma de humor do povo e dos grandes. Iniciamos nossa análise tendo como
referência o exame da tese maquiaveliana presente em O Príncipe, na qual o secretário
afirma que:
Pois em todas as cidades existem esses dois humores diversos que nascem da seguinte
razão: o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, enquanto os
grandes desejam comandar e oprimir o povo; desses dois apetites diferentes nascem
nas cidades um destes três efeitos: principado, liberdade ou licença (Príncipe,XI).
Maquiavel se utiliza do resgate dessa mesma tese no inicio dos Discursos sobre a
primeira década de Tito Lívio para analisar as causas da grandeza de Roma,
demonstrando através de seu exemplo o resultado do conflito de humores. No qual o
florentino chega à seguinte conclusão:
Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as
coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas
e a grita que tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam; e não
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considerar que em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos
grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião
deles.(Discursos I, 4).
Maquiavel chama atenção para a importância dos conflitos políticos como causa para a
fundação dos ordenamentos políticos e para a manutenção da liberdade. Ao contrário de
pensar a liberdade atrelada ao bom regime como os ideais da tradição, Maquiavel
destacará a importância da participação ativa de ambos os humores nas repúblicas, pois
é essa participação que garante que o agir político não será usurpado ou cerceado
propiciando um bom funcionamento das instituições políticas do estado.
Assim, a chave para a o entendimento do conceito de liberdade em Maquiavel está
relacionada à importância atribuída aos humores, os quais dividem a sociedade em dois
grupos antagônicos: os dos grandes e o do povo. O humor dos grandes impele-os a
querer dominar e oprimir o povo, e o do povo, cujo humor inclina-o a não querer
comandar, mas também a não ser comandado, ou seja, o povo a buscar a liberdade. O
desafio que se apresenta é demonstrar como Maquiavel descrever essa diversidade das
formas do conflito civil, cujo grau de intensidade é variável. Além disso, qual seria o
princípio do conflito que justificaria, ao mesmo tempo, sua irredutível presença na
cidade e a pluralidade de suas formas. A esse respeito, Gaille-Nikodimov (2004, p.10)
diz:
Existe assim para Maquiavel um obstáculo intransponível, que consiste na
impossibilidade de satisfazer o humor dos grandes e o do povo. Aqueles querem
comandar, estes não querem ser comandados. Se o conflito tem diversas formas e uma
intensidade variável, isto se deve à maneira pela qual se articulam seus desejos, em
função das relações de poder sedimentadas ao longo da história da cidade, e a uma
tendência própria à natureza do desejo de se exceder sem cessar, de crescer, para se
deslocar em novos objetos.
Identificados os tumultos como o fundamento da ordem política, Maquiavel revela que
a sua positividade está condicionada à forma como se da a sua vazão, quando
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direcionados de maneira correta, propiciam a liberdade pública, ou seja, garantem a
participação ativa de ambos os humores, equilibrando as forças políticas. Essa questão
será tratada nós capítulos VI e V dos Discursos. Maquiavel no capítulo IV dos
Discursos apresenta os pressupostos teóricos para se compreender a questão da
liberdade e manutenção do estado evidenciado a associação entre liberdade e os
conflitos. Ao contrário dos pensadores de seu tempo e dos humanistas, que apontavam a
liberdade ligada ao conflito como sinal de decadência e corrupção, Maquiavel entende
os conflitos entre os grupos políticos como sinal da vitalidade política de um estado.
Desse modo, a vitalidade de um regime, associada antes ao conceito de harmonia e paz
ao longo do tempo. Em Maquiavel sofre uma determinação em seu conteúdo, pois para
o florentino, esse conceito se dá por meio da luta política que se revela no conflito. A
vitalidade de um corpo político e a sua durabilidade manifesta-se na vivacidade dos
tumultos e das lutas é o que vemos na seguinte conclusão do capítulo IV dos Discursos:
Portanto, deve-se censurar o governo romano com mais comedimento; e considerar
que tantos bons efeitos oriundos daquela república só podiam ser causados por ótimas
razões. E se os tumultos foram razão para a criação dos tribunos, merecem sumos
louvores; porque, além de conceberem a parte que cabia ao povo na administração,
tais tribunos forma constituídos para guardar a liberdade romana.
Maquiavel revela assim a importância dos conflitos, pois a agitação popular obrigou os
grandes a reconhecerem o povo como sujeito político. Ou seja, as leis de Roma eram
benéficas à liberdade pública porque em sua essência o humor do povo não estava
ausente. A questão agora é compreender como se apresenta o problema da liberdade e
dos humores na república. No capítulo V dos Discursos, Maquiavel apresenta a temática
da liberdade na ordenação da república expondo dois modos de defesa da liberdade a
dos grandes e a do povo se perguntando ―onde se deposita com mais segurança a guarda
da liberdade: no povo ou nos grandes; e quem tem maior razão para criar tumultos:
quem deseja conquistar ou quem quer manter?‖ e para responder a essa pergunta o
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florentino se utiliza do exemplo do Esparta e Veneza em contraposição com o de Roma
com o objetivo de identificar quais desses dois humores defendem melhor a liberdade
política.
Em um primeiro momento, Maquiavel revela que, se olharmos para o lado da
longevidade ―ficaríamos do lado dos nobres, visto, que a liberdade de Esparta e de
Veneza teve vida mais longa que a de Roma‘‘(Discursos I, V). Porém Maquiavel ao
analisar o caso da república Romana afirma que ―E, indo às razões, direi, vendo
primeiro o lado dos romanos, que se deve dar a guarda de uma coisa àqueles que têm
menos desejo de usurpá-la‖ (Discursos I,V) e indo além afirma que:
se consideramos o objetivo dos nobres e o dos plebeus [ignobili], veremos naqueles
grande desejo de dominar e nestes somente o desejo de não ser dominados e, por
conseguinte, maior vontade de viver livres, visto que podem ter menos esperança de
usurpar a liberdade do que os grandes; de tal modo que, sendo os populares
encarregados da guarda de uma liberdade, é razoável que tenham mais zelo e que, não
podendo eles mesmos apoderar-se dela, não permitirão que outros se apoderem.
Em seguida, Maquiavel opera mais uma reviravolta em seu texto ao questionar a
escolha pelo humor do povo quando analisa o modelo de república veneziano e
espartano, os quais procuram e impedir a manifestação do humor do povo tendo em
vista a paz e a estabilidade. E para realizar esse questionamento o florentino se utiliza
novamente da história de Roma.
E dão como exemplo Roma mesmo, onde, estando já os tribunos de plebe investidos
dessa autoridade, não foi bastante um cônsul plebeu, e eles quiserem tê-los ambos. A
partir daí, quiseram a censura, o pretor e todos os outros cargos do governo da cidade:
mas nem isso lhes bastou, pois, levados pelo mesmo furor, começaram depois, com o
tempo, a adorar os homens que lhes pareciam aptos a combater a nobreza; donde
nasceram o poder de Mário e a ruína de Roma. (Discursos I, V).
Apesar dessa aparente indecisão aonde Maquiavel parece oscilar entre ambas as
posições, uma análise mais atenta revela sua verdadeira opinião: a critica ao modelo
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veneziano e espartano e a defesa do modelo romano de república. Podemos ver isso
claramente na seguinte passagem:
E no fim, quem examinar tudo sutilmente chegará a esta conclusão: ou se pensa numa
república que queira fazer um império, como Roma, ou numa à qual baste manter-se.
No primeiro caso, é necessário fazer como Roma; no segundo, pode-se imitar Veneza
e Esparta. (Discursos I, V)
Maquiavel apresenta assim a contraposição de dois modelos de república um
conservador de Esparta e Veneza e um expansionista o de Roma. O primeiro ao optar
pela estabilidade se torna limitado e restrito tanto de modo físico como institucional. O
segundo de Roma mesmo partindo da instabilidade dos conflitos se torna forte, pois não
tem seu raio de ação limitado. Em outras palavras, enquanto Esparta e Veneza, se vêem
presas na busca de conservar seus territórios e sempre alvo constante da ameaça do
impulso de dominação por parte de um dos humores, Roma se vê livre para almejar
novas conquistas bem como disposta a combater o desejo desmedido de um dos
humores graças aos conflitos os quais possibilitariam a formulação de novas leis e
instituições que propiciam a regulação dessa nova relação. Maquiavel estabelece, assim,
uma relação essencial entre a liberdade e política de expansão dos estados: a dinâmica
conflitual aberta no seio da cidade faz com esta se torne conquistadora, as republicas
não podem sobreviver a não ser ampliando continuamente seus territórios.
Portanto, este conjunto de idéias aqui apresentadas nós permite afirmar que a fundação
de um vivere civile bem como a manutenção do poder e da liberdade política no
pensamento maquiaveliano implicam, no abandono das idéias da tradição baseadas no
conceito de sociedade harmônica de um ideal de bem comum como finalidade última da
vida coletiva e política. Maquiavel partirá de um conceito oposto a esse afirmando que
as discórdias civis e os tumultos sempre existiram e que a ao analisar a ordem de um
corpo político devemos sempre levar em consideração todos os elementos presentes,
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que para alcançarmos à liberdade devemos compreender o exercício desta a luz dos
conflitos que movem à cidade, ou seja, para Maquiavel a liberdade política de uma
cidade é fruto de uma relação de tensão de conflitos opostos que não podem ser
extintos, mas que devem ser regulados pelas instituições legais.
REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 2ª ed. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São
Paulo; Martins Fontes, 1998.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. .MF, São
Paulo, Martins Fontes, 2007.
GAILLE-NIKODIMOV, Marie. Conflit civil et liberté: La politique machiavélienne
entre histoire et médiecine. Paris: Honoré Champion, 2004.
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CONSCIÊNCIA E PSIQUISMO EM SARTRE - Flávia Augusta Vetter Ferri
Instituição - UNIOESTE
[email protected]
Palavras-chave: Sartre, Transcendência, Ego, Consciência
Em 1936, Sartre publica um pequeno ensaio intitulado A transcendência do Ego –
esboço de uma descrição fenomenológica, no qual lança as bases de sua doutrina
fenomenológica acerca da consciência. Nessa direção, demarcando uma postura bem
distinta da psicologia e da filosofia em curso até então, Sartre objetiva revisar e até
mesmo reformular criticamente certo ideal de subjetividade ainda bastante
espiritualizado. O que isso significa? Ora, Sartre inicia este seu primeiro trabalho de
cunho filosófico argumentando que, para a maioria dos filósofos, o Ego é concebido
como algo que habita a consciência. Do mesmo modo, também para a grande parte dos
psicólogos, a natureza egóica não passa de uma presença material. Ora, Sartre se
contrapõe justamente com essas ideias afirmando que, a rigor, o ego não está na
consciência, mas fora dela. De acordo com ele ―[...] o Ego não está na consciência nem
formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego
de outrem‖ 1.
1
SARTRE, A Transcendência do Ego, p. 43.
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Neste sentido, pode-se perceber a crítica lançada por Sartre acerca do postulado da
existência de um ego na consciência. A partir dela, Sartre busca estabelecer novos
parâmetros no sentido de elaborar uma nova teoria da subjetividade que fuja,
consideravelmente, dos construtos lógicos2. Sem dúvida que, na fenomenologia de
Edmund Husserl, Sartre encontra ricos elementos no sentido dessa reelaboração crítica
inicial. A questão central trazida por Husserl, nesse momento, é que a consciência deixa
de ser um recipiente de conteúdos, habitado por ideias, sensações, emoções (como
ocorre, por exemplo, na psicologia de inspiração empirista) e passa a ser consciência de
algo. O filósofo francês recorre à fenomenologia em virtude de seu método descritivo,
que parecia vir de encontro com seu projeto, uma vez que visa às essências e em
detrimento aos fatos empíricos. Ora, o próprio título da obra deixa clara a intenção de
Sartre em desenvolver um trabalho que assegure a não existência de um Ego na
consciência.
Retomando a importante tese husserliana, Sartre reitera: ―toda consciência [...] é
consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja
posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não
tem ‗conteúdo‘‖ 3. A consciência adquire o caráter de intencionalidade, ou seja, o
mundo, os sentimentos, os pensamentos são objetos para uma consciência e esta última
é o puro ato de se lançar em direção aos objetos intencionados, prescinde do conceito
vigente na qual é considerada como conjunto de condições lógicas e se revela como fato
2
Ao partir de uma concepção fenomenológica da consciência, Sartre aponta o que considera serem
insuficiências da psicologia positivista no que se refere às explicações acerca dos fenômenos psíquicos,
abordado em Esboço para uma Teoria das Emoções (Esquisse d‟une théorie des émotions, 1939) e
caminha rumo a uma Psicanálise Existencial, que mais tarde apresentaria em sua mais importante obra
intitulada O Ser e o Nada (L´être et le néant: Essai d'ontologie phénoménologique, 1943).
3
SARTRE, O Ser e o Nada, p. 22.
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absoluto, ou seja, o mundo, os sentimentos, os pensamentos são objetos para uma
consciência e esta última é o puro ato de se lançar em direção aos objetos por ela
intencionados. Trata-se de uma redefinição do campo do imanente como pura
transcendência. Seguindo esse pensamento, o conceito de intencionalidade garante que a
consciência esteja liberada de todo e qualquer conteúdo e seja exclusivamente um
movimento ininterrupto para fora de si.
As posições defendidas por Sartre em A transcendência do Ego serão amadurecidas e
aprofundadas ao longo de seus outros estudos de cunho filosófico e psicológico4, porém,
é nesta referida obra que se pode perceber a mudança de perspectiva, na qual o autor
apresenta a tentativa de purificação do campo da consciência, através da concepção
fenomenológica. Perspectivando, a consciência não possui interioridade na medida em
que representa a impossibilidade de ser substancial. Ora, ela se projeta, antes de tudo,
como um vazio, é pura transparência, vindo a se constituir enquanto presença a si. A
consciência, portanto, não surge fechada em si mesma; ao contrário, ela é definida como
um constante sair de si vindo a se esvair nesse movimento intencional, despindo-se de
tudo.
É evidente que Sartre reconhece o mérito da teoria husserliana e é nesse sentido que o
conceito de intencionalidade da consciência adquire caráter central em todo o seu
pensamento e representa a base para seu estudo crítico-sistemático da psicologia. Ele,
porém, encontrou problemas na fenomenologia de Husserl e para dar continuidade a seu
4
Ao partir de uma concepção fenomenológica da consciência, Sartre aponta o que considera serem
insuficiências da psicologia positivista no que se refere às explicações acerca dos fenômenos psíquicos,
abordado em Esquisse d‟une théorie des émotions, 1939 e caminha rumo a uma Psicanálise Existencial,
que mais tarde apresentaria em sua mais importante obra intitulada L´être et le néant: Essai d'ontologie
phénoménologique, 1943.
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projeto, preferiu reescrevê-la através de outros moldes. Ainda em A Transcendência do
Ego, ao discutir a questão da presença formal e material do ego na consciência, Sartre
criticou duramente Husserl por ter retomado a ideia do eu transcendental, o que para ele
seria abrir mão de todas as aquisições conquistadas pela fenomenologia, uma vez que
reintroduziria nela a opacidade típica de um objeto. Eis o ponto crucial que levou Sartre
a ruptura com Husserl: justamente a evolução do pensamento husserliano para uma
filosofia considerada por Sartre idealista5, uma vez que haveria a presença de um eu
transcendental como individualidade da consciência e formalmente presente nela. Para
Sartre, o Eu puro descrito por Husserl personificaria a consciência, uma vez que no
entender do filósofo, ele estaria como que por detrás da mesma enquanto princípio de
individualidade e unidade da consciência. Sartre entendia que o papel do eu
transcendental proposto por Husserl já está assegurado pela própria consciência.
Segundo ele, consciência intencional e fluxo de consciência já garantem a
individualidade da mesma e não é necessário um Eu para cumprir essa finalidade. Ora,
se é possível descartar o Eu da consciência é porque a própria consciência se ocupa da
sua unidade e individualidade. Sob este prisma, Sartre enfatiza que
a concepção fenomenológica de consciência torna totalmente inútil o papel unificante
e individualizante do Eu. É, ao contrário, a consciência que torna possível a unidade e
a personalidade do meu Eu. O Eu transcendental não tem, portanto, razão de ser6.
Embora a existência de um Eu transcendental tenha sido até então comumente
justificada pela necessidade de se garantir a unidade e a individualidade da consciência,
Sartre pretende mostrar que, por sua própria natureza, a consciência possui a capacidade
de unificar-se. É a noção de intencionalidade que garante que a consciência seja um
5
6
Cf. SARTRE, A Transcendência do Ego, p.46
Ibid, p. 48.
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movimento ininterrupto para fora de si, constituindo a sua unidade subjetiva, uma vez
que esta ―transcende a si mesma, se unifica escapando-se‖
7
e sua unidade real, dada
pelo objeto transcendente, dispensam a necessidade de um pólo unificador localizado
por trás dela e que garanta sua unidade. Dentro desta perspectiva, a presença de um Eu
transcendental enquanto princípio unificador traria consigo somente a condição de
retirar da consciência sua característica de translucidez. Nas palavras radicais de Sartre,
―o eu transcendental é a morte da consciência‖.8
A ideia sartriana de não haver um Eu habitante na consciência nos conduz a uma
concepção de consciência calcada na impessoalidade. Ora, uma vez que Sartre
considera a consciência como um absoluto impessoal e, portanto, não substancial, ela se
afirma a si mesma diante do objeto. Para Sartre o ego não é só inútil à consciência, ele é
também nocivo. Eis o que parece ser a chave encontrada por Sartre para a redefinição
do Ego. Não há aqui a pretensão sartriana em negar a existência de um ego, mas
argumentar contra um ego no plano irrefletido da consciência.
Tendo clara a recusa que Sartre apresenta a respeito da posição filosófica, enquanto
presença formal do Ego e psicológica, enquanto presença material, enfatizada por ele
desde os primeiros trechos de A Transcendência do Ego, uma pergunta se torna
inevitável neste instante: o que constitui o ego então para o pensamento sartriano? Ora,
não poderia ser um objeto, pois caso fosse, habitaria a consciência. Tampouco pode ser
um desdobramento da consciência, uma vez que poderia transgredir o seu princípio de
transparência e torná-la opaca. Nesse sentido, a fim de preservar as características da
consciência e buscando manter-se fiel aos princípios da fenomenologia, Sartre entende
7
8
Ibid. p. 47.
Ibid. p. 48
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que o Ego só pode ser um objeto transcendente, ou seja, que não pertence ao campo da
imanência.
A concepção do Ego que propomos parece-nos realizar a libertação do Campo
transcendental e, ao mesmo tempo, a sua purificação. O Campo transcendental,
purificado de qualquer estrutura egológica, readquire a sua limpidez primeira. Num
sentido, é um nada, visto que todos os objetos físicos, psicofísicos e psíquicos, todas
as verdades, todos os valores estão fora dele. Mas este nada é tudo, visto que ele é
consciência de todos esses objetos.9
Eis o ponto crucial da teoria sartriana acerca da consciência. Com a retirada do Eu da
consciência, tem-se o aparecimento de uma consciência impessoal, irrefletida, cuja
característica consiste em ser pura espontaneidade. O que Sartre pretende defender aqui
é o primado deste cogito pré-reflexivo, ou consciência de primeiro grau em relação à de
segundo grau, ou reflexiva. Essa necessidade que a consciência apresenta de ser
consciência de si, mesmo que de forma não tética é o que Sartre designou de cogito préreflexivo, ou consciência de primeiro grau, condição primordial para a consciência
reflexiva. A distinção feita por Sartre entre esses dois âmbitos da consciência pode ser
descrita da seguinte maneira: a consciência de primeiro grau seria a relação espontânea
entre ela mesma e seu objeto intencionado, que (necessariamente) encontra-se fora dela
e é por ela apreendido imediatamente ao se lançar. Ela é irrefletida por não ser objeto
para si mesma neste primeiro instante, o seu ser não está em questão, porém, ainda
assim é consciente de si uma vez que é consciência de um objeto transcendente. É fluxo
constante. Esta consciência possui, ainda, uma autonomia ontológica em relação à
9
Ibid, p. 76, grifos do autor.
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consciência de segundo grau ou cogito reflexivo, ou seja, ela é o fundo sobre o qual se
dá a reflexão.
O outro nível de consciência, descrito por Sartre é chamado de consciência de segundo
grau e pressupõe o direcionamento para uma consciência, ou seja, é um ato operado por
uma consciência dirigida sobre a consciência, que toma a consciência como objeto,
portanto, ela é pessoal e é nessa atitude de voltar-se para si que se dá o aparecimento do
Eu. É especificamente no nível reflexivo que a consciência é personificada, uma vez
que no nível irrefletido ela tão somente possui a característica de fluidez e, neste caso,
seria impossível considerar a possibilidade de personificação neste âmbito. A
personificação sugere o aparecimento do Eu que, para Sartre é o resultado da relação
dos dois níveis da consciência propostos por ele: a reflexiva e a irrefletida. A
consciência reflexiva é responsável pela realização do movimento intencional no qual a
consciência volta-se sobre si mesma, assegurando desta forma o princípio básico da
fenomenologia em que ―‗toda consciência é consciência de qualquer coisa‘‖
10
.
Retomando, é no nível reflexivo que a consciência posiciona-se em relação a si mesma.
Nesse sentido, pode-se considerar que o aparecimento do Eu se dá exatamente neste
âmbito, uma vez que ―não há Eu no plano irrefletido‖ 11, devido à própria estrutura da
consciência. Nesse sentido. ―o eu não deve ser procurado nem nos estados irrefletidos
de consciência nem por detrás deles, ele aparece apenas com o ato reflexivo e como
correlato noemático de uma intenção reflexiva‖12.
Consciência e Ego para Sartre não se confundem, ao contrário, são radicalmente
distintos. Em um primeiro instante, é importante frisar que a consciência é condição
10
SARTRE, A Transcendência do Ego, p. 50.
Ibid. p. 52.
12
Ibid. 58.
11
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para a existência do Ego, o que significa que é necessário ser consciência de um objeto
para então constituir-se como este ou aquele. Estão elucidadas os elementos
proporcionados pelo pensamento sartriano em A Transcendência do Ego para se
compreender a distinção radical que ele estabelece entre consciência e Ego.
REFERÊNCIAS
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BORNHEIN, G. A. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2007.
HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura; tradução de Márcio Suzuki.
Aparecida: Ideias & Letras, 2006.
MOUTINHO,
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Sartre:
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São
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SARTRE, J.-P. A transcendência do ego; tradução de Pedro M. S. Alves. Lisboa:
Edições Colibri, 1994.
_____.
La transcendence de l‘Ego et autres textes phénoménologiques. Librairie
Philosophique J. Vrin, Paris, 2003.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL DE KANT Vanessa Brun Bicalho
Mestranda em Filosofia
UNIOESTE/Capes
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Palavras-chave: Filosofia Transcendental, Metafísica crítica, Conhecimento a
priori, Razão Pura.
Kant denomina de Filosofia Transcendental seu modo de pensar a filosofia enquanto
ciência fundamental que busca a compreensão do sistema da razão em sua totalidade e
plenitude. Somente por meio de uma crítica da faculdade da razão especulativa é
possível uma filosofia transcendental que busca pelas condições do conhecimento em
prol da possibilidade da metafísica como ciência1. Na introdução da Crítica da Razão
Pura2 (Kritik der reinen Vernunft, 1781) o conhecimento de todo objeto possível pode
1
Ressaltando que a proposta de Kant na Crítica da Razão Pura é estabelecer as condições de
possibilidade do conhecimento a priori na metafísica, para fornecer a ela não mais um mero tatear, mas
sim o seu progresso, assim como as demais ciência (a matemática, a lógica e a física) que seguiram o
rumo seguro para o seu desenvolvimento e passaram a ser uma ciência rigorosa. Kant enfatiza o seu
propósito afirmando que ―a crítica é antes a necessária preparação para o estabelecimento de uma
metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há-de desenvolver-se de maneira
necessariamente dogmática e estritamente sistemática‖ (CPR, BXXXVI, p.31).
2
A obra intitulada Crítica da Razão Pura doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRP.
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ser dado da seguinte forma: (1) a validade do conhecimento pode ser a priori ou a
posteriori; (2) os juízos do conhecimento podem ser analíticos ou sintéticos.
Assim, Kant afirma que um conhecimento de caráter a priori em nada se refere, reduz
ou sequer é oriundo da experiência, de tal maneira não duvida que todo o conhecimento
se inicia pela experiência, o que não pressupõe que todo o conhecimento seja derivado
da experiência3. Esta é a possibilidade da existência de conhecimentos a priori, a qual
propicia uma ampliação do conhecimento porque independe da experiência. Este modo
de conceber o objeto é denominado de conhecimento puro. Por outro lado, a experiência
fornece somente conhecimentos a posteriori porque diz respeito a um conhecimento
estritamente empírico e que sem as categorias (condições de possibilidade da
experiência) não alcança validade universal e necessária. Kant o denomina de
conhecimento empírico.
Define-se assim, o conhecimento que tem sua origem e sede na experiência de a
posteriori; e o conhecimento que não se mistura com nada de empírico e que se
realizam de modo absolutamente independente de toda experiência de conhecimento a
priori. Contudo Kant deixa claro que seu interesse é estritamente pelo conhecimento
puramente a priori, que é o único capaz de fundamentar a filosofia crítica e
transcendental. As características fundamentais do conhecimento puro a priori são a
universalidade e a necessidade rigorosa. Tal como é expresso por Kant na seguinte
passagem:
A experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e
rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução) /.../ Em
contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente, uma rigorosa
3
Cf. KANT, Immanuel. CRP, B1, p.3.
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universalidade, este juízo provém de uma fonte particular do conhecimento, a saber,
de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e rigorosa universalidade
são pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são inseparáveis uma da
outra‖ (CRP, B4, p.38).
Diante da possibilidade do conhecimento a priori para a explicação da objetividade do
conhecimento, Kant reconhece a necessidade e o destino da razão na especulação em
concluir o seu edifício, isto é, compreender a totalidade do seu uso e examinar seus
fundamentos, já que a maior do exercício da faculdade da razão consiste na análise de
conceitos possuídos de antemão dos objetos. Disso deriva uma série de conhecimentos
caracterizados por Kant a partir de uma dupla forma: esta é a divisão entre os juízos
sintéticos e os juízos analíticos. Todos os juízos são pensados segundo a relação entre
um sujeito e um predicado, esta relação é possível de dois modos: quando o predicado B
estiver contido no sujeito A têm-se um juízo analítico, porque todo predicado está
contido ocultamente no conceito do sujeito. Contrariamente, quando o predicado B não
estiver contido no sujeito A têm-se um juízo sintético, porque o sujeito só é explicado
através do predicado. Por conta desta sutil distinção é possível apresentar três pontos
que tornam a compreensão dos dois tipos de juízos bastante elucidativos: (a) através dos
juízos analíticos nosso conhecimento não é de modo algum ampliado, mas através dos
juízos sintéticos nosso conhecimento é alargado; (b) os juízos de experiência são
sintéticos; seria um absurdo fundar um juízo analítico sobre a experiência, pois na
formulação de juízos não é necessário sair do conceito e nem sequer ter algum
testemunho da experiência; (c) os juízos analíticos são importantes e necessários, pois,
embora não dêem uma aquisição propriamente nova, dão clareza aos conceitos4.
4
Cf. KANT, Immanuel. CRP, A7-10/B13-14, p.43-45.
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Após analisar separadamente a dupla (1) a priori e a posteriori e (2) juízos analíticos e
sintéticos, pode-se pensar todas as possibilidades de conhecimento: (a) juízos analíticos
a priori, que dizem respeito ao conhecimento puro; e (b) juízos sintéticos a posteriori,
que dizem respeito ao conhecimento empírico. Mas a proposta que caracteriza a
filosofia transcendental de Kant se fundamenta sobre outro modo de conhecer os
objetos, isto é, pela possibilidade de (c) juízos sintéticos a priori. Essa última condição
diz respeito a um conhecimento anterior à toda experiência e que decide sobre o
domínio da metafísica.
Assim a questão vital da possibilidade da filosofia transcendental que inicia e conduz a
CRP é assim formulada: ―Como são possíveis juízos sintéticos a priori?‖. À primeira
vista um conhecimento independente da experiência e ao mesmo tempo sintético parece
impossível, mas Kant recorre os exemplos das ciências (matemática e a física) que por
constituírem juízos sintéticos a priori progridem acerca da objetivação do conhecimento
possível. Já no que diz respeito a possibilidade de haver juízos sintéticos a priori na
metafísica dirá Kant:
Na metafísica, mesmo considerada apenas como uma ciência até agora simplesmente
em esboço, mas que a natureza da razão humana torna indispensável, deve haver
juízos sintéticos a priori; por isso, de modo algum se trata nessa ciência de
simplesmente decompor por conceitos, que formamos a priori acerca das coisas, para
os explicar analiticamente; o que pretendemos pelo contrário, é alargar o nosso
conhecimento a priori, para o que temos de nos servir de princípios capazes de
acrescentar ao conceito alguma coisa que nele não estava contida e, mediante juízos
sintéticos a priori, chegar tão longe que nem a própria experiência nos possa
acompanhar. Isso ocorre, por exemplo, na proposição: o mundo tem de ter um
primeiro começo, etc. Assim, a metafísica, pelo menos em relação aos seus fins,
consiste em puras proposições sintéticas a priori (CPR, B18, p.48-49).
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Tendo Hume como principal motivador desta questão, a tarefa de Kant ganha o ímpeto
necessário ao dizer no Prolegómenos5que Hume o interrompeu de seu sono dogmático6.
Para o empirista a idéia de causalidade se fundava na noção e hábito, já em Kant o
conceito de causa deve estar totalmente fora da experiência, isto é, tudo aquilo que se
encontra na experiência precisa estar fundamentado fora da experiência. É, portanto,
sobre este propósito que se assentam os princípios sintéticos a priori de todo
conhecimento7.
A metafisica como uma espécie de disposição natural da razão (metaphysica naturalis)
nunca deixará de existir, no entanto, Kant é enfático em delimitar as possiblidades de
determinação do conhecimento a priori acerca de todo tipo de objeto para fundamentar
a metafísica como ciência e não uma mera disposição natural. É a partir desta
delimitação possibilidade da metafísica como ciência que se define o campo da
metafísica possível8. É neste sentido que uma critica da razão busca estabelecer a
metafísica como ciência ao mostrar que aquela metafísica antiga e dogmática9 não é
mais possível na construção de uma Filosofia Crítica. Destas considerações resulta uma
ciência chamada de crítica da razão pura, que é a faculdade que fornece os princípios
para conhecer algo absolutamente a priori10.
Neste sentido Kant enuncia que um organon da razão pura seria o conjunto dos
princípios de conhecimento puro e a priori, tal organon é o que proporciona um sistema
5
KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda Metafísica Futura: Que queira apresentar-se
como ciência. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições Setenta, 1988.
6
Cf. KANT, Immanuel. Prol, A13, p.17.
Cf. KANT, Immanuel. CRP, A9-10/B13-14, p.45.
8
Cf. KANT, Immanuel. CRP, B21-22, p.50-51.
9
A metafisica antiga e dogmática se refere aqui ao conhecimento da coisa em si e do supra-sensível,
enquanto objetos da experiência.
10
Cf. KANT, Immanuel. CRP, B24, p.52-53.
7
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da razão pura. Mas como o conhecimento de tal sistema é algo desejado porém muito
exigente à razão pura na determinação de suas fontes e limites, deve-se considerar a
ciência da filosofia transcendental como uma propedêutica do sistema da razão pura,
isto é, como um cânon da razão. Uma crítica da razão pura segundo o ponto de vista
especulativo da razão se define como um cânon da razão, pois trata somente de
clarificar e manter a razão isenta de erros, não se tratando por isso de uma doutrina.
O conhecimento transcendental no cânon da razão é definido pela seguinte passagem:
―Chamo transcendental a todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos,
que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori.
Um sistema de conceitos deste gênero deveria denominar-se filosofia transcendental‖
(CRP, B25, p.53). A ciência da filosofia transcendental deve conter tanto o
conhecimento analítico, quanto o conhecimento sintético a priori, por isso a CRP deve
ser chamado somente de crítica transcendental, isto é, um cânon da razão pura, pois
investiga apenas os limites da razão, não vai além daquilo que ela pode conhecer na sua
esfera teórica. A finalidade da crítica transcendental ―não é o alargamento dos próprios
conhecimentos, mas a sua justificação, e porque deve fornecer-nos a pedra de toque que
decide do valor ou não valor de todos os conhecimentos a priori‖ (CRP, B26, p.53).
O transcendental em Kant distingue-se daquele pensado pela tradição filosófica no
sentido em que passa a conceber o conhecimento transcendental não em relação aos
objetos, mas na medida em que se preocupa com o modo de conhecer os objetos de
maneira puramente a priori11. Assim a questão principal da filosofia transcendental se
pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento a priori e sobre a
pensabilidade do conhecimento através do sujeito transcendental. É possível apresentar
11
Cf. NODARI, 2009, p.56.
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três características do significado de transcendental em Kant: (a) transcendental é o
conhecimento não dos objetos, mas da natureza e das condições do conhecimento a
priori; (b) transcendental se refere aos fatores do conhecimento, uma concepção é
transcendental quando se origina de uma razão pura e constitui um conhecimento a
priori; (c) transcendental diz respeito à intuições e conceitos necessários para a
efetivação da síntese do conhecimento12. Sobre esse conceito prossegue Kant:
A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência para a qual a crítica da razão pura
deverá esboçar arquitetonicamente o plano total, isto é, a partir de princípios, com
plena garantia da perfeição e solidez de todas as partes que constituem esse edifício.
[É o sistema de todos os princípios da razão pura]. Se esta mesma crítica já não se
denomina filosofia transcendental é apenas porque, para ser um sistema completo,
deveria conter uma análise pormenorizada do todo conhecimento humano (CPR, B27,
p.54).
Ou seja, a CRP ―só avança na análise até onde o exige a apreciação completa do
conhecimento sintético a priori‖ (CPR, B27, p.54), uma filosofia de caráter puramente
transcendental deve ser inteiramente pura e a priori, nela não pode haver nada de
empírico. A teoria do conhecimento transcendental pressupõe por isso a constituição de
faculdades que efetivam a atividade objetiva do conhecimento. Para tanto, nada mais
ilustrativo que trazer a paráfrase de Kant sobre a revolução copernicana. Antes de Kant
admitia-se que o conhecimento se regulava pelos objetos, no entanto, esta perspectiva
anulava qualquer possibilidade de descobrir a priori, mediante conceitos, algo que
ampliasse o conhecimento. Por conta desta impossibilidade Kant assemelha sua
mudança de método com a idéia de Copérnico, que não podendo prosseguir na
explicação dos movimentos celestes quando admitia-se que toda multidão de estrelas se
moviam em torno do espectador, tentou se não teria melhores resultados fazer girar o
12
Cf. KANT, Immanuel. CRP, A56/B80-81, p. 92.
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espectador e deixar os astros imóveis. Para Kant é possível fazer o mesmo com a
metafísica, no que diz respeito à intuição dos objetos. Se a intuição se guiasse pela
natureza do objeto não se teria nenhum conhecimento a priori, mas pelo contrário, se os
objetos se adequam pela natureza da faculdade intuitiva, é perfeitamente possível
representar algo a priori13.
Este é o primeiro passo de Kant para a justificação da possibilidade e condição de juízos
sintéticos a priori, pois inaugura a efetivação do conhecimento a partir da reunião de
duas faculdades: a sensibilidade e o entendimento; pela primeira o objeto é dado
espaço-temporalmente, pela segunda o objeto é pensado categorialmente. Só a partir da
união destas duas faculdades nenhum conhecimento é possível.
REFERÊNCIAS
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução: Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda Metafísica Futura: Que queira apresentar-se
como ciência. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições Setenta, 1988.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. 7ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
13
Cf. KANT, Immanuel. CRP, BXVI-XVII, p.20.
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NODARI, Paulo César. A teoria dos dois mundos e o conceito de liberdade em Kant. Caxias do Sul:
EDUCS, 2009.
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DA CÓPIA AO SIMULACRO: DE DELEUZE AOS BEATLES - Evânio Márlon
Guerrezi
Graduando em Filosofia
UNIOESTE / Bolsista PIBIC – Fundação Araucária
Orientadora: Prof. Dra. Ester M. D. Heuser – Filosofia/UNIOESTE
[email protected]
Palavras-chave: Deleuze, simulacro, diferença
Nosso título sugere imediatamente os dois conceitos a serem trabalhados, cópia e
simulacro, tomados a partir da análise da banda inglesa: os Beatles. No entanto, esses
conceitos não se encontram soltos, mas ligados a grandes nomes da história da filosofia.
Seu aparecimento se dá em território grego, sob a tutela de Platão. Posteriormente foi
alvo dos escritos de Nietzsche, mas desta vez para o estabelecimento de um novo jogo,
uma inversão, ou ainda melhor, aquilo que seria conhecido como a "reversão do
platonismo". Nosso marco referencial, no entanto, é outro. Gilles Deleuze também
dedicou parte de sua obra à problematização do platonismo, pondo em evidência a
divisão platônica e retirando dela uma interpretação original. Nosso objetivo se
concentra, no estudo desta reversão, contudo, não trataremos dela partindo somente dos
escritos deleuzianos, mas também adotando a produção musical dos Beatles. Assim, o
presente texto se encontra dividido em duas partes. A primeira tem como ponto
fundamental a apresentação do platonismo e de sua ―reversão‖, tal como concebeu
Deleuze, enquanto a segunda apresenta o mecanismo platônico em funcionamento na
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criação musical dos Beatles. Nesta parte, queremos mostrar que no percurso criativo da
banda a produção musical tornou-se simulacro uma vez que deixou de operar por meio
de uma noção de Ideia. Acredita-se, deste modo, que os Beatles podem servir como uma
espécie de ―tradução‖ da elaboração deleuziana quanto às noções de cópia e simulacro
e, em decorrência disso, uma forte expressão da afirmação da diferença pura.
Deleuze: o platonismo e sua reversão.
A reversão do platonismo, na perspectiva de Deleuze, só pode ser levada a cabo na
medida em que o próprio platonismo for exposto, sua verdadeira motivação for
encurralada e suas intenções postas na mesa. Deleuze vê em Platão uma vontade de
distinguir a coisa mesma de sua cópia. Em seu sentido tradicional, essa divisão se
apresenta entre o mundo inteligível e o mundo sensível, o que será denominado por
Deleuze como a distinção manifesta dos escritos platônicos. É exatamente o método de
divisão que encerra, para Deleuze, toda a força do pensamento de Platão. É ele que
fornece a base conceitual, na qual toda sua filosofia se desenrola. Todavia, apesar dessa
distinção se encontrar de maneira manifesta em Platão, ela existe apenas em função de
outra, que se encontra de certo modo obscura, mas que aponta para a verdadeira
ambição dos escritos platônicos. É o que Deleuze denomina como a distinção latente do
platonismo.
Assim, se o método da divisão de Platão nos aponta para uma distinção manifesta, que
corresponde à distinção existente entre o mundo inteligível e o mundo sensível, a
distinção latente aponta ainda para outra divisão: a da cópia e do simulacro. A própria
dicotomia entre Ideia e mundo sensível só existe na medida em que essa é peça
fundamental no processo de julgamento, para distinguir a boa cópia do simulacro. É
com essa divisão que Platão erige toda a potência daquilo que Deleuze irá chamar de
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uma "dialética da rivalidade". É por meio dessa dialética que a motivação do platonismo
começa a se tornar evidente. A distinção manifesta é utilizada como um meio, para
realizar um processo de seleção, entre a cópia e o simulacro no mundo sensível. O
próprio conceito de Ideia formulado por Platão se encontra aí como um critério de
seleção, como mecanismo para algo maior, ou seja, a qualificação, que separa
linhagens, que distingue a semelhança da cópia para com a Ideia da degeneração do
simulacro. No entanto, a funcionalidade desta dialética, só se apresenta com maior
precisão quando evidenciamos os três componentes que a constituem, sendo eles: o
imparticipável, o participado e o participante.
O imparticipável é o próprio fundamento do processo seletivo, aquele ao qual se faz
apelo. Trata-se daquilo que o participante evoca para então dizer: eu sou o bom
pretendente! Em Platão são os mitos que assumem esse papel. O mito da circulação das
almas, como aparece no Fedro, serve como um critério de seleção. Aqueles que tiveram
contato por um período mais prolongado com as Ideias são melhores pretendentes do
que aqueles que passaram pouco tempo nesse processo de contemplação. O mito se faz
essencial ao processo de seleção platônico, opera como o critério, o fundamento para
distinguir os pretendentes. Quanto ao participado, diz-se que é a própria Ideia - aquilo
que não é outra coisa senão ela mesma - assim como só a justiça é justa -, apresentada
pelo mito e objeto de pretensão dos participantes; enquanto os participantes são os que
fazem apelo ao mito, ao imparticipável, para poderem se afirmar como bem fundados.
Essa tríade conceitual encerra em Platão todo o processo de seleção.
É desse modo que a formulação do mundo inteligível e, consequentemente, das Ideias
está posta para servir à distinção latente. Vários pretendentes podem querer governar a
pólis, no entanto, apenas o que mais se aproxima da Ideia, que mais participa dela, será
o bem fundado, uma vez que apenas por meio do mundo inteligível, das Ideias, se
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alcança o verdadeiro conhecimento. Torna-se função dos pretendentes afirmarem sua
semelhança com a cópia, para que seja possível distinguir os bem fundados. A distinção
está aí para privilegiar a semelhança da cópia em relação à cópia sem semelhança.
O simulacro, na perspectiva de Deleuze, torna-se, então, a própria ferramenta contra o
platonismo e seu processo seletivo. É ele que permite a "reversão do platonismo".
Deleuze afirma que em seu Sofista, Platão debruça-se justamente sobre a distinção
latente do método de divisão, onde ele apresenta o não-ser do simulacro. Mas, para
Deleuze, esse diálogo consiste no momento em que o próprio Platão teria sido o
primeiro a perceber a potência do simulacro, quando o concebe não como uma falsa
cópia, mas como aquilo que põe a própria noção de cópia e de modelo em questão
(DELEUZE, 2007, p. 260). Se, então, o platonismo está marcado pela tentativa de fazer
valer o Mesmo, a Ideia, o modelo e a semelhança, a "reversão do platonismo" deve
justamente se agarrar ao simulacro, afirmar sua potência.
O simulacro nega o pensamento como pensamento do Mesmo, como essencialista,
agarra-se ao devires e a multiplicidade, se reconhece múltiplo. Não há uma
determinação suposta, semelhante a um modelo operando em um simulacro, o que há
são determinações que negam a própria noção de determinação-modelo. ―O simulacro
não é uma cópia degradada ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original
como a cópia, tanto o modelo como a reprodução‖ (DELEUZE, 2007, p. 207 [grifo do
autor]). Há no simulacro, diferentemente da cópia, uma interiorização da dissimilitude,
da diferença, enquanto a interiorização, ou a construção da cópia se dá em função do
modelo, da Ideia. O simulacro se constitui fora do modelo, mas não sobre outro modelo,
e nem para se fazer modelo, mas para negar a própria dualidade entre modelo e cópia.
O platonismo erige tal funcionamento, tenta criar uma repressão ao simulacro, instaura
um processo seletivo, para que a degeneração não possa almejar o papel de bem
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fundada. É deste modo que Deleuze encontra a saída necessária para a ―reversão do
platonismo‖, na afirmação do simulacro. E é deste modo que acreditamos ser possível
visualizar nos Beatles, a operação destes dois momentos. O momento platônico, onde o
pretendente almeja a semelhança, a participação em alto grau da Ideia, e o momento da
reversão, onde as noções de Ideia e de cópia são deixadas de lado em função de uma
potência afirmativa que não possui o modelo como ponto balizador de sua produção.
Beatles: da semelhança com a Ideia à afirmação do simulacro
A banda inglesa pode ser tomada, de início, como participante do jogo platônico, como
parte daqueles que almejam a participação em uma Ideia, a qual podemos compreender
- com toda a problemática que isso possa gerar - como a Ideia de música. Nossa
primeira dificuldade se dá na instauração do mito fundador que deve funcionar como
critério de seleção para os pretendentes. Ainda que, a princípio, tal instauração possa
parecer impossível, consideramos que existem outros elementos que podem substituir o
antigo mito, são eles: a mídia e a crítica. Esses componentes parecem servir como novo
mito fundador. Neste caso, não cabe mais ao filósofo instaurar o mito fundamental. São
a mídia e a crítica que constituem seus próprios filósofos, seus próprios mitos e critérios
de seleção, são elas que se tornaram responsáveis pela instauração da ―grande‖ Ideia de
música vigente e do poder de seleção, a elas cabem afirmar: ―eis aqui um bom
pretendente!‖. Os garotos de Liverpool se encontram nesse meio, onde participam da
Ideia de música, que é instaurada pela mídia e pela crítica, e que, no final dos anos 50 e
início dos anos 60, se encontra permeada pela música pop com ênfase nos arranjos
vocais.
É notável como o início da carreira dos Beatles (por mais que apresentem vários
elementos diferenciais) está marcada por essa Ideia vigente. Sua tarefa é realizar uma
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boa cópia dessa Ideia, participar em maior grau possível da Ideia. Mesmo que já haja
criação desde esses primeiros momentos, parece-nos possível afirmar que trata-se de
uma criação representacional, ou seja, que não foge do modelo, que não nega a Ideia, e
nem seu fundamento, mas antes, que se apropria dela. Em algum momento, no entanto,
algo acontece e a "reversão" se dá, justamente quando há um suposto amadurecimento
da banda: ela se afasta da Ideia de música como referencial e, gradativamente, abandona
a produção representacional de música, tornando-se um simulacro. Esse momento
carrega consigo certo paradoxo, pois, platonicamente, há amadurecimento ou
―evolução‖ quando algo se aproxima mais da Ideia, porém, em termos deleuzianos, o
amadurecimento parece compreender justamente o abandono da noção de Ideia, como
se uma grande criação não pudesse se encontrar mediatizada por um modelo.
Algumas canções anteriores, já tinham marcado mudanças significativas na carreira dos
Beatles. No entanto, é o álbum Rubber Soul, que traz consigo um esboço da potência
criadora dos Beatles, daquilo que se tornaria seu apego pelo inusitado e pelo novo. As
letras já começam a tomar abrangência e se debruçar por outros temas que não tinham
sido explorados pelos Beatles, mas também sobre outros instrumentos, exemplo disso é
a introdução do sitar, instrumento musical de origem indiana, na música Norwegian
Wood. Passariam a derrubar os limites do rock que até então tinham sido estipulados.
A ―evolução‖ musical dos Beatles rumo à diferença contínua não para. O ano de 1966 é
marcado pelo lançamento do álbum Revolver e ainda por um fato inusitado:
praticamente em seu auge, os Beatles decidem não fazer mais apresentações ao vivo. A
partir daí, se restringiriam a ser uma banda de estúdio. Mas por quê? Nossa hipótese é
que esta era a única maneira da banda fazer aquilo que sentiam necessidade: uma nova
concepção de música, que cada vez mais estaria permeada por elementos diferenciais.
Em The Beatles Anthology, documentário sobre os Beatles, fica evidenciado o quanto a
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sonoridade dos Beatles se perdera em meio ao fenômeno que se tornaram. Os Beatles se
tornaram um produto que nem sempre tinha a música como vetor principal – o que a
própria banda recusou. Recusa manifesta pelo afastamento dos palcos, meio encontrado
para combater a própria imagem, uma vez que o sucesso comercial não deveria
atrapalhar a criação musical. Os Beatles não deixariam tornar-se modelos, já que a
própria noção de modelo fora sucumbida.
O que nos possibilita afirmar que os garotos de Liverpool tornaram-se um verdadeiro
simulacro fantástico? Tal afirmação só é possível na medida em que a própria condição
de saída de um modelo se dá no encerramento de uma série, em sua sabotagem, seu
desmoronamento, ou ainda melhor, a própria noção de série dominante é abandonada
em prol de séries - com ênfase no plural - divergentes, que extrapolam a possibilidade
de se instaurar uma mesma e única série idêntica ou semelhante a um modelo. A própria
diferença exige uma catástrofe, que desmonta a determinação que se pretenda Modelo,
ora podendo se esconder em transmutações sutis, ora podendo se apresentar como
grandiosa e selvagem. A construção musical dos Beatles passa a se dar fora do Modelo,
negando, assim, qualquer fundamento, abrindo mão de seu mito fundador (crítica e
mídia) para expressar a diferença.
Em 1967 vemos surgir aquilo que seria concebido como o primeiro "álbum conceitual",
Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, uma nova afirmação, um álbum no qual seus
criadores se transvestem de seu próprio objeto de criação, de suas figuras estéticas: a
―Banda do Clube de Corações Solitários do Sargento Pimenta‖. Álbum que ameaça
possuir um fio condutor, uma verdadeira revolução. No entanto, o que poderia exercer
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mais oposição a isso do que o álbum The Beatles119, lançado apenas um ano depois? Um
álbum que se defronta completamente com uma noção essencialista de álbum, que
afirma variação contínua e que, mais uma vez, mostra que a potencialidade dos Beatles
em nada pode ser confundida com uma estrutura sólida e homogênea de composição.
A criação passa pelo simulacro
Confusão de séries divergentes, afirmação do heterogêneo, é só assim que se erige um
simulacro. Muitas histórias são contadas, mas nenhuma delas pode se tornar um modelo
e a outra a cópia, ideia presente em uma letra da própria banda: "assim como eu sou ele,
como você é ele, assim como você sou eu e nós estamos todos juntos"120. O próprio
simulacro comporta todas essas histórias, d121eterminações e toda essa multiplicidade.
Se o início da carreira dos Beatles apresenta uma grande marca da representação, uma
pretensão de tornar-se um bom pretendente, o bem fundamentado, digno de serem
julgados como boa cópia, sua evolução mostra que só a subversão desse Modelo, dessa
dialética seletiva é que torna possível a expressão de toda capacidade artística criadora.
A potência dos Beatles consiste justamente naquilo que Deleuze denominou de
―reversão do platonismo‖: a negação do Modelo, da Ideia, da Essência, do
estraçalhamento de qualquer fundamento em prol de uma manifestação artística
singular: a diferença.
119
120
Mais conhecido como o Álbum Branco.
Trecho da canção I Am The Walrus do álbum Magical Mystery Tour de 1967.
121
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REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição; tradução de Luiz Orlandi e Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido; tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São
Paulo: Perspectiva, 2007
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2010
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DAVID HUME E A PROBABILIDADE - Lazandir João da Silva
Graduando UNIOESTE bolsista PIBID/CAPS
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Palavras-chave: Probabilidade, Acaso, Causa
Hume começa sua investigação sobre probabilidade, explicando como funciona a
probabilidade de chance, ele prefere começar assim, pois, acha que fica mais fácil a
compreensão da probabilidade de causa uma vez já vista a probabilidade de chance.
Hume parece estar preocupado, com como nós excedemos a probabilidade de
argumentos causais, e os tomamos como indubitáveis, Hume diz fazermos isso
seguidamente. Então para começar a investigação Hume diz ser necessária uma
distinção entre conhecimento, prova e probabilidade, a fim de preservar o sentido, e
evitar interpretações duvidosas. Hume diz que conhecimento é a certeza resultante da
comparação de ideias, quanto às provas diz serem os argumentos derivados da relação
de causa e efeito que estão inteiramente livres de dúvidas e incertezas, e por fim
probabilidade, que é a evidência que ainda se faz acompanhar de incerteza. Feita esta
pontuação entre estes três termos, Hume parte para o aprofundamento sobre a
probabilidade, e começa dizendo que ela se divide em duas: causa e acaso.
Hume diz sobre causa que (2009, p.158) ―A ideia de causa e efeito é derivada da
experiência, que, ao nos apresentar certos objetos em conjunção constante, habitua-nos
a tal ponto a considerá-los nessa relação que só com uma sensível violência somos
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capazes de concebê-los em uma relação diferente‖. E sobre o acaso, que se trata
somente de uma negação de causa, e esta em sua essência deixa a imaginação
indiferente para considerar a existência ou não daquele objeto que é considerado
contingente, então qualquer coisa que acharmos possível no acaso terá uma chance igual
de acontecer perante outras, portanto todas as chances são iguais, por exemplo: se
jogamos um dado ao acaso, qualquer resultado possível da sequência do lançamento,
que nossa imaginação for capaz de nos dar, tem a mesma chance de acontecer do que os
demais resultados, isso porque não tem diferença de vividez nestas imagens
apresentadas a mente pela imaginação, pois todas têm somente a primeira ―pincelada‖. 1
Então, não temos nenhum ponto para afirmar um objeto com mais certeza do que outro
objeto, pois ao lançar o dado no acaso, não temos qualquer ideia de causa, nossa
imaginação é livre e pode nos dar mil e um resultados possíveis ao lançamento, um
mais bizarro do que o outro, cada um destes resultados tem a mesma chance de
acontecer. Portanto para começarmos a formar uma combinação de chances sobre algo,
necessitamos de uma mistura entre causa e efeito e um ponto de combinação entre as
chances. Hume deixa claro que uma ligação entre causa e efeito está fundada em esperar
do futuro os mesmos eventos do passado, então fundar um argumento em cima de causa
e efeito e simplesmente dar valor de certeza é no mínimo duvidoso, já do acaso é
impossível esperar qualquer coisa mais do que outra. Para Hume cada evento de causa e
efeito que observamos no passado, se torna uma chance em nossa mente, assim tem a
mesma possibilidade de acontecer que todas as outras chances. Até aí estamos ainda
num plano muito semelhante ao acaso, temos somente a diferença que as chances
1
A seguir no texto será melhor explicado o sentido desta ―pincelada‖.
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vieram da experiência e não da imaginação,2 portanto no caso de lançarmos um dado
novamente, agora considerando que vimos vários casos semelhantes no passado, cada
caso se tornou uma chance igual, nossa mente percebe que estas chances iguais são
semelhantes em alguns casos, então ela une estas chances iguais em um conjunto de
chances iguais, nossa mente faz isso de modo que a imagem que temos presente na
memória não aumente nem de força, nem de tamanho, nem de número, etc... a única
coisa que acontece com esta imagem é que ela ganha uma maior vividez, segundo
Hume cada nova chance igual que entra para esse conjunto de chances iguais da uma
nova pincelada de vividez a esse conjunto.
Terminado a explicação sobre esta parte Hume começa a analisar que efeitos um
conjunto maior de chances iguais tem sobre nossa mente, e chega a conclusão de que
um conjunto de chances menor quando contrário ao conjunto de chances maior, é
descontado do conjunto maior, então a diferença que sobra é a vividez de nossa ideia,
Hume diz que crença, é o mesmo que a ideia neste caso.
Partindo agora para a probabilidade de causas, Hume diz que, (Idem, p.163) ―há vários
tipos de probabilidade de causa, mas todas derivam da mesma origem: a associação de
ideias a uma impressão presente.‖ Nesta espécie nosso hábito de passar de um objeto
para outro vai ganhando força gradativamente, adquirindo mais força a cada caso, até
atingir sua perfeição. Passamos agora para a segunda espécie de probabilidade.
Hume diz que a segunda espécie de probabilidade é causada por não encontrarmos os
mesmos objetos sempre juntos, e que é a segunda espécie de probabilidade o motivo
que faz com que um hábito necessite de vários casos com os mesmo resultados, para
2
Segundo Hume as chances são iguais, mas tem diferença entre as chances tiradas da experiência e as
tiradas imaginação, pois as vindas da experiências tem uma maior vividez em nossa mente.
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que este hábito ganhe força, pois na segunda espácie de probabilidade, existe uma
contrariedade em nossas experiências e observações, e então necessitamos de mais de
uma experiência. Hume esclarece que não se trata de, em alguns casos, a causa
simplesmente falhar e não acontecer, mas sim que podem existir causas ocultas, e que
estas causas ocultas são contrárias às causas já conhecidas, portanto para os filósofos a
ligação entre causa e efeito, é necessária, e em casos que essa ligação é duvidosa, devese investigar a existência de causas contrárias ao efeito esperado.
Uma contrariedade de acontecimentos no passado pode nos dar uma espécie de crença
hesitante quanto ao futuro, e isso de dois modos distintos. Primeiramente, produzindo
um hábito e uma transição imperfeitos da impressão presente a ideia relacionada. (Idem
p.165). Neste caso, ao observarmos um objeto que anteriormente já havíamos avistado
acompanhado de outros, não passamos diretamente deste para outro, nosso impulso
exita nesta passagem. Hume diz então que com um hábito e uma transição imperfeitos
da impressão presente à ideia relacionada, podemos concluir que este tipo de raciocínio
não está fundado diretamente no hábito, mas não se pode dizer que ele não está ligado
ao hábito, porque mesmo hesitando, este tipo de raciocínio espera que o futuro seja
semelhante ao passado, e tal crença está fundada inteiramente no hábito e que o
momento que a nossa reflexão entra em jogo, é aqui para analisar as experiências
passadas, sobre este objeto e os objetos que o seguiram anteriormente. Portanto, para
Hume, nossa experiência passada regula nosso juízo sobre a possibilidade desses
efeitos, regula igualmente o juízo sobre sua probabilidade. Faz-se necessário evidenciar
uma diferenciação entre possibilidade e probabilidade a fim de evitar confusões e
esclarecer melhor este tema, possibilidade é o que é possível, o conjunto menor de
chances iguais, e probabilidade é o que é provável, o conjunto maior de chances iguais.
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Cabe agora analisar as razões que nos levam a esperar do futuro os mesmos
acontecimentos que se deram no passado, e de que maneira extraímos um juízo único
quando temos experiências contrárias. Hume diz que nosso hábito de esperar do futuro
os mesmos objetos que no passado, está fundado, em última análise, em nosso hábito,
tornando assim o processo totalmente irracional, pois esperar do futuro os mesmos
acontecimentos que no passado se funda em nosso hábito, o que é um círculo vicioso.
Hume também diz que este hábito é completo e perfeito, portanto o primeiro impulso da
imaginação nessa espécie de raciocínio também é completo e perfeito, o problema está
quando examinando outra experiência, percebemos que elas são contrárias. Temos,
então, a imagem de dois objetos que são contrários, presentes em nossa mente, neste
caso aquele primeiro impulso que é completo e perfeito se fragmenta em partes iguais,
cada uma correspondente a um objeto presente na mente. Agora, se quisermos
considerar as proporções dos acontecimentos contrários, as imagens apresentadas por
nossa experiência passada devem permanecer na sua forma original, e preservar suas
proporções originais, mas se nossa intenção é de extrair um juízo único sobre objetos
contrários, temos que alterar a forma original das imagens apresentadas por nossa
experiência passada. Isso acontece porque quando procuramos um único juízo sobre
algum objeto duvidoso, nossa mente reúne todas as imagens de experiências passadas
que são semelhantes entre si em um grupo, as imagens contrárias semelhantes entre si
em outro, estes grupos são idênticos as imagens que os constituem, mesmo tamanho,
forma, volume, número, etc... a única diferença é que quanto mais imagens este grupo
tem, mais vívido se torna, portanto ele é mais vívido do que as imagens que o
constituem, Hume diz que cada nova imagem acrescentada ao grupo é como se fosse
uma nova pincelada que aumenta somente a vividez, sem alterar as demais
configurações da imagem, inclusive a cor, se trata aqui do mesmo caso que na
probabilidade de chances.
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Hume propõe três considerações para esclarecer melhor a segunda espécie de
probabilidade: primeira, não há probabilidade tão grande que não admita possibilidade
contrária, ou seja, não há certeza; segunda, as partes componentes tanto da
probabilidade quanto da possibilidade, são de mesma natureza e força, elas só diferem
em número; terceira, a crença que depositamos em um acontecimento deve ser
considerada um efeito composto, cuja as partes surgem, cada uma delas, de um número
proporcional de chances ou experiências.
Sobre estas afirmações Hume diz:
O único meio, portanto, pelo qual o numero maior de partes componentes
similares em um dos lados pode exercer sua influencia e prevalecer sobre o
numero menor no outro lado é produzindo uma imagem mais forte e vivida do
seu objeto. (…) A transferência de uma experiência do passado para o futuro é
suficiente para nos dar uma visão do objeto, quer esta experiencia seja única ou
combinada com outras do mesmo tipo, quer seja homogênea ou oposta a outra
de um tipo contrario (Idem, p.170-171).
Então, em casos que temos ambas as qualidades de combinação e oposição a
transferência não perde seu poder de nos dar uma imagem do objeto. Hume diz que
neste caso a concordância pode se comportar de duas maneiras: primeira, a imagem dos
vários exemplos passados que temos se mantem isoladas umas das outras, aumentando
assim só em numero, o que Hume diz não acontecer; segunda, as imagens se fundem
criando uma única imagem com mais força, esse segundo Hume, parece ser como a
concordância se comporta em nossa mente. E quanto a oposição Hume diz:
É evidente que, uma vez que as imagens contrária são incompatíveis entre si
e é impossível que o objeto exista ao mesmo tempo conforme ambas, sua
influencia se torna mutuamente destrutiva, e a determinação que a mente
sofre em direção à imagem superior possui apenas a força que resta após a
subtração da inferior. (Idem, p.171)
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Hume diz conhecer a dificuldade deste tema, e diz que, o que deve ficar claro para nós,
são estes dois princípios:
Não há nada em nenhum objeto, considerado em si mesmo, capaz de
nos fornecer uma razão para extrair uma conclusão que o ultrapasse
(…) Mesmo após a observação da conjunção frequente ou constante
entre objetos, não temos nenhuma razão para fazer uma inferência a
respeito de outro objeto alem daqueles de que tivemos experiencia.
(Idem, p.172)
Para Hume estes princípios são bastante convincentes mesmo nos casos de
nossos raciocínios de causa mais exatos, e adquirem ainda mais força quando se trata de
raciocínios conjecturais ou prováveis. Sobre a origem de nossa crença, Hume fala
brevemente, porém de forma bem clara, e explicativa:
Nossa experiencia passada não apresenta nenhum objeto
determinado. E como nossa crença, mesmo fraca, fixa-se em um
objeto determinado, é evidente que ela não surge unicamente da
transferência do passado para o futuro, mas de alguma operação
da fantasia com ela conjugada. (Idem, p.173)
Para concluir este tema Hume faz duas reflexões: primeira, não é possível as
imagens presentes na mente sobre um objeto vindo da imaginação se unirem no mesmo
grau que as imagens vindas da experiência se unem, as várias imagens criadas por nossa
imaginação não conseguem se unir em uma única imagem mais vívida e forte; segunda,
como é que quando estamos diante de dois casos, onde em um temos dez mil e uma
experiências e do outro temos dez mil, nos inclinamos a escolher o primeiro mesmo
sendo quase insignificante a superioridade? Em que está pautada esta inclinação? Hume
diz não ser a paixão que age aí, mas, sim o hábito e as regras gerais. Na sequência do
texto, Hume diz que as regras gerais, são nossos preconceitos, que por sua vez estão
fundados em nosso hábito. Por fim, Hume apresenta uma terceira espécie de
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probabilidade de causa, que se assemelha muito as duas especies anteriores, esta terceira
espécie é probabilidade de causa por semelhança. Sobre ela Hume diz:
Todos os tipos de raciocínios que partem de causas ou efeitos estão fundados em duas
circunstancias particulares: a conjunção constante entre dois objetos em toda a
experiencia passada, e a semelhança entre um deles e um objeto presente. O efeito
dessas duas circunstancia é que o objeto presente revigora e aviva a imaginação; e a
semelhança, juntamente com a união constante, transmite essa força a vividez à ideia
relacionada. (…) Mas como essa semelhança admite vários graus diferentes, o
raciocínio se torna proporcionalmente mais ou menos firme e certo. Uma experiencia
perde parte de sua força quando transferida para casos que não são exatamente
semelhantes; mas, enquanto resta alguma semelhança, é evidente que ela ainda pode
conservar força suficiente para fundar uma probabilidade.(Idem, p.175-176)
Com a apresentação desta última espécie de probabilidade Hume termina sua
investigação sobre probabilidade. O que Hume parece estar interessado em esclarecer é
que a probabilidade se trata de um processo totalmente irracional, pois quando não está
fundada diretamente, está fundada indiretamente no hábito que temos de esperar para o
futuro os mesmo objetos que encontramos no passado, e este hábito não se justifica em
mais nada a não ser no próprio hábito.
REFERÊNCIAS:
HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais; Trad. Debora Danowski.- São Paulo:
UNESP, 2009.
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DEWEY E A ARTE PARA SENSIBILIZAR: A EXPERIÊNCIA DE UMA
APRENDIZAGEM DESFRAGMENTADA - Maria Dinora Baccin Castelli
UPF
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Introdução
A experiência da Arte no processo da aprendizagem consiste em tornar o educando o
centro da educação, objetivando o desenvolvimento de um conjunto de capacidades e
habilidades, tendo no sensibilizar os sentidos, a estratégia para um pensar de ordem
superior, através da Arte. Sob tal perspectiva, Dewey concebe que a Arte ―é uma
questão de sentidos, é algo a ser compreendido; seu conteúdo expressivo está inserido
na matéria sensorial, é algo a ser percebido‖ (2010, p.40). Tal formulação sinaliza que
Dewey compreende a educação como eixo fundamentador de todas as áreas, tomando a
arte como uma das maiores conquistas da humanidade, capaz de despertar para a
sensibilidade.
Dewey capta que, a experiência estética não provém da experiência fragmentada,
dualista, porém pela interação homem-meio, numa cooperativa, em que o ser interage,
buscando equilíbrio e harmonia, tendo assim a arte como experiência de expressão
humana, distinta e vital capaz de fluir inteligências, capacitando o homem para a
reflexão. ―Não há outra base capaz de servir de alicerce à teoria estética senão o
reconhecimento de que a arte é produto da interação contínua e cumulativa de um eu
orgânico com o mundo‖ (2010, p.18). Acrescentando ainda, que a experiência estética
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não se traduz em contemplação passiva de objetos inertes, ―é ativa e dinâmica [...] é
vida, energia‖ (2010, p.22).
Sob a relevância de tais elucidações, o presente trabalho objetiva refletir a cerca da
importância que John Dewey concebe à Arte, conforme expresso em sua obra ―Arte
como Experiência‖, resultado de uma série de conferências realizadas pelo filósofo na
universidade de Harvard em 1931, como também dialogar com outros autores, os quais
referendam Dewey em seus discursos.
Para isso, a formulação do filósofo aponta na direção de que ―a experiência é a Arte em
estado germinal‖ (2010, p.19), da sensibilidade no universo cognitivo, social e afetivo
dos discentes. Tais reflexões presentes em sua obra reporta-nos a compreender e
desvelar o pensamento do autor, suas propostas e concepções educacionais no que tange
a experiência da Arte no processo da aprendizagem.
Partindo da formulação de que o pragmatismo deweyano se concebe por ―uma filosofia
do pensamento e do sentimento‖ (2010, p.11), em que o primeiro norteia a ação e o
segundo identifica as consumações visadas pela ação, ratificam a idéia do filósofo, de
que a experiência é uma ação que se coloca contrária ao dualismo, materializando-se na
junção da prática/teoria no que tange a aprendizagem discente.
Se o sensibilizar, através da Arte, tem o caráter de interferir na qualidade dos nossos
atos, daí decorre que o ―sentido abarca uma vasta gama de conteúdos: o sensorial, o
sensível, o sensato e o sentimental [...] Os sentidos são os órgãos pelos quais a criatura
viva participa diretamente das ocorrências do mundo a seu redor‖ (2010, p.88).
Transpondo-se para o universo educacional, a experiência da Arte tem de evocar e ou
provocar um desejo, despertando a busca por novas experiências. ―A Arte é a prova viva
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e concreta de que o homem é capaz de restabelecer a união entre sentido, necessidade,
impulso e ação que é característica do ser vivo‖. (DEWEY, 2010, p.93)
Sobre isso, vamos tomar a experiência da Arte como forma de potencializar para as
capacidades criativas no contexto escolar. Partindo-se do pressuposto de que a escola,
por ser uma instituição de controle social, produz e reproduz valores, como também
saberes dentro de um currículo complexo, com dimensões explícitas e muitas vezes
ocultas. Para isso, a escola, à medida que flexibiliza e insere propostas que venham
traduzir-se em práticas que promovam a Arte na forma de sensibilizar os sentidos,
presente nas diferentes áreas do conhecimento, desfragmentada e descompartimentada,
conduz para um pensar educação/aprendizagem, agregada à experiência da Arte.
A experiência da arte e a escola
O processo Educacional na escola deve-se dar, pela constante mobilização, e interação
homem-meio, sob o intuito de alcançar um mundo melhor. Tal mobilidade concebe
desafios e interesses que servirão para impulsionar o processo de recriação, transmissão
contínua e cumulativa de ações traduzidas em experiência estética.
Dewey em seus escritos, com base nos princípios darwinianos, tem a convicção de que
―a mente não podia ser uma espectadora desinteressada dos acontecimentos, estando,
antes, ativamente envolvida neles‖ (DEWEY, 2010, p.23). Esse envolvimento, que faz a
mente direcionar nossos atos, não tem de ser imposta e sim, resultado das ―interações
harmoniosas que as energias têm entre si‖ (2010, p.23). Cunha, ratificando o
pensamento Deweyano, considera ser fundamental ―que o conhecimento seja ensinado
sempre em estreita conexão com a experiência do educando [...] o conteúdo da
comunicação só será significativo se tiver potencialidade para instigar o aluno‖
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(CUNHA, 2011, p.8). O autor referenda a comunicação relativa às práticas pedagógicas
na experiência educacional, por conceber o meio pelo qual ―integra os dois pólos
envolvidos na comunicação‖ (2011, p.8). Ainda a cerca do elemento comunicativo,
Dewey em Democracia e Educação, percebe que se caso este não vier ―incorporado à
existência de quem aprende, converte-se em simples palavras, isto é, em puros
estímulos sensoriais, desprovidos de significação‖ (DEWEY, 1959, p.207). Cunha no
texto Da metáfora comunicação à metáfora arte em John Dewey formula a respeito de
que educação ―é comunicação, processo que faz a transformação do indivíduo em ser
social [...] é o instrumento pelo qual a coletividade integra os indivíduos, é o recurso
pelo qual valores e conhecimentos são transmitidos de uns para os outros, fazendo com
que a experiência socialmente acumulada torne-se patrimônio coletivo‖ (2011, p.03).
Dewey ao abordar a comunicação como ferramenta lingüística no tocante de preservar
os bens culturais e transmiti-los por meio da educação, afirma que ―a comunicação é o
traço que definitivamente distingue o homem de outras criaturas: é a condição sem a
qual a cultura não existe‖ (1958, p.149).
A proposta de se pensar educação em consonância com as necessidades do educando, e
sua compreensão do mundo, objetivando alargar os horizontes mentais, Dewey defende
um modelo de ensino que prestigie a inserção de mais ciência nas escolas, porém não
―técnica científica‖ e sim o ―temperamento científico‖, e considera que
―é urgente humanizar a ciência e o uso que fazemos da ciência[...] considero
necessário romper a dicotomia do ensino e implantar a escola única para todos, para
unir na mesma pessoa ―o homem prático‖ e ―o homem de teoria e cultura‖, o que só é
possível pela difusão da cultura nos diversos níveis da escolaridade‖ (DEWEY, 1959,
p.149).
Mas, qual relação existe entre ciência e Arte no processo do aprendizado? Se ―educação
é o meio pelo qual se efetiva a comunicação‖ (CUNHA, 2011, p.3), a arte viabiliza a
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percepção e a sensibilidade criativa, sendo esta (arte), a maior conquista da humanidade
no processo de recriação, ambas devem ser unidas, fazendo com que a experiência
criativa, seja um dos recursos para o desenvolvimento da ciência no processo da
aprendizagem. Dewey recorre também à diferença entre arte e ciência, onde esta se
ocupa com problemas e situações, em que constam a observação, o pensamento indaga
e investiga, ―traz em si os germes de uma consumação semelhante ao estético‖ (Dewey,
2010, p.77).
Com base nessas postulações, afirmamos que os seres humanos são seres sociais, ―com
capacidade de transacionar experiências socialmente adquiridas‖ (CUNHA, 2011, p.2),
por conseguinte a escola que é o reflexo societal e, reprodutora da sociedade, tem na
comunicação, ―um conjunto de sinais que expressam valores e conhecimentos, e cumpre
a função de tornar a experiência um patrimônio comum, partilhado e desfrutado por
todos‖ (CUNHA, 2011, p.2). Tais experiências, partilhadas ou individuais, capacitam o
indivíduo a desvelar os saberes, e a Arte ―torna comum o que era isolado e singular‖;
―rompe as barreiras que separam os seres humanos‖ (DEWEY, p.427, 428). Dewey
concebe que à Arte, além de refletir as emoções e ideais, são auxiliares na criação de
uma vida coletiva em comum, afirmando que ―Arte é comunicação‖ (DEWEY, 2010,
p.45).
No aspecto de superar os possíveis obstáculos que nos impedem de conhecer e
compreender o outro, para com o processo da comunhão, no espaço escolar ―a Arte tem
um papel importante a desempenhar. Proporciona os únicos meios de comunicação
completa e desobstruída entre os homens, os únicos passíveis de correr em um mundo
cheio de abismos e muralhas que restringem a comunicação da experiência‖ (DEWEY,
213).
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Se temos à experiência da Arte na escola, como papel fundamental no sentido de
agregar, produzir e conduzir os processos de conhecimento, Dewey propõe uma teoria
inovadora :―para mim, porém, o problema das teorias existentes é que elas partem de
uma compartimentalização pronta ou de uma concepção da arte que a ‗espiritualiza‘,
retirando-a da ligação com os objetos da experiência concreta‖ (DEWEY, 2010, p.71).
A grande questão é que a Arte é algo presente na vida, liga-se às experiências
cotidianas, sendo assim, fáz-se necessário criar uma nova teoria da Arte e fazer da Arte
uma experiência mais inovadora.
Arte: a fonte germinal da vida
Ao pensar educação em consonância com a natureza humana, reportamo-nos para este
Ser e para com as suas necessidades vitais. A responsabilidade que envolve o pensar
educação, como fonte libertadora das amarras da ignorância, concebe uma escola que
venha ao encontro das necessidades e dos anseios de uma sociedade.
Se por um lado há quem busque o conhecimento, mesmo trazendo uma bagagem de
saberes, de outro há quem ―transmita valores e conhecimentos com o intuito de integrar
o outro a comunidade [...] o conteúdo da comunicação só será significativo se tiver
potencialidades para instigar o aluno a utilizar os conhecimentos recebidos como
alimento para uma situação problemática que esteja vivendo‖ (CUNHA, 2011, p.8).
Emergindo as indagações a respeito das práticas pedagógicas, e do papel da Arte na
escola, a cerca do pensamento deweyano, este concebe a inexistência da separação do
racional e do perceptivo, considerando que ―a ação e sua consequência devem estar
unidas na percepção‖ (DEWEY, 2010, p.122 ).
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Tal relação confere que a filosofia empírica, tem um padrão de estrutura, assinalando
que a sabedoria vem da experiência, logo as experiências carregam em si seu caráter
―singular e tem começo e fim. Porque
a vida não é uma marcha ou um fluxo
ininterrupto. È feita de histórias cada qual com seu enredo‖ (DEWEY, 2010, p.110).
Reportando-nos para a escola e a relação do docente com o aluno, este último, trás
consigo, do meio social a que pertence suas experiências, sua história de vida, em suma,
uma bagagem de conhecimentos já internalizados. Logo o professor, tem de ter a
sensibilidade e a percepção, de que cada aluno trás consigo uma singularidade de
experiências, e estas, devem ser trazidas para o contexto pedagógico, no intuito de
agregar aos demais conhecimentos. Esta postura compreende a continuidade e a
desfragmentação do conhecimento, tendo a Arte como lócus sensibilizador para a
aprendizagem. Na visão de Cunha,
―a diferença entre a proposta deweyana e os sistemas pedagógicos tradicionais não
está naquilo que se quer ensinar. A diferença está no método de comunicar, pois para
Dewey é necessário abandonar o ensino por meio de fórmulas e leis, tal qual
desenvolvido na linguagem dos cientistas, substituindo-o pelo método da experiência
com as coisas que são familiares aos estudantes, acessíveis ao seu campo cognitivo
atual‖ ( 2011, p.9).
Dewey defende que não só a substituição do método lógico pelo psicológico irá
expressar ―a intenção de eleger os saberes já dominados pelo educando‖ (CUNHA,
2011, p.9), acrescenta que, ―ambos os procedimentos são ineficazes para a efetivação do
projeto político deweyano, que consiste na busca constante do ambiente democrático, a
mobilização de forças para transformar a realidade que ora se apresenta‖ (p.9)
Percebemos assim, que o docente tem uma batalha a enfrentar que é: conseguir
promover o afeto, a simpatia, à valoração das relações, das experiências, das
potencialidades intelectuais, objetivando formar ―um verdadeiro grupo social, que
tenham objetivos verdadeiramente comuns‖ (CUNHA, 2011, p.10).
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Cunha em suas reflexões, no texto: Da metáfora comunicação à metáfora arte em John
Dewey, observa que ―a metáfora comunicação, utilizada por Dewey para atribuir
significado a sua proposta educacional, transita por temas como, cultura, democracia e
ciência. Curiosamente a reflexão deweyana conduz a uma nova metáfora: a arte‖
(CUNHA, 2011. p.10). Nessa observação o autor transita sob o pensamento deweyana
ao afirmar que a ciência ―é a expressão perfeita dos conhecimentos admitidos como
certos, em dado momento, pela comunidade científica, é a meta para a qual a escola
deve conduzir os aprendizes[...] à ciência como método de pensar‖ (2011. p.10-11), e
que assim, aquele que comunica as experiências científicas ―deve possuir certos
atributos do artista‖ (p.11).
A visão de Dewey a cerca da ciência, para que tenha sucesso, precisa adotar postura
ética e o ―respeito pela multiplicidade de opiniões e pelas evidências oriundas de
investigações empíricas da natureza [...] capazes de refletir segundo regras democráticas
[...] a busca permanente do conhecimento no intuito de superar o sensocomum‖(CUNHA, 2011. p.11). Ao elucidar a importância da ciência e da comunicação
no processo educacional, em que a primeira concebe na capacidade de ―manejar as
emoções envolvidas na transmissão de conhecimentos e valores‖, em que a segunda
―comunicar experiências exige imaginação para entender a experiência alheia, com o
objetivo de transformá-la‖ (p.11).
Mas, qual a relação empreendida na metáfora de Dewey a cerca da ciência, da
comunicação e sua relações com a Arte segundo as colocações acima? ―É nesse ponto
que a metáfora arte se faz necessária, pois só ela expressa o conteúdo humano que
Dewey deseja conferir ao processo educativo. Arte é a metáfora que qualifica atividades
humanas vitalmente compartilhadas que podem tornar-se vitalmente educativas‖ (p.11).
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Percebe-se assim, que tais elementos dialogam e são necessários no engenho que
envolve as disposições educacionais e, confirma que a experiência da Arte é a única
capaz de conjugar vida e educação. Para tanto, a arte numa dimensão que eterniza os
seres que a produzem, no próximo tópico, adentrarei acerca da arte como forma de
experiência que alcança dimensão estética.
A arte para nos “eternizar”
Para compreender a influência da arte na existência humana, é preciso recorrer às
experiências da criatura viva, em que esta sofre e recebe influências do meio, havendo,
por conseguinte, uma continuidade entre os atos, os eventos das produções artísticas a
partir das ações comuns e necessárias a existência da vida, à adaptação ao meio, e à
satisfação de necessidades. Dewey chamou de experiência todas as influências que a
criatura (viva) recebe e sofre do meio. Com isso a educação estética busca aprimorar e
refinar os sentidos e os significados da arte, para melhor compreender e fundamentar a
função dessa experiência tanto na formação de nossos discentes, quanto dos docentes,
em que ―A experiência completa inclui o fazer, o ver, o expressar‖ (ARAÚJO, 2011,
p.112), tendo na vida a fonte da experiência estética.
Para tanto, o significado da arte reside na expressão de uma experiência, em que
segundo Dewey, uma obra de arte ―constitui uma experiência‖ (2010, p.184). Araújo
em sua resenha a cerca do livro Arte como Experiência, de Dewey, analisa que
―reconhecer e ligar objetos faz parte essencial dos processos vitais que a arte renova e
transforma em novas experiências de vida [...] a Arte, liga-se as experiências cotidianas‖
(ARAÚJO, 2011, p.111). No tocante, Dewey postula que: ―No fim das contas, as obras
de arte são os únicos meios de comunicação completa e desobstruída entre os homens,
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os únicos passíveis de ocorrer em um mundo cheio de abismos e muralhas que
restringem a comunhão da experiência‖ (DEWEY, 2010, p.213).
Assim sendo, para que realmente se efetive a genuína educação, a arte integra os
propósitos e valores da vida, nasce dos processos de interação entre o organismo e o
meio ―A arte é a mais universal e mais livre das formas de comunicação [...] é a
extensão da função dos ritos e cerimônia unificadores dos homens [...] ela também
conscientiza os homens de sua união uns com os outros na origem e no destino‖
(DEWEY, 2010, p.?).
Barbosa defende a Arte como disciplina, e também, vem em defesa dos educadores da
respectiva disciplina como profissionais engajados no contexto político-social e enfatiza
que o lugar da Arte na Educação: ―não é apenas básico, mas fundamental na educação
de um país que se desenvolve. Arte não é enfeite. Arte é cognição, é profissão, (...) e é
conteúdo. Como conteúdo, arte representa o melhor trabalho do ser humano. Arte é
qualidade (...).‖ (BARBOSA, 2007, p.4)
Para o homem tempo e espaço fazem parte de necessidades vitais, as quais transformam
os estímulos orgânicos em meios para expressar e comunicar. Araújo postula que ―A
arte usa as energias e materiais da natureza, amplia a vida, une significado com impulso
e necessidades, produção de artefatos, sendo, desde os povos antigos um norteador da
humanidade‖ (2010, p.110). Se os povos antigos demarcaram sua existência através da
Arte, entende-se que seu produto artístico eterniza os artistas em sua trajetória de vida.
A apreciação significativa da arte e do universo a ela relacionado contempla a produção
histórico-social em suas múltiplas diversidades das culturas humanas, com ênfase na
formação do cidadão. Tal reflexão reporta-nos à construção de conhecimento através da
arte como produto da história, nas diferentes áreas do conhecimento humano, tendo nos
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conteúdos da área de artes, organizados de maneira que possam atender a aprendizagem
cada vez mais complexas no domínio dos conhecimentos, seja através do processo
criador ou pelas manifestações presentes nas culturas ou na natureza. ―O estudo, a
análise e a apreciação da arte podem contribuir tanto para o processo de criação dos
alunos, como também para sua experiência estética e conhecimento que ela desempenha
nas culturas humanas‖ (BRASIL, 1998, p. 15). Acrescenta ainda que os conteúdos
devem estar articulados dentro do processo de ensino e aprendizagem nas diferentes
ações norteadoras que são: ―produzir, apreciar e contextualizar‖( IDEM).
Araújo, afirma que ―nada limita a arte, exceto o material e a intenção do artista. Entre
todas elas há uma substância comum, o fato de seu produto ser matéria na qual foram
organizadas energias distribuídas no espaço e no tempo‖ (ARAÚJO, 2010, p.112),
acrescenta ainda que ―O eu ativo impõe ritmo tanto nas ates relacionadas ao espaço,
como as relacionadas ao tempo, pois o ritmo não é mecânico, e sim, dinâmico,
organizador de forças e energias‖ (IDEM).
Conclusão
O presente texto teve como objetivo mostrar que a Arte prefigura-se não só como
elemento de contribuição e sim, como elemento condutor, adentrando-se para além das
diferentes áreas do conhecimento humano, tendo a experiência da Arte ultrapassando os
limites dos meros conteúdos, podendo resultar em experiência estética no processo
escolar. Dewey enfatiza e enaltece a Arte,
como forma de expressão, é uma
―manifestação, um registro e uma celebração da vida de uma civilização, um meio para
promover seu desenvolvimento e também o juízo supremo sobre a qualidade dessa
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civilização‖ (2010, p.551). Acrescenta que é pela Arte que rompemos as barreiras
estranhas à nossa experiência, tem função social, nos permite a comunicação entre
culturas, capaz de despertar desejos e emoções, calcada no conceito chave da filosofia
pragmática que é o de experiências, pois sem ela não há vida, não há Arte.
Dewey nos mostra assim, que a arte integra os propósitos e valores da vida, nasce dos
processos de interação entre o organismo e o meio, e que a experiência ativa e dinâmica
é à base da Arte, e esta, envolve elementos intelectuais, emocionais e os das
sensibilidades
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Inês Lacerda. DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera
Ribeiro, Martins Fontes, 2010. –(Coleção Todas as Artes). 646 pág. Site:
http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano2_04/resenha_Dewey.p
df. Acesso em: 01/09/2011.
BARBOSA, A. M. A imagem no ensino da arte. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CUNHA, Marcos Vinícius da. Da metáfora comunicação à Matáfora Arte em John
Dewey.
GT.
Filosofia
da
Educação/n.17.
www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos/marcusviniciusdacunha.rtf.
S.D.
Acesso
Site:
em:
26/08/2011. www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos/marcusviniciusdacunha.rtf
DEWEY, John. Democracia e Educação: introdução à filosofia da educação. 3ª ed. São
Paulo: Nacional, 1959.
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______. Arte como Experiência. São Paulo: Martins Martins Fontes, 1ª ed. 2010.
______. Philosophy of educacion: problems of men. Ames:Littlefield, Adams&Co. ,
1958.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
arte/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998. 116 p1.
Parâmetros curriculares nacionais. 2. Arte: Ensino de quinta a oitava séries. I. Título.
CDU: 371.214
http://pt.scribd.com/doc/61444352/10/CARACTERIZACAO-GERAL-E-EIXOS-DEAPRENDIZAGEM
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DEWEY E DENNETT – OS FUNDAMENTOS DO NATURALISMO
EVOLUTIVO E A QUESTÃO DO SIGNIFICADO - José Claudio Morelli Matos124
Mariana Cruz Meirelles125
Introdução
Este trabalho é uma tentativa de analisar o modo como o pensamento de John Dewey é
interpretado e recebido na tradição filosófica mais atual de caráter naturalista. No
sentido aqui empregado, ―naturalismo‖ pode ser entendido como a visão segundo a qual
o mundo é composto por entidades e regularidades naturais, tais como as estudadas e
explicadas pelo método das ciências – o método experimental. Esta filosofia em geral se
posiciona criticamente em relação a certas distinções comuns na filosofia da tradição,
como a distinção entre sujeito e objeto, entre o pensamento abstrato e a ação e, claro,
entre natureza e sociedade (The Cambridge Dictionary of Philosophy, 1995, p. 177).
O naturalismo desenvolveu-se no século XX a partir do impacto causado por diversas
realizações no campo da filosofia e da ciência e, de acordo com um de seus primeiros
proponentes - John Dewey - principalmente devido ao efeito da revolução darwiniana,
na passagem do século XIX para o XX. Segundo ele, uma filosofia tradicionalmente
124
Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor de filosofia da Educação da
Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordenador do projeto de pesquisa ―Dewey e Dennet: as
noções de comunicação e de mente no contexto da filosofia da educação‖. E-mail:
[email protected]
125
Acadêmica do curso de Pedagogia da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista de iniciação
científica do projeto de pesquisa ―Dewey e Dennet: as noções de comunicação e de mente no contexto da
filosofia da educação‖. E-mail: [email protected]
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comprometida com categorias fixas e com explicações em termos de finalidade e
desígnio dá lugar, a partir da aceitação e incorporação da visão naturalista, a uma
filosofia da mudança e da continuidade. Na corrente naturalista a partir de Dewey
vinculam-se diversos autores significativos do pensamento contemporâneo tais como
Willard Quine, Donald Davidson e Daniel Dennett.
A questão da ordem natural na leitura dennettiana de Dewey
Para atingir o seu objetivo, a argumentação se volta ao livro de Daniel Dennett A
Perigosa Idéia de Darwin (1995). Nesta obra, seu autor faz duas referências diretas a
John Dewey, uma no capítulo três, ―Ácido universal‖ e outra no capítulo catorze ―A
evolução dos significados‖. A sua discussão se refere a dois temas de grande
importância no pensamento de ambos os filósofos: o tema da ordem e complexidade
observada no mundo natural, objeto do capítulo três, e o tema do significado, objeto do
capítulo catorze. A grande questão suscitada por estas passagens é a de como Dennett,
enquanto representante de uma corrente de pensamento – o naturalismo – supostamente
iniciada por John Dewey no início do século XX, se apropria das noções deste último
em seu próprio projeto. Mas, além desta, é possível propor a questão sobre de que modo
a discussão feita no capítulo três de ―A Perigosa Idéia de Darwin‖, sobre a ordem
natural, é relacionada com a outra discussão mais específica, acerca da teoria do
significado, feita mais adiante. O que se espera ao fim deste trabalho, é o
aprofundamento da compreensão acerca da herança deweyana na filosofia naturalista
mais recente, e com isso, contribuir para uma avaliação mais profunda de seu alcance e
limitações.
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Dennett (1998) refere-se ao trabalho de Dewey em pelo menos duas passagens: A
primeira discute o modo como Darwin inverte a ordem causal atribuída ao mundo
natural, pois seu argumento supõe que a mente, o propósito intencional, são resultados
do processo natural, seus efeitos e não suas causas. ―John Dewey descreveu muito bem
a inversão alguns anos mais tarde, em seu livro The influence of Darwin on Philosophy‖
(Dennett, 1998, p. 69). A outra menciona a tentativa de alguns pensadores, como Asa
Gray, de conciliar o mecanismo de seleção natural, com um projeto ou desígnio
anterior, tentando assim, uma negociação, um termo médio entre a teleologia e o
princípio da seleção natural. Uma associação, que em virtude das alternativas em jogo, é
muito precária e difícil de sustentar, ―como John Dewey corretamente observou mais
tarde, utilizando outra metáfora comercial‖ (Dennett, 1998, p. 71).
Sobre as concepções de mente, comunicação e significado
Dewey e Dennett manifestam, ambos, uma concepção emergentista da mente e da
comunicação. Observa-se, em ambos os casos, o recurso aos resultados e métodos das
ciências, associado a um tipo de argumentação que recusa distinções definitivas, para
aderir a um princípio de continuidade. Por isso, um estudo filosófico que toma ambos
como sua fonte principal, que os considera como participantes de uma mesma corrente
intelectual é perfeitamente viável e, ao que tudo indica, constitui uma problemática
legítima e não desprovida de alguma relevância para o pensamento filosófico que
aborda a educação.
A fim de problematizar e dimensionar estes temas de modo a que possa ser estabelecida
uma interlocução relevante e significativa nos contextos mais atuais de discussão é que
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se espera levar a cabo a aproximação entre as idéias de Dewey e as do pensador
contemporâneo Daniel Dennett.
Ambos autores se inscrevem na tradição da filosofia americana, ambos manifestam
expressamente a adesão ao naturalismo evolucionário, assim como ambos possuem uma
concepção emergente da mente, que em grande medida depende de uma concepção
específica do fenômeno da comunicação.
Em seu livro ―Evolution‟s First Philosopher – John Dewey and the continuity of
nature‖ (2007), Jerome Popp enfatiza a relação de proximidade entre Dewey e Dennett
da seguinte maneira: ―Muitos dos escritos de Dewey são dirigidos à revisão das
concepções filosóficas tradicionais. Ele, como Dennett depois dele, foi tocado pela
questão do que as descobertas de Darwin significam para a filosofia‖ (Popp, 2007, p. 4).
Popp chega a empregar o inabitual termo ―ultranaturalismo‖ para se referir a Dewey e
Dennett, por causa do papel central que o saber científico, nomeadamente a teoria da
evolução, ocupa na estrutura do pensamento de um e outro.
Sobre a mente como resultado (e não como causa) da ordem natural
Dennett expõe a inversão de raciocínio feita pela teoria de Darwin, relativa à mudança
de visões pré-darwinianas de mundo para a visão darwiniana. Segundo Dennett,
anteriormente à Darwin acreditava-se na idéia de uma Mente, representada na figura de
Deus, como origem e explicação para toda a complexidade existente abaixo dele em
uma espécie de ―pirâmide cósmica‖ dos seres. Abaixo de Deus (daquele de que tudo
depende), estão a Mente, o Projeto, a Ordem, o Caos e o Nada.
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Quando Darwin sugere uma resposta para a questão de como um Projeto pode resultar
da Ordem – Ordem aqui entendida como regularidade, padrão, leis da natureza; e
Projeto como emprego da Ordem com um fim ou propósito – toda a ―pirâmide cósmica‖
é ameaçada: A Mente e Inteligência Primeira deslocam-se da certeza de Deus para um
Projeto que surge de simples Ordem. Este Projeto se explica na teoria da evolução pelo
mecanismo de seleção natural, do qual o próprio homem e suas capacidades resultam.
A inversão de raciocínio de Darwin muda a forma de pensar e subverte o que se chamou
na tradição de teoria da Mente-primeira. Segundo Dennett, John Dewey faz ótima
descrição dessa idéia anos mais tarde, em seu livro ―The Influence of Darwin on
Philosophy” (publicado em 1910), dizendo que a mudança de foco foi a de uma
inteligência como causa da ordem natural e humana, para a inteligência como efeito da
ordem natural e social. Dewey é apontado por Dennett como o primeiro filósofo a tratar
a Mente como um efeito e não como Causa Primeira. Dennett diz ainda que essa idéia é
muito revolucionária para alguns, embora seja verdadeira e relevante tanto para os
adeptos da teoria da evolução como para seus detratores, e afirma ainda que Darwin
propõe que abandonemos a concepção de que tudo vem de cima, como um dom de
Deus, para compreendermos e procurarmos nas regularidades naturais a origem de
nossas atribuições posteriores de valor e significado.
No capítulo catorze de sua obra, intitulado ―A evolução dos significados‖ Dennett volta
a se referir diretamente a Dewey. Ele afirma que Dewey esclarece que o darwinismo
deve ser compreendido como fundamento para qualquer teoria naturalista de
significado, a partir do instante em que se entende que, para produzir o mundo de
valores e significados em que vivemos, a matéria em movimento e seu
redirecionamento dão passos cumulativos para se chegar a tal fim. Dennett diz que a
realização que ainda precisa ser obtida, é a de uma descrição evolutiva plausível do
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significado. Por isso, seu pensamento prossegue, recentemente, na busca por uma
explicação fundamentada, de como as coisas chegam a ter significado no processo
natural de acumulação de complexidade e de projeto, que é a vida.
O que o argumento de Dewey indica, e é para isto que aponta a investigação aqui
proposta, é que as características individuais que tornam possível a comunicação, a
conseqüente transmissão da herança cultural e a possibilidade de crescimento da
experiência por meio da educação, evoluíram no ser humano por meio de um processo
de contínuo desenvolvimento seletivo. Na mesma linha segue Dennett, como acima é
mostrado. A concepção da mente, da capacidade para o conhecimento e a comunicação,
que este autor advoga em seus escritos, parte de uma descrição naturalista do ser
humano e de sua condição no mundo. João de Fernandes Teixeira, em seu livro A Mente
Segundo Dennett (2008), afirma que ―A filosofia da mente de Dennett acompanha a
tradição naturalista do século XX‖ (Teixeira, 2008, p. 14), e refere-se à engenhosa
concepção dennettiana dos sistemas intencionais, que seriam aquelas entidades cujo
comportamento pode ser descrito em termos mentalistas. ―Esta construção teórica, que
ele batiza com o nome de sistema intencional está, ao mesmo tempo, na natureza e nos
olhos do observador‖ (Teixeira, 2008, p. 23). A descrição do que é o ser humano e,
sobretudo, do que são suas capacidades comunicativas e mentais, para Dennett está
profundamente fundamentada numa descrição naturalista.
Mas como compreender, na perspectiva da virada comunicativa, o uso decorrente do
termo ―mente‖? Ora, esta teoria ambiental da comunicação funciona integrada a uma
concepção emergente da mente, segundo a qual, em acordo com Dewey: ―Pelo
intercâmbio social, pela participação em atividades que incorporam as crenças, o
indivíduo aos poucos adquire uma mente por si mesmo. A concepção de mente como
possessão do eu puramente isolada é o oposto da verdade‖ (Dewey, 1959, p. 325). O
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indivíduo gradativamente forma uma mente. O que quer que esta palavra esteja
significando precisamente para o autor, ―mente‖ sem dúvida se refere a uma função, ou
um conjunto de funções, adquiridas pelo indivíduo ao longo de um processo de
desenvolvimento, cujo território é o ambiente social, com suas circunstâncias exigindo
comunicação com os outros indivíduos.
Dennett, conforme discutido acima, atribui a Dewey um passo importante na rejeição da
idéia tradicional de ―filosofia da mente primeira‖. Então, mesmo que a filosofia da
mente tenha que lidar com a objeção de que se constitui de um retorno à filosofia do
sujeito, a concepção evolutiva e comunicativa da mente, tal como vemos em Dewey e
em Dennett não é necessariamente enfraquecida por esta objeção.
Ao observar a mente como resultado da prática comunicativa, Dewey e Dennett estão
fornecendo elementos para uma compreensão dos fenômenos de uma ordem elevada de
complexidade a tal ponto que, na prática da investigação e do discurso, e dos interesses
cotidianos e teóricos, estes fenômenos sejam melhor explicados como fenômenos
mentais. Este procedimento em nenhum sentido relevante ressuscita o fantasma de um
―eu‖ substantivo. Mas se mantém a postura intencional como um atributo da mente,
embora não apenas da mente. A mente é o efeito da ação significativa, e não a sua
causa.
Em que medida a atribuição de significados aos objetos e eventos, desempenhada no
processo de comunicação, pode depender de uma atribuição de estados mentais e, logo,
da adoção de uma postura intencional? Em outras palavras, em que medida a concepção
de comunicação, sobretudo por meio da linguagem, é tornada possível por uma
concepção de mente? Dennett afirma: ―Uma possibilidade a considerar [...] é que, afinal
de contas, talvez a linguagem não seja tão periférica para as mentes‖ (Dennett, 1997, p.
23). O que ele quer dizer é que, possivelmente, aquilo que chamamos de mente é algo
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que só se obtém - pelo menos as mentes mais conhecidas de nós: a nossa própria e a das
pessoas próximas – por intermédio da comunicação estabelecida com o uso de uma
linguagem simbólica. Assim, não há como investigar destacadamente a mente e a
linguagem empregada para a comunicação e interação social.
Como passagens da obra de Dewey indicam, é nisso que ele crê: o que quer que seja a
mente - ou um conjunto de funções, ou uma programação, ou um atributo do cérebro - a
mente no indivíduo é um fenômeno causado, pelo menos em sua maior parte, pela
interação e ação compartilhada com outros indivíduos.
Segundo Dewey, ―o princípio darwiniano da seleção natural incidiu diretamente sobre
esta filosofia. Se todas as adaptações orgâncias dão-se simplesmente pela variação
constante e eliminação daquelas variações que saõ nocivas na luta pela existência que é
ocasionada pela reprodução excessiva, não há necessidade de uma primordial força
causal inteligente para planejá-las e preordená-las‖ (Dewey, 1910, p. 7).
Por tudo isso justifica-se a presente pesquisa que, além de basear-se em ampla
referência textual, em um suporte seguro na obra dos próprios autores, espera participar
de modo original do debate sobre os recentes problemas filosóficos acerca da educação,
instaurados no ambiente contemporâneo pelos avanços na filosofia da mente, na
moderna biologia evolutiva e nas assim chamadas ciências cognitivas.
Considerações finais
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Interessante observar que Dennet, nas duas ocasiões, e em contextos distintos, ao fazer
citações diretas de Dewey, refere-se ao mesmo artigo de 1910. Por quê? Talvez por que
considere que ali estava toda a fundamentação necessária, proveniente das idéias de
Dewey, para as finalidades de seu próprio argumento. No artigo supracitado, Dewey diz
que ―a verdadeira natureza da controvérsia é facilmente ocultada de nós, contudo, pelo
clamor teológico que a acompanhou. As feições vívidas e populares do protesto antidarwiniano tendiam a deixar a impressão de que a questão era entre a ciência de um
lado e a teologia de outro‖ (Dewey, 1910, p. 1).
Quanto a isso, em caráter de observação histórica, cumpre mencionar que, desde que a
filosofia americana se consolidou como uma corrente relativamente original, a partir de
seus pioneiros, ainda no século XIX, sempre foi usual entre seus representantes dar mais
atenção aos temas, e problemas, do que aos autores e obras. Faz parte do espírito
pragmático marcante neste cenário, não se ater a minuciosas referências, ou a filigranas
interpretativas, como o fazem outras tradições filosóficas.
Mas a questão parece relevante, no mínimo, por que Dewey parece possuir uma teoria
do significado mais consolidada, mais constituída, mais acabada, que desenvolve em
outras obras, como por exemplo seu livro de 1925 Experiência e Natureza. Este que
tanto interessou Willard Quine, o fundador da epistemologia naturalizada, e profundo
investigador do tema do significado, de quem Dennett se declara tributário em mais de
uma ocasião.
Dewey é um pensador que parece ter dado uma contribuição relevante ao pensamento
filosófico contemporâneo, para além dos temas da educação, pelos quais ele é
geralmente citado e estudado, principalmente no Brasil. Embora sejam abundantes os
escritos a respeito de sua obra pedagógica, ainda assim é reconhecido por vários
comentadores que seu trabalho na filosofia técnica em outros campos permanece
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subestimado em diversos círculos. Ora, mesmo para a filosofia da educação de caráter
mais especulativo, uma aproximação com os argumentos e as questões que Dewey
aborda em trabalhos como Experiência e Natureza e antes deste, o já mencionado A
Influência do Darwinismo na Filosofia, seria uma importante fonte de novas reflexões.
REFERÊNCIAS
AUDI, Robert (Ed.). The Cambridge Dictionary of Philosophy. Cambridge
University Press. 1995.
DEWEY, John. (1910). The Influence of Darwin on Philosophy and Other Essays. New
York: Prometheus Books. 1997.
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São Paulo: Cia Editora Nacional. 1959.
DENNETT, Daniel. Tipos de Mentes. Rio de Janeiro: Rocco. 1997.
______________. A Perigosa Idéia de Darwin. Rio de Janeiro: Rocco. 1998.
POPP, Jerome. Evolution‘s First Philosopher – John Dewey and the Continuity of
Nature. Albany: State University of New York Press. 2007.
TEIXEIRA, João de Fernandes. A Mente Segundo Dennett. São Paulo: Perspectiva.
2008.
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EDUCAÇÃO E SOCIEDADE DE CONTROLE: A CONSTITUIÇÃO DE UM
INDIVÍDUO FLEXÍVEL - Daniel Salésio Vandresen
IFPR, campus Assis Chateaubriand
[email protected]
Palavras-chave: educação, biopolítica, sociedade de controle, capital humano
Introdução
Neste texto, pretende-se refletir sobre a educação a partir do conceito de biopolítica de
Michel Foucault e Sociedade de Controle de Gilles Deleuze. No modelo de sociedade
vigente, a educação funciona como um ―dispositivo de segurança‖ que permite o
controle do indivíduo, constituindo-o em ―capital humano‖ para atender as necessidades
de uma sociedade que visa formar indivíduos flexíveis. A flexibilidade está presente nas
reformulações curriculares, na formação continuada, na interdisciplinaridade enquanto
apenas concepção epistemológica. A educação, nesta governamentalidade neoliberal,
passa a ser valorizada e investida pelo individuo, pelas empresas e pelo Estado, com
objetivo de melhorar este capital humano.
O currículo surge na modernidade para atender a demanda de uma sociedade capitalista
que necessitava de uma formação disciplinar. Atualmente o currículo passa por
constantes críticas, que visam sua permanente reformulação, o que evidencia sua
característica flexível. Age sobre a educação um poder que faz com que ela seja sempre
revista. Em relação ao currículo, por exemplo, além das diferentes teorias sobre o
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mesmo, surgem diversas maneiras de definir objetivos, propor seleção de conteúdos,
metodologias de ensino e processos de avaliação. É preciso então refletir: que tipo de
razão governamental age sobre a educação que faz com que a toda momento é preciso
repensá-la?
Foucault e a educação
Foucault na obra Nascimento da Biopolítica (curso no Collège de France de 1978-1979)
mostra a passagem de um individuo passivo a ativo acontece quando, na sociedade
neoliberal, este precisa valorizar o capital que seu trabalho comporta. É ativo porque o
capital de que dispõe precisa produzir renda na dinâmica econômica de uma empresa. O
que seria este capital? Foucault afirma: ―[...] é o conjunto de todos os fatores físicos e
psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário [...]‖
(FOUCAULT, 2008, p. 308). Essa competência que é o capital que o trabalhador possui
será chamado de capital humano (FOUCAULT, 2008, p. 311). A economia neoliberal
visa investir e formar no indivíduo um capital humano para o mercado de trabalho.
Assim, afirma:
[...] um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam todos os
problemas e que novos tipos de análise são apresentados pelos neoliberais. Formar
capital humano, formar portanto essas espécies de competência-máquina que vão
produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer
dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais (FOUCAULT,
2008, p. 315).
Ainda, segundo Foucault (2008, p. 315), os investimentos educacionais que produzem o
capital humano na economia neoliberal, vai além da prática do aprendizado escolar e
profissional. Ele passa pelo tempo que os pais dedicam para a formação dos filhos, que
não depende apenas do nível cultural dos pais, mas de suas condições econômicas,
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famílias mais abastadas dedicam mais qualidade no cuidado e vigilância para com seus
filhos. Passa também pelos problemas de higiene pública e proteção a saúde. O cuidado
médico com a saúde do indivíduo constitui um investimento no capital humano,
conservando e utilizando-o pelo maior tempo possível. ―Sugiro que reconheçamos que a
escolarização de massas é importante na lógica neoliberal; e, talvez mais do que isso,
sugiro que ela possa ser até mesmo crucial para o funcionamento do neoliberalismo‖
(VEIGA-NETO, 2000). A formação educacional aparece no governo neoliberal como
elemento estratégico para seu funcionamento.
O que Foucault denuncia é que o capitalismo neoliberal tem necessidade da formação
de um capital humano que seja produzida deste os primeiros anos e que tem prazo de
validade definida. ―[...] essa máquina tem sua duração de vida, sua duração de
utilizabilidade, tem sua obsolescência, tem seu envelhecimento‖ (FOUCAULT, 2008, p.
309). Se na economia clássica o individuo era explorado pela sua força de trabalho, na
governamentalidade neoliberal o individuo vale enquanto seu capital humano é útil para
os interesses do mercado. A constituição de um capital humano funciona na
racionalidade neoliberal como exercício do biopoder.
Agir sobre a população com o objetivo de estimular e garantir que haja capital humano
é a meta da governamentalidade neoliberal. Ao mesmo tempo em que é preciso
incentivar o aperfeiçoamento do capital humano através, por exemplo, de investimentos
educacionais e pesquisas científicas, também é preciso assegurar que este não sofra
danos, nisso os mecanismos de segurança como política de saúde pública, o exercito e a
polícia precisam assegurar que a vida seja preservada.
Na racionalidade neoliberal uma educação que funciona como estratégia de constituição
de indivíduos sujeitados, onde seu pensamento e sentimento são direcionados por
interesses econômicos e seu agir é normalizado pela concorrência. Isso fica evidente,
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por exemplo, na ideia de formação permanente/continuada além de constituir na
sociedade de controle uma ferramenta que instiga o indivíduo a estar sempre investindo
em seu capital humano, funciona como um poderoso elemento de construção de
subjetividade, ou seja, um instrumento político para direcionar e conduzir as condutas
individuais e coletivas. Segundo Iolanda M. Santos (2010, p. 195) nessa lógica
neoliberal percebe-se um deslocamento de uma fase expansionista para uma fase de
qualificação, ou seja, a ênfase não está tanto nos investimentos em infra-estrutura, mas
em capacitação profissional e melhoria na aprendizagem.
Um currículo disciplinar e interdisciplinar
Em entrevista a Revista on-line do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) Veiga-Neto
expõe sobre as propostas de reorganização curricular:
[...] mesmo que se mudem algumas palavras ou a própria organização dos saberes —
ou seja, em vez de falarmos em grade curricular, falemos em programa de
aprendizagem; ou, em vez de adotarmos a estrutura disciplinar convencional (História,
Física, Biologia etc.) adotemos temas transversais —, o fato é que dificilmente está se
escapando da lógica disciplinar do currículo (VEIGA-NETO, 2006).
Neste sentido, embora aconteçam reformulações curriculares, nenhuma das propostas
presentes na atualidade consegue fugir do jogo disciplinador e de fabricação de
subjetividades presente neste modelo de currículo que se iniciou com a modernidade.
Isto porque, as concepções de currículo alicerçadas em um modelo disciplinar, não
fazem apenas uma divisão de saberes, mas impõe uma relação de poder. ―Ao mesmo
tempo em que denota uma área específica de saber, disciplina também denota a rigidez
da resposta ao exercício de um poder, seja de um outro sobre mim, seja de mim sobre
mim mesmo‖ (GALLO, 2001, p. 17).
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Veiga-Neto defende que as alterações e novas propostas que surgem em torno do
currículo evidencia uma dissolução de sua identidade. Evidencia também, que o
currículo está em crise, sendo este o reflexo de uma crise maior, o da modernidade.
Dentre todas as transformações por que passou o currículo desde a sua invenção no
final do século XVI, estamos hoje vivendo as maiores e mais radicais mudanças nos
quatro elementos constitutivos desse artefato escolar: o planejamento dos objetivos, a
seleção de conteúdos, a colocação de tais conteúdos em ação na escola e a avaliação.
Tais elementos encontram-se, de poucas décadas para cá, sob sucessivas saraivadas de
novas análises e de novas propostas (VEIGA-NETO, 2008, p. 141).
O autor aborda que a crise do currículo enquanto estrutura disciplinar é o reflexo da
crise de uma sociedade disciplinar. Uma crise da disciplina-saber, onde não faz mais
sentido pensar as disciplinas isoladas e uma crise da disciplina-corpo, onde a disciplina
deixa de ser o referencial para formar o trabalhador, não fazendo mais sentido fabricar
um corpo útil e dócil. O indivíduo na sociedade atual precisa ser flexível e a todo o
momento buscar atualizar-se. O poder não age mais somente sobre o físico, mas
também sobre a mente. Ideia fundamentada nas reflexões de Michel Foucault e Gilles
Deleuze, os quais mostram a emergência de uma realidade diferente da sociedade
disciplinar moderna, que Deleuze chamará de sociedade de controle.
Segundo Deleuze (1992) na sociedade de controle a educação aparece sob o modelo da
empresa, ou seja, nessa realidade cria-se um ambiente de competição, tendo como
princípio o salário por mérito e a ênfase na formação permanente. O autor aponta que na
sociedade disciplinar era preciso sempre recomeçar, seja na escola, na fábrica, etc., já na
sociedade de controle nunca se termina nada. No texto a seguir, Deleuze descreve o que
marca a escola nesta sociedade de controle: ―No regime das escolas: as formas de
controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola,
o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da
"empresa" em todos os níveis de escolaridade‖ (DELEUZE, 1992).
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Segundo Veiga-Neto (2008, p. 141) o currículo na sociedade de controle tem como
característica a flexibilidade. A exigência de que a todo o momento haja reformulações
no conteúdo, nos objetivos e na avaliação, evidencia um controle pedagógico para
atender um modelo de sociedade vigente, que necessita de indivíduos flexíveis. Por
exemplo, verifica-se na avaliação e, sobretudo pela recuperação, que é preciso a toda
hora estar avaliando, pois a constituição de um indivíduo competente depende de
constante controle.
Em uma primeira impressão, um dos problemas da concepção de interdisciplinaridade
está em sua dimensão prática, no que diz respeito à formação dos professores. Essa é
também a ideia defendida por Silvio Gallo, o qual afirma:
As propostas interdisciplinares, porém, têm apresentado limites muito estreitos, pois
esbarram em problemas básicos como, por exemplo, a formação estanque dos próprios
professores, que precisam vencer barreiras conceituais para compreender a relação de
sua própria especialidade com as demais áreas do saber (GALLO, 2010).
Veiga-Neto (1997, p. 64-65) aponta que há no cenário educacional brasileiro um
movimento pedagógico de organização do currículo que chamou de movimento pela
interdisciplinaridade, tornando-se um modismo para os inúmeros males que assolam o
ensino. E cita a pedagoga Ivani Fazenda para mostrar onde está o equívoco no uso deste
conceito: ―a interdisciplinaridade não é categoria de conhecimento, mas de ação‖
(Fazenda apud VEIGA-NETO, 1997, p. 71). Assim, defende-se que é preciso construir
a interdisciplinaridade como atitude e, não como prescrição ou concepção
epistemológica.
Considerações finais
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O olhar de Foucault é para um sujeito constituído historicamente, que se constitui a si
mesmo em contraste aos poderes constituintes.
Segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 140): ―Falta-nos resistência ao presente. [...] A
europeização não constitui um devir, constitui somente a história do capitalismo que
impede o devir dos povos sujeitados‖. É preciso pensar a educação como resistência,
como exercício da diferença, que promove a transformação do presente, dos territórios
estabelecidos. Foucault também denunciou isso, na obra Nascimento da Biopolítica, que
a sociedade neoliberal visa formar um sujeito com acúmulo de Capital Humano, sendo a
criatividade e flexibilidade as características almejadas. Veja por exemplo, como a
mudança de conceitos visa disfarçar a presença deste ideal na educação: deixa-se de
lado o conceito de formar um indivíduo para o ―mercado de trabalho‖ e se passa a usar a
terminologia ―mundo do trabalho‖. Este conceito esconde o ideal de formar um
indivíduo competente e flexível, pois um indivíduo criativo e inovador, precisa estar
preparado para todas as questões e problemas que envolvem o mundo do trabalho e não
apenas como peça passiva do mercado.
Uma concepção interdisciplinar apenas enquanto aspecto epistemológico, com o
objetivo de costurar a fragmentação do saber disciplinar moderno, revela-se como
instrumento de produção de um saber que remete ao Uno (o mesmo), cânone da
globalização e do neoliberalismo. Sem a dimensão política, tal proposta não passa de
uma prática disciplinar do comportamento, visto que além de remeter todos os
pensamentos a uma mesma unidade, também evita que seu comportamento se
transforme em prática efetiva de transformação social.
REFERÊNCIAS
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DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle IN ______
Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France, 1979-1980:
aulas de 09 e 30 de janeiro de 1980. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009.
______. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979).
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. O que é a crítica? (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Disponível
em: < http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/biblio.html>, acesso dia 12.05.2010.
GALLO, Silvio. Conhecimento, Transversalidade e Currículo. Disponível em:
<www.ia.ufrrj.br/ppgea/conteudo/T1SF/Akiko/07.doc>, Acesso em: 20 ago. 2010.
______. Transversalidade e Meio Ambiente. Ciclo de Palestras sobre Meio Ambiente
- Programa Conheça a Educação do Cibec/Inep- MEC/SEF/COEA, 2001, p. 1526.MATOS, Olgária. Filosofia a polifonia da razão: filosofia e educação. São Paulo:
Scipione, 1997.
SANTOS, Iolanda Montano dos. Inclusão escolar e educação para todos. Tese de
doutorado. Orientador Alfredo José da Veiga-Neto. Porto Alegre: UFRGS, 2010
SEED/PR. Diretrizes Curriculares. Curitiba: 2008
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VEIGA-NETO, Alfredo.
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disciplina para o controle. Anais do XIV Encontro Nacional de Didática e Prática de
Ensino. Porto Alegre, 2008, p. 141-149.
______. Currículo e Interdisciplinaridade. IN MOREIRA, Antonio F. B. (Org.)
Currículo: Questões atuais. Campinas: Papirus, 1997, p. 59-102.
______.Educação e governamentalidade neoliberal: novos dispositivos, novas
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Retratos de Foucault. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2000, p.179-217.
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on-line do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) em 6/11/2006. Disponível em: <
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe
&id=1484>, Acesso em: 16 ago. 2010.
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EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE DE CONTROLE ENTRE DELEUZE E
FOUCAULT - Eduardo Alexandre Santos de Oliveira
Orientadora: Ester Maria Dreher Heusser
Mestrando em Filosofia- UNIOESTE/Bolsista CAPES
[email protected]
Palavras-chave: educação; subjetivação; controle.
Não estamos mais na sociedade disciplinar. Michel Foucault denomina como sociedade
disciplinar, o conjunto de instituições de confinamento que tinha por meta, a moldagem
da subjetividade dos indivíduos, para assim, direcioná-los a nova forma de acumulação
de capital que surgia a partir da segunda metade do século XVIII. Para que se cumprisse
com este propósito, era necessário subjetivar o sujeito, o quanto antes; desta forma,
precisou-se de um dispositivo que fosse incumbido de sequestrar tal indivíduo desde sua
infância, e assim emergiu o dispositivo escola. Tal dispositivo tinha ―como objetivo,
capturar as crianças das ruas e colocá-las em um ambiente cerrado, aplicando-lhes
exercícios disciplinares que visavam controlar seus corpos e suas almas‖ (CÉSAR,
2009, p. 55).
A partir do século XX, não se educa com o propósito de utilidade e docilidade, tal como
Foucault concebe em Vigiar e Punir. Ora, mas isso significa que a escola ou a educação
não possuem mais um objetivo direcionador enquanto um dispositivo de poder-saber? A
resposta para esta indagação certamente é negativa. Nas aulas lecionadas no Collége de
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France em 1979, compiladas no livro Nascimento da biopolítica, Foucault aponta a
perspectiva do surgimento de liberdades oriundas dos processos econômicos liberais
que se estendem até o neoliberalismo1. Essas novas liberdades são tratadas no âmbito de
indivíduos dotados de interesses econômicos próprios. Significa que, na perspectiva de
Foucault, nasce uma nova ―espécie‖ de ser humano: o homo oeconomicus, ―(...) aquele
que obedece ao seu interesse (...), que aceita a realidade (...) e vai responder
sistematicamente às modificações sistemáticas que serão introduzidas artificialmente no
meio‖ (FOUCALT, 2008b, p. 369)2. Desse nascimento decorrem ao menos duas
constatações: a primeira é de que este novo homo responderá aos processos econômicos
o que significa que a racionalidade econômica abordará o comportamento humano. A
segunda é de que este ―homo oeconomicus é eminentemente governável‖ (idem). Querse dizer com isto que, agora, tornam-se necessárias as técnicas de governo sobre estas
liberdades o que, obrigatoriamente, recai sobre o dispositivo educacional que é um dos
principais – senão o principal – modos de investimento político sobre a população que
se almeja obter. Nesta perspectiva, o objetivo da educação a partir do século XX é
educar com o propósito de fazer com que os indivíduos correspondam às exigências do
mercado de trabalho. Deste modo, o ―homo oeconomicus es un empresario, y un
1
No liberalismo, o governo não intervinha nem nos negócios e nem nas pessoas, o que significa que o
liberalismo agia em torno da liberdade: liberdade do vendedor, do comprador, do mercado. Entretanto,
por várias situações, tais como o aumento de custo econômico do próprio exercício das liberdades e o
socialismo, o liberalismo entra em crise e, neste momento, faz-se necessária uma outra forma de governo
para suprir tal deficiência: assim, surge o neoliberalismo. Desta vez, no neoliberailsmo, o Estado intervirá
sobre os processos econômicos.
2
Nas duas últimas aulas do livro Nascimento da biopolítica, Foucault afirma que se deve considerar a
economia na base de governo. Entretanto, não podemos admitir que a economia seja a única racionalidade
governamental. Nas palavras de Foucault: ―Deve-se governar com a economia, deve-se governar ao lado
dos economistas, deve-se governar ouvindo os economistas, mas não se pode permitir, está fora de
cogitação, não é possível que a economia seja a própria racionalidade governamental‖ (FOUCAULT,
2008b, p. 389).
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empresario de sí mismo. Y esto es tan cierto que, en la práctica, va a ser el objetivo de
todos los análisis que hacen los neoliberais‖. (FOUCAULT, 2008a, p. 264-265).
Esta máxima de Foucault implica quatro importantes afirmações sobre a educação: a
primeira é de que o indivíduo trabalha por um capital que é o produto de suas
competências. E com este capital recebido ele investe sobre si mesmo em educação,
investe em cursos de aperfeiçoamento, o que lhe permitirá vender determinados
serviços: é o homo oeconomicus enquanto empresa de si mesmo, uma empresa
ambulante que não vende mais uma força de trabalho, mas que presta serviços
constantemente para atender às exigências do mercado.
A segunda afirmação decorre da primeira: é claramente notável que não se tem mais
apenas um processo de educação que lança o indivíduo a um trabalho específico, assim
como se lançava ao trabalho fabril na era da sociedade disciplinar. A educação é um
eterno processo continuado, ou seja, supõe uma formação permanente. E esta ―formação
permanente tende a substituir a escola‖ (DELEUZE, 1998, p. 221). Este controle
permanente que leva à terceira afirmação: a educação não está mais limitada a um
processo institucional – o que significa que o indivíduo não se limita mais a apenas um
aparato disciplinar, a escola –, mas à vida toda, por meio de, por exemplo, cursos de
formação continuada, ou ―reciclagens‖ que podem ser feitos a distância: isto implicará
na crise das instituições de ensino oriundas das novas liberdades do homo
oeconomicus.3
A quarta afirmação, e não menos importante, é de que a partir do século XX, a educação
é visualizada enquanto empreendimento econômico. Foucault
3
As modalidades de ensino à distância por meio de dispositivos como a internet, rádio, televisão, são os
arquétipos mais notórios desta situação.
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(...) compreendeu que o mercado das sociedades empresariais seria o lugar
privilegiado ao qual nos reportaríamos a fim de nos tornarmos agentes econômicos
competitivos. A profecia parece ter se cumprido, pois cada vez mais tornamo-nos
presas voluntárias de individualização e subjetivação controladas flexivelmente pelo
mercado e seus ideais normativos. (DUARTE, 2009, p. 47).
A partir disto, é plausível abordar a concepção de César (2009) acerca de Deleuze:
(...) Gilles Deleuze compreendeu (...) a crise da sociedade disciplinar como uma crise
dos modos de confinamento. Para Deleuze, (...) os novos controles são uma
modulação, isto é, uma modulagem que pode ser transformada continuamente de
maneira a produzir a subjetividade flexível como chave de controle. As antigas
instituições se transformaram em empresas, modificando a gramática que havia sido
produzida pela velha sintaxe disciplinar (CÉSAR, 2009, p. 56).
Todas as constatações feitas até aqui, expressam um único propósito educacional a
partir do século XX: o desenvolvimento de novas formas de subjetivação. É isso, a
nosso ver, que melhor caracteriza a nova sociedade, a sociedade de controle. Tal
sociedade pode ser definida como uma espécie de reformulação da disciplina que não se
limita mais às instituições, mas se configura pela comunicação, pela informação: é
aquilo que permite subjetivar o indivíduo pela ―liberdade‖. Em suma é a:
(...) regulação social dos indivíduos, num tipo de agenciamento muitas vezes invisível,
mas que possui formas que se colocam muito bem articuladas num campo de forças
heterogêneo, vinculando uma semiotização concreta e por estratégias de subjetivação.
Constitui-se como prática que se orienta silenciosamente como uma serpente em suas
ondulações, na direção da instituição de modos de vida segmentarizados e
subjetivados (JARDIM, 2006, p. 8).
É sobre as liberdades do homo oeconomicus que se efetiva o projeto de subjetivação: a
formação de uma subjetividade maleável, entretanto uma subjetividade forçada,
programada para que o indivíduo responda à expectativa econômica do mercado.
Podemos aproximar este processo de subjetivação enquanto controle à filosofia de
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Deleuze quando este aborda a rostidade4, pois esta tecnologia faz do indivíduo um
sedentário e, consequentemente, não lhe permite a criação do novo.
A subjetivação proposta por estes dispositivos de poder-saber é algo grave, no sentido
de implicar a não emancipação humana e política, pois, os sujeitos estão cedendo cada
vez mais a esta forma de controle. Deleuze (1998, p. 226) demonstra a preocupação
com determinado problema ao notar a passividade dos indivíduos ao aceitarem o
controle:
Muitos jovens pedem estranhamente para serem ‗motivados‘, e solicitam novos
estágios de formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a
servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das
disciplinas.
A indagação que se edifica ao se constatar tal situação de passividade é, Estamos
condenados a uma educação de controle? Resta alguma saída para que se conceba uma
educação na qual o indivíduo possa se emancipar? Pode-se concebê-la como algo que
não tenha por objetivo a mera modulação da subjetividade, mas sim, como processo de
subjetivação? Na filosofia de Deleuze podem-se encontrar elementos para afirmar que a
emancipação é possível.
Como descrito, a escola é um dispositivo de poder-saber. Mas o que é um dispositivo?
Na abordagem de Foucault, os dispositivos, podem ser definidos como a rede de
relações que se pode estabelecer entre elementos heterogêneos: discursos, instituições,
proposições filosóficas, o dito e o não dito e surgem para atender uma urgência política,
4
São rostos nascidos de uma máquina de rostidade, se assim quiser, um dispositivo de rostidade. É um
dispositivo de ―(...) produção social de rosto porque opera uma rostificação de todo o corpo, de suas
imediações e de seus objetos, uma paisagificação de todos os mundos e meios.‖ (DELEUZE, 1996, p.
49).
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possuindo, deste modo, uma função estratégica de normalizar determinados
comportamentos dos indivíduos: em suma funcionam como uma maquinaria social de
poder-saber. O homo oeconomicus é justamente um ser que responde aos procedimentos
da economia e demonstra a força da atuação destes dispositivo.
Quando Deleuze apresentou o conceito de dispositivo, definiu-o como: ―antes de mais
uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente‖ (1996,
p. 1). Trata-se de linhas de poder que ―(...) são como as máquinas (...) de fazer ver e de
fazer falar‖ (Idem). Estas linhas de poder estão ligadas às linhas de enunciação e de
visibilidade. Nesse sentido de dispositivo, pode-se afirmar que a educação no século
XX é abordada sob a égide da empresa, e assim, o indivíduo vê e diz na perspectiva do
homo oeconomicus: atua como um empreendimento econômico para si mesmo.
Os conceitos de dispositivos de Foucault e Deleuze, num primeiro momento, podem ser
considerados idênticos. Entretanto, Deleuze aponta mais uma linha que marca o
dispositivo, é a chamada ―linha de subjetivação‖ que consiste em o sujeito produzir sua
subjetividade e é por meio desta linha que se pode criar novos modos de vida. Desta
forma, começa-se a reverberar a possibilidade de emancipação do indivíduo. Para que o
indivíduo se emancipe, é necessário escapar às linhas de poder dos dispositivos que o
forçam e o fazem ver e falar sob determinada perspectiva. É aquilo que Deleuze chamou
de ―dobrar a linha de poder‖ o que implica o nascimento da resistência ―(...) trata-se de
regras facultativas que (...) constituem modos de existência ou estilos de vida‖
(DELEUZE, 1998, p. 123).
Ao atuar enquanto resistência à linha de poder, dobrando-a, fazendo-a enfrentar-se a si
mesma, significa que o indivíduo está a pensar: ―Pensar é, primeiramente, ver e falar,
mas com a condição de que o olho não permaneça nas coisas e se eleve até as
―visibilidades‖ e de que a linguagem não fique nas palavras ou frases e se eleve até os
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enunciados‖ (DELEUZE, 1998, p. 119). Deste modo é necessário extrair das coisas
novas visibilidades e rachar as palavras ou frases para extrair delas, novos enunciados.
Além disso, pensar é poder, isto é, estender relações de força com a condição de
compreender que as relações de forças não se reduzam à violência, mas constituem
ações sobre ações, ou seja, atos tais como ―incitar, induzir, desviar, facilitar ou
dificultar, ampliar ou limitar tornar mais ou menos provável (...) é a descoberta de um
pensamento como processo de subjetivação (...) trata-se da constituição de modos de
existência (...) (DELEUZE, 1998, p. 119-120).
Estas novas formas de existência são, em suma, o processo de subjetivação, mas como
se pode notar, um processo de construção de subjetividade diferente do procedimento
das linhas de poder dos dispositivos enquanto controle contínuo. É neste processo em
que o indivíduo toma a consciência de si e cria novos estilos de vida: é aquilo que
Deleuze chamou de hecceidade (conceito inventado por Deleuze para substituir o termo
subjetividade, tal qual é abordado pela tradição filosófica). Nesta abordagem de
Deleuze, a formação da subjetividade se dá ―pela produção ativa do ser, composição de
forças, nomadismo‖ (JARDIM, 2004, p. 4) o que significa que o indivíduo não é um ser
a priori. Assim, começa-se a esclarecer a função do dispositivo escola no aspecto da
hecceidade: ele pode atuar mostrando ao indivíduo as linhas de forças que o fazem ver e
sentir sob tais e tais perspectivas, pode levá-lo a pensar para que deste modo, escape da
rostificação, da territorialização, enfim, das linhas de poder e de saber que o fazem atuar
como o homo oeconomicus, vítima do controle. Consequentemente, se a educação for
concebida na perspectiva deleuziana, enquanto algo que permita o indivíduo se
desterritorilizar escapando da rostificação das linhas de poder-saber, o dispositivo não
será algo que molda o indivíduo, mas, ao contrário, possibilitará que este crie.
REFERÊNCIAS
CÉSAR, M. R. de A. Pensar a educação depois de Foucault. Dossiê Michel Foucault
Revista Cult,
n. 134, p. 54-56, 2009.
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DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de entrevista realizada por
Claire
Parnet,
direção
de
Pierre-André
Boutang,
1988.
Disponível
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<http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-degilles-deleuze> Acesso
em: 27 abr. 2011.
______. Conversações. 2. ed.Tradução: Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1998.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto,
Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: 34, 1996.
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O
que
é
um
dispositivo?
Disponível
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DUARTE, A.Foucault no século 21. Dossiê Michel Foucault Revista Cult, n. 134, p. 4547, 2009.
FOUCAULT, Nacimiento de la biopolítica. Buenos Aires: Fondo de Cultura
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JARDIM, A. F. C. Impessoalidade e modos de vida: breves considerações. Revista
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Montes Claros, v.6 n.1, p. 1-13, jan./jun. 2006. Disponível em:
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ENGAJAMENTO E LITERATURA EM SARTRE - Luiza Helena Hilgert
UNIOSTE – Mestrado
[email protected]
Palavras-chave: Engajamento. Literatura. Moral.
O engajamento na filosofia sartriana é, como também são outros conceitos, ambíguo: é
uma estrutura ontológica que mantém unida a liberdade humana com si própria no
âmbito do projeto e da ação concreta do Para-si. Além disso, o termo engajamento
possui características que ultrapassam o âmbito estrutural e que se afirmam como um
valor moral, uma escolha, uma tomada de consciência e, como consequência, assunção
autêntica da realidade humana. Sartre não trata de forma detida e explicitada do
engajamento, por isso, compreender claramente seu significado é empresa árdua e
implica em garimpar em seus escritos breves apontamentos.
Partindo da análise fenomenológica do homem imerso em situação, deparamo-nos com
o engajamento: esse modo humano de desvelar o mundo, encontrando-se e perdendo-se
nele, de forma que por meio da necessidade de agir, a liberdade se manifesta absoluta e
integralmente. Mas a liberdade do homem não é abstrata, ela implica a responsabilidade
total, o compromisso e a possibilidade transformadora da realidade por meio dos nossos
atos. O engajamento é o desvelar feito pelo homem a partir dele mesmo: a situação
adquire o sentido subjetivo que tem o próprio projeto singular, assim, o desvendar da
situação provocado pelo engajamento é, ao mesmo tempo, desvendar de si mesmo.
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O engajamento pode ser visto presente em cada ato, escolha, até mesmo na palavra
pronunciada ou silenciada. Há uma importante obra de Sartre publicada em 1948,
intitulada O que é literatura?1, onde se lê:
ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a
mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixoa sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um
pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já
que o ultrapasso na direção do porvir. (SARTRE, 2004, p. 20).
É precisa esta passagem em que se constata a pressuposição do ser-no-mundo para
corretamente compreendermos a noção de engajamento e sua dimensão não apenas
ontológica, mas, evidentemente, ética. A ação de falar permite o desvelamento da
situação a partir da compreensão que o Para-si formula. Falar sobre algo é transcender a
condição deste dado com o objetivo principal de alcançá-lo enquanto real, contudo, ao
fazer isso, a situação passa a ser percebida sob o escopo do projeto existencial do Parasi, que, por sua vez, a altera, a modifica, a preenche de intencionalidade. O homem que
fala sobre determinada situação, a desvela, a transcende e manifesta a visada que tem de
si. Ao falar, o homem engaja-se na situação imprimindo nela o projetar-se que é si
mesmo e que está, portanto, sempre direcionado ao porvir.
Sartre considera grave erro julgar a fala como algo que trata das coisas com
superficialidade, sem alterá-las, como se aquele que fala fosse somente uma testemunha
1
Acerca dos objetivos desta obra, Sartre escreve um breve Prefácio que termina assim: ―Quanta asneira!
O fato é que se lê mal, afoitamente, e se julga antes de compreender. Portanto, recomecemos. Isso não
diverte ninguém, nem a você, nem a mim. Mas é preciso ir até o fim. Já que os críticos me condenam em
nome da literatura, sem nunca explicarem o que entendem por literatura, a melhor resposta que lhes posso
dar é examinar a arte de escrever, sem preconceitos‖. A publicação de O que é literatura? data de um
ano após O existencialismo é um humanismo e quatro após O ser e o nada, mais uma vez o escopo é
rebater críticas consideradas decorrentes da má compreensão dos seus escritos, ou como diz Sartre, ―se lê
mal, afoitamente, e se julga antes de compreender‖.
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―que resume numa palavra sua contemplação inofensiva‖ (SARTRE, 2004, p. 20). A
fala não é mero testemunhar imparcial, falar é agir, toda ação é intencional e a fala é um
ato. O modo como se fala de determinada situação representa muito mais que resumir
uma contemplação inofensiva. Falar é agir no sentido de que implica à situação, ou ao
objeto descrito, a intencionalidade da consciência do Para-si. Nomear, descrever, contar
alguma coisa não é referir-se à coisa na sua integridade; a coisa, ao ser nomeada,
―perdeu sua inocência‖ (SARTRE, 2004, p. 20). Ao falar, se desvenda o objeto
nomeado conforme o próprio projeto de quem fala, aquele que fala projeta a sua
intencionalidade e o seu projeto mesmo pela fala sobre o falado. Nem a fala é inocente e
inofensiva, nem o objeto é mais somente uma coisa inocente, deixou de ser
simplesmente e passou a existir.
Por isso, segundo Sartre, o escritor engajado é aquele que conhece o poder de ação da
sua palavra, e isso significa saber que a palavra age desvendando o mundo, e que esse
desvendar provocado pela palavra não é desvendar a situação na sua inocência, antes,
desvendar é mudar a característica inocente do objeto a ser desvendado. Assim, para o
escritor, não é permitido falar se não tiver a intenção de desvendar e, por consequência,
de mudar de alguma forma a situação. Sartre afirma que o escritor engajado é aquele
que ―abandonou o sonho impossível de fazer uma pintura imparcial da Sociedade e da
condição humana‖ (SARTRE, 2004, p. 20-21). Se falar é agir e agir é mudar, pela fala,
cada situação, objeto ou dado é atingido em pleno coração, é traspassado a fim de
encontrar para além dele mesmo o significado atribuído pelo Para-si. A necessidade
latente de assumir posturas, feitos, escolhas, é possibilitado pelo engajamento: é ele que
suporta a condição ambígua do homem de encontrar-se imerso historicamente numa
situação dada, ao mesmo tempo em que impulsiona o Para-si a mover-se adiante rumo
ao futuro. O engajamento é projetado com vistas ao porvir, uma vez que agir é
transformar e a transformação é escolha adiantada.
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Entre a filosofia e a literatura de Sartre, Franklin Leopoldo e Silva estabelece a relação
entre essas duas manifestações discursivas cunhando a expressão ―vizinhança
comunicante‖ (SILVA, 2004, p. 12). Sendo, tanto a filosofia quanto a ficção, partes do
projeto sartriano de pensar a ordem humana. Nesse sentido, nem a literatura serviria
como exemplificação para as teorias filosóficas de Sartre, nem a filosofia seria a base
para suas narrativas, antes, ambas devem ser encaradas como formas de expressão
necessárias a Sartre porque ―por meio delas o autor diz e não diz as mesmas coisas‖.
Sem entrar propriamente nas especulações sobre as motivações que possam ter feito
Sartre discursar pelos meios acadêmico e ficcional, a questão posta é que Sartre o faz de
forma talentosa pelo dois vieses.
Voltando ao tema central, o sentido de cada situação é desvelado pelo homem quando
ele se une a ela com o propósito de, por meio da sua liberdade engajada, deixar vir à
tona seu significado; assim, o homem altera, segundo seu projeto, os móveis e motivos
da situação na qual está inserido. A fala é o processo pelo qual Para-si desvela a
situação fazendo com que ela se mostre como é para ele, ao mesmo tempo em que o
Para-si diz para si o modo como percebe a situação e a si mesmo no âmago do seu ser e
como gostaria que a situação fosse. E ainda mais, nesse processo, a fala permite ao
Para-si organizar ações para que possa fazer brotar a situação como ele realmente a
quer. Em suma, a fala é a ação que altera as coisas e permite ao homem a tomada de
consciência de si mesmo e da situação na qual está inserido.
Como afirma Sartre: ―o homem é o ser em face de quem nenhum outro ser pode manter
imparcialidade, nem mesmo Deus. […] É no amor, no ódio, na cólera, no medo, na
alegria, na indignação, na admiração, na esperança, no desespero que o homem e o
mundo se revelam em sua verdade‖ (SARTRE, 2004, p. 21), uma vez que é por meio da
realidade humana que as coisas recebem ser. É o homem o responsável pela significação
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das coisas. No amor, por exemplo, um buquê de rosas vermelhas como presente do
amado é revelado em sua verdade como indicativo de paixão, como se o vermelho das
rosas e as próprias rosas fossem um símbolo cujo significado é a paixão. A situação
como um todo cheira à paixão. É a realidade humana que estabelece a relação entre o
garoto de entregas que trouxe o buquê de rosas vermelhas; o cartão, cuidadosamente
lançado em meio às flores, contornado por belas cores e melosas palavras; a data
especial que solicita uma delicadeza amável e luxuriosa; além do autor do pequeno
regalo: o ser do buquê de rosas vermelhas é desvendado. Seu ser não está nem ali nem
aqui, é no amor que o buquê de rosas vermelhas ganha este ser, se fosse na morte, no
ódio ou em outra situação qualquer, o ser do buquê de rosas vermelhas seria outro, isto
é, a cada nova situação, novos atos e novos projetos, o mundo assume novos contornos2.
O engajamento permite que a realidade humana desvele o mundo desejado na medida
em que sua ação autêntica é expressão autêntica do seu desejo, ao contrário de encarar o
mundo como algo simplesmente dado, estranho ao Para-si, como se estivesse do lado de
fora e devesse magnificamente tentar adentrá-lo. A autenticidade do engajamento não
torna possível, com efeito, a compreensão do homem como existência universal. Em O
existencialismo é um humanismo, Sartre fala da condição humana como uma
universalidade, não já dada, mas construída. Todo projeto é uma tentativa de transpor os
limites que a situação apresenta – tanto objetiva quanto subjetivamente –, por isso, todo
projeto é compreensível ao homem. É possível compreender a criança, o idiota, o
2
Apesar de ser a realidade humana aquela que desvenda o ser do mundo, não é ela, por outro lado, aquela
que o produz. Caso o buquê de rosas fosse entregue a ninguém, ou não houvesse quem o avistasse, ele
permaneceria lá, estagnar-se-ia, longe dos olhos repousado em obscuridade: ―pelo menos ela só se
estagnará: não há ninguém suficientemente louco para acreditar que ela desaparecerá. Nós é que
desapareceremos, e a terra permanecerá em sua letargia até que uma outra consciência venha despertá-la.
Assim, à nossa certeza interior de sermos 'desvendantes', se junta aquela de sermos inessenciais em
relação à coisa desvendada‖ (SARTRE, 2004, p. 34).
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estrangeiro, o índio, o judeu, etc. se se possuir os esclarecimentos necessários. Isso
significa que a universalidade do homem é construída quando se escolhe, pois ao fazêlo, constrói-se e compreende-se o projeto de qualquer homem3. Não há para o homem
nenhuma possibilidade que não seja no mundo, e é neste mundo que sua existência se
realiza.
Isso não significa que o projeto somente possa ser compreendido inserido na situação
particular em que se encontra: o aspecto de historicidade é importante para compreender
o projeto, mas este não se encerra nela. A condição humana é absoluta, transcende uma
época, como diz Sartre, ―nós não acreditamos no progresso; o progresso é um
melhoramento; o homem é sempre o mesmo em face duma situação que varia e a
escolha é sempre uma escolha numa situação‖ (SARTRE, 1987, p. 24-25). Em todas as
épocas e em todos os tempos, a condição humana é a de escolher diante de uma situação
e, essa escolha, esse engajamento, essa vivência, faz a existência. Se a necessidade que
o Para-si tem de fazer escolhas é absoluta, a filosofia da existência tem como objetivo
apresentar a: ―ligação do caráter absoluto do compromisso livre pelo qual cada homem
se realiza, realizando um tipo de humanidade, compromisso sempre compreensível seja
em que época e por quem for, e a relatividade do conjunto cultural que pode resultar de
semelhante escolha‖ (SARTRE, 1987, p. 23). Ser o projeto compreensível não quer
dizer que deva ser aceito ou corroborado por cada pessoa singular, mas que é possível a
qualquer humano entender seu sentido e suas implicações, desde que tenha as
informações necessárias para tal.
O engajamento estreita a relação entre a liberdade ontológica e a responsabilidade total,
manifestando e desvelando ao Para-si sua condição e todas as implicações que dela
3
Cf. SARTRE, 1987, pp. 20-23.
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derivam. Arthur Danto, importante comentador da filosofia sartriana, assinala a
impossibilidade do desengajamento da consciência com relação ao mundo vivido,
oferecendo a seguinte hipótese para análise:
se me suponho retirado do mundo, de maneira que ele se estenda à minha frente como
uma espécie de paisagem objetiva, ele não tem um centro, por assim dizer, embora eu
possa dar mais atenção a um pedaço dele que a outro. Mas a estrutura do mundo
vivido tem um centro do qual irradiam trilhas de ação ou para o qual elas finalmente
levam de volta. Esse centro, que por sua vez, não tem um centro, sou eu. (DANTO,
1975, p. 80).
A prova de que a consciência é engajada na situação, segundo Danto, consiste na
estrutura que o mundo tem para mim, ou seja, a consciência individual, a pessoa, é o
centro que organiza, harmoniza e significa o mundo que ela percebe; não sendo ela o
centro, não veria o mundo a partir de si, mas como uma paisagem ou a partir de outro
ponto que não si mesma. Não somos como observadores ou espectadores que apenas
contemplam o mundo do lado de fora, mas estamos nele engajados, somos parte do
mundo. Desse modo, o mundo percebido é o mundo vivido, de meu centro irradiam
possibilidades de ação que transformam o mundo, ―a estrutura do mundo vivido tem um
centro do qual irradiam trilhas de ação ou para o qual elas finalmente levam de volta‖
(DANTO, 1975, p. 80). O mundo é desvelado pelo Para-si como um mundo repleto de
atos a serem realizados.
Como dissemos, o escritor deve considerar, com efeito, o
poder da palavra, assim, a literatura sartriana é exemplo dessa corrente engajada que
intenciona mudar a realidade por meio da prosa. Sua literatura, e demais obras
ficcionais, são um modo particular de manifestar e descrever a realidade e a condição
humanas. São discussões afinadas com a filosofia e constituem-se como um interessante
e importante campo de pesquisa para aqueles que almejam entender o projeto sartriano
de compreender o homem.
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REFERÊNCIAS
DANTO, Arthur C. As Ideias de Sartre. Trad. James Amado. São Paulo: Cultrix, 1975.
SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant. Essai d'ontologie phénoménologique. Paris:
Gallimard, 1943.
______. O existencialismo é um humanismo. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
Coleção Os Pensadores.
______. O que é literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. 3 ed. São Paulo: Ática, 2004.
______. O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia fenomenológica. Trad. Paulo
Perdigão. 16 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São
Paulo: UNESP, 2004.
______. Literatura e experiência histórica em Sartre: o engajamento. Dois pontos.
Curitiba, v. 3, p. 69-81, UFPR, 2006.
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ESCOLA E EMANCIPAÇÃO EM MARIO OSORIO - Tiago Anderson Brutti
Professor de Filosofia do Direito e doutorando em Educação nas Ciências
UNICRUZ e UNIJUÍ
[email protected]
Palavras-chave: educação, propósitos, emancipação
Indiciam-se neste texto as noções de emancipação humana e de escola emancipadora à
luz das compreensões político-filosóficas explicitadas por Mario Osorio Marques,
pensador para quem a escola, nas circunstâncias em que se encontram a maior parte das
sociedades contemporâneas, deve ser considerada espaço-tempo privilegiado de
aprendizagens e de ―luta política‖, na qual se ampliam e se ressignificam os horizontes
de sentido com os quais estamos implicados.
As tradições jurídico-filosóficas do humanismo e do republicanismo enfatizam o
sentido de emancipação como esforço pedagógico-político destinado a sedimentar
intencionalidades morais e de esclarecimento longe das quais os homens universalmente
considerados não poderiam, por assim dizer, exercer livremente o pensamento e as
atividades que a cada vez os singularizam.
A noção de emancipação foi discutida publicamente por homens de ação e de espírito
que, mesmo em tempos de parca liberdade política, reprovaram o seqüestro de africanos
e sua submissão à escravidão. Essas vozes reconheceram que, para além da mera
retórica piedosa, as ideias emancipatórias exigiam planejamento, ação, vigilância e,
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muitas vezes, desobediência: ―Não estou indagando se é legal ou não. É preciso uma
providência para que desapareçam tais cenas‖, exclamou o deputado imperial Aristides
Spinola em seu pronunciamento sobre a condição servil dos brasileiros afrodescendentes às vésperas da proclamação da República1.
Atravessa a obra e a vida de Mario Osorio, no testemunho do filósofo Paulo Schneider,
o sentido de simpatia, conceito provindo da palavra grega sympatheo, que significa ter a
mesma sensação, sofrer junto, estar em situação de reciprocidade com alguém, tomar as
dores de alguém. Schneider explica que essa noção indica que o Outro é uma voz que
deve ser ouvida, uma vida da qual se pode aprender, um filho da humanidade e do
mundo, resultado de toda a tradição. Segundo essa ética não há que excluir vozes, mas
escutá-las com atenção e lhes compreender o recado e o sentido. ―O mundo foi dito e
lido das mais diversas maneiras e cada uma dessas maneiras é uma expressão sui
generis do próprio mundo. Todas elas são vozes no concerto do universo e, se faltar
uma só, por estar ainda esquecida, então a sinfonia universal não está completa‖ (2004,
p. 331-343).
O filósofo José Boufleur testemunha, por sua vez, que a noção de alteridade combina
com as considerações que Mario Osorio vai tecendo ao longo de sua vida. Alteridade
entendida como o sentido do outro, a percepção do outro, a capacidade de se colocar na
escuta do outro, de repensar-se a partir do outro, pela incorporação do seu ponto de
vista. ―Trata-se do reconhecimento de que o sujeito humano só se entende, só sabe algo
1
O pronunciamento do deputado Aristides Spinola (1850-1925) está disponível na Biblioteca Digital do
Senado Federal. Entre os homens de espírito e de ação que defenderam a causa abolicionista, destacamos
aqui José Bonifácio (1763-1838), Eusébio de Queirós (1812-1868), Visconde do Rio Branco (18191880), Princesa Isabel (1846-1921), Joaquim Nabuco (1849-1910) e José do Patrocínio (1853-1905).
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sobre si, sobre os outros e sobre o mundo, se ele se entender com os outros, o que lhe
coloca a necessidade de certificação social. Não dá para ter razão sozinho‖2.
Mario Osorio descreve o homem como ser que aprende, que não é pré-programado, que
constrói sua vida a partir das ―possibilidades em aberto‖ e que se distingue das espécies
animais desde o momento em que sobre seu desenvolvimento se impõem ―não mais os
mecanismos biológicos, hereditários, e sim os imperativos histórico-sociais‖. O homem,
ao entrar em contato com seu entorno, ―se defronta com um mundo feito de objetos e
fenômenos oriundos da ação das gerações anteriores: um mundo que não lhe é dado
imediatamente, mas proposto como interpelação e desafio‖ (2000, p. 15-17).
Na compreensão do autor, a vida humana, em sua concretude, inviabiliza a separação
entre as dimensões biológica, psíquica, social e de sujeito singularizado. Resulta daí que
do mesmo modo como a natureza corporal do sujeito não procede da desumanização
(―coisificação‖), assim também a humanização social, ou seja, ―a ascensão do sujeito ao
nível histórico-social da humanidade‖ não prescinde de sua ―objetividade natural
reconhecida e valorizada‖ (2000, p. 22).
Na cultura os grupos humanos se identificam e se encadeiam no suceder das gerações, o
que implica, nas palavras de Mario Osorio, ―não apenas um mundo concretamente
pensado, penetrado de sentido pela ação humana e convertido em valor, também uma
dimensão de processos sociais, de relações de poder consociadas a relações de
significados, inserida e parte ativa de toda a dinâmica social‖ (2000, p. 23). Nessa
compreensão do singularmente humano ―torna-se decisivo o que os indivíduos
eficazmente aprendem em termos do domínio dos códigos culturais básicos‖ e ―em
2 Entrevista concedida por José Pedro Boufleur para Fátima Marlise Marroni Rosa Lopes, por ocasião de seu doutoramento em educação.
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termos da competência comunicativa e das capacidades de entenderem os
problemas/desafios com que se defrontam, de tomar e implementar decisões e de
continuar aprendendo a aprender‖ (2000, p. 10). Nessas aprendizagens
o sujeito se constitui ao reconstruir, através de sua ação significante referida ao Outro,
o conhecimento socialmente compartilhado e validado. Na estrutura da linguagem
articula-se o universo do homem genérico que constitui o sujeito ao mesmo tempo que
o assujeita, com sua peculiar trama de desejos, às particularidades das formações
sócio-históricas próprias de determinada cultura. Ao reconstruir os conhecimentos
objetivados nas práticas sociais e encarnados no Outro dos sujeitos de carne e ossos
que o interpelam, o indivíduo humano se reconstrói a si mesmo como sujeito de
desejos que se apropria da chave dos conhecimentos socialmente compartilhados para
recriá-los em novas aprendizagens (2000, p. 39).
Logo, ―aprender não é confrontar-se com objetos em si, mas com retalhos dos
construtos teóricos anteriores, cuja materialidade é a do significante que importa
reprocessar e recombinar, valendo-se, para tanto, da ordem estrutural da linguagem [...]
expressiva da singularidade do sujeito‖ (2000, p. 39). Os participantes de um mesmo
mundo vital devem, de acordo com o autor, distinguir as ideias básicas de seu tempo e
também passar das ações ingênuas para as argumentações discursivas ―apoiadas na
força não coativa do melhor argumento, ou da motivação racional‖, argumentações
sobre as quais podem alcançar consistência suas ―pretensões de verdade, de retidão e de
sinceridade‖ (2000, p. 26).
Os profissionais da educação, de acordo com Mario Osorio, devem estar articulados
para o entendimento compartilhado e ―para a atuação relevante e efetiva no sentido da
emancipação humana e de melhores condições de vida das populações‖ abrangidas
(2000, p. 9-10). Por essa via, ―as aprendizagens que se queiram postas no telos da
emancipação humana [...] devem priorizar a constituição do sujeito autônomo, criativo,
atento às muitas possibilidades em aberto, sem fechar-se no isolamento narcísico ou no
exclusivismo das posições inamovíveis‖ (2000, p. 34).
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É necessário, atenta o autor, pensar a instituição escolar em seus atos fundantes ―numa
hermenêutica do processo histórico que vincula as origens da escola, a trajetória por ela
percorrida e os horizontes de futuro a que se abre‖. Contudo, não é suficiente examinar
o que pretenderam, pretendiam ou pretendem os instituidores da escola, porque antes de
inserida no mundo das objetivações concretas do saber e do querer é necessário
perceber a escola ―no campo simbólico da fantasia, onde se espelha o mundo dos
possíveis, o remoto, o ausente, o ainda obscuro, o objeto do desejo, as intencionalidades
amplas e arrojadas da utopia‖ (2000, p. 88).
Mario Osorio entende que as dimensões moral e cognitivo-instrumental exigem
reciprocidade, mas não se desenvolvem univocamente ―pois os avanços na organização
instrumental do trabalho podem criar barreiras aos avanços da esfera moral‖. O autor
acredita que ―as pessoas só serão racionalmente responsáveis pelo seu destino coletivo
na medida em que refletirem sobre seus interesses e necessidades e os submeterem a
uma crítica pública‖; e que uma sociedade emancipada ―depende da institucionalização
da democracia pautada por uma integração mais feliz entre a cultura, a sociedade e a
personalidade singularizada‖ (2000, p. 42-43), ou seja,
no primado ético-político da razão emancipatória de fronte às patologias da
modernidade, faz-se mister opere a razão crítica no sentido de estabelecer os
pressupostos da ação comunicativa ideal, implícitos na própria disposição de
participar do processo de busca cooperativa do saber, de forma a produzir-se um
consenso fundado no critério da universalização, isto é, na reciprocidade do
reconhecimento igual das pretensões de verdade, de retidão e de sinceridade
levantadas por cada um dos participantes, e na reversibilidade dos respectivos pontos
de vista (2000, p. 44-45).
A intencionalidade política traduzida em proposta pedagógica não é, para o autor,
apenas constatativa ou descritiva, mas ―constitutiva do ser da escola, que se define,
assim, em sua especificidade e identidade, por se fazer elucidativa da vontade coletiva e
relevante para os fins a que não basta propor-se, mas a que ofereça as condições de se
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cumprirem‖. Por isso, na base da proposta pedagógica está a questão ética, ou questão
dos valores em seu enfrentamento prático. Em outros termos, ―a própria proposta
política se fundamenta na questão dos valores, pois é primordial a definição de qual
cidadão pretende a educação formar para qual sociedade‖, definição sem a qual ―a ação
política se restringe à luta por vantagens individuais ou grupais‖ (2000, p. 96).
Mario Osorio, por essa perspectiva, indaga se as escolas desejam uma sociedade
solidária constituída por cidadãos cooperativos, ou se elas desejam uma sociedade
competitiva na qual ―os homens se atropelem uns aos outros em busca do êxito de suas
pretensões particulares?‖ Indaga ainda se a escola busca ―o predomínio da identidade de
cada um, da criatividade, da diversidade, do convívio na pluralidade das preferências,
das escolhas, das oportunidades‖, ou se prefere ―uma sociedade uniformizada sob o
império de uma só maneira de viver e de uma única vontade‖ (2000, p. 97).
A escola não é unidade monolítica e espaço uniforme, escreve o autor, mas
―agrupamento de grupos, onde se situam [...] os educadores e os educandos, no espaçotempo particularizado de cada sala de aula, ou melhor, de uma turma de alunos e de uma
equipe de professores em tarefa comum definida por determinado estágio das
aprendizagens sistematizadas‖ (2000, p. 107). Em sua opinião,
reconstroem-se as aprendizagens em processo contrário ao desgaste da vida e à
decadência, e imune às fantasias não fundamentadas nas possibilidades historicamente
construídas. O já aprendido pelo docente torna-se revelação criadora ao confrontar-se
com a situação existencial problematizadora do aluno como força ativa interrogante.
Dá-se, assim, a aprendizagem no quadro de uma intersubjetividade específica, que
supõe sujeitos diferençados que buscam entenderem-se sobre si mesmos e sobre seus
mundos e, desde situações desiguais, progridem na direção da igualdade da relação
política, em que se constituem em cidadãos capazes de se conduzirem com a
autonomia exigida por suas corresponsabilidades (2000, p. 109).
O pensamento de Mario Osorio indica, enfim, que ao educador cabe a palavra
alicerçada na experiência de vida, no discernimento, no compromisso com o estatuto da
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verdade, com a precisão, a disciplina do estudo, a interpelação ética da vontade coletiva
e a fidelidade ao projeto político-pedagógico da emancipação humana (2000, p. 110).
Essa compreensão nos permite pensar a educação como cenário destinado a estimular a
pluralidade de interpretações, o exercício da imaginação e a discussão de proposições e
sentidos com os quais viemos, entre os humanos, justificando reciprocamente nosso
mundo e nossos projetos de futuro para a humanidade.
REFERÊNCIAS
BOUFLEUR, José Pedro. Texto avulso: entrevista concedida em 02/02/2007 para
Fátima Lopes, por ocasião de seu doutoramento em educação.
MARQUES, Mario Osorio. Aprendizagem na mediação social do aprendido e da
docência. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000.
SCHNEIDER, Paulo Rudi. Perspectiva filosófica sobre Mario Osorio Marques. In:
DALBOSCO, Cláudio A.; TROMBETA, Gerson L.; LONGUI, Solange M. (Orgs.).
Sobre filosofia e educação: subjetividade na fundamentação da práxis pedagógica.
Passo Fundo: UPF, 2004, p. 331-343.
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ÉTICA E POLÍTICA NO PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL - Luiz Carlos de Abreu
Licenciatura da Universidade da Federal Fronteira Sul
[email protected]
Palavras-chave: Maquiavel. Política. Ética. Governo.
Introdução
O objeto de investigação circunscreve-se num âmbito maior de pesquisa, cuja finalidade
é a de investigar e analisar conceitos sobre o príncipe moderno descrito por Maquiavel 1
em sua obra intitulada ―O Príncipe‖. Nesta obra o filósofo apresenta um modelo de
governante ideal, capaz de transformar a realidade de conflito mantendo a paz e a
harmonia em seu principado. Esse novo tipo de governo está desvinculado das antigas
ideias de um governante que serve de modelo de virtude moral a ser seguido pelos
demais membros da sociedade.
Objetiva-se nesta comunicação, demonstrar que o príncipe de Maquiavel é um homem
simples da sociedade, como qualquer outro cidadão, sem grandes virtudes morais, mas
que é superior na capacidade de governar, com astúcia para enfrentar a realidade, muitas
1
Maquiavel nasceu em Florença, Itália, no dia 3 de maio de 1969, amante da política, é considerado o
grande filósofo político do renascimento, suas obras são consideradas um clássico do pensamento
político, principalmente a obra abordada no presente trabalho, ―O Príncipe‖(1999), que serve de manual
para muitos governantes e estudiosos de política, este livro apresenta um novo modelo de concepção de
política.
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vezes conflituosas. O governante deve ser capaz e responsável por manter a harmonia e
a segurança no seu principado, ele deve minimizar os conflitos existentes em sua
sociedade, devendo para isso muitas vezes agir de forma violenta usando a força para
conseguir seus objetivos.
Na concepção política e ética maquiaveliana a virtude é representada pela Virtú do
príncipe, ou seja, a capacidade de controlar os conflitos em seu principado. A virtude
maquiaveliana é representada pela capacidade do príncipe em seu exercício de poder,
em manter o principado livre de qualquer ameaça interna ou externa, mantendo assim a
instabilidade do seu principado.
Sua obra analisada no presente trabalho, representa um diferencial para a história da
política, pois se desvincula das antigas ideias sobre a concepção política. Desse modo o
objetivo deste trabalho é analisar e tentar esclarecer as ideias propostas pelo filósofo
estudado, afim de que não lhe sejam atribuídas expressões de maldade ou de aspecto
negativo que ao invés de engrandecer essa magnifica obra, acabam por não considerá-la
uma excelente obra e usam termos pejorativos para degradá-la.
Ética e Política no Príncipe
A obra ―O Príncipe‖ de Maquiavel inaugura uma nova maneira de se pensar em política,
bem como uma nova maneira de vermos e entendermos a relação entre política e ética, o
que comporta uma história no nosso modo comum de pensar na relação entre a política
e a ética, sendo antes tomada como evidente torna-se objeto de debate e controvérsia.
Essa história tem um marco: o ano de 1513, em que foi escrito O Príncipe de Nicolau
Maquiavel, uma obra muito curta e sucinta, mas que revolucionou a tal ponto o modo
como os homens tradicionalmente pensaram a política e a sua relação com a ética, e
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suscitou uma discussão tão grande a seu respeito, que, depois dela, ninguém mais pode
pensar as relações entre ética e política como antes[...] (LIMONGI, 2006, p. 54).
Para Maquiavel os conflitos da sociedade ficam no topo das dificuldades políticas, e o
controle deste vai definir a capacidade e a virtude do príncipe, este não precisando ser
superior aos outros indivíduos da sociedade, pois o que iria distingui-lo dos demais
indivíduos não são as virtudes privadas, superiores ou virtudes morais e sim as virtudes
específicas da função no ato de governar. O que torna possível o domínio do governante
sobre os demais é a mera aparência de superioridade, como se verifica no seguinte
trecho da obra:
[…] Os homens costumam julgar mais pelos olhos do que pelas mãos, uma vez que
todos podem enxergar, mas poucos sabem sentir. Todos veem o que tu pareces,
poucos o que realmente és, e esses poucos não ousam contrariar a opinião dos que têm
a seu favor a majestade do Estado. Nos atos de todos os homens, em especial dos
príncipes, em que não há tribunal a que recorrer, somente importa o êxito, bom ou
mau. Procure, pois, um príncipe vencer e preservar o estado. Os meios empregados
sempre serão considerados honrosos e louvados por todos […] (MAQUIAVEL, 1999,
p.111).
Como podemos perceber o que torna o príncipe superior, sendo considerado virtuoso e
ético a vista de todos é o modo como ele age diante da função de governo do estado e as
ações que ele praticar para manter a harmonia na sociedade, as demais ―qualidades
pessoais‖ ficam e são vistas em segundo plano.
Quando examinamos as ideias de Maquiavel podemos perceber que o propósito de seus
ensinamentos ao governante, é de criar um novo modelo de governante, diferenciando
do padrão até então vigente, ou pelo menos que a função destes se diferencie dos outros
modelos considerados como adequados. Maria Isabel Limongi ao analisar este ponto
infere mudanças como:
Podemos dizer que cabe ao governante maquiaveliano (evitemos usar o termo
maquiavélico, carregado de um sentido negativo) não mais aplicar uma regra de
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justiça que ele e só ele conhece de antemão, mas inventar, instituir uma regra geral de
justiça que pareça satisfatória àqueles a quem governa, essa formulação condensa bem
o que o distingue Maquiavel da tradição, mostrando que ele já não mais pensa que a
política realize uma finalidade ética, mas uma finalidade própria ou propriamente
política – resolver conflitos, o que não pode ser feito sem a instituição de normas, de
regras e padrões públicos de comportamento, que não estão previamente dados à ação
do político, mas que precisam ser criados inaugurados por essa ação. [...] (LIMONGI,
2006, p. 65).
Está distinção entre ética e política feita por Maquiavel, e analisada por Limongi,
demonstra a inovação no pensamento político. A ética do governante nesta nova
proposta
de O Príncipe está fundamentada na ação dele no seu ato de governo.
Podemos concluir que, o que forma o príncipe virtuoso ou ético consiste em saber
madiar conflitos, permitindo acordos e partilha de valores mantendo assim seu estado
harmonioso, onde a boa convivência entre seus membros seja possível. Também se
analisa as ações que o governante deve tomar no que diz respeito em manter seu estado
seguro e livre de guerras internas e conflitos que ameacem a segurança de seus
membros. Esta virtude do governante, Maquiavel denomina, Virtú, conceito este que
será analisado mais adiante.
Conceitos de Virtú e Fortuna
O príncipe descrito por Maquiavel como o ideal de governante não é aquele que se
concebia até então, portador de virtudes morais e cristãs, mas o que possui a Virtú,
sendo esta, a capacidade de perceber e de estar preparado para agir com estratégias
rápidas e inteligentes para solucionar com muita eficácia os conflitos internos,
mantendo assim a harmonia e a paz na sociedade e solucionando os imprevistos que a
Fortuna lhe apresenta.
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Maquiavel utiliza o termo Virtú2 como uma habilidade natural para demonstrar que o
príncipe tinha que possuir acima de todas as qualidades, a coragem, a astúcia e a
habilidade para dominar as situações e para executá-las, como analisa Leticia de
Campos Velho Martel.
A virtude é exatamente a qualidade de alguns homens que lhe permite prever o mal e
remediá-lo em tempo. Mas remediar a tempo exige saber perceber o momento de fazêlo. Quando agir? Eis o conceito de ocasião. A ponte entre Virtú e fortuna é ocasião. O
homem de virtú sabe perceber a realidade e aprender o momento exato de empreender
a ação estratégica. […] a ocasião sem virtú de nada vale e a virtú sem ocasião adquire
uma importância ínfima. (MARTEL, 2003, p.84).
Podemos dessa forma, inferir que o príncipe de Virtú era o que soubesse aproveitar a
ocasião de dominar a Fortuna3. Só o príncipe que possui a Virtú está verdadeiramente
preparado para dominá-la. Ao falar no conceito, Maquiavel expõe que:
Muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo são governadas pela
fortuna […] Esta opinião é grandemente aceita nos nossos tempos pela grande
variação das coisas, o que se percebe diariamente, fora de toda a conjetura humana
[…] acredito poder ser verdadeiro o fato de que a fortuna arbitre metade de nossas
ações, mas que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade quase por
inteira. […] tudo foge diante dele, tudo se submete a seu ímpeto, sem conseguir detêlo, e, embora as coisas aconteçam assim, não é menos verdade que os homens, quando
a calmaria retorna, são capazes de fazer consertos e barragens, de sorte que, em outra
cheia, aqueles rios estarão correndo por um canal, e o seu ímpeto não será tão livre
nem tão nocivo. (MAQUIAVEL, 1999, p. 143).
Esses dois conceitos que são apresentados por Maquiavel, vem transformar a forma
como pensamos a política. O primeiro conceito, diz respeito à capacidade do príncipe de
2
Termo em Latim que significa habilidade de agir, capacidade, competência em governar.
Fortuna era uma deusa Romana caracterizada por trazer a mão, um chifre com inúmeras riquezas,
chamado de cornucópia que simboliza a abundância, essa deusa também pode significar a escassez e
infortúnio, se dominada só lhe traz bens, mas se for dominadora tornar-se-á destrutiva.
3
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exercer seu governo e de ser um próspero governante em seu estado; o segundo diz
respeito a um mito, muito presente neste período histórico, a crença de que os deuses
podem transformar a realidade ainda é muito aceita, a Deusa romana, responsável pela
glória ou a queda do príncipe, mas Maquiavel usa o termo Fortuna não no sentido do
mito, mas para ele é a cadeia causal sobre a qual o homem não possui controle total.
O conceito Fortuna para Maquiavel é as circunstancias na qual é a sorte das pessoas,
que buscam colocar e ordem as coisas, influenciando a política. A Fortuna é externa ao
homem desafiando as suas capacidades. Virtú é a capacidade do indivíduo em controlar
situações, no qual o governante com Virtú vê a Fortuna e constrói possibilidades e
estratégias para conseguir controlá-la.
Para Maquiavel a Virtú está sempre analisando a Fortuna, variando conforme a
situação, pois cabe ao príncipe a capacidade e a prudência para analisar e ver a melhor
forma para a realização de suas ações, alcançando as finalidades propostas por ele.
Esses conceitos trazem à política, um método inovador pois a política é mostrada como
prática de homens livres e que tem Virtú, e assim conseguem dominar a Fortuna. Na
obra “O Príncipe”, Maquiavel define rumos que o novo príncipe deve seguir para que
seja ético e virtuoso em seu reinado.
Considerações finais
Podemos concluir que a obra ―O príncipe‖, não se deve ser usada apenas como um
manual para governantes, mas mais que isso, o objetivo é o de instruir um homem
governante, capaz de manter a estabilidade política em seu estado.
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É uma obra que representa um marco para a concepção política, pois apresenta ideias
novas, sobre a realidade política da época e em sua experiência política, seus escritos
são um diferencial para a concepção política, essas ideias estão desvinculadas das
antigas concepções de que o príncipe (governante) deve ser um exemplo de virtude
moral e de caráter que busca como principal objetivo a virtude para sua cidade e seus
governados, na concepção Maquiaveliana o príncipe tem como principal objetivo
manter a ordem e a paz no seu estado, sempre tentando amenizar os conflitos, mantendo
a harmonia dos cidadãos.
Portanto, Maquiavel desvincula a governo das antigas ideias de governar, apontando
esse modelo como a nova forma do príncipe governar a sociedade, demonstra ainda que
o governante deve ter Virtú, capaz de controlar os conflitos e de exercer o seu poder da
melhor forma possível, o homem com Virtú deve buscar controlar a Fortuna,
transformando assim a realidade de conflito, mantendo a paz e a harmonia em seu
principado, pois esse governo pode ser exercido por um homem simples da sociedade,
sem que tenha grandes virtudes morais, mas deve ter astúcia para enfrentar os conflitos
mantendo assim a segurança em seu principado. Para Maquiavel esse governo é o
melhor para um principado, pois o príncipe sendo um homem com Virtú e conseguindo
controlar a Fortuna terá um bom governo, onde será respeitado pelos seus súditos.
REFERÊNCIAS
LIMONGI. M. I. Ética e política n'O Príncipe de Maquiavel. In:_______ Vinicius de
Figueiredo (org.). Seis filósofos na sala de aula. 1. ed. São Paulo: Berlendis &
Vertecchia, 2006.
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MAQUIAVEL, N. O Príncipe. (coleção os Pensadores), Ed. Nova Cultura, São Paulo:
Nova Cultural, 1999.
MARTEL, L. C. V. O Tempo e a Política no Pensamento de Maquiavel. In:_______
Antônio Carlos Wolkmer (org.). Introdução à História do Pensamento Político. Rio de
Janeiro: Editora Renovar, 2003.
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EXISTENCIALISMO SARTRIANO: A PERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIA
“LIVRE” - Ricardo Fabricio Feltrin
Mestrando da Unioeste
[email protected]
Palavras-chave: Consciência – Fundamento – Liberdade
Para Sartre, o princípio de intencionalidade da consciência, herdado da filosofia
husserliana, é levado ao extremo, convertendo-se na negação de qualquer
substancialização da consciência. É possível verificar esta proposição na crítica
efetivada na obra Transcendência do ego, remetendo-a, especialmente a Husserl,
propondo a superação na concepção de qualquer consciência dada como substancial, ao
argumentar pela não existência de um ego transcendental1, como acreditara Husserl.
Nos enunciados iniciais do texto sartriano, percebe-se seu empreendimento em
demarcar seu âmbito de discussão ao sustentar esta tese,
Para a maior parte dos filósofos, o Ego é um ―habitante‖ da consciência. Alguns
afirmam a sua existência formal no seio da >>Erlebenisse>>como um princípio vazio
1
O ego cogito na concepção husserliana, particularmente nas Meditações Cartesianas, é a subjetividade
transcendental, isto é, ―seguindo os passos de Descartes, o grande gesto de voltar-se sobre si mesmo, o
qual se corretamente realizado, conduz a subjetividade transcendental‖ (HUSSERL, 2001, p.36).
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de unificação. Outros – psicólogos na maior parte – pensam descobrir a sua presença
material, como centro dos desejos e dos actos, em cada momento de nossa vida
psíquica. Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência nem formal
nem materialmente: ele está fora, no mundo, é um ser no mundo, tal como o Ego de
outrem (SARTRE, 1944, p.43).
O conceito de consciência enquanto inserida no mundo é extremamente importante, pois
se dá como resultado da desconstrução da concepção da possibilidade de uma tese
egológica. Todavia, como constatado no excerto supracitado, a existência de um ego
parece não ser negada, a preocupação do autor remete-se a perspectiva de ―desprendêlo‖ da consciência e encontrá-lo no mundo. E por essa razão é proposta a
Transcendência do ego, o ego efetiva-se fora de si, transcende-se visando ao mundo,
aos objetos dados fenomenicamente para o indivíduo de forma que este possa atribuir,
por meio do conhecimento2, significado a esta multiplicidade, justificando assim que só
podemos conhecer o mundo por meio da consciência.
A consciência mostra-se como consciência de alguma coisa, este enunciado contém em
si a tese da transcendentalidade, já que ela tem que sair de si, então, não consente
―conteúdo‖ em si, mas o é intencionalmente visado. Para Sartre, “O primeiro passo de
uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a
verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência
posicional do mundo” (SARTRE, 2011, p.22). É notoriamente explícita a tese da não
substancialização da consciência, pois legitimar em si a origem de toda espécie de
2
A perspectiva sartriana é de conceber o conhecimento como ―presença a...‖. De certa maneira, isto só é
possível por meio do Para-si quando se faz presente ao objeto, conhecido como Em-si. Este jamais poderá
ser presente a algo. Assim a dimensão do conhecer é ―colocar a consciência‖ como presença imediata ao
objeto. (Cf. SARTRE, 2011, p.234). Desse modo: ―o conhecimento consiste na manifestação fundamental
do Para-Si pela razão mesma de que a natureza do Para-Si é a de estar ligado ao Ser em uma relação
ontológica de base (―toda consciencia é consciencia de alguma coisa‖). Além disso o Para-Si sendo uma
―presença a‖ é capaz de negações, acha-se habilitado a ficar presente aquilo que ele não é. Conhecer
alguma coisa é estar presente aquilo que não se é‖. (PERDIGÂO, 1995, p.51).
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fundamentos resultaria no puro comprometimento à realidade humana, na ótica
existencial. Pois, a sua efetividade na transcendência posicional, alcança algo que não a
si mesma, isto é, ao voltar-se para si jamais encontrará algum conteúdo, justamente pelo
fato de o mundo encontrar-se deslocado da esfera possível da interioridade da
consciência.
Negando-se a interioridade, então é preciso concordar com seu alcance na prerrogativa
de abertura do mundo, na atribuição de significado a toda espécie de objetos enquanto
fenômenos surgidos para o sujeito. Deste modo é imprescindível, a concepção de que o
mundo só pode estar fora da consciência, como espaço necessário de legitimar a
atividade posicional enquanto tal. O pensamento sartriano adota a via da nadificação da
consciência, isto é, não consente a existência a priori de ―coisas‖, nem a título de
representação. A Transcendência do ego é efetivada, pois o eu deixa de ser habitante da
consciência e passa a alcançar-se quando lançado no mundo.
A partir desse entendimento, compreende-se a crítica sartriana ao negar a consciência
como em-si, realidade plena, fechada em si mesma, bastando-se. Sartre é incisivo nesta
leitura, mesmo porque sem a compreensão deste pressuposto é impossível conceber o
existencialismo.
A partir desse esvaziamento da consciência, Sartre vai buscar na filosofia husserliana
uma definição que lhe surge de forma capital, a consciência como consciência de
alguma coisa, ora esse pensamento permite a filosofia sartriana alocar a atividade
consciente como abertura de mundo, levando em consideração seu posicionamento,
dado de forma transcendental no alcance de determinado objeto. É claro, como o
filósofo percebe a subjetividade enquanto consciência e esta como para-si, em oposição
a toda espécie de em-si, a intencionalidade ocorre na exata relação do para-si com o emsi,
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Sartre desenvolveu o conceito de intencionalidade para mostrar que o Para-Si precisa
do Em-Si para existir. A consciência de amar, por exemplo, é consciência de ―amar
alguma coisa‖. a consciência de fé é consciência de ―fé em alguma coisa‖. No ódio, no
amor, no desejo, algo sempre é amado, odiado, desejado. A consciência é esse
deslizamento, esse partir ―em direção as coisas‖, essa relação com um objeto (real ou
imaginário). Sendo Nada sobre um fundo de Ser, o Para-si só pode existir perseguindo
o Ser, fazendo um ―apelo ao Ser‖. (PERDIGÂO, 1995, p.46)
A compreensão deste trecho, parece remeter o para-si somente enquanto possibilidade
pela alternativa de termos a realidade objetiva diante dos olhos, e nossos atos
judicativos só serão efetivos porque, evidentemente, outorgamos a eles o significado a
partir da condição estabelecida na dimensão fenomênica. É claro que o para-si em si
mesmo não pode ser nada, tão logo sendo-o, resultaria na tese conteudista. Todo espaço
de constituição só terá sentido se estiver sendo posicionado, a partir da consciência,
enquanto presença a si. Carecendo-se dessa realidade não há objetos, da mesma forma,
sem objetos a impossibilidade da consciência é tal qual o nada.
Há de se concordar com esta via, o para-si apresenta-se como apelo ao ser, e,
inegavelmente, é límpida a concepção de situar-se fora, inserida no mundo, todavia é
inaceitável chegar-se a seguinte conclusão: acreditar sermos a percepção e o resultado
da imaginação. A inadequação do termo é válida para refletirmos, pois, em um primeiro
momento somos tentados a acreditar na identificação do exterior como sendo nosso,
todavia a perspectiva sartriana é o desvelar da consciência numa ação nadificadora, isto
é, o posicionamento indica-a como não sendo, ou não-ser. Ao perceber o livro sobre a
mesa, ela concluirá como não-ser livro, e assim sucessivamente. Poderia perguntar-se
sobre o não-ser-consciência, da mesma forma que a consciência não é o seu
posicionamento, assim também o resultado desta apreensão não pode sê-la; não-serconsciência é correlato imediato com o em-si sartriano.
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O eu transcendental, a exemplo daquele constituído por Husserl como eu puro3, na
perspectiva sartriana, não tem sentido de existência em si mesmo. De qualquer forma,
aceitar a tese de um eu como habitante da consciência é implodir a premissa
fundamental do existencialismo sartriano, a existência precede a essência.
Evidentemente é imprescindível abrir-se parêntesis e deter-se neste enunciado visando
alinhar a compreensão desta frase que ao primeiro olhar pode ser entendida como um
estágio natural de todo existencialismo, condição sine qua non. Havendo um eu essa
tese cai por terra e inverte o fator de compreensão, resultando em uma tese idealista,
ligando a razão de ser a sua essência, isto é, o determinismo da existência pela essência.
Por outro lado, o conceito de natureza humana permeou a filosofia moderna,
especialmente admitindo o pressuposto da existência de um Deus com a finalidade
original de substância ou substrato que sustenta a existência. Em Descartes, por
exemplo, a ideia de um Deus como infinito remetendo ao finito é a configuração desta
possibilidade, a passagem de um estado a outro ocorre por meio da vontade e da
inteligência. Já em Kant Deus tem atuação com um caráter regulativo na razão prática.
Na razão teórica identifica-se com o sujeito lógico formal do ―eu penso4‖ aquele que
deve acompanhar todas as representações.
Sartre põe em cheque, sucumbindo esse esquema, fazendo da consciência um vazio
total, suficientemente para ser concebida como indeterminismo radical. É nesta
perspectiva que devemos analisar tão expressivo conceito: “a existência precede a
essência”. Mas afinal, quais as implicações contidas neste pensamento.
3
4
Compreendido como subjetividade transcendental.
Cf. Crítica da Razão Pura, §16, B131. 2ª Crítica.
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Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livrou ou corta-papel;
esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; tinha como
referenciais, o conceito de corta-papel assim como determinada técnica de produção,
que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é,
simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado,
tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse
um corta-papel sem saber para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que,
no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades
que permitem a sua produção e definição – precede a existência; e desse modo,
também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada.
Eis aqui uma visão técnica do mundo em função da qual podemos afirmar que a
produção precede a existência.
Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um
artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos – que se trate de
uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz –, admitimos sempre que a
vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que
Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de
homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do
industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de
determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo
uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individual materializa certo
conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ateísmo dos filósofos
elimina a noção de Deus, porém não suprime a ideia de que a essência precede a
existência (SARTRE, 1987, p.5).
Este trecho é um dos pilares do existencialismo, a subjetividade deve ser entendida a
partir da terminologia específica e tudo o que esta abarca, isto é, a partir das estruturas
do para-si, por esta razão, faz-se necessário desconsiderar o entendimento da
subjetividade enquanto cogito cartesiano, ou o eu penso kantiano ou mesmo o espírito
absoluto de Hegel.
Assim, a filosofia sartriana é a do para-si. Somente o homem concebido a partir destas
estruturas torna possível o conhecimento de mundo e do homem. É por meio do para-si
que o autor francês funda a ideia do projeto, traduzido como a possibilidade ontológica
entendida na forma modal de tempo futuro, pois o futuro é a pura possibilidade, ou seja,
a futuridade é a condição para efetivarmos nosso modo ser.
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A subjetividade, por esta via, é sinônimo de horizontalidade, o homem opera a partir de
um campo de possíveis, o rol das escolhas é a presentificação do futuro projetado, neste
aspecto, o homem deve prescindir onticamente do ―querer escolher‖, ou seja, ele não
pode querer escolher nada, pois esta esfera é a dimensão do seu projeto. O projeto se dá
a partir do nada, da ausência completa de fundamentos, e, por isso, é um absurdo
procurar encontrar algum alicerce. Dessa maneira, o projeto não determina-se,
exclusivamente, por meio da exterioridade, contudo, a liberdade é a configuração
suprema e inalienável da arquitetônica deste projeto. Dessa forma, ele não pode ser
decidido por nenhum de nós, contudo é decisivo nas escolhas, afinal de contas, somos
aquilo que podemos ser, por intermédio de nosso projeto, ultrapassando simplesmente o
nosso querer.
Portanto, a consciência no existencialismo sartriano é concebida enquanto para-si na
perspectiva do projeto original, na dimensão da nadificação essencial de qualquer
substância, ou essência em seu interior. Assim, sua possibilidade é a inegabilidade da
liberdade que não é ôntica, ou seja, é estatutamente ontológica, tão logo, a consciência é
imprescindivelmente livre.
REFERÊNCIAS
HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas. Introdução à fenomenologia. Trad.
Frank de Oliveira. Santana, SP: Madras editora, 2001.
PERDIGÃO, Paulo. Existência e liberdade. Uma introdução à filosofia de Sartre. Porto
Alegre, RS: L&PM, 1995.
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SARTRE, Jean-Paul. A Transcendência do Ego, seguido de Consciência de Si e
Conhecimento de si. Lisboa: Univerlaia. Edições Colibri, 1994.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de
método. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Rita Correia
Guedes, Luis Roberto Salinas Forte, Bentro Prado Jínior. 3ª ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1987. (Os Pensadores).
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Trad.
Paulo Perdigão. 19ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
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FILOSOFIA E EDUCAÇÃO NA GRÉCIA ANTIGA - Hélio Clemente Fernandes
UNIOESTE
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Introdução
Com este trabalho busca-se refletir sobre a filosofia e a educação realizada na Grécia
Antiga, sobretudo, no que tange as cidades de Atenas e Esparta. Sendo assim, intenta-se
compreender porque o ensino em Atenas se diferenciou do ensino de Esparta. Que estes
escritos possam contribuir na questão do entendimento acerca da filosofia e a educação
destas duas cidades que tiveram um papel preponderante na Grécia Antiga. O fato é que
enquanto Esparta, na visão de muitos historiadores, ficou conhecida pelo predomínio da
educação-guerreira; Atenas tornou-se conhecida pelo desenvolvimento cultural (por ser
o cérebro). No limite, também se pretende compreender porque Atenas passou a
valorizar num dado momento a formação intelectual ao lado da formação guerreira.
Assim sendo, para expor o texto, julgou-se necessário a divisão em dois títulos
principais. Na primeira parte é feita a dissertação sobre a organização social e o ensino
na Grécia Antiga: Atenas e Esparta. Na segunda etapa busca-se apresentar a educação
realizada pelos filósofos e sofistas.
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A organização social e o ensino na Grécia Antiga1: Atenas e Esparta
A Grécia Antiga não constitui uma unidade político-administrativa, pois, era formada
por uma diversidade de cidades-estados, em que cada cidade gozava de autonomia, com
suas leis, seus costumes, seus deuses, sua economia, sua política etc. Das inúmeras
cidades-estados gregas destaca-se Esparta e Atenas. Enquanto, a primeira tornou-se
famosa por valorizar as atividades guerreiras e desenvolver uma educação severa,
voltada para a formação militar, a segunda buscou enfatizar a formação intelectual ao
lado dos cuidados com a educação física. De modo que, segundo Roger Gal ―foi Atenas
a herdeira e a alma desta civilização. Esparta deixou-nos somente um belo exemplo de
uma civilização militar‖ (1976, p. 33). Compreende-se, desta maneira, que os espartanos
ao contrário dos atenienses, não são educados para os refinamentos intelectuais, nem
afeitos aos discursos longos e às discussões.
Assim, com uma educação predominantemente física e moral em detrimento do estético
e intelectual (onde a leitura e a escrita eram ensinadas em extensão limitada), o ensino
em Esparta acontecia durante os jogos, ao ar livre.
Todo espartano adulto era um professor; e todo menino espartano tinha um tutor,
escolhido sob o critério da estima mútua. Professor e aluno não estavam unidos por
nenhum laço econômico, mas pelos laços de amizade e afeto. Mediante essa
camaradagem, geralmente fora das horas do treino ginástico regular, o menino recebia
educação sobre justiça, honra e patriotismo, espírito de sacrifico, domínio de si mesmo
e honestidade (MONROE, 1970, p. 39).
Não obstante, é preciso que se ressalte a ponderação de Larroyo sobre o perigo das
reduções interpretativas, relativas ao predomínio da educação-guerreira em Esparta,
1
É preciso ter cuidado, pois, tornou-se ―comum nos referirmos à educação grega como aquela oferecida
por Atenas a seus cidadãos‖ (ARANHA, 1989, p. 39).
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quando diz: ―não se deve exagerar isto a ponto de considerar a cidade como um
acampamento militar e refratária à cultura do espírito‖ (1982, p. 141). Com esta
compreensão, observa-se que no decurso da história grega, Atenas (por sua vez) passou
a valorizar a formação intelectual ao lado da formação guerreira. E, ao buscar entender
porque o ensino em Atenas se diferencia de Esparta se confirma o fato da educação
encontrar-se articulada com a sociedade que a sustenta. Diferentemente de Esparta,
Atenas a partir do século V a.C. experimenta mudanças em que ao passar da fase
agrícola para a comercial e marítima, fez com que uma ―nova classe social‖ se
sobrepusesse à classe aristocrática dando lugar a uma democracia mais extensa. Somase ainda, as guerras de libertação contra a Pérsia que contribuíram para aumentar o
poder de Atenas. Devido a estas transformações de âmbito econômico-político e social,
em Atenas, privilegia-se a ―coordenação de pensamento e ação, o ajuste da conduta ao
preceito, da palavra à ação. Daí resultou aquela harmonia entre a vida interior de
pensamentos e a conduta exterior, que constitui o ideal grego‖ (MONROE, 1970, p. 44).
Revela-se, deste modo, a construção do ideal de formação completa do homem, com a
educação intelectual associada à arte da guerra.
Acresce ainda, a constatação de que o surgimento da polis ateniense foi fundamental
para à experiência da vida pública enquanto espaço de debate e deliberação, tornando-se
campo fértil para o florescimento da filosofia. Pautada na divisão entre cidadãos e
escravos a democracia ateniense se alicerçou e na forma como se organizou teve na
retórica o seu destaque dentre aquilo que deveria ser ensinado a um cidadão ateniense.
A retórica, de certa forma, acaba por ser a arte possível e necessária à sociedade de
classes da época. A participação - na vida da polis - acontecia por meio dos debates
públicos, pela defesa argumentada das posições dos cidadãos nas assembléias.
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A autoridade era pública e coletiva e, por conseguinte, com base nestas considerações se
explicitam os motivos pelos quais o pensar, o falar e o discutir eram tão valorizados.
Estas considerações históricas possibilitam a compreensão da valorização da retórica na
vida política de Atenas e justifica o fato dela constituir-se no conjunto do que havia de
ser ensinado, de modo particular, ao cidadão ateniense. Acrescenta-se, ainda, o fato de
que nesse tempo, não se compreendia um indivíduo que não participasse das decisões
da polis: ―Ora, aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa por
bastar-se a si próprio, não faz parte do Estado; é um bruto ou um deus‖
(ARISTÓTELES, 2006, p. 13).
Enfim, objetivou-se expor até aqui um pouco das diferenças na filosofia/educação
realizado por Esparta e Atenas, de modo particular. Este exercício foi acompanhado
pela tentativa de entender o modo como cada uma se organizava socialmente. A seguir,
com a finalidade de compreender um pouco mais o tema apresentado, passa-se a
apresentar um pouco do embate entre os filósofos e os sofistas, com a finalidade de
aprender alguns elementos que contribuam para a compreensão da filosofia e da
educação, nesse período, onde a naturalização da escravidão era tida como a base das
relações sociais.
A educação realizada pelos filósofos e sofistas
Inicialmente é conveniente que aconteça a definhamento do preconceito popular acerca
dos sofistas que os consideram tergiversadores das idéias, enganadores. Afinal, eles são,
de acordo com inúmeros pesquisadores, os primeiros professores, educadores
profissionais. Estudos indicam que os sofistas trabalharam durante a metade do século v
a.C. num período de inúmeras transformações sociais e políticas em Atenas. Nesta fase
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a cidade de Atenas se converteu em grande potência econômica e comercial onde o
regime democrático substitui o aristocrático. Neste panorama, pode-se dizer que os
sofistas eram homens de seu tempo, ―eram professores ambulantes; percorriam as
grandes cidades, ensinando as Ciências e as Artes, com finalidades práticas,
particularmente, a eloquência, em troca de uma elevada retribuição pecuniária‖
(LARROYO, 1982, p. 159).
Até nesse período, o ideal dominante era aquele concebido e imposto pelos senhores da
terra. Contudo, com o desenvolvimento do comércio e das indústrias o ideal dominante
passa a ser contestado por aqueles que até então tinham ficado excluídos do ginásio.
Pode-se dizer que os Sofistas são os ideólogos da ―nova riqueza‖ advinda da ascensão
dos comerciantes, ―vindos de todas as partes do mundo grego, os sofistas se encontram
em Atenas. Os mais famosos foram: Protágoras (485-410 a.C.), de Abdera, Górgias
(485-380 a.C.), de Leôncio, na Sicília, Híppias, de Élis, e ainda Trasímaco, Pródico,
Hipódamos etc‖ (ARANHA, 1989, p.46).
Foi com o crescimento da polis, em consequência da ampliação das atividades
comerciais que ocorre o aumentou da tolerância para com os mestres estrangeiros; bem
como a liberdade na esfera política acarretando maior liberdade individual ao
pensamento e ação. ―Os sofistas foram, pois, a nova classe de professores que surgiram
em resposta às novas exigências‖ (MONROE, 1970, p. 54). Duas características vão
torná-los odiados pelos gregos ponderados: a primeira se refere ao fato de se
apresentarem como entendedores e capazes de ensinar sobre qualquer assunto e, a
segunda, por cobrarem por seus ensinamentos.
Protágoras foi o primeiro a propor um ensino deste tipo comercializado: não havia,
antes dele, semelhante instituição; os sofistas não encontraram, pois, uma clientela já
feita: foi-lhes necessário granjeá-la, persuadir o público a recorrer a seus serviços, o
que explica toda uma série de expedientes publicitários; o Sofista vai de cidade em
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cidade à cata de alunos, levando atrás de si aqueles que já arrebanhou (MARROU,
1975, p. 86).
O sofista era um educador. No entanto e naturalmente, o sofista para defender sua
existência vendia técnicas de aprendizagem de oratória, matemática, geometria, etc. E,
como ―esta franca publicidade não se faz sem algum charlatanismo: estamos na Grécia e
na Antiguidade: para impressionar seu auditório, o Sofista não hesita em pretender a
onisciência e a infalibilidade‖ (MARROU, 1975, p. 87). Com isto fornecem as
ferramentas necessárias para serem atacados por seus opositores.
Importa salientar, ainda, que grande parte ou quase tudo do que conhecemos sobre os
sofistas, bem como sobre os pré-socráticos, foi por meio de seus contestadores. Isto é
atestado por Guthrie: ―Com os Sofistas achamo-nos na mesma situação dos présocráticos, de reconstruir as idéias de homens cujos escritos não mais são em sua grande
maioria disponíveis, visto que nossa fonte mais rica de informação é Platão, o seu
oponente filosófico‖ (1995, p. 15).
O embate entre Platão e os Sofistas levou o primeiro a se declarar como o filósofo
verdadeiro ou amante da sabedoria e tachar os segundos como superficiais e
enganadores, criadores de sofismas. Contudo, aponta-se que a realidade é bem mais
complexa, portanto, se constitui num reducionismo desmedido nivelar os sofistas como
inimigos do conhecimento em que, comumente, muitos estudiosos ao se deixarem
persuadir pelo pensamento de Aristóteles e Platão acabam por reforçar o sentido
negativo endereçado aos sofistas, apresentando-os numa posição inferior em relação à
filosofia e ao compromisso com o ensino, desconsiderando-os enquanto pensadores,
filósofos.
Todavia, convêm destacar que a educação oferecida na Grécia Antiga tinha um
endereço certo: à classe dominante, os donos de propriedade, os que podiam pagá-lo, os
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detentores do poder político e econômico e não a grande massa das classes subalternas
de escravos e trabalhadores livres. Refere-se do comércio do ensino destinado aos que
podiam pagar. Trata-se da venda dos saberes, da ―mercantilização do ensino‖ como dirse-ia na atualidade. Neste panorama, vale recordar que tanto Aristóteles como Platão
eram pertencentes a classes sociais privilegiadas. Aristóteles, por exemplo, foi preceptor
de Alexandre e seus ensinamentos jamais ocorreram por uma questão de generosidade.
Do mesmo modo, Platão não se ocupou em ensinar escravos, campesinos
empobrecidos, senão aqueles suficientemente capazes de recompensá-lo com os
benefícios de seu tempo. Os sofistas também não transmitiram seus saberes sem em
troca obterem um pagamento. Portanto, pode-se afirmar que o trabalho docente na
Grécia Antiga articula-se com os interesses de produção e perpetuação da sociedade
daquele tempo.
É neste cenário, tendo presente a totalidade e contradição que se pode compreender o
homem, a educação e as sociedades gregas. Nesta perspectiva, para Manacorda, os
detentores do conhecimento forneciam uma educação que favorecia o domínio das
classes superiores com prejuízo para as subalternas.
Encontraremos, antes de tudo, a separação dos processos educativos segundo as
classes sociais, porém menos rígida e com um evidente desenvolvimento para formas
de democracia educativa. Para as classes governantes uma escola, isto é, um processo
de educação separada, visando preparar para as tarefas do poder, que são o ‗pensar‘ ou
o ‗falar‘ (isto é, a política) e o ‗fazer‘ a esta inerente (isto é, as armas); para os
produtores governados nenhuma escola inicialmente, mas só um treinamento no
trabalho, cujas modalidades, que foram mostradas por Platão, são destinadas a
permanecer imutáveis durante milênios: observar e imitar a atividade dos adultos no
trabalho, vivendo com eles. Para as classes excluídas e oprimidas, sem arte nem parte,
nenhuma escola e nenhum treinamento mas, em modo e em graus diferentes, a mesma
aculturação que descende do alto para as classes subalternas (MANACORDA, 1992,
p. 41).
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Percebe-se, assim, que o papel precípuo de quem ensinava na Grécia Antiga, era o de
preparar os adolescentes para as tarefas da vida adulta do cidadão. Esta preparação
dependia da posição que o discípulo ocupava na escala social desse tempo, que o ensino
baseava-se fundamentalmente na observação, imitação e memória.
Considerações finais
Assinala-se, à grosso modo, que enquanto uns eram preparados para exercerem a
posição de mando, outros eram lapidados para obedecer. Logo, entende-se porque a
educação (domínio da escrita, da oratória e a formação militar) não era para todos e sim
somente para os pertencentes à classe dominante. Em Atenas, por exemplo, faziam parte
da classe dominante os homens livres com mais de 18 anos, que cultuavam os mesmos
deuses e praticavam a mesma religião. Aos escravos, mulheres e estrangeiros,
reservava-se o espaço da casa (oikos) e não o da cidade (polis).
Em linhas gerais, apresentamos algumas nuances da educação na Grécia Antiga e a
posição de alguns de seus principais interlocutores. Deste modo, muito embora, seja
dominante o pensamento de que os filósofos Platão e Aristóteles foram os grandes
mestres da Grécia Antiga, não podemos esquecer as contribuições para com a educação
realizadas pelos sofistas.
REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. São Paulo: Moderna, 1989.
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ARISTÓTELES. A Política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 2006.
GAL, Roger. História da Educação. Lisboa: Vega Universidade, 1976.
GUTHRIE, W.K.C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus, 1995.
LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação, da Antiguidade aos nossos
dias. São Paulo-SP: Editora Cortez; Autores Associados, 1992.
MARROU, Henri Irénée. História da Educação na Antiguidade. São Paulo, E. P. U.,
Brasília, 4ª reimpressão, 1975.
MONROE, Paul. História Da Educação. São Paulo: Editora Nacional, 1970.
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GADAMER: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERFIL DA NOSSA ÉPOCA Evanildes Lorencena
Graduada em Letras- Língua Portuguesa/UNIJUI
Mestranda em Educação nas Ciências – UNIJUÍ
Bolsista CAPES
[email protected]
Este texto destaca importantes considerações filosóficas, morais e políticas que
Gadamer apresenta, em Verdade e Método, acerca do perfil de nossa época. Para o
autor, entre os traços que caracterizam esse perfil não consta: ―o crescimento exagerado
do domínio da natureza, mas [sim] o desenvolvimento de métodos científicos de
controle para a vida da sociedade‖ (VM II, p. 183); nesse contexto, observa Gadamer,
mesmo sendo desejo de todos, não existe uma ordem mundial entre os povos, o que se
pode constatar pelo discurso geral que aponta a importância da coexistência. Neste
sentido, falar em ordem mundial e controle da sociedade como um todo é insano, pois
há enorme falta de consenso do que seja, primeiramente, uma ―ordem justa‖. Em
algumas áreas, como da saúde, do tráfego aéreo e da alimentação, pode-se até falar de
uma ordem mundial, sob alguns aspectos, mas supor a partir disso que se pode progredir
e ampliar esta ordem aos demais aspectos sociais é praticamente impossível, já que não
se pode, por exemplo, desvincular o aspecto político do econômico e também por que o
―ser‖ é político em sua constituição.
Gadamer argumenta que o fato de sabermos se é melhor admitir que uma empresa tenha
ganhos exagerados em prol de um crescimento generalizado do bem estar ou preferir,
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por motivos político-sociais, uma economia estatal e burocratizada, não significa que
estamos agindo puramente segundo nossa visão econômica do social. Há também
questões políticas aí envolvidas. Ele diz ainda que não é estabelecendo racionalmente os
conceitos de ―ordem econômica‖ e ―ordem social‖, que poderemos evitar a
autodestruição a desordem, pois sempre haverá impasses que impedem um consenso
racional (e mundial) sobre estes dois aspectos. Ele diz isso por saber que não há nenhum
consenso para o que seria justo ou injusto e sobre quais critérios são utilizados para
medir a ―justiça‖ de questões de ordem mundial.
Falando especificamente sobre o caso da política, Gadamer questiona:
Será possível pensar a idéia de uma ordem política determinada que não suscite idéias
contrárias? Será possível pensar idéias políticas de ordem que não favoreçam a uma
ou outra das potências políticas existentes, de tal modo que o seu favorecimento
implique o desfavorecimento de outras? Será que se deve dizer que a existência desses
antagônicos interesses de poder constitui uma desordem? Não serão eles a própria
essência da ordem política?(VM II, p. 185).
Para compreendermos melhor a idéia de desordem proposta por Gadamer, pensemos
como ele o fez, no sentido de que é bem mais natural que as nossas representações do
que é ―justo e bom‖ sejam bem menos precisas do que as representações do ―injusto e
do mal‖. O negativo tem, como sabemos, a vantagem de se impor por si próprio à nossa
vontade de transformação, como aquilo que deve ser eliminado e negado, e justamente
por isso tem seu significado bem mais definido. Da mesma forma, é bem mais fácil
definir o conceito de desordem, para superá-lo, como algo contrário à ordem.
Para Gadamer (VM II, p. 185), é comum pensarmos a existência de países
subdesenvolvidos como desordem. Da mesma forma se pensa em desordem quando há
um crescimento exagerado da população, ou ainda quando há a dilapidação dos recursos
naturais, ou o desperdício de riquezas, etc. No entanto, afirma ele, todas essas
representações específicas sobre uma ordem formam o tecido da política mundial. E por
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suas determinações antagônicas e diversas é que ele considera impossível que uma
determinada idéia de ordem consiga alcançar unanimidade geral.
Por mais bem-sucedida que seja uma política de planejamento, nada garante que ela seja
fundamento para uma ordem racional do mundo, pois a cientifização encobre a
incerteza de seus critérios de ordem, logo no instante em que transforma o todo da
configuração do mundo em objeto de seu planejamento, elaborado e controlado
cientificamente. Exemplo disso são as pesquisas de opinião, que, se não fomentam, ao
menos tornam conscientes as incertezas com relação a seus fins últimos.
Enfim, para Gadamer,
Toda reflexão sobre as possibilidades de ordenação de nosso mundo deve partir da
profunda tensão existente entre a autoridade da ciência, de um lado, e as formas de
vida dos povos, cunhadas pela religião, usos e costumes da tradição, de outro. (VM II,
p. 186).
O verdadeiro problema de ordem mundial, pensa ele, é saber como se deve avaliar o
significado do processo civilizatório possibilitado pela ciência e conciliá-lo com as
tradições religiosas e morais de nossa época. O fato é que somos aprisionados por uma
ciência moderna que sempre e somente gira em torno de seu próprio círculo, tendo em
mente somente os métodos e possibilidades de controle das coisas, como se não
houvesse desproporção entre o âmbito dos recursos e possibilidades e as normas e
finalidades da vida. O pensamento científico renega e torna supérflua a pergunta pelos
fins, em nome do progresso e do ―controle‖ de recursos (VM II, P. 188).
O que parece insolúvel é a confusão gerada pelo domínio da ciência sobre a situação
concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. ―Fato é que as ciências sociais
modernas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a
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determinados fins‖ (VM II, p.192). Isso se dá pela contradição entre a verdade
atemporal daqueles que fazem ciência e estruturação temporal daqueles que a usam.
Isso não quer dizer que não haja outro ideal moral ou político a não ser a adequação à
ordem social vigente e aos seus parâmetros, mas que toda a decisão concreta do
indivíduo é codeterminante para a validade universal.
É de grande pertinência a comparação que Gadamer faz entre este tipo de impasse no
que diz respeito à razão; em relação à técnica, com o uso da linguagem. Tal
comparativo diz respeito ao uso correto e justo da mesma. Neste caso existem também
regras que dizem o que é válido ou não e cada sociedade cria seus próprios códigos, e
apesar das diferenças, ela sobrevive, pelo constante reformular de seus usos, enfim,
sobrevive pela ação de cada indivíduo. Não é por acaso, sugere o autor, que, em
contextos semelhantes, usamos expressões metafóricas como a da necessidade de
―colocar-nos na situação‖ a fim de afastar generalizações e ponderar sobre o que é
factível e possível. As situações não tem caráter de objeto, portanto, não basta o
conhecimento dos dados objetivos para alcançar a ―verdade‖ da mesma. Dizendo de
outro modo, e nas palavras do autor ―encontrar-se numa situação possui sempre um
momento inalcançável para o conhecimento objetivante‖ (VM II, p193).
Encontramo-nos seguidamente diante de situações em que temos que ponderar sobre a
possibilidade mais correta, pois não nos encontramos diante de um saber que pudesse
reivindicar uma validade universal. Conforme Gadamer,
Trata-se de deliberação-consigo-próprio, feita pelo individuo (ou também pelo grupo)
diante da situação que exige uma decisão. Aqui não cabe o saber do especialista, que
vai ao encontro dos outros como quem já sabe, e sim de um saber de que se precisa e
que nenhuma ciência pode fornecer (VM II, p. 198).
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Este tipo de deliberação, que dá a palavra ao outro e confronta-se com ele, é capaz de,
verdadeiramente, produzir um estado de solidariedade que une a todos. Isto é,
obviamente, um contra-senso no que diz respeito à técnica que preconiza a ciência
moderna. Precisamos admitir, conforme o autor, que a ciência tem um amplo futuro nas
relações desta ordem, o que não se pode permitir é que ela expulse ou sufoque todas as
outras formas de ordenação e entendimento humanos.
Num mundo pretensamente globalizado, os seres humanos necessitam de uma tomada
de consciência, de maneira cada vez mais lúcida, de que não são apenas as diferenças de
desenvolvimento econômico e tecnológico o que divide os povos e que não é apenas a
superação que irá uni-los, mas que são justamente as diferenças insuperáveis entre eles,
suas diferenças naturais e históricas, que nos ligam como seres humanos.
O exposto até aqui sobre as idéias do autor de forma alguma obscurece ou apaga a
difusão exagerada do uso da técnica e a consequente perda da flexibilidade no trato com
o mundo e com nossos semelhantes. Ao contrário, tomamos consciência de que todos
nos utilizamos da técnica, nos familiarizamos e nos encantamos com seu
funcionamento, e com isso perdemos nossa liberdade no que diz respeito ao nosso
próprio poder-atuar. Cabe aqui a pergunta: Para quem a ciência trabalha? Até que ponto
o uso da técnica está a serviço da vida? ―A partir daí delineia-se de uma nova maneira o
problema de toda civilização moderna, que é o problema da razão social‖ (GADAMER,
1983, p. 43). Isso desencadeia, segundo o autor, um desencantamento e uma
desmitologização ou ainda, uma eliminação de correspondências antropológicas
apressadas, e isso se converte num poder social cada vez mais forte por parte das
tecnologias economicamente rentáveis. Tal poder influencia perigosamente a formação
de opiniões de nossa sociedade. É um jogo de forças sociais, em que de um lado estão
os verdadeiros artesãos e de outro aqueles que ocupam seu lugar de forma desonesta e
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sem convicção. Cria-se, a partir disso, uma seleção de informações que podem ser
acessadas e que criam uma espécie de tutela e uma manipulação de espíritos. Isso
representa, para Gadamer, uma perda da razão, pois se observa, mesmo nos órgãos que
deveriam regular democraticamente as informações disponibilizadas, uma total apatia.
Mesmo que houvesse um aumento no grau ou na qualidade
das informações
disponíveis tecnicamente, isso não significaria um fortalecimento da razão social, pois
quando o indivíduo se sente, dentro da sociedade em que vive, dependente e impotente
frente às normas de vida que lhe são proporcionadas pela técnica, ele se torna incapaz
de constituir sua identificação. O que acontece, neste caso, é uma adaptação, e é aí,
segundo Gadamer, que reside o grande perigo, pois está se criando uma sociedade que
não toma decisões por si mesma. O fato é que o ser humano está sendo condicionado
dentro de um processo em que suas possibilidades de ascensão dizem respeito única e
exclusivamente à sua capacidade de se adaptar à função de administrador de uma tarefa
específica, isto é, a moderna sociedade industrial está conduzindo o ser humano a uma
objetividade perigosamente coercitiva.
Diante disso, retomamos à questão da linguagem, que dá ao ser humano a capacidade
de se distanciar em relação ao presente e que o torna capaz de atuar na escolha de meios
para fins determinados. Gadamer, em VM II, questiona: ―Como se apresenta, em nossa
civilização, marcada pela ciência, isso é, pela ciência empírica moderna, o legado da
antiga retórica e portanto,
a possibilidade de uma fundamentação e justificação
científica do saber sobre o homem transmitido por ela?‖ Quando falamos hoje a palavra
retórica, muitos a associam a uma arte antiga, ou ainda a algo depreciativo, não objetivo
e estranho. Gadamer propõe que se devolva a ela o seu valor e seu verdadeiro alcance,
pois ela abarca qualquer forma de comunicação baseada na capacidade de falar e é o
que dá coesão à sociedade humana. Ele diz ainda que, (...) sem falar uns com os outros,
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sem entender-nos uns com os outros, e até sem entender-nos quando faltam
argumentações lógicas concludentes, não existiria nenhuma sociedade humana ( VM II,
p. 371).
Torna-se evidente, portanto,a necessidade de se retomar, ou ainda, recobrar nova
consciência do significado e do lugar que a retórica ocupa em nossa sociedade. A
grande pergunta feita por Gadamer é de como se concilia essa nova idéia da
cientificidade com a antiga idéia de que os homens se desenvolvem uns para os outros,
uns entre os outros e uns junto aos outros (VM II, p 372). Ele questiona a partir disso
sobre o que seriam as chamadas ciências do espírito, seriam elas somente as ciências
―inexatas‖, capazes somente de competir com a moderna ciência tecnológica em termos
de prognósticos para o futuro?
Para tentarmos esclarecer um pouco estas questões pensadas por Gadamer, convém
trazer aqui o que ele pensa sobre o que são as ciências do espírito. O essencial para elas,
segundo ele, não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. Ele diz ainda que
uma complementação do ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da
cientificidade é o ideal de participação. ―Participação nas manifestações essenciais da
experiência humana tal como se configuram na arte e na história‖ (VM II, p. 374). Para
Gadamer, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta dele nas
teorias das ciências do espírito.
É neste ponto que Gadamer reconhece e esclarece que o modelo de diálogo se
caracteriza pelo seu caráter de decisão e de estrutura, isso é, como base para que ocorra
efetivamente a participação.
Isso por que o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual,
separado, que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos
participar da verdade e do outro pela partilha. (VM II, p. 374).
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Neste caso, trata-se de encontrar uma base comum, além da retórica e da crítica, além da
figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científicomoderna que tende a objetivar absolutamente tudo. Trata-se de levar em conta o
conceito de formação proposto por Gadamer, que a concebe estreitamente ligada ao
conceito de cultura e designa, antes de tudo, a maneira especificamente humana de
aperfeiçoar suas aptidões e faculdades. (VM I, p.45). Na formação proposta pelo autor
haveria uma apropriação daquilo em que, ou através do que, alguém é instruído. Há um
processo de integração e de assimilação, e nesse processo nada se perde, tudo é
preservado.
Segundo Gadamer, o ser humano nunca é aquilo que, por natureza, deveria ser. Isso por
causa de suas propensões à rupturas, à ir contra, daí a necessidade de ser ―formado‖.
―Cada indivíduo, portanto, que se eleva de seu ser natural a um ser espiritual encontra
no idioma, no costume e nas instituições de seu povo uma substância prévia de que deve
se apropriar, como o aprender a falar‖ (Ibid, p.50). É neste sentido que podemos pensar
que cada indivíduo está sempre a caminho da formação e da superação da sua condição
natural, na medida em que o mundo que o acolhe é formado humanamente em
linguagens e costumes.
REFERÊNCIAS
GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método / Hans Georg Gadamer; tradução de
Flávio Paludo Meurer. – Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 1997.
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________.Verdade de método II: complemento e índice/ Hans-Georg Gadamer;
tradução de Enio Paulo Giachini; revisão e tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.
– Petrópolis, RJ :Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco,
2002.
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INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO: NOTAS SOBRE CONDORCET E HANNAH
ARENDT - Sandra Janice Nunes
Meste
Unijui
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Desde as revoluções Americana e Francesa, sistemas políticos republicanos e
democráticos de governo têm vinculado suas questões educacionais diretamente com os
preceitos éticos, jurídicos e políticos nos quais eles se assentam.
Condorcet143, no século XVIII, é um bom exemplo de teórico e de homem de
ação, que desenvolveu argumentos em favor da ideia, segundo a qual, a instrução
pública é tarefa e dever do Estado para com a sociedade. Ele considerou que a instrução
não se resume à questão organizacional da escola, mas é também e, principalmente, uma
questão política. Quando a República oferece a todos a igualdade de instrução, assim
como os meios que dão acesso a ela, ampliam-se e difundem-se as luzes entre um maior
número de indivíduos, possibilitando que possam conservar as ―[...] boas leis, uma sábia
administração e uma constituição verdadeiramente livre‖ (CONDORCET, 2008, p. 21).
143
―A teoria da instrução pública condorcetiana está na origem da escola republicana e da instituição e
organização do ensino público nas Democracias modernas, acompanhadas do processo de laicização do
ensino, que deixou de ser catequético e clerical. Segundo Condorcet, a instrução é a base para a
Democracia, pois a razão prevaleceria nas decisões políticas em que o povo é o legislador. Se nos
sufrágios estão as causas dos erros, também se encontra lá a possibilidade de evitá-los, porquanto podem
ser conhecidos‖ (MAAMARI, 2009, p. 63).
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Além disso, para o autor, a desigualdade da instrução144 é uma das principais fontes da
tirania política, à medida que, manter o povo na ignorância de todos os assuntos e
conhecimentos favorece sua dominação.
Para Condorcet, o esclarecimento favorece as conquistas, assim como, a criação
de coisas, sejam objetos ou mesmo o conhecimento145, em forma de cultura, que é
aquilo que constitui um mundo humano e serve de base para as futuras gerações146.
A educação - atividade que Condorcet distingue da instrução – diz respeito à
formação das opiniões políticas e das opções religiosas147, pertence ao espaço da
família, enquanto que o Estado arbitra somente sobre a instrução, pois ―[o] poder
público não pode julgar a verdade de uma religião, portanto institucionalizá-la seria uma
144
Maamari afirma que: ―Somente quando a instrução pública for efetiva e abranger a todos –
independentemente do sexo, da raça ou origem social – a República tornar-se-á efetiva e de fato,
deixando de ser apenas de direito e formal. Decorre daí que o modelo de instrução a ser escolhido para
organizar e instituir a escola republicana será bastante relevante: o objetivo final deve ser a formação de
cidadãos capazes de gozarem plenamente dos seus direitos fundamentais, como também de executarem os
deveres necessários à vida social e à pátria‖ (MAAMARI, 2009, p. 62).
145
A instrução pública deve, ainda, favorecer o aperfeiçoamento constante dos seus cidadãos, não
bastando formar as crianças e não oferecer condições para que possam continuar seu esclarecimento, visto
que os conhecimentos se modificam e se ampliam. Além disso, aquilo que é importante que elas
aprendam até o momento em que ―[...] vierem a usufruir de seus direitos, quando vierem a exercer de
modo independente as profissões para as quais se destinam‖ (CONDORCET, 2008, p. 32-33), difere
daquela educação que elas irão buscar, enquanto adultas, para que não retornem à ignorância. Assim,
mesmo aquelas que não tiveram a sorte de se instruir, precisarão ter disponíveis os meios, de acessar o
conhecimento, para que possam corrigir essa lacuna.
146
Se esse aperfeiçoamento indefinido de nossa espécie for, como eu creio que é, uma lei geral da
natureza, o homem não deve mais se considerar um ser limitado a uma existência passageira e isolada,
condenada a desaparecer após uma alternância de felicidade e infelicidade para si, de bem e de mal para
aqueles que o acaso colocou junto dele; ele se torna uma parte do grande todo e colaborador numa obra
eterna. Numa existência de um momento, num ponto do espaço, ele pode, por seu trabalho, unir-se a
todos os séculos e agir ainda por muito tempo depois que sua memória tiver desaparecido da terra
(CONDORCET, 2008, p. 29).
147
―[...] uma educação completa estender-se-ia às opiniões religiosas; o poder público seria obrigado a
estabelecer tantas educações quantas diferentes religiões antigas e novas confissões houvesse, em seu
território, ou obrigaria os cidadãos de diversas crenças a adotar a mesma para seus filhos ou se limitar a
escolher entre o pequeno número que se tivesse escolhido encorajar‖ (CONDORCET, 2008, p. 46).
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tirania sobre as opiniões, constituindo um ato totalmente contrário à política e à moral‖
(MAAMARI, 2009, p. 69). A laicidade na instituição escolar pública evita que ocorram
discriminações, favorece a multiplicidade e acolhe as diferenças.
Para Condorcet, é importante não confundir igualdade de conhecimento com
igualdade política, pois ambas pertencem a esferas diferentes. Conforme Maamari
(2009, p. 67), ―[enquanto] a segunda [igualdade política] corresponde a um Estado de
direito, a primeira [igualdade de conhecimento] pode sempre ser posta em questão,
configurando um estado de fato e modificável‖.
O objetivo de Condorcet148 (2008) é, por um lado, possibilitar a todos uma
igualdade mínima de instrução149, para que isso favoreça a menor desigualdade social,
e, por outro, resguardar o direito da família em educar os seus filhos como melhor lhe
148
Condorcet, no século XVIII, é um dos idealizadores da escola pública, momento este que estava
superando o feudalismo, no entanto, se o projeto não se efetivou inteiramente nos períodos que se
seguiram, esse fato não invalida o grande passo que a modernidade deu, do ponto de vista da educação.
Se houve a hegemonia de uma classe pela busca por garantir o direito à instrução pública, isso não retira
dessa garantia sua legitimidade. Pois sob uma falsa pretensão de universalismo, se repudia as conquistas
de homens de ação. Sobre o argumento de que foi um movimento burguês que conquistou a instrução
pública, alguns movimentos, gostariam de acabar com a escola.
149
A instrução, que se ocupa dos conhecimentos científicos, inclui o conhecimento da tradição, da
história, dos valores, dos costumes, da constituição, das religiões, dentre outros. Seu cuidado e sua
presteza em refletir sobre a questão da educação e da instrução pública podem levar uma leitura apressada
a concluir que as distinções propostas sejam separações intransigentes. A ética, por exemplo, é uma das
áreas trabalhadas pela filosofia; no entanto, não significa que o curso de filosofia pretenda oferecer uma
forma definida do que seja o bem e o mal, mas uma reflexão sobre o que pode ser considerado bem e mal
dentro das perspectivas históricas e sociais. Na exposição que Condorcet faz sobre o que deve ser
ensinado, afirma que, na primeira série, devem ser trabalhadas Histórias destinadas a despertar os
primeiros sentimentos morais. ―Uma segunda parte do livro seria feita de curtas histórias morais, próprias
para fixar sua atenção sobre os primeiros sentimentos que, segundo a ordem da natureza, as crianças
devem experimentar. Ter-se-ia o cuidado de afastar dessas histórias qualquer máxima, qualquer reflexão,
já que não se trata ainda de lhes dar princípios de conduta ou de lhes ensinar verdades, mas de dispô-las a
refletir sobre seus sentimentos e prepará-las para as ideias morais que devem nascer, um dia, dessas
reflexões‖ (CONDORCET, 2008, p. 75-76).
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parecer dentro dos seus costumes. Isso não significa que considerasse a educação menos
importante que a instrução, ou que a limitasse a inculcar habilidades técnicas.
O Estado, em um sistema democrático republicano, deve garantir que os
propósitos da República para com a instrução, sejam efetivados. Para tanto, estabelece
os dispositivos legais para a regulamentação das escolas e dos conteúdos a serem
ministrados, visando sempre atender aos seus princípios fundamentais. A República, no
entanto, delimita a extensão da ação do Estado com o intuito de que ele se restrinja a
arbitrar somente no que diz respeito ao âmbito público. A distinção, portanto, entre
instrução e educação estabelecida por Condorcet distingue aquilo que diz respeito ao
âmbito público daquilo que é reservado ao espaço privado.
Uma educação comum não pode ser graduada como a instrução. Ela
precisa ser completa, senão será nula e mesmo prejudicial. Um outro
motivo obriga ainda a limitar a educação pública somente à instrução:
é que não poderia estendê-la mais do que isso sem ferir os direitos que
devem ser respeitados pelo poder público (CONDORCET, 2008, p.
43-44).
Enfim, para Condorcet (2008) o intuito da instrução é oferecer os elementos
necessários para que os indivíduos possam vir futuramente a exercer suas atividades
cívicas e não formar cidadãos ao mesmo tempo em que os ensina a ler e escrever.
Segundo o autor, aquele que, ao adentrar o mundo adulto, carrega as opiniões dadas
pela educação não é mais um homem livre, mas um escravo dos seus mestres. Pode-se
dizer, no entanto, que, ao invés de repetir a opinião dos seus mestres, repete as de sua
família; porém, isso, para Condorcet, é menos prejudicial, pois as famílias se
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diferenciam quanto a suas crenças, enquanto que o poder público seria favorecido pela
unicidade e hegemonia e converteria todos os cidadãos conforme lhe aprouvesse150.
Arendt (2005), por sua vez, ao abordar, no século XX, as relações entre política
e educação, em concordância com Condorcet (2008), enfatiza que a educação é uma
questão política central das sociedades atuais e que, por essa razão, não pode ser
considerada como um fato isolado e sem conexão com os acontecimentos mundanos e
políticos. A educação não deve descuidar as importantes questões da sala de aula,
contudo os assuntos nela envolvidos não se resumem ao fato de um aluno não saber ler.
As instituições escolares desempenham papeis importantes nas sociedades democráticorepublicanas e são elos fundamentais entre o privado e o público; dependem do Estado
que as avaliza e garante sua existência, assim como para assegurar que elas cumpram os
propósitos para os quais foram estabelecidas. A escola é responsável por apontar o
mundo como ele é e ensinar sobre os conhecimentos constituídos pelas gerações
passadas para que sirvam de base para novas reflexões. Se ela não instruir e se reduzir a
formar ideologicamente cidadãos (como ocorre nos regimes tirânicos e totalitários) não
faz nada além de corromper os jovens espíritos e usurpar um direito da família.
A questão da educação não pode ser confinada a fronteiras de determinados
países como se uma possível crise fosse local e vinculada a uma dada particularidade.
Nem mesmo é algo que diz respeito somente aos especialistas, pois o que a torna uma
150
A educação doméstica pode vir carregada de preconceitos e vícios. No entanto, para isso, o melhor
antídoto são as luzes que resultam da sábia instrução, ―[...] ao passo que os preconceitos infundidos pelo
poder público são uma verdadeira tirania, um atentado contra uma das partes mais preciosas da liberdade
natural‖ (CONDORCET, 2008, p. 45). Em algumas sociedades antigas, era desejável que a educação
fosse feita pelo Estado, pois assim os conhecimentos que frequentemente secretos ou revelados não
seriam questionados ou colocados à prova. Contudo, nas sociedades onde o conhecimento é obtido por
critérios científicos, a verdade só é possível quando puder ser submetida à falseabilidade e, para tanto,
quanto mais e maior forem as luzes da razão, mais benéfico será para o conhecimento. ―[O] fim da
educação não pode ser mais o de consagrar as opiniões estabelecidas, mas, ao contrário, o de submetê-las
ao exame livre de gerações sucessivas, cada vez mais esclarecidas‖ (CONDORCET, 2008, p. 46).
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questão política de interesse universal e que diz respeito a todos é o fato de que, por
meio da natalidade151, ela está em constante mudança e renovação. ―[A] essência da
educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo‖ (ARENDT, 2005, p.
223). Essa possibilidade do novo e a preocupação com a novidade no mundo colocaram
a escola em um lugar estratégico de transição, o que acabou por favorecer muitos
equívocos. A crença de que se poderia conquistar um mundo melhor por meio das
crianças fez com que algumas nações tivessem suas crianças subtraídas de seus pais
para serem criadas por uma ordem revolucionária e tirânica. Não obstante, esses
movimentos de feitio tirânico se apresentam sob o manto da Democracia com um
engodo demagógico de existirem para prevenir um mal maior.
Levando em conta considerações de Arendt acerca da política e da educação
poder-se-ia afirmar que a expressão educação política ou educação para a cidadania
pode sugerir equívocos. 152 Ou seja, a educação enquanto questão política diz respeito a
todos não só aos governantes ou aos especialistas, mas aos pais e a todos os cidadãos
151
O nascimento renova a vida e a natalidade renova o mundo e a educação. O nascimento, para Arendt
(2005), é da dimensão biológica ou biofísica, pela qual a vida renova e perpetua suas formas e a atividade
que a sustenta é o labor, ou o empenho que um ser vivo tem para manter sua vida individual ou de sua
espécie. A natalidade indica que, além de nascer um novo ser para a vida, emerge também um novo ser
para o mundo. Mundo esse que, dentre outras coisas, é composto de tradições, histórias e realizações
simbólicas e materiais nas quais os novos seres devem ser iniciados para que possam dele participar, por
ele se responsabilizar e nele se constituir como ser num mundo que já existia antes dele e que continuará
existindo.
152
Arendt (2005) formula um exemplo a partir dos ensinamentos de Sócrates, que podem bem esclarecer
o que se pretende com uma educação que visa munir o outro de instrumentos para a própria formulação
do juízo sem com isso oferecer um juízo em si. Ela observa que: ―No círculo de Sócrates havia homens
como Alcebíades e Crítias - e Deus sabe que não eram de modo algum os piores entre os assim chamados
pupilos -, homens que acabaram por tornar-se uma ameaça muito real à polis, e isso não por estarem
paralisados pela arraia-elétrica, mas, ao contrário, por terem sido despertados pelo moscardo. Foi para a
licenciosidade e para o cinismo que foram despertados. Não se satisfizeram em aprender como pensar
sem que lhes ensinassem uma doutrina, e transformaram os não-resultados da investigação socrática em
resultados negativos: se não podemos definir o que é a piedade, sejamos ímpios - o que é quase o oposto
do que Sócrates pretendera alcançar ao falar sobre a piedade‖ (ARENDT, 2002b, p. 158).
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adultos. No que se refere às crianças, não se pode educá-las politicamente, pois a
política diz respeito aos adultos, que são seus tutores. As crianças aprendem na escola o
que é minimamente necessário para, quando forem adultas e cidadãs, desempenharem
suas atividades cívicas.
Embora a educação desempenhe um papel fundamental, na instrução e formação
das novas gerações, pelo fato de que, poderão vir a desempenhar suas atividades cívicas
de forma esclarecida, contribuindo para uma Democracia plena, é apenas uma aposta e
não deve partir de uma garantia. Essa é uma linha fronteiriça muito tênue entre o que se
pretende com a instrução e aquilo que ela realmente pode vir a ser. A escola não é uma
fábrica que apresenta produtos acabados, a educação não é uma linha de montagem que
segue um ―[...] plano de execução ou de manufaturação e que chegaria a uma
terminalidade chamada, por exemplo, ‗cidadão‘‖ (BRAYNER, 2008, p. 50). Por mais
que a escola possa fazer, no sentido de contribuir ou oferecer os elementos necessários,
para que uma criança possa, futuramente enquanto adulta, inserir-se na cena pública, ter
visibilidade e participar, ou seja, ouvir e ser ouvido, pensar, julgar e deliberar
juntamente com seus pares, não é de forma determinante, mas sempre numa perspectiva
de possibilidade.
Em relação a isso, é decisivo considerar que os direitos civis de cidadania de
todos os membros de uma sociedade, os quais não distinguem por critérios vários, entre
eles os de idade, não se confundem com aqueles que são de direito e de
responsabilidade política de adultos. Ou seja, Arendt insiste que não se pode educar
para a ação política propriamente dita, visto que ela é imprevisível e a tentativa de
torná-la previsível é doutrinadora e coercitiva.
Se a instrução pretende formar homens que possam, a partir do seu próprio
juízo, inserir-se na comunidade política, trata-se, pois, conforme Arendt, de um
empreendimento perigoso sem resultados ou de resultados imprevisíveis. O efeito
corrosivo do pensamento tem a capacidade de destruir normas e regras estabelecidas;
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porém, pode se voltar contra si mesmo legitimando antigos valores como se fossem
novos. Essa, pode-se dizer, é uma empreitada perigosa em que se embrenha a instrução,
pois deve munir seu público de tudo aquilo que é necessário para que as luzes se
fortaleçam e se espalhem sobre um maior número possível, mas não terá garantias de
que serão usadas para o bem ou para o mal. O Estado que desejar, por meio da
educação, estabelecer uma nova ordem nega a possibilidade de que as novas gerações
desempenhem no futuro um papel no organismo político, ―[...] pois, do ponto de vista
dos mais novos, o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é
necessariamente mais velho do que eles mesmos‖ (ARENDT, 2005, p. 226).
A melhor forma de educar os filhos é uma escolha e um direito dos pais,
assegurado pelo Estado democrático republicano e somente as ditaduras questionaram
esses direitos. Arendt cita, como exemplo, o fato de que em Little Rock os pais não
foram questionados sobre a integração das escolas que, de um momento para outro,
foram levadas a forçar a integração de negros e brancos. Não se trata de serem
questionados sobre a intenção simplesmente de livrarem-se de seus preconceitos, mas
de estabelecer um conflito entre a escola e a casa das crianças. O Estado pretendia, por
meio das escolas, acabar com a segregação sem antes ter alterado suas leis visivelmente
discriminatórias, jogando sobre as crianças a responsabilidade política da inclusão.
Além disso, para Arendt, essa era uma forma de evitar a questão real, qual seja, a de que
a igualdade perante as leis era ―[...] violada pelas leis da segregação, isto é, por leis que
impõem a segregação, e não por costumes sociais e maneiras de educar as crianças‖
(2004, p. 262).
Esse caso representa um problema constitucional, visto que na época a
segregação era imposta pela constituição sulista, o que significa que os negros não
tinham direito ao voto nem lhes era permitido que se casassem com brancos, dentre
outros. Essa era uma herança desde a fundação da República, que não aboliu a
escravidão, permitindo a perpetuação de um crime desde sua origem. Numa suposta
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tentativa de resolver tais questões e vinculados à ideia de que se deve começar a
mudança pelas crianças, o Estado jogou para o pátio da escola uma batalha política a ser
travada por elas. Em virtude desses acontecimentos, Arendt enfatiza o fato de que:
A ideia de que se pode mudar o mundo educando as crianças no
espírito do futuro [...] só pode dar certo se as crianças são realmente
separadas de seus pais e criadas em instituições do Estado, ou
doutrinadas na escola de tal modo que acabam se virando contra os
próprios pais. É o que acontece nas tiranias (2004, p. 265).
Outra questão relevante para Hannah Arendt, foi a imposição da igualdade entre
adultos e crianças, acabando com a autoridade do professor. A igualdade, princípio da
Democracia pensado para o âmbito das discussões políticas no espaço público, foi
conferida de forma indiscriminada ao âmbito escolar. Uma particularidade das
sociedades democráticas, como definiu Toqueville, que, pela ânsia da igualdade, mais
que pela liberdade, pretende nivelar a tudo e a todos não só no que se refere às questões
políticas e sociais, mas também no âmbito escolar, o que acaba por banalizar a
Democracia e ruir com a autoridade no espaço escolar. O risco de pensar a instrução
como instrumento da política, ou espaço escolar como espaço público, é o de reduzir a
educação a um pedagogismo político deslocando sua especificidade e marginalizando o
espaço do conhecimento e do pensar.
A importância da distinção entre instrução e educação está na compreensão da
especificidade da instituição escolar, não significa que a escola deva separar
radicalmente a instrução da educação, já que não é possível cindir em dois o seu aluno.
Um cidadão se forma na completude da instrução e da educação, pois elas se
complementam; no entanto, a questão central é que a escola não pode perder de vista
sua especificidade, ou seja, ela é a responsável por instruir as crianças. À medida que a
escola ocupa-se de outras questões relegando a instrução a um segundo plano, está
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descumprindo a constituição, atentando contra o ensino e negando o direito de seus
alunos quanto à aprendizagem. Por esse motivo, pode-se dizer que, é na tentativa de
acompanhar o processo de qualificação e aprendizado dos alunos e de verificar o
cumprimento da função escolar que o Estado pode criar medidas de avaliação das
instituições escolares e dos alunos. Visto que a instrução diz respeito ao Estado e à sua
obrigação com o cumprimento daquilo que foi acordado democraticamente pelos
cidadãos em relação ao ensino e à formação das crianças, para que possam ter uma
profissão e inserir-se na sociedade. Enquanto que, a educação compete à família e
qualquer intervenção do Estado nesse âmbito é considerado ato inconstitucional nas
sociedades republicanas e democráticas, pois ela se estende sobre as escolhas políticas e
religiosas e sobre a formação moral.
No contexto republicano e democrático, o Estado é responsável por garantir a
constituição e mediar, por meio de seus órgãos legislativos, executivos e jurídicos, as
atividades educacionais nele desenvolvidas. Nesse sentido, os vínculos da educação
com a política são estreitos, sobretudo pelo fato de que as sociedades atuais são
legatárias da ideia segundo a qual a escola é um espaço decisivo para efetivar e
fortalecer os princípios políticos que lhes dão sustentação. Significa, também, lembrar
que a liberdade de pensar, de ensinar e pesquisar, nas instituições escolares, é garantida
juridicamente nas sociedades republicanas e democráticas.
Na perspectiva da instrução pública não se pode igualar professores e alunos
nem adultos e crianças e, mesmo, as crianças com elas mesmas. Para Arendt, adultos e
crianças são diferentes e é justamente por isso que os adultos devem cuidar das crianças.
Os adultos são responsáveis por inserir a criança no mundo humano, ao nascer, mundo
este, com as mais diversas culturas e tradições das quais ela não é uma iniciadora, mas
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uma aprendiz, embora a sua inserção seja sempre uma renovação. Entre as crianças
também não há uma igualdade irrestrita, pois a igualdade é algo que se aplica ao espaço
público onde os adultos se posicionam como iguais. O fato de que os professores153
devam manter um processo de aprendizagem para poderem estar atualizados quanto às
mudanças não significa que eles estejam em processo de aprendizagem juntamente com
seus alunos. Ele é um funcionário avalizado pelo Estado para instruir as crianças e isso
supõe que ele saiba mais que seus alunos, além do que a falta de conhecimento docente
é um dos motivos pelos quais ele pode vir a perder sua autoridade.
Nesse sentido a aposta da instrução pública, republicana e democrática não é
fazer com os homens admirem uma constituição ou que obedeçam resignadamente o
governo, mas tornar os homens capazes de entendimento da constituição que os
organiza em uma comunidade política para assim participar das deliberações, homens
capazes de se auto-determinar e inserir-se na cena pública, de ouvirem e serem ouvidos
e de ajuizar sobre aquilo que lhes é comum. Não basta que a república garanta e estenda
os espaços públicos decisórios da ação se os sujeitos ali reunidos não possuírem a
capacidade de deliberação, pois o poder não se funda, simplesmente, na reunião da
turba. A questão não se resume em quem e quantos se reúnem, mas como e porque
participam.
153
O educador pode falar sobre moral, mas não deve ser moralista, pois na educação o que ocorre são
apenas apostas, não há nela certezas nem garantias por envolver seres humanos, sujeitos livres, capazes
de ações imprevisíveis. Além disso, quando se trata de crianças, é uma violência contra suas mentes tratálas como cidadãs, posto que a educação moral, a formação dos valores e a opção política e religiosa são
responsabilidade e direito inalienável da família, não sendo permitida ao Estado a pretensa formação de
suas mentes. A interferência do Estado, no âmbito educacional, deve ser limitada para que aqueles que
vez ou outra fazem uso do poder, os eleitos, não possam usar as instituições para impossibilitar a
autodeterminação das pessoas e dos povos.
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Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 2005.
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Companhia das Letras, 2004.
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educação melhor. Brasília: Liber, 2008.
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instrução pública. Tradução de Maria das Graças de Souza. São Paulo: Unesp, 2008.
MAAMARI, Adriana Mattar. A fundamentação filosófica da escola republicana. In.:
Contexto & Educação, 82. Ijuí: Unijuí, 2009.
TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América. São Paulo: Edusp, 1987.
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IDENTIDADE PESSOAL EM DAVID HUME - Angélica Limberger
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Palavras-chave: Identidade pessoal; Percepções; Mente
O filósofo empirista David Hume é um dos mais expoentes da época moderna. Escreveu
importantes obras, dentre as quais destacam-se: Tratado da natureza humana (1740),
Investigação sobre o entendimento humano (1748), Investigação sobre os princípios da
moral (1751), entre outras. Neste breve texto, trataremos da identidade pessoal, um dos
temas da obra de 1740, disposto no livro I, parte IV, seção VI.
Hume inicia esta seção considerando que muitos filósofos imaginam estarmos há todo o
momento conscientes daquilo que denominamos como nosso eu. Assim, estes acreditam
que sentimos a continuidade e a existência deste eu de modo evidente, onde uma busca
pela sua efetiva prova enfraqueceria esta evidência, além do que nada mais poderíamos
estar certos se duvidássemos disso. Entretanto, Hume discorda.
O primeiro questionamento trata-se da impressão, perguntado-se de qual delas poderia
derivar esta ideia. Então, Hume considera que ―toda ideia real deve sempre ser
originada de uma impressão‖ (HUME, 2009, p. 284). Mas o eu não é impressão, e sim
aquilo a que nossas ideias e impressões se referem, pois, se impressão fosse, esta
deveria continuar invariavelmente a mesma, por toda a vida. Entretanto, segundo Hume,
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não há qualquer impressão constante e invariável. Deste modo, a ideia de eu não deriva
das impressões, não existindo, portanto, tal ideia.
Descartada esta hipótese, podemos nos perguntar: o que aconteceria com nossas
percepções particulares? Se penetrarmos mais intimamente em nosso eu, perceberemos
que há diversas percepções, como amor ou ódio, por exemplo. Então, Hume dirá que em
momento algum apreendo a mim mesmo sem uma percepção que seja, e também nunca
consigo observar nada que não seja uma percepção. Assim, quando nossas percepções
são suprimidas por algum tempo, como no sono profundo, ficamos por algum tempo
insensíveis a nós mesmos. Há também que se falar sobre as percepções diferentes que
temos em relação àquelas que os outros têm, sendo que em muitas podemos concordar,
mas em sua grande maioria, não compartilhamos da mesma opinião.
Assim, Hume dirá que a maioria dos homens é um feixe de diferentes percepções que se
sucedem umas às outras, num contínuo fluxo e movimento, e que da mesma forma que
a visão, nosso pensamento é ainda mais variável, sendo que os sentidos e faculdades
contribuem para tanto. Então, não há um só poder na alma que consiga se manter o
mesmo, inalterável.
A comparação que este filósofo escocês utiliza para a mente se faz em relação ao teatro,
onde as percepções passam, repassam, esvaem-se e misturam-se em infinita variedade,
modos e situações, sendo que ―a mente é constituída unicamente pelas percepções
sucessivas; e não temos a menor noção do lugar em que essas cenas são representadas
ou do material de que esse lugar é composto‖ (HUME, 2009, p. 285). Então, as ideias
distintas que possuímos de objeto permanecem invariáveis e ininterruptas ao longo de
certo tempo; a isto chamamos identidade ou mesmidade. Já às ideias que temos de
diversos objetos diferentes, conectados apenas por uma estreita relação, tratamos por
diversidade.
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Já pela ação da imaginação, consideramos o objeto ininterrupto e invariável, sendo a
ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos relacionados sentida do mesmo
modo. Desta forma, esta relação facilita a transição da mente de um objeto ao outro,
pois esta passagem é muito sutil, difícil de ser percebida, fazendo com que incorramos
em confusão e erro, trocando a identidade de um pela de outro.
Deste modo, Hume parte para a hipótese de estes objetos serem, de fato, a mesma coisa.
Assim, acreditamos na ficção da existência contínua das percepções de nossos sentidos,
sempre em busca da descontinuidade, chegando novamente ao eu. Porém, mesmo
quando não criamos tal ficção, tendemos a imaginar alguma coisa desconhecida que
conecte as partes.
Há, todavia, objetos que supomos variáveis e descontínuos, isto é, cremos serem os
mesmos. Caracterizam-se por uma sucessão de partes conectadas por semelhança,
contiguidade e causalidade. Então, como esta sucessão corresponde à nossa ideia de
diversidade, é apenas por engano que atribuímo-lhes tal noção de identidade,
produzindo uma associação de ideias, incorrendo no erro de pensarmos se tratar da
continuidade do objeto. Assim, Hume se propõe provar que todos os objetos são
constituídos por uma sucessão de objetos relacionados.
Como a matéria tem as partes contíguas e conectadas, se uma parte muito pequena ou
insignificante for acrescentada ou retirada do objeto, isto destruiria a identidade do
mesmo, mas como a alteração é ínfima aos nossos olhos, prontamente cremos ser a
mesma matéria, pois a passagem do pensamento (do objeto de antes da mudança para o
de depois) é tão suave que quase não percebemos.
Todavia, é necessário que esta alteração seja analisada proporcionalmente ao todo da
matéria. Vejamos o exemplo de Hume: a alteração de porções de terra em uma
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montanha não seria suficiente para provocar alterações no planeta, mas algumas
polegadas em um corpo seriam facilmente percebidas. Assim, os objetos agem sobre a
mente, quebrando ou interrompendo a continuidade de suas ações segundo suas
proporções recíprocas. Isto faz com que um objeto deixe de parecer o mesmo, sendo o
progresso ininterrupto do pensamento o constituinte da identidade perfeita.
Segundo este filósofo, a alteração de parte considerável que ocorra em um determinado
corpo destrói sua identidade, mas esta alteração ocorre de forma gradual e insensível,
gerando efeito menor em nossa percepção. Então, a mente geralmente não percebe estas
variações lentas que ocorrem na matéria do objeto, sendo ―em decorrência dessa
percepção contínua que a mente atribui ao objeto uma existência contínua e uma
identidade‖ (HUME, 2009, p. 289).
Porém, há uma diferença para se destacar: se estas mudanças notáveis ocorrem para um
propósito comum, é ainda mais facilmente que lhes atribuímos esta identificação. Por
exemplo, em um navio que sofre diversos consertos, mesmo que o material utilizado
para os reparos mude consideravelmente em relação àquele que o compunha em seu
princípio, todas as mudanças foram realizadas para um fim comum, permitindo, assim,
a transição fácil no pensamento de uma situação à outra.
A este fim comum acrescentemos agora a ideia de simpatia entre as partes, onde
supomos que elas mantém entre si uma relação recíproca de causa e feito em todas as
suas ações, assim como no exemplo dos animais e vegetais, pois ambos se referem a um
propósito geral, gerando mútua dependência e conexão.
Assim, mesmo que certos objetos sofram inúmeras alterações durante sua existência,
continuamos a atribuir-lhes a mesma identidade. Novamente Hume utiliza exemplos
para demonstrar sua afirmação: na natureza, podemos citar o carvalho, árvore enorme
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que se origina de uma simples semente, sofrendo grande alteração em sua matéria,
devido ao seu gigantesco crescimento, mas que lhe atribuímos a mesma identidade; e no
mundo animal, temos o homem, que passa de criança à vida adulta, crescendo,
engordando e emagrecendo, mas que nem por isso sofre alguma mudança em sua
identidade.
Um exemplo diferenciado do filósofo moderno trata-se da identidade numérica e da
específica, onde por vezes as confundimos com ainda mais frequência que as demais.
Quando ouvimos algum som que para e recomeça diversas vezes, tendemos a achar que
se trata do mesmo, mas, para Hume, é evidente que os sons possuem apenas uma
semelhança ou identidade específica, sendo a única coisa numericamente idêntica a
causa, aquela que os produziu.
Outro exemplo que Hume utiliza para demonstrar tal fato é a igreja que foi totalmente
destruída e reconstruída com novos materiais. Não há nada em comum entre os dois
objetos, salvo a relação que os próprios habitantes possuem com a ela. Devemos
ressaltar ainda que não se trata da ideia de multiplicidade, pois o primeiro objeto é
destruído para que o outro possa existir, não sendo, obviamente, a mesma coisa.
Em se tratando de sucessão de objetos relacionados, para que a identidade seja
preservada, é necessário que a alteração das partes não seja repentina nem completa.
Todavia, se os objetos são mutáveis e inconstantes por sua própria natureza, admitimos
essa transição mais repentina. Como exemplo citamos a natureza de um rio que incide
na mudança constante, mas não implicando que não seja o ―mesmo‖ durantes anos.
Sendo assim, tudo aquilo que for natural e essencial a algo é certo e esperado, causando
menos impressão e percepção perante a nós, pois parece menos importante, causando,
consequentemente, menos influência em nosso pensamento.
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Diante do exposto, Hume dirá que a identidade que atribuímos à mente humana é
apenas fictícia. Portanto, não pode ter uma origem diferente, mas deve proceder de
operações e objetos semelhantes aos da imaginação. Assim, notamos que a identidade
que atribuímos à mente humana não é capaz de proceder às diferentes percepções,
fazendo-as perder-se em seu caráter essencial, mas, apesar desta distinção e
separabilidade, supomos que todo o curso das percepções una-se pela identidade.
Assim, o entendimento nunca observa uma conexão real entre os objetos e, mesmo que
aconteça, se reduz à associação habitual de ideias. Neste sentido, identidade não é uma
coisa que pertence realmente a essas diferentes percepções e que as unem umas às
outras, mas trata-se de uma qualidade que lhe atribuímos quando refletimos sobre as
percepções.
Outro fator que Hume destaca são as relações de semelhança, contiguidade e
causalidade, formadoras dos princípios de união do mundo ideal, sem as quais todos os
objetos seriam separáveis da mente, não parecendo ter conexão com os demais. Deste
modo, faz-se necessária ao menos uma dessas três relações entre as ideias, ―pois noções
de identidade pessoal decorrem integralmente do progresso suave e ininterrupto do
pensamento ao longo de uma cadeia de ideias conectadas (HUME, 2009, p. 292).
Por fim, Hume tratará sobre quais relações produzem o progresso ininterrupto do nosso
pensamento, tratando-se de semelhança e causalidade.
Quanto à semelhança, Hume propõe imaginarmos que pudéssemos ver claramente o
íntimo de outrem e observar a sucessão de percepções que ocorrem em seu eu.
Notaremos que existem muitas percepções passadas, referentes à memória, que
continuam presentes. Assim, além de a memória revelar a identidade, contribui para a
produção de relação entre a semelhança e as percepções.
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Já na causalidade, observamos que a verdadeira ideia de uma mente humana é a de um
sistema de diferentes percepções ou existências, todas encadeadas pela relação de causa
e efeito, modificando-se umas às outras. Nossas impressões originam suas ideias
correspondentes, e estas ideias, por sua vez, produzem outras impressões. Assim, é
como se um pensamento produzisse outro, arrastando consigo um terceiro, que, por sua
vez, o exclui. Tomemos como exemplo uma comunidade onde os membros estão unidos
por laços recíprocos, todos com relação de subordinação ao governo e respeito aos
demais; porém, cada particular varia a sua visão de relação perante os outros, sendo
cada ser particular único em suas percepções. Então, por mais bruscas que sejam estas
variações entre uns e outros, seus diversos membros sempre estarão conectados pela
ideia de causalidade.
Então, como apenas a memória nos faz reconhecer a continuidade e extensão dessa
sucessão de percepções, devemos considerá-la como a fonte da identidade pessoal, pois
sem ela jamais teríamos alguma noção de causalidade. Como exemplo disso, Hume se
pergunta o que estaria ele fazendo no dia 11 de março de 1719. Por mais que não se
lembre o que fez neste dia, não implica que o eu presente não seja o mesmo eu do
passado, pois, mesmo que sejam épocas diferentes, tratam-se da mesma identidade
pessoal, reconhecida graças à memória, sendo esta elemento fundamental para a
revelação daquela.
Finalmente, podemos dizer que as questões referidas à identidade pessoal nunca
poderão, para Hume, ser resolvidas, principalmente pelas dificuldades, antes
gramaticais que filosóficas, acerca do tema. Porém, o que podemos afirmar é que a
identidade depende das relações entre as ideias, e estas produzem identidade por meio
da transição fácil que ocasionam. Então, não podemos ter critério exato para resolver
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qualquer controvérsia sobre o momento em que perdem ou não o direito à identidade,
visto que
Todas as controvérsias acerca da identidade de objetos conectados são meramente
verbais, exceto enquanto a relação entre as partes gera alguma ficção ou algum
princípio imaginário de união [...]. Com base nessa similaridade de operação,
atribuímos a ele [o objeto] uma simplicidade, e fantasiamos a existência de um
princípio de união como suporte dessa simplicidade e centro de todas as diferentes
partes e qualidade do objeto (HUME, 2009, p. 295).
REFERÊNCIAS
HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Deborah Danowski – 2. ed. rev. e
ampliada – São Paulo: Editora UNESP, 2009
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KANT E A METAFÍSICA DE SEU TEMPO - Danilo Miner de Oliveira
Mestrando na Unioeste
[email protected]
Tudo indica o problema conceitual em que Kant se encontra em seu fervoroso contexto
científico e a análise do espaço se faz necessária para demonstrar dois problemas que
permeiam o pensamento kantiano: o primeiro deles é pensar e salvaguardar a
continuidade de um espaço geométrico e a geometria ao molde de uma ciência e o
segundo estabelecer a divisibilidade infinita da matéria e fornecer a física matemática
um estatuto científico. ―O que o pode o filósofo dizer de sério sobre o Espaço e o
Tempo, que ele não vá tomar de empréstimo ao matemático, ao físico, ao esteta ou ao
psicólogo? Não será grande coisa, é evidente‖. (LEBRUN, p. 25. 1993).
Estabelece-se um desafio aos pensadores da filosofia a fornecerem uma palavra eficaz
sobre conceitos por tanto tempo investigados na tradição filosófica, no entanto ao longo
de sua história e da ciência ocidental, parece que ciência tem obtido sempre resultados
mais satisfatórios dos exames sobre estes conceitos. Contudo, ao que parece, basta que
haja alguma crise em teorias científicas que o cientista recorre ao exame do que é
filosófico novamente.
Sem deplorar, porém, a perda deste tipo de aplauso, considero muito mais conforme a
um conhecimento tão equívoco como a metafísica apresentar primeiramente os
próprios pensamentos ao exame público [der öffentlicken Prüfung] na forma de
ensaios incertos do que proclamá-los com o ornamento de uma solidez usurpada e
uma completa convicção, porque, nesse caso, todo o aperfeiçoamento é usualmente
rejeitado e o prejuízo que dai possa transcorrer, irreparável. (KANT, /II189/ p. 79.
2005)
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Apesar do possível equívoco em algumas aplicações do conceito de grandezas negativas
em filosofia, é possível se notar a indignação de Kant, ao olhar para outras ciências na
buscar um método eficaz para a metafísica e o ensaio demonstra a busca kantiana de
oferecer bases consistentes a ciência considerada por este pensador fundamental a razão
humana. ―Esta oposição pode ser chamada de possível (oppositio potentialis). Ambas
são reais, isto é, distintas da oposição lógica, ambas são de uso constante na
matemática, e ambas merecem sê-lo na filosofia‖. (KANT, /II193/ p. 84. 2005).
Merecem sê-lo na medida em que tanto para o pensamento ou para coisas externas a
aplicação de grandezas negativas se faz necessária. Assim exige-se a oposição real para
que algo se expresse.
O problema – replicava Hume – é que não é esta a questão: o que lhe pergunto é se a
simples noção de ―movimento da bola‖ envolve já a de ―impulso‖ e se, por mero
raciocínio, antes de qualquer experiência, você poderia descobrir esta contida naquela.
E considere da mesma maneira qualquer conexão: solidez e peso, calor e chama
(LEBRUN, p. 9. 1993).
Pela experiência tal conexão jamais pode ser encontrada porque nunca oferece
necessidade. Tem que se concluir que a relação é forjada por um hábito e que não passa
de uma experiência que não fornece certeza como a geometria oferece. Pensar esta
questão levantada por Hume já fornece à Kant os subsídios necessários para se fazer a
crítica ao método de investigação que condiz a metafísica tradicional. Ao contrário de
Hume, Kant procura sair do problema do ceticismo no qual aquele foi levado a se
afirmar, uma vez que não encontrou em suas investigações bases empíricas e muito
menos supra sensíveis como a metafísica, e busca, através de uma crítica das próprias
faculdades mentais, estabelecer uma base segura para a metafísica mesmo que para isso
tenha que dispor de um método totalmente inovador.
No pensamento kantiano dizer que a sentença ―o sol esquenta a pedra‖ não é uma mera
relação de hábito causal como diria Hume, mas uma ligação efetivamente realizada pela
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razão. Poder provar que se procede desta forma é também poder provar a possibilidade
de uma metafísica, pois há um nível de saber racional. Pois a causalidade em Kant se
situa na própria razão e não meramente nas percepções externas e, portanto se eleva no
nível de categoria e não se restringe a mera empiria.
Pensar a elaboração do papel do espaço no pensamento de Kant não exige o aceite das
ciências para que isso seja legitimamente válido. Justamente porque a doutrina kantiana
do espaço não pode ser vista como uma simples opinião filosófica como outras, é um
problema que efetivamente se encontra na base de muitas questões que se levantaram
sobre a ciência moderna. O que se pode pensar com segurança é a inquietação kantiana
com a metafísica e a sua real preocupação com os parâmetros da constituição da
metafísica como ciência. Na busca destes parâmetros o autor observa principalmente
nos elementos da matemática que em sua aplicabilidade a natureza que tem mostrado
resultados satisfatórios.
O período que se encontra tamanha indignação kantiana frente aos problemas
relacionados à metafísica e que inevitavelmente abarca o espaço vai aproximadamente
de 1762 a 1770. Neste período pode-se analisar tanto as concepções do ceticismo em
relação à metafísica tradicional como a gênese da análise crítica de Kant em relação ao
conceito de espaço.
Na obra de 1763 intitulada ―Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em
filosofia‖ Kant já apresenta a distinção entre oposição real e lógica feita por metafísicos
e matemáticos. Já pode se notar a posição kantiana em favor da matemática ao se
estabelecer que aplicação da desta aos objetos da filosofia tem se mostrado vantajosa
ainda que restrita à doutrina da natureza.
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A metafísica ao invés de analisar tais proposições como exemplo de um método que
tem mostrado resultados satisfatórios prefere atacar logicamente tais proposições ainda
que estas sejam evidentes em sua clareza e distinção e se aplicam a objetos da
experiência. Assim não se pode falar em espaço a nível metafísico ignorando os
fundamentos evidentes deste conceito na geometria.
A metafísica busca, por exemplo, descobrir a natureza do espaço e a razão última a
partir da qual sua possibilidade se deixa compreender. Logo nada aqui pode ser mais
útil do que poder emprestar de outro lugar dados demonstrados com segurança, a fim
de colocá-los como fundamento de sua consideração. (KANT, /II 168/ p.54. 2005).
Para que não se admita que a metafísica trabalhe com o conceito de espaço em um nível
puramente abstrato, esta faz a censura da matemática sem fundamentação. A natureza
fornece evidencias que em toda a tradição metafísica foi ignorada com a pretensão de se
conhecer a essência das coisas existentes ou um fundamento primeiro da realidade. Fato
este fadado ao fracasso pela simples combinação de conceitos vazios.
Hay una doctrina importante que Wolff toma de Leibniz y que Kant abandonará: para
estos dos pensadores el conocimiento sensible no se distingue essencialmente del
conocimiento intelectual; los sentidos perciben oscura y confusamente lo mismo que
la inteligencia concibe de forma clara y distinta; el paso de uno a otro modo de
representácion es gradual. 1(TORRETI, p. 35. 1967)
Uma das diferenciações na análise da metafísica de Leibniz e Wolff para a filosofia
kantiana reside principalmente no tratamento ofertado as noções correspondentes aos
aspectos sensíveis e inteligíveis. Enquanto Leibniz e Wolff, por uma tradição forte do
cartesianismo, atribuem com maior certeza a clareza e a distinção para as ideias da
1
Trad: Existe uma doutrina importante que Wolff adquire de Leibniz e que Kant abandonará: para estes
dois pensadores o conhecimento sensível não se distingue essencialmente do conhecimento intelectual; os
sentidos percebem obscura e confusamente o mesmo que a inteligência concebe de forma clara e distinta;
o passo de um a outro modo de representação é gradual.
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razão, as impressões que advém dos sentidos são classificadas como obscuras e
confusas; há uma diferença gradual do sensível e inteligível em ambos os autores. Kant
apresenta um novo modo de pensar esta diferença gradual ao romper com estas noções
hierarquizadas do conhecimento; logo sensibilidade e inteligibilidade aparecem como
elementos completamente distintos2. Pode haver clareza e distinção nos elementos dos
sentidos como a geometria euclidiana tem provado e tamanha obscuridade no que é
inteligível têm sido mostrado pela metafísica com seu método infrutífero de derivar
objetos de conceitos.
Meu intuito, por hora, é tomar um conceito que, embora bastante conhecido na
matemática, é ainda muito estranho a filosofia, e considerá-lo tendo em vista esta
última. Estas considerações são apenas introdutórias, como é o costume ocorrer
quando se quer abrir novas perspectivas, só que elas podem talvez dar ocasião a
consequências importantes. (KANT, /II169/ p. 55. 2005)
Kant deixa explícito seu objetivo ao mostrar que o conceito de grandezas negativas que
advém da física e da matemática é de fundamental importância porque pode oferecer
um método seguro e eficaz na aplicação de conceitos filosóficos. Negligenciar tal
conceito tem oportunizado a aparição de equívocos no que tange a metafísica e por esta
razão o seu uso em filosofia pode ser de extrema vantagem.
Grandezas negativas não são meras negações de grandezas, mas sim algo
verdadeiramente positivo. Logo uma oposição real não implica negação, antes implica
apenas uma força oposta que também é verdadeira em si. O resultado desta oposição
pode ser uma anulação de forças e não uma contradição. Os metafísicos como Leibniz
2
Diferenciação apontada principalmente com a dissertação de 1770 intitulada Forma e Princípios do
mundo sensível e inteligível.
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apresentam o princípio de contradição e sua oposição lógica caracteriza um paradoxo.
Fato que não ocorre com as grandezas negativas em física e matemática.
Assim o princípio de razão suficiente só pode ser válido enquanto sua razão de
existência reside em sua própria lógica e estender sua aplicação para provar
contradições no que tange a sensibilidade trata-se de uma aplicação equivocada. Uma
oposição, ao mesmo tempo, referente a um sujeito ou conceito lógico implica
contradição, o mesmo não pode ser afirmado de forças opostas em um mesmo objeto
físico, pois nesta relação de forças oposta pode haver anulação de forças, no entanto isso
não caracteriza uma contradição. ―A critica kantiana, pelo contrário, nos dirá, não sejam
vítimas do caráter essencialmente intuitivo do conhecimento humano; guardem-se de
afastar como contraditório em si aquilo que lhes parece impensável no nível da
intuição‖ (LEBRUN, p.31. 1993).
Apesar da ressalva kantiana e a garantia de um pensar nem que seja de modo qualitativo
não isenta a metafísica de maiores críticas. Afirmar que não se pode dizer nada sobre o
infinito ou de coisas qualitativas como a própria metafísica rompe com uma tradição de
que esta ciência é maior por excelência. Ainda que seus objetos façam total sentido a
razão, não se pode negligenciar que o método de sua investigação não avança em
conhecimento, apenas demonstra esclarecimento de conceitos puramente lógicos.
Recordo apenas que, às vezes me servirei da expressão de que uma coisa é a (coisa)
negativa da outra. Por exemplo: a negativa da ascensão é o declínio, como o que quero
dar a entender não que seja a negação do outro, mas que algo está numa oposição real
com outro. (KANT, /II175/ p. 63. 2005)
Alguns pontos são essências na definição de grandezas negativas: um deles é que
somente é possível que este conceito seja aplicado quando tais forças opostas se
encontrem em um mesmo sujeito ou objeto e isto não pode caracterizar uma contradição
porque deste modo seria uma oposição lógica e não real. Consequentemente uma
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oposição só pode negar aquilo que sua força opositora determina não envolvendo outra
relação. Assim, ambas tem que ser positivas, pois são forças existentes e contrárias.
Nestes parâmetros pode-se afirmar que há uma negação que consiste a oposição real e
pode ser denominada de privação ao passo que outra privação que não é gerada pela
oposição de força pode-se dizer que é uma mera ausência. Colocando bem e mal nestes
termos e pensando em bem e mal filosóficos, uma pessoa que nada recebe em seu
pagamento mensal padece de um mal por ausência e quem é extorquido sofre de um mal
por privação. Pelos argumentos expostos, nota-se sem grandes dificuldades que o
filósofo recorre frequentemente à ciência na busca de métodos eficazes para validar o
que somente pela lógica não se sustenta.
REFERÊNCIAS
KANT, Immanuel. Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em filosofia.
In: Escritos pré-críticos. Tradução de Jair Barbosa. São Paulo: UNESP, 2005.
LEBRUN, Gerard. O papel do espaço na elaboração do pensamento kantiano. In:
Sobre Kant. Org. Rubens Rodrigues Torres Filho. Ed. Iluminuras Ltda. 2001
TORRETTI, Roberto. Manuel Kant: Estudio sobre los fundamentos de la filosofia
crítica. Santiago: Universidad del Chile, 1967.
ARISTÓTELES. Física. Introducción, traducción y notas de Guillermo R. De Echandia.
Madrid: Editorial gredos, 1995.
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CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral, Revisão técnica:
Valério Rohden. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2000.
CASSIRER, Ernest. Kant, vida y doctrina. Trad. Wenceslao Roces. México: Fondo de
Cultura Económica, 1993
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
MARECHAL, Joseph. El Punto de Partida de la Metafísica: lecciones sobre el
dessarrollo histórico y teorico del problema del conhecimento. Editora Gredos, Madrid,
1959.
PORTA, Mário Ariel Gonzáles. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo:
Edições Loyola, 2003.
FRIEDMAN, Michael. Kant and the Exact Sciences. Harvard University Press,
1992
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MIMESIS E ALEGORIA: A FIGURA DE TÂNATOS EM AS INTERMITÊNCIAS
DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO - Toani Caroline Reinehr
Graduanda em Letras – UNIOESTE/PIBIC/CNPq
[email protected]
Introdução
José Saramago, laureado internacionalmente, em 1998, com o Prêmio Nobel de
Literatura, falecido a 18 de junho de 2010, na ilha espanhola de Lanzarote em que havia
se exilado nos últimos anos, nos deixa vasto conjunto de obras publicadas. No
transitório que é a vida do corpo, pode emergir a natureza eterna da arte. As obras de
Saramago inquietam o leitor por meio de um ―falar‖ alegórico, permeado por um estilo
próprio de narrar, que mostra a relação venturosa do autor com as palavras, o que nos
remete às reflexões benjaminianas sobre o narrador e sua matéria: ―[...] podemos
mesmo ir mais longe e perguntar se a ligação que o narrador tem com a sua matéria – a
vida humana – não é, ela própria, uma relação artesanal (BENJAMIN, 1992, p. 56).
O escritor português deixou exemplos desse encontro artesanal com o humano na
tessitura de As intermitências da morte (2005). Partindo do plano do fantástico, o autor
desvela um mundo em que não se morre — como anunciam as primeiras linhas do
romance: ―No dia seguinte ninguém morreu‖ (SARAMAGO, 2005, p. 11) —, e os
desdobramentos de um repentino desaparecimento da morte, tornada personagem, na
organização das instituições eclesiásticas, parlamentares ou mesmo as funerárias;
espaços ampliados pela alegoria. Após um período de ausência, a dama cadavérica
retorna às suas atividades, oferecendo, no entanto, uma nova maneira de cortar o fio da
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vida: o recebimento de uma carta de sobrescrito roxo anunciando a morte do
destinatário no prazo de sete dias. A imagem grotesca da morte, aliada a recusa da dama
da gadanha em encerrar as vidas de um país inteiro, permite que se reflexione sobre a
vida, descortina as bases de ideologias (a religiosa, por exemplo) tidas como não
passíveis de contestação, e questiona o próprio tom grotesco que o homem costuma
apresentar para a morte.
1. Alegoria: tropo que amplia a significação
O processo de criação alegórica tem suas raízes no plano lingüístico, conforme explica
Hansen (2006), pelo qual é delimitado, podendo-se afirmar que, ao optar por
determinados signos (b), o narrador estará sinalizando os limites da interpretação, ou
seja, os signos que àqueles podem apontar (a); desta maneira, a narrativa é desenvolvida
num processo artesanal, em que a significação de a é conferida pela escolha de b.
A alegoria (grego allós = outro; agourein = falar na ágora, falar publicamente)
possibilita a exposição, partindo do dito no texto, de um sentido diferente ou, ainda,
ampliado daquele explícito, isto é, ela diz b para significar a. Esta figura é empregada
desde a Grécia Clássica, estando presente em textos filosóficos de Platão (Livros II e
VII da República, por exemplo), nos quais adquire forma exemplificante ao representar
conceitos abstratos e complexos; na sociedade hebraica, foi aplicada para interpretar as
Sagradas Escrituras e encontrar nelas verdades perenes de caráter moral e religioso.
Durante a Idade Média, a alegoria era utilizada com um telos religioso (alegoria dos
teólogos), buscando-se explicar aquilo que tinha se tornado profano com a
cristianização da Igreja. Como exemplifica Benjamin na Origem do drama barroco
alemão (1984), a arte grega com suas musas nuas era interpretada de maneira alegórica
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no período medieval, assim é que a nudez de Afrodite revelava, por exemplo, a
impossibilidade de ocultar o profano e o luxurioso, isto é, a carne ―corrompida‖ pelos
prazeres viscerais não conseguirá ser escondida. Desse modo, ―a alegoria medieval é
cristã e didática [...]‖ (BENJAMIN, 1984, p. 193), ao passo que ―[...] o Barroco
retrocede à Antiguidade, dando-lhe um sentido místico-histórico‖ (Ibid., p.193).
Funcionando por uma relação de semelhança, a alegoria permite ao leitor, partindo do
signo presente, a ampliação do processo de interpretação e, também, a possibilidade de
exemplificação de significações profundas, ―[...] talvez se possa dizer que a alegoria
aponta o próprio cerne da obra de arte e de sua interpretação‖ (KOTHE, 1986, p.7).
Destaca-se ainda que a imagem criada pela alegoria não deprecia a racionalidade da
argumentação, pelo contrário, pode servir como uma imagem-conceito que proporciona
clarificação do tema/conceito discutido. Nesse sentido, determinando a alegoria como
tropo de pensamento, entende-se que sua expressão mimética não desvirtua a obra,
antes, proporciona além do ornatus — do ornamento do discurso — a exposição e
compreensão, ao dizer o outro, de significações profundas. Constituindo-se como
ferramenta de interpretação, a leitura alegórica ―[...] descobre a estruturação profunda
do texto, um horizonte além do horizonte do texto‖ (KOTHE, 1986, p.76).
De acordo com Benjamin, as personagens barrocas alcançam sua plenitude alegórica na
morte, momento em que o espírito é liberado; ―[...] somente assim, como cadáveres, têm
acesso à pátria alegórica‖. No barroco alemão, a morte não será utilizada para reflexão
do final da vida, conforme Benjamin; a vida, por sua vez, numa perspectiva da morte,
será refletida como ―[...] o processo de produção do cadáver‖ (BENJAMIN, 1984, p.
241).
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Em As intermitências da morte (2005) o processo de alegorização da physis não se
construirá a partir da morte, mas por meio de um jogo de ausência/presença da mesma.
Durante o espaço temporal de sete meses, a figura cadavérica que empunha a gadanha
se eximirá do trabalho de cortar o fio da vida dos habitantes de um país inteiro. A partir
deste jogo, será possível refletir sobre a natureza humana. No país em que não se morre
as pessoas alcançam o antigo desejo humano de imortalidade, todavia, o viver sempre
desestabiliza as bases de diversas instituições, como já vimos — ―As religiões, todas
elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificativa para existir que não
seja a morte, precisam dela como do pão para a boca‖ (SARAMAGO, 2005, p. 36) —; e
faz também com que o próprio indivíduo questione se verdadeiramente há vantagens em
não morrer, pois que a morte apenas se ateve de ceifar a vida, mas não trouxe a fonte da
juventude ou a cura dos males do corpo. O que representa este jogo? Morte ou vida?
Assim, a sociedade se encaminha para um destino composto ―[...] de multidões de pais,
avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e por aí fora, ad infinitum [...]‖
(Ibid., p. 32), que estão num estado de vida suspensa, corpos putrefatos impedidos de
morrer — ―[...] deveriam estar mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos
ferimentos e dos traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim eram transportados
aos hospitais‖ (Ibid., p. 11).
Além disso, na composição das personagens, o romance apresenta algumas que são
nomeadas usando-se de hiperônimos (da parte para o todo), de modo que a personagem
cardeal, por exemplo, representa toda a classe eclesiástica, sua fala é a voz da Igreja em
geral. Processo de nominação semelhante se observa na voz das indústrias funerárias,
lares do feliz ocaso, companhias de seguro de vida, máphia entre outros, os quais são
caracterizados como instituições, apresentando um discurso homogêneo representativo
de sua classe. O uso de minúsculas possibilita, assim, ao fazer as personagens
indicativas de classes (Igreja, governo, máphia etc.), a dessacralização das vozes oficiais
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— ―Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós [a Igreja] existimos, para
que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua
hora, acolham a morte como uma libertação‖ (SARAMAGO, 2005, p. 36). As
personagens morte e violoncelista, entretanto, aparecem particularizadas, a morte é a
responsável pela morte humana apenas, o músico ―[...] é apenas um violoncelista de
orquestra [...] não um daqueles famosos concertistas que percorrem o mundo inteiro
tocando e dando entrevistas, recebendo flores, aplausos, homenagens [...]‖
(SARAMAGO, 2005, p. 168). Em contraste com a homogeneidade e opondo-se à
frivolidade das outras personagens, morte e violoncelista, pequenos em seu existir para
o mundo, entrelaçados, evocam a profundidade da natureza humana.
2. Do mundo das aparências: a mimesis no jogo de aproximar e distanciar para ver
melhor
Para Platão (447-327 a.C.) o processo mimético deve ser realizado de acordo com o
princípio de fidelidade ao modelo, e por modelo se entende a essência de determinada
coisa. Esta configuração da arte mimética está ancorada na Teoria das Ideias, proposta
pelo filósofo grego no texto da República. Segundo a teoria platônica a realidade é
dicotômica, apresentada em dois planos de conhecimento: mundo sensível, de natureza
transitória e mutável, é o plano das experiências diárias, das opiniões; e mundo
inteligível, relativo ao plano das ideias, revela a essência das coisas, sendo, portanto, de
caráter imutável e perfeito. A partir dessa concepção dualista, Platão privilegiará o
plano das ideias, pois nele residiria o verdadeiro, o belo e o Bem. De acordo com o
filósofo grego, ―[...] a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao
que parece, é pelo facto de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não
passa de uma aparição‖ (PLATÃO, 2001, p. 455). A arte não conseguiria, pois,
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apreender a ideia, a essência dos objetos que imita; e o artista, limitando-se a realizar
uma imitação mecânica da parte sensível das coisas, é, para Platão, um imitador de
aparências. Restrita ao plano sensível, a arte mimética deve ser banida da sociedade,
para que esta liberta do ―[...] poeta imitador [que] instaura na alma de cada indivíduo
um mau governo, lisonjeando a parte irracional [...]‖ (PLATÃO, 2001, p. 469),
abandone as sombras, simulações e contemple o mundo e as coisas que o encerram em
sua forma ideal.
Aristóteles (384-322 a.C.), por outro lado, compreende a mimesis como transfiguração
da realidade, como reinterpretação. Na Poética (1973), tem-se que as diferentes
expressões artísticas não diferem quanto à imitação, mas ―[...] quanto aos meios de
imitação‖ (ARISTÓTELES, 1973, p. 444). Assim, o filósofo grego observa, por
exemplo, que a mimesis trágica se configura como a manutenção de uma ordem, de uma
verdade; a mimesis épica como reafirmação de valores de uma coletividade; e a mimesis
na comédia como destruição de verdades, ambivalente. Segundo Aristóteles, a arte é
imitação, e sua origem está na observação de que ―O imitar é congênito no homem [...]
e os homens se comprazem no imitado‖ (ARISTÓTELES, 1973, p. 445). Para o filósofo
grego, a arte possui natureza mimética, que se realiza por diferentes modos e que, de
acordo com a dimensão do verossímil e do universal, transfigura a realidade. O
Estagirita resgata a arte do papel de imitadora passiva e mecânica a que a tinha banido
Platão, pois, para Aristóteles, o processo mimético representa o desejo de identificação
catártica, que poderia se cumprir na mimesis trágica, a qual, ao imitar as paixões
humanas, ―suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções‖
(ARISTÓTELES, 1973, p. 447). A arte, portanto, não aprisiona o homem ao mundo do
irracional, segundo afirmava Platão, mas, ao contrário, ela tem a capacidade, conforme
Aristóteles, de provocar a liberação das paixões.
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Luiz Costa Lima (1981), por seu lado, afirma que mimesis é ou afastamento crítico (tal
como se configura na modernidade) ou reafirmação catártica (na Antiguidade Clássica).
O processo mimético, para o autor, não se orienta por representar a realidade, mas se dá
pela representação das representações de realidade que nos atravessam, e que são
constructos históricos, pois o real se construiria no ato da representação. Segundo Luiz
Costa Lima (1981, p. 230) ―[...] a mimesis supõe em ação o distanciamento pragmático
de si e a identificação com a alteridade captada nessa distância‖. A mimesis configurase, pois, segundo o autor, nesse jogo de aproximar-se e distanciar-se, de maneira que
esta ação (o afastamento) permite a reflexão, ―[...] experimentar-se a si próprio [...]‖
(LIMA, 1981, p. 231), criticar as representações, e aquela possibilita a similitude entre
as representações do leitor e as operadas pela mimesis. O processo mimético relacionase, para o autor, com o social, uma vez que é no interior de determinada representação
histórica que a representação efetuada pela mimesis se atualiza e (re)significa, o produto
mimético não é, assim, algo acabado, é ―[...] o discurso de um significante errante, em
busca dos significados que o leitor lhe trará‖ (LIMA, 1981, p. 232).
Pode-se observar em As intermitências da morte (2005), que o processo mimético se
realiza pelo afastamento crítico, isto é, o narrador se afasta da realidade, é necessário
desconstruí-la para
aproximar-se da
mimesis. No romance descortina-se
a
ausência/presença da morte como sinônimo de caos, instituições desmascaradas, dúvida,
originados do tecer um país em que não se morre. Tais construções ao se afastarem da
realidade, desconstroem a mesma, e, nesse jogo, permitem que o leitor questione, reflita,
experimente-se, conforme se refere Costa Lima (1981), num novo horizonte.
Considerações finais
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Em As intermitências da morte, observou-se que a construção da alegoria do país
estetizado por meio do jogo da ausência/presença da morte, ao provocar a mudança de
perspectivas, possibilitou o questionamento e a dessacralização de valores. A própria
imagem de tânatos se configura de modo distinto, revela que o grotesco que a dama da
gadanha costuma evocar, pode também suscitar a comoção. O encontro da morte com o
humano revelou-se apaixonado, complexo, sensível: ―A morte voltou para a cama,
abraçou-se ao homem [violoncelista] e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela
que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras‖
(SARAMAGO, 2005, p. 207).
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. Tradução: Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
(Col. Os pensadores).
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ______. Sobre arte, técnica, linguagem e política.
Tradução: Maria Amélia Cruz. Lisboa: Relógio D‘Água, 1992. (p. 27-57)
______. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sergio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
LIMA, Luiz Costa. Representação social e mimesis. In: ______. Dispersa demanda:
ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. (p. 216-236)
HANSEN, João Adolfo. Alegoria – construção e interpretação da metáfora. São Paulo:
Hedra, 2006.
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KOTHE, Flávio. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986.
PLATÃO. Livro X. In: ______. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha
Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. (p. 449-497)
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
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MISTÉRIO E PROBLEMA: CHAVE DE LEITURA PARA OS TEXTOS DE
GABRIEL MARCEL - José Andre de Azevedo
Pós-Graduação da Unioeste
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No pensamento de Gabriel Marcel (1889-1973) as questões fundamentais da Filosofia
(a saber: corpo, outro, mundo e ser) gravitam em torno de uma situação primordial: a
encarnação. É a encarnação a órbita existencial da Filosofia Concreta (designação do
ato de filosofar utilizado por Marcel). Por outro lado, ela não deve ser interpretada à
maneira de um dado estático, fossilizado, petrificado. Como bem observa Ricœur, a
encarnação não é um túmulo (cf. Ricœur, 1996, p. 61), mas uma espécie de ―fissão
nuclear‖, capaz de desagregar os ―átomos do pensamento idealista‖. Essa ―bomba
nuclear‖ chamada encarnação é um dado indubitável e não lógico. Como, porém,
abordar e refletir tal situação? Conforme Claudinei Freitas (2011, p. 94), somente
mediante a perspectiva de um esclarecimento conceitual: a capital distinção entre
―problema‖ e ―mistério‖. Qual é a diferença substancial entre esses dois planos, por
assim dizer, metodológicos? Uma passagem da obra Être et Avoir busca elucidar tal
distinção:
Distinção entre o misterioso e o problemático. O problema é algo que se encontra, que
obstaculiza o caminho. Acha-se inteiramente diante de mim. Ao contrário, o mistério é
algo em que me encontro comprometido, cuja essência consiste, por conseguinte, em
não estar inteiramente diante de mim. É como se nesta zona a distinção entre o em
mim e o ante mim perdesse sua significação. (MARCEL, 1947, p. 145).
O que Marcel põe a nu é que o primeiro nível, o do ―problema‖, se caracteriza
exatamente em termos objetivos, predicativos, imediatos. Ou seja: é algo dado, está aí
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para ser resolvido, dissolvido, requerendo, o mais imediatamente possível, uma solução.
Noutra direção, o nível do ―mistério‖ corresponde justamente àquilo que não se liquida,
ou seja, se move naquele âmbito da experiência que envolve, compromete, perturba,
inquieta, desassossega. O problema, por conseguinte, é o que está ―perante mim‖,
objetivável, passível de ser decomposto conceitualmente, logicamente; esse é o
movimento operado particularmente pela ciência: ela se institui, por excelência, como
um campo de problemas. O mistério, por outro lado, significa o que está ―em mim‖, o
que me faz estar implicado com ele e nele. Nesse segundo plano, por conseguinte, se
transcende a oposição entre sujeito e objeto. Tais polos não podem ser representados
conforme dita a clássica teoria do conhecimento. O âmbito do mistério é aquele que se
situa numa zona profunda da realidade (que Marcel chama de metaproblemático).
Mistério não é simplesmente o insolúvel; afinal de contas, o campo da ciência está cheio
de problemas insolúveis, mas que se espera serem resolvidos (cf. MARCEL, 1947, p.
170-171). A zona do mistério é de outra ordem. É aprofundando essa dupla perspectiva,
que Marcel volta a observar:
Parece, com efeito, que entre um problema e um mistério há uma diferença essencial:
a de que um problema é algo com o qual me enfrento, algo que encontro por inteiro
ante mim, que se pode cercar e reduzir, enquanto que um mistério é algo com o qual
eu mesmo estou comprometido e que, em consequência, não é pensável senão como
uma esfera na qual a distinção de em mim e ante mim perde seu significado e seu valor
inicial. Enquanto um problema autêntico pode ser submetido a certa técnica
apropriada em função da qual se define, um mistério transcende, por definição, toda
técnica concebível. Sem dúvida, sempre é possível (lógica e psicologicamente)
degradar um mistério para convertê-lo em problema, porém, tal procedimento é
profundamente vicioso e sua origem deveria ser buscada, talvez, em uma espécie de
corrupção da inteligência. O que os filósofos têm chamado o problema do mal nos
proporciona um exemplo particularmente instrutivo desta degradação. (MARCEL,
1947, p. 169-170).
Aos olhos de Marcel, o tema referente ao ―problema do ser‖ torna-se, na verdade, uma
expressão equivocada e não deixa de haver aí certo abuso de linguagem, pois um
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problema é qualquer coisa que se esbarra em meu caminho, que se estabelece diante de
mim e que exige certa solução. Ora, o ser não é algo que obstaculiza as veredas da
existência, mas é, de certa maneira, aquilo que confere existência. O âmbito do
problemático é aquele em que o pensamento tem a função de absorver o que está diante
de mim de modo que a realidade seja digerida, reduzida ou dissolvida. Ela se transforma
em matéria pensável; o pensamento problemático ―envelopa‖ o ser e o transmuta em
elemento abstrato (cf. MARCEL, 1949, p. 269) a ponto de catalogá-lo conforme seu
sistema de compreensão.
O proprium do problemático é o fato de sempre separar e fazer surgir uma oposição
irredutível entre um sujeito e um objeto, entre um espectador e um espetáculo, sempre
cindindo, sempre dualizando; a ―vocação‖ do problemático é causar o ―divórcio‖ da
existência e da objetividade. Nessa medida, o problemático é a ruptura por essência, é a
alienação por natureza (cf. MARCEL, 1947, p. 25). A consequência do pensamento
problemático é que ele torna o humano estrangeiro do pensamento, ―exilando-o ao
infinito‖ (cf. MARCEL, 1947, p. 12).
Até aqui, para Marcel, não há ―problema‖ no ―problema‖. O erro mais flagrante é
quando se utiliza essa maneira de compreender a realidade como se fosse exclusiva e
absoluta. O ―problema‖ é quando se toma o ―problema‖ como sendo a própria forma de
conhecer, como se fosse o conhecimento por excelência. Por isso, o problemático
somente é um problema quando se esbarra em si mesmo e se basta a si mesmo. Ao
adotar essa atitude, se cria ou se cristaliza um sistema de compreensão da realidade.
Visto que o pensamento pensante é uma ontologia – que não se trata de um
conhecimento qualquer e nem de um instrumentum de percepção da realidade –, não
pode ser problematizado. É sob esse aspecto que os temas da metafísica não podem ser
tratados sob a categoria de problemas. Tratar a ontologia em termos de problema é
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amputar ou mutilar a questão fundamental do ser. O que também significa que o ser não
pode ser abordado de forma técnica e, de passagem, não convém ser investigado pelo
pensamento pensado. Nessa direção, o autêntico pensamento, ou seja, a Filosofia
Concreta, se exprimirá como sendo aquele pensar que renuncia justamente de possuir o
ser como objeto, afirmando-o, positivamente, nos termos exatos de um problema. Ora,
qual é o ―objeto‖ mais próprio da metafísica? Marcel descreve, com todo rigor: É a
pesquisa do ―metaproblemático‖.
Se o ser é metaproblemático, como reconhecer aquilo que é metafísico? Como falar de
algo não objetivo justo numa linguagem objetiva? Ora, Marcel recorda que o
metaproblemático somente pode ser pensado a partir da ―estratégia‖ da reflexão
segunda, reflexão, segundo Marcel, recuperadora e, por isso, típica do âmbito do
mistério.
O ser como mistério não pode ser mediatizado, nem representado. Essa condição não o
impede, todavia, de ser concreto. Por isso, a atitude do espírito face ao ser é muito
distinta; chega-se a ele não pela via lógica. O acesso ao ser não é mediante uma via
direta, positiva, mas por múltiplas experiências, até mergulhar-se no recolhimento,
condição sine qua non para a percepção do mistério (cf. MARCEL, 1947, p. 171). Ora,
é tomando esse contexto que Marcel projeta a verdadeira tarefa da metafísica: essa se
consubstancia num nível de reflexão circundada pela experiência do mistério. Sendo
assim, o campo do mistério é amplo, vindo a abarcar todo um âmbito de realidades
recônditas, como, por exemplo, a questão do mal, a relação corpo-alma, a liberdade, o
conhecimento, o amor, o tempo, a presença, a imortalidade. Por outro lado, todos esses
mistérios são somente aspectos de um só mistério fundamental: o mistério do ser. Para
Marcel, o ser não é um objeto perante nós; nós mesmos somos ser, participamos no ser,
de sorte que nos incluímos na pergunta antes levantada, como atesta o dramaturgo
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francês: ―Convém, por outra parte, assinalar que eu, que pergunto pelo ser, não sei, em
primeiro lugar, se sou, nem a fortiori o que sou – nem sequer sei claramente o significa
esta pergunta que sou?, que ainda assim me obceca‖ (MARCEL, 1947, p. 169). É
impossível, assim, separar as perguntas O que é o ser? e Quem sou eu?. A questão do
ser comporta, pois, um envolvimento existencial.
Na Filosofia Concreta o ser é um mistério não porque se trata de algo indecifrável, mas
em vista de sua própria condição metaproblemática, ou seja, pertence ao domínio
irredutível
da
existência
humana,
impossível
de
coisificar
ou
substantivar
conceitualmente. O mistério não é coisificado porque nas questões misteriosas se está
envolto e é um contrassenso uma auto-objetivação, visto que a predicação só se realiza
na relação sujeito-objeto (esquema que o âmbito do mistério não comporta), o que é
específico do problemático.
Na dimensão metaproblemática do ser e da existência humana jogam, como polos que
se combinam mutuamente, o corpo e a intersubjetividade. A afirmação pétrea do dado
encarnacional ―eu sou meu corpo‖, em lugar de fechar o existente em uma subjetividade
solipsista, abre-o ao mundo e aos outros. A intersubjetividade, então, é prolongamento
necessário da afirmação existencial ―eu sou meu corpo‖. Sob esse prisma, isto é, da não
objetivação do ser (leia-se: mistério), a única maneira de que a verdadeira metafísica e a
Filosofia Concreta sejam possíveis é reconhecendo a impossibilidade do saber objetivo
para ascender ao ser, ser que é presença, encontro e, de certa maneira, possibilitador da
intersubjetividade156.
156
Conforme se pretende mostrar mais adiante, Marcel em muito se aproxima da tradição
fenomenológica-existencial (sobretudo com Heidegger e Merleau-Ponty) na medida em que o tratamento
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Diante de um mundo quebrado, ou melhor, de um mundo e humanos problemáticos –
na acepção marceliana de problema –, algumas pessoas vivenciam a ausência do ser e
do mistério. Segundo Marcel, então, há certa exigência ontológica de reconhecimento
do ser (cf. MARCEL, 1951b, p. 39); o problemático é o locus onde a sede de mistério se
apresenta. A metafísica, assim, deve responder a tal exigência. A partir disso, como
atender a essa exigência ontológica? Como falar do ser se o mesmo não se deixa
―aprisionar‖ e muito menos definir? Como se estrutura o acesso ao mistério do ser?
Segundo Marcel, mediante a encarnação, que é a participação imediata no ser,
―mergulho‖ no mistério do ser e tal situação se efetua não mediante um ―mundo ideal‖ e
de sua contemplação (como previa Platão e algumas correntes idealistas), mas por meio
de meu corpo, com o qual entro numa relação de ―entranhas‖ com os objetos, com o
mundo e com o outro. A questão, porém, retorna: – Como não pensar esta participação e
corporalidade de modo objetivo? Segundo GRASSI (2008, p. 161), a questão central
aqui é: – Em que consiste a inteligibilidade própria do âmbito da existencialidade? –
Quando se pergunta pelo ser, quem é este que se pergunta? E aqui novamente voltamos
à questão em que Marcel se movia: a grande tarefa da Filosofia é explicitar a mim
mesmo quem sou (cf. MARCEL, 1951a, p. 163); porém, apresenta-se aqui um novus
inqueritus: – Quem sou eu para ―responder‖ à questão acerca do que sou? – Como
afirmar que a fundamentação para responder a esta questão é aquele mesmo que a
formula? (cf. MARCEL, 1947, p. 169).
Em poucas palavras: o fio de Ariadne da reflexão filosófica é sempre a compreensão do
ser. Trata-se, a rigor, não mais de objetivá-lo ou coisificá-lo, mas de interrogá-lo como
uma ordem de questão profundamente misteriosa, no sentido mesmo de um
acerca do ser não pode ser definido a partir de conceitos, visto, antes, estar circunscrito noutro campo ou
horizonte, o do mistério.
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engajamento originário. A encarnação é o signo mais palpável ou concreto desse elo
profundo. Assim, ao se falar de mistério e problema, o que se discute, em primeiro
lugar, é o estatuto ontológico do sujeito a respeito do ser que o interpela a ―conhecê-lo‖.
Diante da reflexão sobre o caráter do sujeito cognoscente, só há dois níveis possíveis de
tratamento: ou se define um sujeito que se posta diante do ser, dominando-o ou
governando-o (à semelhança de um conhecimento técnico) ou nele se encontra
submergido. Ainda: o sujeito percebe o ser como problema ou o reconhece no sentido
de um mistério. Se se o maneja como se quer, pode-se fossilizá-lo e coisificá-lo; se nele
se está mergulhado, nele se participa e é ele quem permite reconhecer-se como
existente.
Essa crítica marceliana ao objetivismo exige, antes, um esclarecimento. Marcel
reconhece o papel do pensamento objetivo, porém, é preciso ater-se ao fato de que tal
pensamento é específico do mundo da técnica e da ciência, de modo que realizar uma
abordagem metafísica de maneira predicativa é coisificar o próprio ser. Diante do ser e
do mistério somente uma reflexão possibilita afirmar algo desse ser: a reflexão que o
filósofo parisiense designou como reflexão segunda.
Fechando, em parte, essa discussão acerca da distinção marceliana entre mistério e
problema, cabe observar que alguns comentadores chegam a vislumbrar, tanto na obra
como um todo, quanto na intuição de Marcel (sobretudo no tocante ao tema da
encarnação) uma abordagem restritivamente teológica, pura e simples. Tudo se passa
como se esse movimento de pensamento se travestisse de uma abordagem
existencialista, ao fugir de um esquema escolástico-tomista como o foi de Maritain, um
dos adversários mais contumazes do filósofo. Levando em conta esse contexto, Marcel
assim se posiciona:
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O reconhecimento do mistério ontológico, o qual percebo como reduto central da
metafísica, somente é possível mediante uma espécie de irradiação fecunda da
revelação como tal e pode perfeitamente originar-se no seio de almas alheias a toda
religião positiva, qualquer que seja. Este reconhecimento, que se realiza através de
certas modalidades superiores da experiência humana, não implica de nenhum modo a
adesão a uma determinada religião; não obstante, permite que aquele que se elevou até
ela possa entrever a possibilidade de uma revelação, coisa impossível para quem, por
não ter transpassado os limites do problematizável, permanece do lado de cá deste
ponto no qual o mistério do ser pode ser percebido e proclamado. (MARCEL, 1949, p.
301).
REFERÊNCIAS
GRASSI, M. El hombre como ser encarnado y la ―filosofia concreta‖ de Gabriel
Marcel. UCA. Dissertação (Tesis de Licenciatura). 2008. 217 p
MARCEL, G. Du refus à l’invocation. Paris: Gallimard, 1964.
__________. Entretiens: Paul Ricoeur, Gabriel Marcel. Paris: Présence de Gabriel
Marcel, 1998.
_____. Être et avoir. Paris: Aubier, 1947.
_____. Homo viator: prolégomènes a une métaphysique de l‘espérance. Paris: Aubier,
1944.
_____. Journal métaphysique. Paris: Gallimard, 1927.
_____. Le mystère de l’être I. Paris: Aubier, 1951.
_____. Le mystère de l’être II. Paris: Aubier, 1951.
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_____. Position et Approches Concrètes du Mystère Ontologique. Paris: J. Vrin, 1949.
RICOEUR, P. Gabriel Marcel et Karl Jaspers: philosophie du mystère et philosophie
du paradoxe. Paris: Temps Présent, 1947.
________. Leituras 2: a região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996. p. 47-64.
SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas. O corpo em cena: Gabriel Marcel. In:
Corporeidade e educação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 93-112.
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O CUIDADO DE SI PELA ESCRITA E LEITURA FILOSÓFICA - Leandro
Nunes
Graduando Filosofia
Bolsista PICV/Ações/Afirmativas/Unioeste.
Orientadora Prof. Dra. Ester M. D. Heuser
[email protected]
Palavras-chave: Leitura, Escrita, Cuidado-de-si.
O cuidado de si
Para se ler e escrever filosoficamente faz-se necessário estar envolvido intimamente
com a filosofia e, para que isto aconteça é preciso conhecer-se a si mesmo, é preciso
cuidar de si. O filósofo francês Michel Foucault (2006) apresenta técnicas do ―eu‖ ou do
―cuidado de si‖ em seu livro intitulado A Hermenêutica do Sujeito, modos de conectarse consigo mesmo que levam o homem a um modo de viver que o capacita a realizar
uma vida plena em si mesma. O conceito de ―cuidado de si‖ apresentado por Foucault
nesta obra pode ser entendido como algo que abarca a compreensão filosófica do
mundo, no sentido de que as técnicas para o cuidado de si talvez possam servir como
substrato ou subsídio para todas as outras técnicas, inclusive as técnicas de leitura e
escrita, pois: ―A prática de si foi um imperativo, uma regra, um modo de agir que teve
relações muito privilegiadas com a filosofia, os filósofos, a própria instituição
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filosófica‖ (Idem, p.185). Em suma, o cuidado de si possui uma íntima relação com a
filosofia e o filosofar, sendo contingente à atividade filosófica.
O cuidado de si é um imperativo que leva o homem a uma compreensão dos problemas
do mundo e das potencialidades que lhe são inerentes, para tanto, acreditamos que esta
prática dos antigos pode ser um auxílio ou suporte para o filosofar acontecer. Parece-me
que o cuidado de si está intimamente ligado ao viver e ao filosofar:
O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos
homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio
de movimento, um princípio de inquietude no curso da existência. (Idem, p. 11)
Foucault mostra, que apesar do cuidado de si ter sido contingente ao filosofar nos
gregos antigos e posteriormente nos helenísticos, a partir dos modernos, fez-se filosofia
de forma que não se utilizasse mais as técnicas do cuidado de si. No entanto,
acreditamos que todo homem que deseje da filosofia se ocupar deve também ocupar-se
consigo mesmo e, é neste sentido, que ―em Epicuro encontramos a fórmula que será tão
frequentemente repetida: todo homem, noite e dia, e ao longo de toda sua vida, deve
ocupar-se com a própria alma‖ (Idem, 2006, p. 12). O cuidado de si possibilita uma total
consciência de si, das capacidades que se possui:
Não nos ocupamos conosco para viver melhor, para viver mais racionalmente, (...)
deve-se viver de modo que se tenha consigo a melhor relação possível. (...) Como
projeto fundamental da existência, vive-se com o suporte ontológico que deve
justificar, fundar e comandar todas as técnicas de existência: a relação consigo. (Idem,
p. 544).
A filosofia como modo de vida
Nos primórdios da filosofia os gregos antigos proclamavam, para todos os seus
concidadãos atenienses, que a filosofia era uma necessidade para a vida toda, a filosofia
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deveria ser encarada como o alicerce para a construção do viver. Isto porque o exercício
de filosofar, na perspectiva grega – e também na helenística, ainda que de modo diverso
–, fornecia ao homem um modo de viver que de certa forma o aproximava do divino:
Portanto, como vemos, neste exercício do pensamento sobre si mesmo, há algo que
nos aproxima do divino. Mas, enquanto em Platão, por este olhar sobre si mesmo a
alma se reconhecia como sendo ela própria substancialmente e por essência de
natureza divina, em Epicteto há a definição de um olhar sobre si mesmo que está em
posição de analogia relativamente ao que constitui o ser divino (Idem, p.558).
No cenário contemporâneo, os homens desejosos de se utilizarem da filosofia para
viver, encontram barreiras que aparentemente não podem ser transpostas, obstáculos
construídos sobre um pensamento elitista, que infere a superioridade de poucos perante
a inferioridade de muitos. Nesse sentido, uma das maiores dificuldades encontradas
pelos homens ingressantes no mundo filosófico, via academia, é a dificuldade de ler e
escrever filosoficamente. Na academia, a filosofia exige que seus discípulos leiam e
escrevam incessantemente e de modo filosófico, contudo, a respeito deste modo e dos
procedimentos para alcançá-lo, pouco é dito ou referido, sendo que raramente é
elucidado. Diante das dificuldades que essas exigências impõem, parte significativa dos
estudantes de filosofia acaba desistindo de cursá-la por considerar-se incapaz de ler,
escrever e fazer filosofia.
Leitura e escrita filosófica
Em nossa perspectiva, para se ler e escrever filosoficamente é preciso tomar como
premissa primeira a teoria do filósofo francês Jacques Rancière (2002) que infere que
todos os homens possuem uma igualdade primeira das inteligências – a ser verificada.
Trata-se de mostrar que a filosofia pode ser algo acessível para todos os homens, desde
que estes estejam providos de vontade e dedicação. Uma concepção que se aproxima da
perspectiva de Rancière é a do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, uma vez que ele
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entende que ―só se dedicará em um assunto com toda a seriedade alguém que esteja
envolvido de modo imediato e que se ocupe dele com amor‖ (2007, p.23). Acreditamos
que somente a partir desta concepção poderemos nos deter nos problemas encontrados
na leitura e escrita filosófica.
Quando aceita-se a filosofia como algo possível e vive-se para ela com afinco,
dedicação e vontade, a leitura e a escrita filosófica acontecerão sem grandes sustos.
Segundo o professor Luiz Rohden ―há uma correlação proporcional entre a quantidade
de leitura e qualidade de escritura‖ (2008, p. 218). Ler e escrever filosoficamente são
duas atividades indissociáveis para quem se dedica a estudar filosofia, pode-se
considerá-las similares e congruentes.
Textos filosóficos
Todo texto possui uma cifra pela qual deve ser estudado. Para se ler um texto filosófico
é preciso criar um plano de leitura, um plano que será demarcado com as características
que são inerentes e singulares em cada filósofo, sendo necessário para tanto, uma
pesquisa em torno dos componentes que permeiam o texto em questão, assim como dos
porquês que levaram o autor a escrever tal obra:
Poucos escrevem como um arquiteto constrói: primeiro esboçando o projeto e
considerando-o detalhadamente. A maioria escreve da mesma maneira com que
jogamos dominó. Nesse jogo, às vezes segundo uma intenção, às vezes por mero
acaso, uma peça se encaixa na outra, e o mesmo se dá com o encadeamento e a
conexão de suas frases. Alguns sabem de modo aproximado que figura terá o conjunto
e aonde chegará o que escrevem, muitos não sabem nem isso, mas escrevem como os
pólipos de corais constroem: uma frase se encaixa em outra frase, encaminhando-se
para onde Deus quiser (Schopenhauer, 2007, p. 115).
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Deve-se ter em questão na leitura de um texto filosófico que nenhum autor criou uma
filosofia que não estivesse intimamente ligada a outra filosofia, pois não há filosofia
―solta‖, toda filosofia é criada sobre a base de outras filosofias que a precederam. Logo,
na leitura filosófica é necessário fazer ligações, demarcar a conjuntura na qual o texto
foi escrito, procurando ligações com outros filósofos e filosofias, ―ler é proceder a um
constante movimento de vaivém que volta a ligar e sobrepõe, simultaneamente, os
constituintes da frase e as frases em si, de modo a construir uma unidade com sentido
global‖ (Cossuta, 1998, p. 15).
***
A filosofia precisa ser encarada como uma ―disciplina em perpétuo movimento, em que
as diferenças entre tipos de métodos e tipos de objeto de análise escolhidos, se fazem e
desfazem constantemente‖ (Idem, p.10), logo, não é possível criar um método para
leitura/escrita filosófica que pretenda abarcar todos os autores e filosofias. Como todo
texto filosófico possui uma característica que lhe é peculiar e que o torna único, faz-se
imprescindível que se desenvolvam modos de leitura que sejam flexíveis e adaptáveis a
todos os textos de filosofia que se apresentem. No entanto, um modo de se ler filosofia é
comum e contingente a todas as filosofias, a saber, fazer uma leitura destacando todas as
afirmações primeiras que direcionam as demais partes do texto que se seguem. Tais
afirmações primeiras são centrais no desenvolvimento do texto, elas direcionam todos
os movimentos que constituem a argumentação empregada.
***
Quando nos propomos a ler e escrever filosoficamente, assinamos um compromisso de
fazer alguma coisa com aquilo que nos é apresentado, do contrário só repetiremos as
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ideias já pensadas por outros autores em suas respectivas épocas, tornando inútil tal
empresa:
A leitura não passa de um substituto do pensamento próprio. Trata-se de um modo de
deixar que seus pensamentos sejam conduzidos em andadeiras por outra pessoa. Além
disso, muitos livros servem apenas para mostrar quantos caminhos falsos existem e
como uma pessoa pode ser extraviada se resolver segui-los. Mas aquele que é
conduzido pelo gênio, que pensa por si mesmo, que pensa por vontade própria, de
modo autêntico, possui a bússola para encontrar o caminho certo (Schopenhauer,
2005, p. 42).
A leitura de textos filosóficos deve propiciar um momento de retenção e posteriormente
criação de conceitos. A leitura filosófica é um exercício que possibilita a criação ou
atualização de conceitos, tornando-a a base para a produção textual. A leitura é
reativada pela escrita, ambas caminham lado a lado na atividade de filosofar:
Isto explica o efeito que se espera da leitura: não a compreensão do que o autor queria
dizer, mas a constituição para si de um equipamento de proposições verdadeiras, que
seja efetivamente seu. (...) Não se trata de construir para si um mosaico de preposições
de diferentes origens, mas de constituir uma trama sólida de proposições que valham
por prescrições, de discursos verdadeiros que sejam ao mesmo tempo princípios de
comportamento. Ademais, (...) sendo a leitura assim concebida como exercício,
experiência, e não havendo leitura senão para meditar, a leitura seja imediatamente
ligada à escrita. (...) A leitura se prolonga, reforça-se, reativa-se pela escrita (Foucault,
2006, p. 431).
***
Uma produção textual de cunho filosófico deve seguir alguns parâmetros que a
habilitam lograr-se de tal status. Em um texto filosófico o problema a ser tratado deve
ser claro e abordado de forma consistente e sem desvios, deve-se ter em conta que o
leitor que irá desfrutar de seu texto não está interessado em devaneios e enfeites que
apenas adornam o texto e não trazem nada de relevante para a construção dos
raciocínios ali empregados:
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Deve-se evitar toda prolixidade e todo entrelaçamento de observações que não valem
o esforço da leitura. É preciso ser econômico com o tempo, a dedicação e a paciência
do leitor, de modo a receber dele o crédito de considerar o que foi escrito digno de
uma leitura atenta e capaz de recompensar o esforço empregado nela (Schopenhauer,
2005, p. 15).
Os argumentos devem ser apresentados de forma coesa, pois, um texto filosófico é
escrito com a intenção de ―marcar, gravar, imprimir‖ (Rohden, 2008, p.220), assim, é
forçoso escrever de forma clara e convicta, evitando enganos. Ler, escrever e reler
repetidamente, são passos necessários e congruentes para eliminar prolixidades e
asserções errôneas, ―o exercício de ler, escrever, reler o que se tinha escrito e as
anotações feitas, constituía um exercício quase físico de assimilação da verdade e do
logos a se reter‖ (Foulcault, 2006, p. 432).
Escreve-se para expressar pensamentos e ideias que acreditamos serem importantes para
nós e talvez para outros homens envolvidos em problemas semelhantes. Todos os textos
são escritos em estruturas e estilos variados, o que resulta em interpretações e
percepções diferentes acerca do conteúdo. Em suma, clareza e coesão são requisitos
básicos constituintes de todo texto, mas em especial no texto filosófico.
***
Se a filosofia possui uma linguagem própria, um âmbito que lhe é singular, ―a leitura de
textos filosóficos terá, então, de ser abordada do ponto de vista estritamente filosófico‖
(Cossutta, 1998, p. 11). Toda obra filosófica ―elabora ou pretende elaborar as condições
de sua própria validade, e, portanto, enuncia as próprias regras da leitura que dela se
pode fazer‖ (Ibidem). Escrever filosofia filosoficamente é uma arte, ―é um modo, por
excelência, de cuidarmos da nossa alma, (...) o bom escritor, é arquiteto da alma‖
(Rohden, 2008, p. 222).
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A filosofia propícia aos seus praticantes um modo de viver que lhe permite encarar o
mundo com outros olhos. Quem vive da filosofia ou para a filosofia, de certa forma,
vive para si e somente para si. Os gregos antigos encontravam no cuidado de si uma
forma de vida, um modo de viver pleno e si mesmo. Em suma, acreditamos que ―(...) é
preciso cuidar de si‖ (Foulcault, 2005, p. 588).
REFERÊNCIAS
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Escrever. Porto Alegre: L&PM, 2007.
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
COSSUTTA, Fréderic. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. [Tradução portuguesa: Didáctica da Filosofia: como interpretar
textos filosóficos? Lisboa: ASA, 1998.].
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante; tradução de Lilian do Valle. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
_____. Sobre a Arte de Escrever Filosofia Filosoficamente! In. KUIAVA, Evaldo
Antônio; SANGALLI, Idalgo José; CARBONARA, Vanderlei. Filosofia, Formação
Docente e Cidadania. Ijuí: Unijuí, 2008.
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O EMÍLIO DE ROUSSEAU: EDUCAÇÃO, NATUREZA E SOCIEDADE Alexandre José Krul
1
Mestrando em Educação nas Ciências . UNIJUÍ. Bolsista Taxa Capes.
E-mail: [email protected]
Palavras-Chave: Educação - Natureza - Sociedade
Este texto examina as seguintes idéias presentes no Emílio, de Rousseau: a educação
segundo a natureza oferece as condições para que os infantes desenvolvam, livremente,
suas faculdades e disposições físicas e morais; a educação de Emílio deve prepará-lo,
tanto para ser homem, quanto para viver em sociedade, pois o homem não nasce
homem, nem nasce preparado para a vida civil; desde seus nascimentos até a juventude,
crianças devem ser acompanhadas, cuidadas e protegidas pelos adultos, no sentido em
que possam desenvolver suas capacidades físicas e intelectuais respeitando etapas e
evitando que sejam influenciadas pelos preconceitos e vícios sociais estabelecidos.
A educação não foge à ordem natural que coloca todos os homens como iguais para
viver a vocação humana. Para viver deve exercitar-se por meio da formação recebida de
um preceptor. No Livro II, Rousseau (2004) afirma que o exercício é o meio pelo qual a
1
Este texto faz parte de pesquisa em andamento no Programa de Pós- Graduação em Educação nas
Ciências (Mestrado). UNIJUÍ. Orientador: Prof. Dr. Claudio Boeira Garcia.
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criança poderá sentir o mundo, pois a instrução por palestras, discursos e sermões pouco
tem efeito para um ser que faz uso dos órgãos, dos sentidos e das faculdades.
Desde a primeira infância a criança deve ser formada para suportar as variações que a
vida exigirá na fase adulta, por isto, segundo Rousseau (2004), não se deve poupar os
males na infância e depois multiplicá-los na idade da razão. Nesse sentido, não é papel
do adulto, apenas encher a memória de uma criança com discursos ou inutilidades
(exercícios que não são os dos sentidos), pois em primeiro lugar deve ser ensinada a
viver; este ensino não se dá pelo adiantamento das paixões, como acham certo alguns
adultos. Não cabe aos adultos adiantar as fases da vida, pois disto se encarregará a
própria natureza (desenvolvimento natural); em vez disto devem preservá-las da vida
social. Essa educação negativa proposta por Rousseau tem por finalidade não sufocar a
natureza. ―Quereis que a criança conserve sua forma original? Preservai-a desde o
instante em que vem ao mundo‖ (ROUSSEAU, 2004, p.26). Além disso, para que seja
bem formada é necessário o acompanhamento de um preceptor que tenha sido bem
educado, pois ―como é possível que uma criança seja bem educada por quem não tenha
sido bem educado?‖ (Ibid., p.28).
Segundo Rousseau (2004), não cabe aos homens querer decidir quando é o tempo certo;
a educação passa pelo exercício de tudo que a natureza impõe no tempo que ela define.
O homem criou, com sua inteligência, instrumentos para marcar o tempo com o objetivo
se organizar melhor, mas não cabe a este ser o mestre que comanda o tempo. O tempo
da educação necessita a experiência, de acordo com cada etapa do desenvolvimento
natural. A experiência não necessita do hábito humano (criado de maneira artificial
devido ao comodismo ou manias), mas sim do hábito natural que a coloca em ―(...)
condições de sempre ser senhora de si mesma e de fazer em todas as coisas a sua
vontade, assim que a tiver‖ (Ibid., p.49).
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A educação promovida pela sociedade, com base na razão, quer adiantar e prevenir o
homem, não o deixando fazer experiências próprias antes, e assim cria hábitos que
atrapalham seu desenvolvimento. Por exemplo, querer que a criança aprenda por meio
de sequências lógicas e abstratas um determinado conhecimento que o adulto demorou
décadas para construir.
Caso o adulto não deixe a criança fazer suas próprias experiências, e não a proporcione
experiências, ele estará criando hábitos com base em seus gostos e conhecimentos,
exigindo que a criança entenda e haja conforme informações recebidas em vez de ela
mesma realizar a sistematização. Rousseau diz que a natureza fez o homem criança
antes de ser adulto. Não temos autoridade para mudar esta ordem, e se assim quisermos
estaremos pervertendo a ordem e as corrompendo e facilmente os motivos secretos
tomaram o lugar dos verdadeiros motivos.
Não há como querer instruir uma criança e pensando e decidindo tudo por ela, ou querer
realizar raciocínios que não envolvem os sentidos, mas podemos ensinar a criança a ser
criança, para que na vida adulta, quando a razão aos poucos tomará o lugar dos sentidos,
possamos o formar como homem. Não cabe ao preceptor suprimir reações causadas
pelo próprio aluno, pois senão ele não aprenderá com os sentidos os resultados, por
exemplo, de uma mentira.
No Livro IV, Rousseau (2004) define que o homem possui um segundo nascimento, que
e o nascimento para a vida moral, e a partir daí a educação deverá se preocupar em
controlar as paixões e a razão para que não se corrompam.
Rousseau (2004) salienta que seria loucura, e até mesmo impossibilidade e insensatez
por parte de alguém querer impedir o nascimento das paixões, pois elas são naturais e
necessárias para a nossa conservação e desenvolvimento; ao mesmo tempo esclarece
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que o preceptor deve continuar presente, problematizando e provocando o raciocínio do
aluno para que ele não se deixe afetar pelos ―mil riachos estranhos‖ que são somadas as
águas da fonte natural. A paixão natural é aquela que brota do íntimo e que é
denominada de amor de si, e as paixões estranhas que surgem do relacionamento com
os outros, do amor-próprio.
―O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas
verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que se compara, nunca
esta contente nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros,
também exige que os outros prefiram-nos a eles, o que é impossível. Eis como as
paixões doces e afetuosas nascem do amor de si, e como as paixões odientas e
irascíveis nascem do amor-próprio‖ (Ibid., p.289).
Rousseau (2004), diz que há necessidade de preceptor acompanhar o homem neste
momento ―para prevenir no coração humano a depravação que nasce de suas novas
necessidade‖ (Ibid., p.190). As necessidades podem levar o homem à satisfação de
desejos próprios a qualquer custo, e com isto facilmente dispensará qualquer forma de
sacrifício. Nesse momento da vida os sentidos e o corpo estão preparados para satisfazer
necessidade que brotam da natureza, mas a razão ainda não está madura para regrar a
vontade de satisfazer as necessidades que brotaram das novas paixões.
A educação do aluno sempre é racional e lhe reforça o poder de escolher e preferir o que
lhe é melhor, e mais lhe agrada, mas no contato com os outros, os gostos podem ser
transformados, e a comparação tornar-se a referência para tomar qualquer decisão. Cabe
ao professor encontrar um método que previna e alerte o aluno sobre a ideia de que: o
amor que quer tudo para si pode ser influenciada pelas ideias e gostos dos outros,
quando a opção estiver embasada na comparação. Na relação com os outros facilmente
―a torrente de preconceitos arrasta-o; pra segurá-lo, é preciso puxá-lo em sentimentos
contrários. É preciso que o sentimento acorrente a imaginação e a razão cale a opinião
dos homens‖ (Ibid., p.298).
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A relação que o aluno tem com seus sentidos e com as coisas a sua volta é desafiante,
mas bem mais tranquila, pois são relações de necessidade de sobrevivência, onde ele
estará sozinho e precisará se resolver com o mundo das coisas. Em contrapartida, na
relação com os outros ele terá que lidar com as próprias necessidades e aprender a
decidir racionalmente sobre elas frente à diversidade de opiniões que brotam do amor de
si dos outros homens.
O amor de si quer tudo para si, neste sentido não há como imaginar uma sociedade na
qual cada sujeito somente pense em si mesmo, e queira que todos pensem em agradar a
um homem. Cada um estaria pensando em si mesmo, logo não poderia estar pensando
nas necessidades dos outros. Quem ama muito a si mesmo não consegue viver com os
outros, pois sempre o eu virá em primeira instância.
Cabe a educação semear sentimentos que valorizem a convivência e o respeito para com
os semelhantes; Rousseau (2004) chama estes sentimentos de ―sementes de
humanidade‖ e dizia que
―(...) um jovem educado numa feliz simplicidade é levado pelos primeiros
movimentos da natureza na direção das paixões ternas e afetuosas; seu coração
compassivo comove-se com o sofrimento dos seus semelhantes; sente-se arrepios de
alegria quando revê seu camarada, seus braços sabem achar abraços carinhosos, seus
olhos sabem derramar lágrimas de ternura; é sensível à vergonha de desagradar, ao
remorso de ter ofendido‖ (p.300).
Conforme Rousseau (2004), a amizade será o primeiro sentimento de reconhecimento e
valorização do outro. Dos sentimentos de amizade poderá brotar o amor, que é uma
superação do sentimento de amor de si. Desta relação com os outros resultará o amorpróprio, que é corrupto em si mesmo, mas pode ser superado com o tempero da
compaixão.
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Para Rousseau (2004) os homens devem se resolver por si mesmo, e nada está garantido
neste mundo das relações. A educação dos homens, não é garantida previamente por
nenhuma instituição. A educação do homem, mesmo proporcionada com grande
maestria por outro homem, não está garantida. Pode corrompê-lo ou torná-lo virtuoso.
Há educação dos homens cabe ―instruir o jovem mais pela experiência dos outros do
que peça sua própria‖ (Ibid., p.326).
A educação do homem a partir do estudo das relações que os homens possuem entre si
na sociedade, é desafiantes, segundo Rousseau (2004), pois o mundo está cheio de
grandes espetáculos e seus atores vestem belas máscaras. E nesta educação não basta
mostrar a sociedade e afirmar que ali está o exemplo a ser seguido, mas justamente
deve-se alertar e proporcionar ao aluno um exame mais cuidadoso sobre as relações
sociais, afim de que perpasse o verniz superficial e generalista.
O aluno situado em uma sociedade afasta-se das opiniões para analisá-las. Observa as
relações sociais não para julgar, mas para conhecê-las e escolher as mais adequadas;
pois a opinião não pode resultar em opção, mas a opção deve ser racional e
independente de qualquer instituição e autoridade. A única autoridade válida para o
homem deve ser sua própria razão.
Para que o homem viva livre na sociedade precisa conquistar autonomia racional,
controlando suas próprias necessidades e cedendo ao desejo de dominar; o homem
social é, o homem que viver livre da escravidão gerada pelos vícios, para viver a
liberdade natural.
Um adulto que já teve várias experiências de vida em sociedade, e já possui um
conhecimento elaborado, precisa empregar um esforço enorme para se colocar no lugar
da criança para acompanhá-la no desenvolvimento. Cada momento dia é desafiador para
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o preceptor conseguir mediar as experiências que seu aluno realiza. Não me parece
errado pensar que depois que um conhecimento é elaborado, muitas vezes até esquecese os detalhes de como ocorreu tal processo de sistematização. A educação nunca pode
atropelar o tempo, pois se isto acontecer, com o objetivo de aligeirar processos de
desenvolvimento por meio de resumos ou explicações abstratas, uma ideia pode ser
corrompida, e com isto, a razão autônoma não estará sendo desenvolvida.
A elaboração de conhecimento depende de cada indivíduo, por isso Rousseau (2004)
preza pela educação individual que respeita a natureza humana. A razão sobre as coisas
do mundo e as relações não são inatas ao homem, mas pode ser desenvolvida com
auxilio de um acompanhamento adulto, que provoque por meio de situações reais o
desenvolvimento racional. O preceptor estará cumprindo sua missão quando conseguir
acompanhar o homem, e fazer com que esse desenvolva conhecimentos. De maneira
alguma se deve perder de vista que todo o tempo dedicado a educação tem o foco a vida
do homem em sociedade; e nessa vida, não cabe o egoísmo e mesquinharia. O homem
deve estar preparado para decidir por si, mesmo sentido as opiniões dos outros homens
fervilharem ao seu redor.
Rousseau considera que as opiniões são os vícios da sociedade, pois elas impedem o
desenvolvimento do homem. As opiniões são atitudes que facilmente podem manipular,
caso não estejamos racionalmente preparados para detectar esse mal. Um homem
preparado com uma educação natural terá mais sensibilidade, clareza e liberdade para
decidir, pois terá condições de dialogar de igual para igual com outro homem; qualquer
argumento não o convencerá.
Hábitos, paixões e vontades não podem ser confundidas com necessidade, utilidade e
liberdade. O homem deve nascer e crescer livre, sem esquecer que sua vida não é vivida
no isolamento, mas na sociedade. Quantas pessoas vivem numa mesma sociedade, e
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todas possuem liberdade! De que forma poderão viver conjuntamente? Em associações
regradas pela compaixão, mantendo assim os laços humanos e repugnando a maldade. A
vida na República, onde as instituições e as leis são criadas pelos homens livres para os
próprios homens que amam a verdade e a justiça, é o melhor locar para se viver.
A sociabilidade é a condição que o homem deve alcançar por meio do entendimento
interior, baseado no livre arbítrio, de que não se pode somente agir com base no amorpróprio. Não é por meio dos raciocínios de outrem que o homem consegue raciocinar.
Mas também ninguém consegue viver bem em uma sociedade se somente pensar em si
mesmo, e achar de que tudo e todos vivem para satisfazer suas vontades.
Em resumo: a educação deve oferecer condições para que a criança quando se torne
adulta faça bom uso de suas capacidades de julgamento e de escolha; a ―educação
segundo a natureza‖ destaca e relaciona, pois, a dimensão da formação do indivíduo,
(infante que chega ao mundo), com a sociedade na qual será integrado quando adulto.
REFERÊNCIAS
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
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O ENCONTRO DA REALIDADE PENSANTE EM DESCARTES - Vanessa
Henning
Graduanda em Filosofia - Unioeste
[email protected]
Palavras-chave: dúvida, cogito, realidade pensante
Em suas Meditações, Descartes busca o fundamento da ciência através do processo da
dúvida. O método por ele desenvolvido pretende estabelecer o princípio da ciência.
Segundo Descartes (1962a, p.118):
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera
muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em
princípios tão mal assegurados, não podia ser senão duvidoso e incerto; de modo que
era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as
opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os
fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e constante nas ciências.
Podemos perceber que ao pretender estabelecer ―algo de firme e constante nas
ciências‖ Descartes considerava que os métodos do saber tradicional estavam longe de
apresentar um saber verdadeiro. Segundo o filósofo, o saber da tradição tem seu
fundamento no senso comum.
Os ―princípios tão mal assegurados‖, mencionados por Descartes, não se referem a
opiniões meramente subjetivas, originárias de sentimentos individuais. Diferentemente,
tais princípios referem-se a opiniões partilhadas pela grande maioria que, apesar de não
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serem verificadas minuciosamente, e de desfrutarem de um grande valor de verdade,
funcionam como base de todo o saber científico.
Para Descartes, o problema em aceitar essas opiniões está no modo como elas chegam
até nós. Quando o filósofo explicita que desde os seus primeiros anos, ―recebera muitas
falsas opiniões como verdadeiras‖ ele quer colocar em questão a confiança naquilo que
foi apreendido por meio dos sentidos, quando ele ainda não tinha o perfeito uso da
razão.
A crítica que Descartes faz, desta forma, cai sobre aquelas informações que obtemos
dos sentidos e que compartilhamos desde muito cedo com os outros homens. Muitas
falsas opiniões, tomadas como verdadeiras, acabam caracterizando-se como princípios.
Assim sendo, a preocupação de Descartes é estabelecer um fundamento sólido para o
saber a fim de poder estabelecer uma ciência confiável.
Por esse motivo, Descartes é caracterizado como um filósofo fundacionista. ―O caráter
fundacionista da filosofia cartesiana está em exigir [...] que a ciência seja ciência desde
os seus fundamentos – uma ciência absoluta, um conhecimento absolutamente
verdadeiro‖. (FORLIN, 2005, p. 29). ―Começar tudo novamente desde os fundamentos‖
é o que faz o filósofo francês sair de uma postura cética e, por conseguinte, colocar em
ação o seu projeto de busca pela verdade.
A dúvida é o caminho utilizado para essa tarefa. Segundo Descartes, apenas aquilo que
não é passível da menor desconfiança pode ser tomado como verdadeiro. Aquilo que,
por sua vez, apresenta a menor possibilidade de dúvida não pode ser levado adiante sem
ser submetido a uma avaliação. Mediante isto, o filósofo questiona a capacidade de
conhecer através dos sentidos, visto que esses apresentam, em determinadas
circunstâncias, falsas impressões o que, para o pensador, já é mais do que suficiente
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para que se rejeite um conhecimento. Assim, o filósofo argumenta: ―Ora, experimentei
algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar
inteiramente em quem já nos enganou uma vez.‖ (DESCARTES, 1962a, p. 118).
A rejeição dos objetos sensíveis se dá pelo fato de não fornecerem uma correspondência
fiel com aquilo que é representado. Portanto, todas as opiniões que são geradas através
dos dados da experiência deverão ser descartadas.
O que Descartes faz nessa primeira etapa da dúvida é apenas suspeitar dos dados
empíricos e não da fonte de onde provêm tais dados. A argumentação cartesiana,
entretanto, encaminha-se de uma maneira gradativa ao que, como veremos, pode ser
caracterizado como uma radicalização da dúvida. Em seu próximo passo Descartes
afirma:
Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o
costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas
vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me
sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao
fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? (DESCARTES, 1962a, p.
119).
O segundo nível da dúvida vai abordar a impossibilidade de podermos distinguir o
sonho da vigília. Segundo o filósofo, nos sonhos temos representações semelhantes
àquelas de quando estamos acordados, o que pode nos fazer crer que tais sonhos sejam
reais. No entanto, se eventualmente pensarmos que os sonhos sejam experiências reais,
podemos também cogitar a possibilidade de toda a realidade ser uma ilusão.
A dúvida, neste sentido, vai assumindo um caráter generalizante sobre o conhecimento.
Num primeiro momento, com o Argumento dos erros dos Sentidos, a análise está
voltada para todas as representações obtidas através da sensação. No entanto, este
argumento se limita apenas a colocar em questão a existência das coisas corpóreas, uma
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vez que pressupõe a existência de objetos que são captados pelos sentidos1. Assim, a
crítica vai se limitar apenas ao processo correspondencial do objeto. Isto é, a veracidade
objetiva de sua realidade representativa.
Diferentemente, quando Descartes recorre a crítica sobre os sonhos, seu
argumento põe em questão o nosso corpo que é fonte das informações sensoriais. Dessa
forma, ele não apenas questiona as representações, mas, também a possibilidade de toda
realidade perceptiva não passar de uma construção mental, cujas estruturas lógicas
apresentam a mesma objetividade de quando considerávamos que havia uma existência
independente de nós.
Embora os sonhos apresentem, eventualmente, uma estrutura lógica semelhante
a vigília os seus objetos, por vezes, não são encontrados na realidade. Mas, ainda assim,
estes objetos podem se constituir enquanto composições de objetos encontrados na
realidade com estruturas tridimensionais condizentes a ela. Segundo Forlin (2005, p. 6768):
Quando então Descartes, após utilizar o argumento do sonho, conclui que ao menos
as coisas simples e universais são ‗verdadeiras e existentes‘, ele parece estar querendo
dizer que, mesmo que o conjunto de minha experiência sensível, ou seja, o que eu
chamo de mundo exterior, seja uma mera construção de minha mente, isto é um
conjunto de representações, e que, portanto, não exista nenhum mundo exterior e
corpos materiais, o fato é que esse mundo, seja qual for seu estatuto ontológico,
expressa-se segundo relações espaço-temporais, cuja a validade independe da minha
vontade. Isto quer dizer o seguinte: esse mundo que me aparece consiste num conjunto
de objetos espaciais tridimensionais, dotados de formas ou figuras diversas, cujos
volumes são matematicamente mensuráveis; esses objetos estão eles mesmos
1
O argumento dos erros dos Sentidos não tem força para questionar a existência da realidade dos objetos
sensíveis, bem como a existência dos órgãos sensoriais. Ora, o fato de serem apreendidos fielmente como
eles são em si mesmos ou não, afirma que há objetos que são apreendidos, e que, também há uma
realidade corporal que está captando as informações que são recebidas.
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dispostos no espaço (ocupam um lugar), mantendo relações espaciais também
mensuráveis matematicamente.
Isso nos mostra que ainda que a realidade seja apenas um conjunto de imagens ilusórias,
como apresenta o Argumento dos Sonhos, tais figuras produzidas pelo pensamento
obedecem a noções necessárias que, por sua vez, não estão sob o nosso poder de criálas. Essas noções correspondem aos elementos geométricos que permitem a constituição
das imagens em nossa mente, o que torna impossível a representatividade de algo que
não obedeça a suas propriedades e relações necessárias. (Idem).
Assim, quando Descartes diz, ―[...] quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois
mais três formarão sempre o número cinco, e o quadrado nunca terá mais que quatro
lados‖ (DESCARTES, 1962a, p. 120.), está analisando a existência de uma certeza
através daquilo que ele chama naturezas simples e gerais que são obtidas sem recorrer à
experiência. Essas noções pertencem à matemática, cuja estrutura apenas é conhecida
através do raciocínio, podendo ser independente de qualquer correspondência com uma
realidade exterior2. (Cf. FORLIN, 2005, p. 64). Por esse motivo, a dúvida, ainda que
tenha alcançado a totalidade da percepção sensível, se mostrou mais uma vez incapaz de
atacar as realidades matemáticas que constituem as imagens em nossa mente.
Podemos perceber, então, que a possibilidade da inexistência de um mundo exterior ao
pensamento não retira o caráter necessário dos elementos simples e gerais. Dessa
forma, apesar de poder estar num âmbito da possibilidade, e caso existir um mundo
2
―As coisas simples e universais são características ou propriedades desse mundo de imagens
tridimensionais que se manifesta a mim e que eu acredito ser (mas que pode não ser) material. (...) [O
mundo] tanto pode ser meramente interno-mental, quanto externo-material. A coisas simples e universais,
portanto, tanto podem ser características de um quanto de outro mundo‖. (FORLIN, 2005, p.67)
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externo a mente, ele terá que necessariamente ser constituído pelas mesmas naturezas
simples que estão nas imagens produzidas pelo pensamento.
Contudo, com o anseio de não deixar absolutamente nada que possa sugerir alguma
incerteza, Descartes ataca todo o conhecimento por meio da hipótese de um Deus
enganador. Nesse ponto, a dúvida atinge o ápice de sua universalização indicando a
possibilidade de estarmos raciocinando conforme uma necessidade ilusória. O filósofo
expõe:
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que
tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá
assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu,
nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não
obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça
existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas
vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza,
pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a
adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que
julgo alguma coisa ainda mais fácil do que isso. (DESCARTES, 1962a, p. 121).
O Argumento do Deus Enganador3, como é chamado esse terceiro nível da dúvida,
pretende atingir o que, até então, era incapaz de ser questionado. O filósofo revela a
possibilidade de haver um Deus poderoso, cujo poder fora construído para que a nossa
capacidade mental se enganasse até mesmo diante das cosias mais simples. Isto é, os
cálculos podem apenas ser necessários no âmbito do pensamento, mas à medida que
pretendem se referir a um objeto de fato, não se remetem a nenhuma realidade.
3
Podemos notar que logo após a hipótese de um Deus Enganador, Descartes vai supor a não existência de
um verdadeiro Deus que é soberano e fonte da toda verdade, mas sim de que existe um certo gênio
maligno cujo poder consiste em enganá-lo sempre. Para alguns comentadores, a hipótese do Gênio
Maligno é entendida como uma outra etapa da dúvida, pois atinge com mais força o seu poder em nos
enganar, direcionando-se ao plano psicológico. Porém, adotaremos a interpretação de que essas duas
hipóteses têm a mesma função, uma vez que no artifício do Deus Enganador, a dúvida já tomou
proporção universal quando suspeita da nossa capacidade racional.
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Podemos perceber aí que a dúvida se torna Metafísica, pois transcende toda a condição
de duvidar do conhecimento sensível questionando a própria experiência intelectual.
(cf. FORLIN, 2004, p. 61 b). O processo de interiorização percorrido pela dúvida
reduziu todos os objetos a meras idéias do pensamento, cuja validade necessária
permanece estritamente no domínio do pensamento.
A dúvida cartesiana coloca em questão a realidade do mundo exterior. A possibilidade
de validação do âmbito racional através de referências externas a consciência é
invalidada por ela. Descartes, porém, insistindo com sua análise com intuito de
encontrar um algo certo ou até mesmo afirmar que não ha nada que podemos conhecer.
Dando sequência a sua análise:
Mas me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma
terra, espíritos alguns, nem corpos algum; não me persuadi também, portanto, de que
eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida se é que me persuadi, ou,
apenas pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e
mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há pois
dúvida alguma de que sou, ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá
jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que,
após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas,
cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é
necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou a que a concebo em meu
espírito. (DESCARTES, 1962a, p. 125-126).
Nesse trecho, o filósofo, encontra sua primeira certeza. O questionamento das coisas
exteriores resulta na descoberta do pensamento. A constatação do sujeito que duvida é
resultado de um processo de dissolução do conhecimento que acarreta a sua
comprovação no estrito âmbito do pensar.
Podemos notar que mesmo a hipótese de um engano não é suficiente para derrubar a
primeira certeza, pois no momento em que o sujeito põe em dúvida todas as coisas, ele
está exprimindo um ato de consciência. ―[...] Existo mesmo quando penso que não
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existe nenhum mundo material porque é necessário que eu exista no momento mesmo
em que penso‖ (FORLIN, 2005, p. 101). Nesse sentido, em vez de se tornar duvidosa a
proposição ―eu sou, eu existo4”, a dúvida a constata.
A impossibilidade de questionar tal afirmação está no fato não pertencer à mesma
ordem daquilo que é colocado em dúvida, que são todas as representações enquanto
referenciais de uma realidade exterior. Assim, a existência só pode ser verificada em
relação ao próprio agente que duvida, no momento que ele está pensando a
impossibilidade da uma existência de um mundo além de suas representações.
Todavia, um dos maiores equívocos é entender a primeira certeza como resultado de
uma proposição silogística. Nas ―Segundas Respostas‖, Descartes discorre sobre o
problema com a seguinte afirmação:
[...] quando alguém diz: ‗Eu penso, logo eu sou, ou existo‘, ele não conclui sua
existência de seu pensamento como pela força de algum silogismo, mas como uma
coisa conhecida por si; ele a vê por uma simples inspeção do espírito. (DESCARTES,
1962c, p. 219)
Pensar o cogito5 como uma inferência de uma premissa maior como no caso todo aquele
que pensa, existe, é estar aceitando a sua dependência perante suas premissas. Contudo,
poderia de certo modo, formular um silogismo contendo os enunciados Para pensar é
necessário existir / Ora, eu penso / Logo, eu sou, mas, se tornaria contrária à ordem
4
Na formulação das Meditações, Descartes não explicita a noção de pensamento para representar o
cogito. Ela está implícita de modo implícito, já que, pelo pensamento que o sujeito tem percebe sua
existência. A formulação que apresenta o cogito no Discurso, todavia, já contém explicitamente as noções
de pensamento e existência. A primeira verdade do Discurso é apresentada com a proposição ―Penso,
logo Existo‖.
5
A primeira certeza cartesiana é abreviada como cogito, devido a proposição em latim significar cogito,
ergo sum.
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instituída por Descartes6. Além disso, no momento em que percebe a existência do
pensamento, o sujeito que realizou uma introspecção espiritual adquiriu o conhecimento
da sua própria realidade, o que faz tornar desnecessária a colocação de uma premissa
antecedente ao enunciado referido ao cogito, que afirma uma experiência já conhecida
por ele mesmo. Também, a primeira certeza cartesiana não poderia ser deduzida de
elementos externos ao pensamento, uma vez que todas as coisas que estão além da
consciência perderam sua validade com o Deus enganador. Com isso, a validade da
premissa maior (Para pensar é necessário existir) não pode ser legitimada enquanto
primeira na construção do silogismo, porque sua afirmação se levanta a partir da
experiência particular do sujeito (penso, logo sou) que, por sua vez, apenas tem
conhecimento em sua própria interioridade.
Assim sendo, apesar da possibilidade de construir um silogismo que tenha uma
premissa anterior a formulação do cogito, não faz com que a sua verdade seja derivada
dessa ordem. Para Descartes, o silogismo é mais uma forma de ensinar aos outros do
que a constatação de fato de algo que somente se conquista na própria subjetividade do
sujeito. Portanto, o silogismo não é capaz de propiciar uma verdade, mas somente
demonstrar aquilo que outrora já havia conhecido.
A descoberta da subjetividade assume na filosofia cartesiana o posto de primeiro
princípio da ciência, uma vez que, ao questionar a realidade exterior, Descartes inverte a
posição que se estabelecia até então em toda a história da filosofia. Assim sendo, a
garantia do nosso conhecimento da realidade não é obtida mais a partir da realidade em
si mesma, mas, a realidade em si mesma se dá a partir do nosso modo de percebê-la.
6
Segundo Descartes, a ordem do saber ―[...] consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem
ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam
demonstradas só pelas coisas que as precedem‖ (DESCARTES, 1962c, p. 231).
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Nesse sentido, todas as nossas opiniões, que outrora se pensava representar uma
realidade exterior, possuindo uma dependência em relação a esta, são constituídas agora
a partir da nossa percepção7. (cf. FORLIN, 2005, p. 104).
Por conseguinte, nos parágrafos da Segunda Meditação, Descartes analisa a natureza
desse primeiro princípio:
[...] verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser
separado de mim. [...] nada sou, pois falando precisamente, senão uma coisa que
pensa, isto é um espírito, um entendimento e uma razão [...] Ora, eu sou uma coisa
verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que
pensa. (DESCARTES, 1962a, p. 128).
Podemos perceber que Descartes concebe a atividade de pensar como a essência
do sujeito. Contudo, se pensar é aquilo que não pode ser separado do sujeito, na medida
em que este realiza esse ato de consciência, a questão principal que se levanta é no que
consiste a faculdade de pensar. A essa questão, o filósofo responde que pensar é ―tudo o
que acontece em nós de tal maneira que o apercebemos imediatamente por nós
mesmos‖ (DESCARTES, 1995, p. 56).
Mediante isso, quando o sujeito da dúvida reduz a realidade à mera idéia, ela se
apresenta na forma de um pensamento, sendo, portanto, algo prontamente perceptível à
consciência. Dessa forma, tanto pensar em uma idéia que somente tenha uma realidade
objetiva8 quanto pensar em si mesmo, constitui-se em pensamento.
Assim sendo, a atividade de pensar é que vai definir o cogito como natureza puramente
subjetiva e não o pensamento (quer ele seja de si ou de outra coisa). Todos esses
7
A percepção, neste caso, não está vinculada ao âmbito sensorial, mas sim, ao âmbito intelectual.
Nesse caso, quando se fala em realidade objetiva, aponta-se apenas ao grau da realidade de uma idéia,
enquanto conteúdo da consciência, não referindo, desse modo, uma realidade para além da representação
8
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conteúdos da consciência não são nada mais que desdobramentos da atividade de
pensar. O cogito se mostra necessário para o surgimento de qualquer pensamento, pois é
ele que
[...] constata o poder de pensar, e o constata, pelo próprio ato reflexivo, como sendo
seu esse poder: eu penso. Na medida, portanto, que o pensar envolve necessariamente
o ser ou a existência, o pensamento, pode, simultaneamente dizer: eu sou, eu existo.
(FORLIN, 2006, p. 112)
A constatação da existência do sujeito depende exclusivamente da constatação da sua
própria interioridade. Por esse motivo, o cogito é a primeira verdade que inaugura o
processo de conquista de novos conhecimentos concebidos dentro da lógica da clareza e
distinção9. A existência do eu se manifesta simplesmente pelo ato intuitivo no qual o
sujeito se percebe como res cogitans, ou seja, realidade pensante, não possuindo,
portanto, uma ruptura entre pensamento e ser. (cf. Reale, 1990, p. 365).
REFERÊNCIAS
9
No ―Discurso do Método‖, Descartes aplica as regras que o conduzirá para o estabelecimento de um
saber inabalável. Dentre elas, está a regra da evidência, que se apresenta como elemento fundamental para
o ponto de partida de reconstrução do edifício filosófico, uma vez que todos os conhecimentos que se
mostram claros e distintos ao pensamento nada mais são do que formas da evidência. Por conseguinte,
toda proposição que for percebida clara e distintamente será considerada verdadeira. O filósofo deixa
claro com a seguinte afirmação: ―E, tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me assegure
de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei poder
tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras
(...)‖ (DESCARTES, 1962b, p. 67-68).
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Guinsburg. Ed. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1962. (col. Clássicos Garnier)b
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O HOMEM EM CONSTRUÇÃO DE SI MESMO SEGUNDO JEAN PAUL
SARTRE - Priscila Dias Batista Vieira
Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC Paraná
Orientador: Dr. Ericson Falabretti
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―O homem não é senão o seu projeto, só
existe na medida em que se realiza, nada
é portanto, nada mais do que o conjunto
de seus atos, nada mais do que a sua
vida.‖ (Sartre)
Palavras-chave: Jean Paul Sartre, Existencialismo, Projeto de ser, tornar-se,
identidade, Psicanálise Existencial.
O presente artigo foi desenvolvido a partir de estudos realizados a respeito da
teoria filosófica denominada Existencialismo, sendo esta compreendida dentro das
concepções do filósofo francês Jean Paul Sartre (1905-1980). O presente artigo ilustra
contribuições para um entendimento do homem em construção de si mesmo segundo a
perspectiva sartreana, o objetivo é elucidar questões que envolvem essa relação entre o
sujeito e a construção do seu existir no mundo o qual está inserido. Influenciado pela
obra Ser e Tempo de Martin Heidegger, Sartre constatou em O ser e o nada que a
consciência humana é nada, um nada que vem de dentro do próprio homem e do qual
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ele não pode fugir e tem que se haver em todos os momentos de sua vida. Nesse caso,
não há uma interioridade ou uma substância que o homem pode se agarrar dando-lhe
sentido para sua vida, o homem está só no meio do mundo, condenado a construir a
partir de si mesmo, ou seja, a partir do nada de seu ser, sua própria existência. Nesta
obra, o autor insere a intencionalidade1 numa dimensão da ontologia do ser humano.
Para o filósofo, o mundo todo está fora da consciência e, de acordo com o princípio da
fenomenologia, a consciência é sempre intencional, ela sempre tem por seu ser um
objeto que não é ela mesma. Nesse sentido, a consciência é a abertura para os objetos
que estão soltos no mundo e, que o mundo todo está necessariamente, fora da
consciência. Apresentada na quarta parte do livro O ser e o nada, Capítulo 2: Fazer e
Ter, a Psicanálise Existencial2, conceito desenvolvido pelo autor, onde se localiza a
argumentação do filosofo que indica a importância do homem em fazer seus projetos
rumo ao seu ser. Na Psicanálise Existencial3, o homem somente terá uma definição a
partir daquilo que ele fizer de si mesmo, ou seja, como ele se conceber, como ele quiser
ser. Este é o princípio do Existencialismo de Sartre que o presente artigo tem por
objetivo informar: o fato de que o homem é aquilo que ele irá projetar de si mesmo em
um futuro. O homem se faz na medida em que vive, não há um sinal que o guie, não há
uma moral que o autorize a agir e, cabe a ele orientar-se no mundo. Com isso uma
1
―Evitemos considerar tais desejos como pequenas entidades psíquicas habitando a consciência:
constituem a consciência mesmo em sua estrutura original projetiva e transcendente, na medida em que a
consciência é, por princípio, consciência de alguma coisa.‖ (SARTRE, 1997, p.682)
2
Para GOIS (2003, p.217) ―a psicologia não deve, pois, pretender entender de um modo intelectual e
determinista os motivos singulares que estão por trás dos atos humanos singulares. Deve, em vez disso,
procurar compreender , a teia de escolhas e de projetos autônomos e originais que constitui o ser do
homem enquanto sujeito livre. A esta psicologia antifactualista e antideterminista deu Sartre o nome de
psicanálise existencial.”
3
―Esta Psicanálise ainda não encontrou o seu Freud.‖(SARTRE,1997,p.703)
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existência autêntica toma o nada do ser como uma possibilidade total e plena de se
constituir, ou seja, se o nada habita o homem, isso significa que ele se constitui como
pura potencialidade. Emerge assim, um sujeito com multipossibilidades de ser, com
total abertura de constituir-se autenticamente a partir de si mesmo. Ser livre significa
comprometer-se com o seu projetar-se, estar no mundo com um sentido comprometido
de vida humana autêntica. O homem, então, será o conjunto dos seus atos, a realidade
será para ele como ele decidir que ela seja e, esta será a sua vida, ―pois, para a realidade
humana, não há diferença entre existir e escolher-se.‖(SARTRE, 1997, p.701). Ele
projeta no futuro o que ainda não é, o que lhe falta, e retorna ao seu presente percebendo
que para realizar este futuro deve transformá-lo em tarefa, pois só o futuro dá sentido ao
presente, embora seja o passado que torna o presente possível, o presente é vazio sem o
futuro, só o futuro pode realizar este presente possível. O destino do homem cabe a ele
construir com seus atos, é preciso o homem incorporar sua própria vida, sendo obrigado
a inventar sozinho suas próprias leis e ser seu legislador. Não é um sujeito pronto já de
início, ele faz-se a cada instante e decidirá sobre si mesmo agindo com metas fora de si,
por meio de realizações particulares que ele realizará como ser humano. ―Antes de
alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem vive que deve dar-lhe um
sentido; e o valor nada mais é do que este sentido escolhido.‖(SARTRE, 1970, p.21). O
que se pretende enfatizar é a questão de que o homem se faz, ele não é predeterminado.
A pessoa é uma totalidade que se historializa, que se constrói e só pode ser
compreendido a partir de seu projeto primordial de viver, ou seja, a escolha originária
de seu ser. ―Sartre persegue a questão da existência na conquista da essência e,
identifica a consciência como ser-para-si, ou seja, a natureza intencional do Eu em
busca de ser aquilo que ainda não é.‖(JACOB e CARLOS, 2005, p. 59). É importante
diferenciá-lo do conceito sartreano de Em–si: o ser Em-si é fechado em si mesmo, sem
possibilidade de relação, isolado em seu ser, pleno de si e mantém-se inalterado frente
aos acontecimentos, ou seja, sem possibilidade de mudança. Já o Para- si se opõe indo
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em direção aquilo que ainda não é, ―O Para-si por não ser pleno, por constituir-se como
possibilidade, como abertura, é a eterna busca de si, busca de totalidade, busca de
plenitude jamais atingida‖(LAPORTE e VOLPE, 2003, p.50). Quando o sujeito está
agindo de acordo com o que os outros esperam que ele faça, ou por submissão ou
alienação, Sartre considera que ele está agindo de má-fé4, pois não está agindo
consciente de si mesmo. A ação está na base da formação de valores e compromissos de
um homem, o ato é o que faz o sujeito, por isso a ação é considerada o formador de
significados. Algumas pessoas aceitam passivamente sua existência, assim, a má-fé é
uma mentira do sujeito contada a si mesmo, que o impossibilita experimentar sua
existência em plenitude, que o impede de agir honestamente consigo mesmo. Sartre
afirma que quando se mantém a idéia de natureza humana se mantém a idéia de
perfeição, de padrão. É o homem que constrói ―sua essência‖, é ele que constrói a
pessoa que vai se fazer, é ele que irá se criar e é nesta sua criação que irá consistir sua
singularidade. Com relação à afirmação de Sartre que a existência precede a essência, a
qual justifica o nome Existencialismo, ―significa que, em primeira instância, o homem
existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define.‖ (SARTRE,
1970, p. 6). ―Embora Sartre reconheça que o esboço primeiro do método da psicanálise
existencial foi proporcionado pela psicanálise de Freud e seus discípulos‖(GOIS, 2003,
p. 208), ele negou a existência do inconsciente e afirmou esta ser uma teoria
determinista e generalizante, que nega a capacidade de livre escolha inerente ao homem
e o reduz a uma natureza e a um passado absoluto, o qual o condiciona e determina5.
4
―O ser humano não é somente o ser pelo qual se revelam negatividades do mundo. É também o que pode
tomar atitudes negativas com relação a si.‖(SARTRE, 1997, p.92)
5
Característica da filosofia contemporânea que desloca o eixo filosófico para a individualização do
pensamento humano.
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Existe no homem uma vida de desejos e impulsos os quais a consciência pode sim
reproduzir na realidade, ―parte-se da idéia onde a primazia à liberdade é a tônica da
Psicanálise Existencial; a consciência livre e projetiva produz, na realidade, toda espécie
de desejos.‖ (GOIS, 2003, p. 217). É um método que avalia a ―escolha subjetiva em que
cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si mesmo aquilo que ela é.‖
(SARTRE, 1997, p. 702). Sartre conceitua como Projeto Original6, aquilo que irá
motivar as ações, emoções e sentimentos do homem. O Projeto de ser do indivíduo é a
causa do comportamento humano, é uma determinação consciente de si mesmo que
exprime um impulso em direção ao seu ser, estando o sujeito condenado a fazer-se e
tendo a liberdade como condição primeira de sua ação. Na conferência O
Existencialismo é o Humanismo, Sartre cita o exemplo do homem covarde como sendo
um sujeito responsável pela sua covardia, pois é covarde por ter se construído
covardemente mediante suas ações. Outro exemplo para pensar o projeto de ser do
homem é relacioná-lo com o fato de que para sobreviver no mundo o homem faz do
trabalho o seu principal campo de ação, é no trabalho que ele expressa sua
potencialidade de poder ser, é no trabalho que o homem se faz, cria e dá sentido ao
mundo, mas ―o homem pode ser condicionado por elementos externos, alienando-se de
seu projeto pessoal. Torna-se então, dominado, de maneira sutil e poderosa, por um
controle externo que manipula sua estrutura interna, impossibilitando sua verdadeira
realização pessoal.‖ (LAPORTE e VOLPE, 2003, p. 58). Presente na relação entre si
mesmo e o outro, na citação ―escolhendo-me, escolho o homem‖ (SARTRE, 1970, p.7),
define-se a particularidade filosófica sartreana que relaciona o compromisso ontológico
6
Sartre designa de projeto origina como aquilo que “orienta a minha maneira de aprender o mundo,
subordina meus outros projetos e determina minhas ações, emoções, sentimentos etc.‖(GOIS, 2003,
p.209)
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da condição humana com a postura do sujeito em sua vida societária. Sartre defendeu
fortemente que a liberdade humana é marcada pela responsabilidade do sujeito, não
somente diante de si mesmo, mas também do mundo e do outro. ―Assim, quando
dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é
apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos
os homens‖(SARTRE,1970, p.6). Ser é unificar-se no mundo como absoluto, como
totalidade em constante abertura, traçando assim, nesta construção, uma relação
fundamental de amor consigo mesmo e com o mundo, guiado sobre o fundamento de
um projeto primordial de viver para achar-se como pessoa em sua inteireza. Somos
livres para escolher a nós mesmos,―existir é fincar alvos e persegui-los‖ (GOIS, 2003,
p.212).
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O HOMEM, SUAS FORÇAS ATIVAS E REATIVAS E O ENSINO DE
FILOSOFIA EM NIETZSCHE-DELEUZE - Angélica Lúcia Engelsing
Graduanda em Filosofia pela UNIOESTE – Campus Toledo/PET-Filosofia
Orientador: Prof.ª Dr.ª Ester Maria Dreher Heuser
[email protected]
Palavras-chave: Nietzsche. Deleuze. Homem. Forças ativas e reativas. Ensino de
Filosofia.
Quando pretendemos pensar o ensino de Filosofia, faz-se necessário pensar as
relações que são estabelecidas a partir deste momento, isto é, as relações que se
estabelecem entre alunos (homens), Natureza (Natur) e Cultura (Kultur), uma vez que
não podemos pensá-las isoladamente e distantes da Educação. Assim, este texto tem
como objetivo apresentar alguns pontos levantados por Gilles Deleuze a respeito do
Homem, das suas forças ativas e reativas e da Cultura, no livro intitulado Nietzsche e a
Filosofia e, posteriormente, problematizar e refletir sobre o ensino de Filosofia sob a
ótica nietzschiana e deleuziana. Ao problematizarmos o ensino de Filosofia é
fundamental questionarmos: o que é o Homem? A partir desta pergunta muitas
respostas são levantadas, contudo, nós ainda não encontramos uma definição que
realmente dê conta de explicar o que é o homem. Deleuze nos adverte para o fato de que
falamos da consciência e do espírito, falamos sobre todas as coisas na ânsia de tentar
explicar o que é o homem, mas nós ainda não conseguimos dizer do que um corpo é
capaz e nem quais são as forças que estão em relação no homem. Portanto, devemos
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primeiramente investigar: o que é um corpo? O que pode um corpo? Do que um corpo é
capaz? Na obra intitulada Nietzsche e a Filosofia, Deleuze defende a ideia de que nós
não definimos um corpo como sendo um campo de forças ou um meio que é disputado
por inúmeras forças. Pois não há esse meio e também não há um campo de força, de
batalha; o que há são quantidades de forças em relação de tensão umas com as outras.
Toda e qualquer força está, necessariamente, em relação com as outras, seja com o
intuito de comandar seja na condição de obedecer. Deste modo, o que definiria o corpo
é esta relação entre forças dominadas e forças dominantes (Deleuze, 1976). Se toda
relação de forças constitui um corpo, podemos dizer, então, que as forças constituem um
corpo à medida que elas entram em relação; e assim um corpo vivo é o produto
―arbitrário‖ das forças que o compõem (Idem). Um corpo é um fenômeno múltiplo e é
composto por uma pluralidade de forças, forças estas que podem ser encontradas, na
perspectiva de Deleuze, em dois tipos: no tipo ativo e no tipo reativo. As forças ativas
são as forças tidas como superiores ou dominantes e as forças reativas são conhecidas
como forças inferiores ou dominadas. No entanto, não devemos concluir a partir desta
afirmação que as forças superiores sempre dominarão, pois o próprio Deleuze apresenta
em seu livro exemplos nos quais as forças reativas triunfam (dominam). Deleuze
argumenta em seu livro que todas as forças que entram em relação possuem uma
quantidade e, ao mesmo tempo, uma qualidade que corresponde à sua diferença de
quantidade, e esta diferença das forças qualificadas conforme sua quantidade é o que ele
denomina hierarquia. Mas, o que quer dizer ativo? Ativo é: ―tender ao poder.
Apropriar-se, apoderar-se, subjugar, dominar são caracteres da força ativa‖(Idem, p.34).
As forças ativas, superiores, são forças caracterizadas como transformadoras, agressivas
e criadoras de novos valores. Estas forças comandam porque provêm do que é nobre e
alto, e pelo fato de que ao afirmar a sua diferença, estas conseguem ir até o fim do que
elas podem, fazendo, deste modo, a diferença o seu objeto de afirmação. As forças
reativas, inferiores, são caracterizadas como conservadoras, baixas e vis e,
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diferentemente das superiores, estão essencialmente separadas do que podem. Embora
estas forças obedeçam às superiores, elas não deixam de ser o que são, isto é, forças
inferiores, distintas daquelas que as comandam, pois ―obedecer é uma qualidade da
força enquanto tal e refere-se ao poder tanto quanto comandar‖(Idem, p.33). As forças
inferiores, reativas, quando em uma relação de forças, ―nada perdem de sua força, de
sua quantidade de força, exercem-na assegurando os mecanismos e as finalidades,
preenchendo as condições de vida e as funções, as tarefas de conservação, de adaptação
e de utilidade‖ (Ibidem), negando assim tudo o que difere de si. Segundo Deleuze,
Nietzsche critica os modernos pelo fato de que estes julgam ser suficiente conhecer as
forças reativas que estão em relação para se compreender o organismo, porém, deste
modo nós só conhecemos as forças reativas que o dominam e não as forças ativas que
também estão juntamente em relação. Isto porque é mais difícil caracterizar as forças
ativas, visto que elas não conseguem ser definidas pela consciência. Tal fato explica
porque não sabemos e não conseguimos dizer o que pode um corpo ou de que atividades
ele é capaz. A relação entre estas forças é denominada, por Nietzsche, de vontade. A
vontade (vontade de potência) é entendida como o elemento diferencial da força. Assim,
podemos dizer que o que a vontade e a filosofia nietzschiana desejam é afirmar a sua
diferença. As forças, quando em relação, se desenvolvem em dois sentidos: no sentido
de ordenação e no de obediência. As forças superiores, ativas (que agem) são
qualificadas como as que exercem a ordenação, e as inferiores, reativas (que reagem),
são aquelas a quem cabe a obediência. Porém, quando uma força é dominada por outra,
a força dominada, por sua vez, não sofre uma dissolução. As forças reativas quando
dominadas mantêm-se regulares e adaptam-se, com o objetivo de preservar a sua
autoconservação. As forças ativas possuem uma capacidade de metamorfose: são forças
plásticas, resultado de todas as nossas avaliações e representam o princípio oculto para a
criação de novos valores. As forças reativas, quando dominam, não dissolvem as ativas
por completo, ou seja, não as destroem totalmente, elas permanecem ainda ativas, mas
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estão separadas e impedidas de exercer aquilo que elas podem; portanto, elas estão
subordinadas às forças reativas. Deleuze compreende o conceito de vontade de potência
nietzschiano como a propriedade psicológica da síntese das forças, como o elemento
diferencial e avaliador de suas qualidades e indicador de suas quantidades. Na vontade
de potência ―o poder é quem quer, o poder é o elemento genético e diferencial na
vontade, por este motivo a vontade de potência é essencialmente criadora‖(Idem, p.41).
A vontade de potência é, portanto, o princípio que determina as relações entre os tipos
de forças. Assim, a filosofia da vontade de potência possui dois princípios que formam
a alegre mensagem: querer é o mesmo que criar, e vontade é alegria. A vontade de
potência é uma vontade que quer a criação de novos valores; é ao mesmo tempo alegre e
agressiva, cria novos modos de existência e, ao fazer isso, afirma a vida. Não é algo a
ser avaliado, pois é ela quem quer, quem interpreta e avalia; é ela quem atribui sentido e
valor às coisas. Nós encontramos a vontade de potência tanto nas forças reativas quanto
nas forças ativas, e as qualidades da vontade de potência são: a afirmação e a negação,
as quais se relacionam intimamente. As forças ativas correspondem à qualidade
afirmativa da vontade de potência, e as forças reativas correspondem à qualidade
negativa da vontade de potência. As forças, contudo, não devem ser confundidas com a
vontade de potência, do mesmo modo como não podem ser separadas dela. A vontade é
ao mesmo tempo um complemento da força e algo interno. Em uma relação, a força é
quem pode, mas é a vontade quem quer. Não podemos afirmar que vontade de potência
somente interpreta, ou seja, determina a força que dá sentido a uma coisa, pois ela
também avalia, isto é, dá valor a esta coisa. Portanto, é a partir da vontade de potência
que os valores se constituem como tais, que são interpretados e têm seus sentidos
enunciados (apresentados). Quando as forças reativas triunfam sobre as forças ativas,
ocorre o que é denominado, por Nietzsche, de ressentimento. O ressentimento é
apresentado como ―uma vingança imaginária‖, como o triunfo das forças reativas
apoiadas numa ficção. O ressentimento implica num paralogismo denominado:
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―paralogismo da força separada do que ela pode‖ (Idem, p.42). Nietzsche critica o
ressentimento e o espírito de vingança, que objetivam a culpabilização, a
responsabilização e a dissimulação. Estes pensamentos são característicos de homens
que são ―dominados por forças reativas‖ e sentimentos baixos, que colocam a culpa pelo
seu fracasso ou insanidade nos outros, que são dominados por forças que o impede de
ser ativo, criador e transformador. Nietzsche e Deleuze combatem aquilo que Nietzsche
denominou de má-consciência (que pode ser também entendida como a substituição do
ressentimento, pois neste o sentimento de culpa passa do plano exterior para o interior).
Nietzsche relaciona a má-consciência com a dor, que provém da interiorização da força
ativa que se volta contra si mesma, transformando-se em forças reativas. A culpa não é
mais do outro, agora a culpa é interiorizada, adquire um sentido interno. Um exemplo
de triunfo das forças reativas é o ideal ascético. O ideal ascético ―compreende todas as
ficções da moral e do conhecimento‖(Ibidem) e é um elemento contrário à vida, de
negação da vida, é uma vontade que quer o nada. A vontade de nada e as forças reativas
são os dois elementos constituintes do ideal ascético. Assim sendo, a preocupação de
Nietzsche é a criação de um novo homem, um além-do-homem (Übermensch), isto é,
um homem corajoso, superior, ativo, criador de valores, afirmador da vida. Um homem
que domina suas forças reativas e as coloca sob a condição de dominadas e obedientes,
um homem que é capaz de superar o estado social lamentável no qual está inserido. Para
Deleuze o filósofo Nietzsche compreende que tudo o que existe é produzido pela tensão
de forças ativas (altivas) e reativas (baixas) e que a vontade de potência é a afirmação da
vida. Assim, a cultura (Kultur) deve ser entendida como aquilo que é essencialmente
seleção e adestramento. A cultura é aquilo que faz o homem adestrar as suas forças, que
o submete a uma violência, o obriga a pensar e a lançar-se num devir ativo. A cultura
―exprime a violência das forças que se apoderam do pensamento para dele fazer algo
ativo, afirmativo‖(Idem, p.51). Assim, violência é aqui interpretada como aquilo que
força o homem a pensar, a lançar-se num devir ativo, que o força a dar para o seu
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pensamento uma forma ativa, que o força a desenvolver-se como aquilo que ele é.
Contudo, Deleuze nos alerta para o fato de que estes procedimentos de adestramento e
seleção foram mal interpretados, desviados e invertidos ao longo do tempo. A Igreja e o
Estado, ao invés de adestrarem o homem a usar as suas forças ativas, o adestraram para
o uso de suas forças reativas, as quais negam a vida e voltam-se à conservação e
reprodução do já instituído, do já existente. Tal fato leva Deleuze a posicionar-se como
contra-cultural, no sentido de que a cultura, tal como se apresenta atualmente, é algo do
qual devemos procurar sair, pois nega a autêntica cultura em prol das necessidades e do
trabalho,
e
visa
somente
a
infinita
reprodução
do
mesmo,
do
idêntico.
Consequentemente, para sair desta falsa cultura é preciso a construção de uma nova
imagem do pensamento e de um filósofo do futuro. Isto é, precisamos de um filósofolegislador, que ao mesmo tempo comande e legisle, que não tenha a verdade como um
ideal, que oponha o conhecimento à vida, que quer sentir e viver de outro modo, que
efetua a potência, que inventa novas possibilidades de vida, que busca um conhecimento
novo e que é constituído a partir de sua relação com as forças ativas (Cf. Heuser, 2010,
p.53-54). Para o filósofo do futuro, o ―conhecimento é criação, sua obra consiste em
legislar, sua vontade de verdade é vontade de potência‖(Idem, p.44). Nesta nova
imagem do pensamento, ―o verdadeiro não é o elemento do pensamento. O elemento do
pensamento é o sentido e o valor‖ (Idem, p.49). Assim, o que se objetiva é fazer do
pensamento algo ativo, agressivo e afirmativo, é fazer dos homens homens livres e que
não confundam os fins da cultura com os desejos do Estado ou da Igreja. Nesta nova
imagem do pensamento, a Filosofia não deve mais servir à Igreja ou ao Estado, ou a
qualquer outra instituição que visa o desenvolvimento ou a permanência das forças
reativas triunfando sobre as ativas. A Filosofia deve buscar fazer do pensamento algo
afirmativo, agressivo, crítico, ativo e criador, do mesmo modo como fez a filosofia
trágica dos gregos, que foi capaz de produzir os seus gênios, isto é, os seus espíritos
superiores, livres e inventivos. Seguindo o exemplo da Paidéia (formação do homem
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grego), Nietzsche busca igualmente produzir gênios por meio da seleção e do
adestramento feitos por uma cultura autêntica e afirmadora da vida. Porém, ele próprio
reconhece que as condições oferecidas por sua cultura não permitem e/ou dificultam a
sua criação, visto que seus objetivos estão voltados para a formação de homens
medíocres, eruditos, depreciadores da vida, reativos, que separam o corpo do espírito e
o homem da natureza. Deleuze possibilita assim pensar uma educação e um ensino
voltados para o desenvolvimento das forças ativas, criadoras e afirmadoras da vida.
Porém, ao analisarmos o atual ensino de Filosofia vemos que pouco afirmamos a vida
ou possibilitamos o triunfo de nossas forças ativas. Isto é, em alguns momentos não
possibilitamos que os estudantes, nas aulas de Filosofia, possam desenvolver esta
relação de forças, de forças ativas com forças reativas, e talvez isso se deva ao fato de
que insistimos na dicotomia corpo e espírito, homem e natureza. Segundo Deleuze
(Pellejero, 2009, p.116-117), nós confundimos a atividade formadora com os conteúdos
que a determinam (confundimos os meios com os fins), e alienamo-nos em nossa
própria conservação e reprodução do já instituído (com aquilo que a história nos
apresenta), esquecendo-nos de que a autodestruição torna o indivíduo livre e ativo, isto
é, que o mergulhar no caos possibilita ao homem um encontro consigo mesmo e a
possibilidade de recriar-se, de afirmar-se enquanto ser formador de cultura. Nós,
professores de filosofia, em alguns momentos não conseguimos provocar o encontro do
estudante consigo mesmo e isso o converte, o conserva e o organiza sob a figura de uma
vida reativa; no entanto, as forças ativas nunca desaparecerão, elas continuam operando
e as aulas de filosofia são momentos nos quais podemos possibilitar o seu triunfo. Mas,
para tanto, talvez nos falte o aprender a pensar. Talvez falte uma cultura que nos
imponha a violência necessária para entrarmos em conflito, para que nossas forças
entrem em relação e consequentemente nos forcem a pensar. Talvez porque ainda
precisamos nos desprender de uma cultura essencialmente histórica, livresca,
jornalística, que não visa ao desenvolvimento de homens críticos, inventivos e
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superiores. É igualmente difícil pensar em como nós podemos possibilitar que essa
relação entre forças seja possível, como nós podemos possibilitar que as forças ativas se
tornem dominantes, como nós podemos possibilitar a criação de espíritos livres,
criativos, superiores. No entanto, acredito que esta deva ser a real função da Filosofia
nas salas de aula, ainda que as condições sejam adversas.
Referências:
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth
Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio – Sociedade Cultural Ltda; 1ª edição brasileira, 1976.
HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino da
filosofia. Ijuí: Ed.Unijuí, 2010. (Coleção filosofia e ensino; 14).
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Cinco Prefácios Para Cinco Textos Não Escritos.
Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Ed. 7 letras, 2ª edição.
_____. Escritos sobre Educação. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
PELLEJERO, Eduardo. A postulação da realidade (filosofia, literatura, política). Trad.
Susana Guerra. Lisboa: Edições Vendaval, 2009.
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O IMPULSO VITAL NA FILOSOFIA DE BERGSON - Vinícius de Fontes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
Palavras-chave: Filosofia Francesa, Filosofia Contemporânea, Metafísica, Henri
Bergson, Impulso Vital.
O trabalho visa expor um dos principais conceitos do bergsonismo: o Impulso
Vital ou Élan Vital. O Impulso Vital é, antes de tudo, uma força geradora de toda a vida.
No livro A Evolução Criadora, Bergson vai expor toda sua teoria, ainda inacabada
como ele mesmo coloca, sobre uma evolução natural da vida como um todo, partindo da
noção de divisibilidade da Duração. Mas a Duração, quando se divide, precisa de um
movimento que lhe é inerente e que é a motivação criadora e evolutiva de toda a
natureza: a esse movimento nosso filósofo dá o nome de Impulso Vital. É ele quem vai
garantir a vida e toda sua evolução. Esse conceito é extremamente importante para que
possamos entender como a vida bergsoniana se desenvolve no seio de uma entidade
temporal chamada de Duração. Através das diferenciações e da máxima distensão da
Duração, o Impulso se faz presente criando tudo o que vemos e, assim, podemos
conhecer todas as formas materiais. É dele o poder de criação inerente à Duração. Com
isso, temos que o Élan exerce uma função muito nobre dentro da filosofia bergsoniana:
a criação. Dessa forma, podemos começar dizendo que a Duração tem, em uma de suas
principais características, a particularidade de ser divisível em linhas de atualização.
Quando ainda está em vias de se atualizar, Bergson entende que ela é virtual e que
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quando se atualiza, ela se torna atual (ou real). Para ele, tudo que é atual é palpável.
Porém, a Duração não é algo que se divide e se perde. Para nosso filósofo, ela é uma
heterogeneidade qualitativa e isso lhe permite dizer que ela é divisa, todavia, contínua.
Todos os momentos da Duração se entrelaçam, são considerados únicos em seus
próprios movimentos e não se separam. A separação de cada movimento, segundo
Bergson, acontece apenas quando ele se atualiza. A concepção bergsoniana da Duração
que se distende ao máximo para formar a matéria tem uma importância muito grande
para que possamos entender o conceito de Impulso Vital. É através das linhas de
atualização da Duração que o impulso originador da vida vai trabalhar para que haja a
diferenciação e a formação do Todo, levando em consideração uma Evolução Criadora
da Duração. Bergson rejeita os possíveis por entender que eles podem ou não
transformarem-se no real, enquanto que a virtualidade vai, de uma forma ou de outra,
tornar-se atualizada. Bergson diz que o que é real é a atualização e que a passagem do
virtual para o atual é que é o movimento pela qual as coisas se dão a nós. Como
dissemos anteriormente, o virtual está contido na Duração e quando a virtualização está
no seu grau mais distendido, temos aí a matéria. Assim, podemos dizer que a Duração,
no seu grau mais intenso de distensão, é a atualização da virtualidade, é a virtualidade se
fazendo atual e real, dando-se nas coisas às quais podemos perceber. Por ser o Impulso
Vital uma dinâmica de criação é que Bergson diz que o possível é uma fonte de falsos
problemas: ele pode ou não se tornar real, é uma possibilidade, enquanto que a
virtualidade irá se atualizar porque criação é atualização. Logo, o Impulso Vital é um
movimento de atualização, de criação que transforma a realidade. Assim, para
explicitarmos melhor esse conceito, dividiremos o trabalho em três itens, a saber: uma
breve introdução ao tema, a exposição do conceito e uma conclusão. Utilizaremos,
principalmente, as obras Bergsonismo, de Gilles Deleuze, e A Evolução Criadora, do
próprio Henri Bergson, além de artigos e obras de outros autores que nos auxiliem no
entendimento e interpretação do conceito.
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I. Introdução
Na filosofia bergsoniana existem três conceitos importantes: Intuição, Duração e
Impulso Vital. Todos eles são interligados e se completam. Porém, o conceito que o
deixou muito mais conhecido foi o terceiro. Esse conceito é exposto na obra A evolução
criadora e tem capital importância no discurso filosófico que versa sobre a natureza. O
nome da obra já denota o que Bergson pretende abordar: uma concepção totalmente
nova e diferente das correntes sobre a criação. Para ele, o mundo está sempre se fazendo
e criando novas materialidades. O novo estará sempre presente na obra de Bergson por
entender que tudo o que a natureza cria é novo. Gilles Deleuze, seu principal
comentador, diz que ele rejeita os possíveis por entender que a possibilidade pode ou
não acontecer. Com isso, Bergson dá à criação um olhar diferente daquele que as
ciências da natureza dão. Vai de encontro à Biologia por perceber que ela entende a
criação e a mudança como fenômenos casuais. Ele entende que há uma força que
conduz toda a mudança, provocando evolução, e que essa força não é casual e sim
intencional. Para explicar o movimento que é inerente à vida e que constitui toda a
materialidade, Bergson vai erigir o conceito de Impulso Vital o qual veremos a seguir.
II. O Impulso Vital: atualização da virtualidade da Duração
O Impulso Vital é o impulso gerador da vida, sendo gerada em termos de atualizações
da virtualidade da Duração. Bergson diz que real é a virtualidade atualizada e que a
passagem do virtual para o atual é que é o movimento pela qual as coisas se dão a nós:
quando a virtualização está no seu grau mais distendido, temos aí a matéria. Assim,
podemos dizer que a Duração, no seu grau mais intenso de distensão, é a virtualidade se
fazendo atual (real), possibilitando nossa percepção. Logo, o Impulso Vital é um
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movimento de atualização/criação que transforma a realidade. Com o Impulso Vital,
Bergson faz uma análise mais apurada dos desdobramentos da Duração na realidade e o
transforma na essência da Vida, da Natureza: ―trata-se sempre de uma virtualidade em
vias de atualizar-se (...)‖ (DELEUZE, 1999, p. 75). Deleuze diz que a essência da vida é
se diferenciar e criar novas formas de vida, mas elas já se encontram na Duração, sob a
forma do Élan, em vias de atualizar-se: o Élan é virtual na Duração. A Vida, ou a
Natureza, constitui o desdobramento do Élan criador de todas as coisas. Esse Impulso é
interno à Duração e não cessa de se atualizar para constituir as coisas existentes, ele dá
materialidade à Duração e ao mesmo tempo participa dela. O Impulso é diferenciação,
dicotomia. Isso porque o Élan pode se atualizar em qualquer coisa, não sendo preso a
nenhuma determinação. No Impulso, nada é já constituído, podendo assim a Duração se
atualizar naquilo que ela quiser, transformando e modificando o real de acordo com as
suas diferenciações. Essas diferenças implicam uma virtualidade que se atualiza
segundo linhas de divergência: a vida está sempre se fazendo por diferenciação. Nesse
sentido, as mudanças não seriam feitas através do acaso, mas sim de forma interna e,
talvez, necessária. Isso significa dizer que a virtualidade participa da totalidade, do Uno,
do Tempo único e que cada uma de suas atualizações, ao se diferenciar, o faz em graus
participando da Totalidade da natureza cada qual a seu modo. Todavia significa também
dizer que não há um todo coexistente e sim que há linhas de diferenciação cada qual
representando uma atualização sem que haja uma combinação. Desse modo, tudo parte
das diferenciações da Duração e tudo subsiste nela, participa dela. Assim, quando há a
atualização da virtualidade inscrita na Duração, o Impulso Vital faz com que essas
atualizações façam parte da Duração e sejam efeitos da Duração. O Élan é interno ao ser
e ―funciona‖ como que um transformador da natureza do próprio ser, uma vez que ele
contém todas as diferenças do ser atualizado por ser um ―esforço ontológico de
diferenciação operante‖ (SILVA, 2006, p. 3), produzindo as mudanças do ser
internamente, sem a necessidade de uma causa externa a ele para que haja a mudança,
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sendo, inclusive, o gerador da vitalidade do ser. Ele é em potência (em virtualidade)
criação dos seres na natureza e cada diferenciação dele origina (ao atualizar-se) algo
diferente e complexo, mas cada qual com o seu grau de complexidade individual.
Porém, Deleuze lembra que a vida aliena-se ao criar as atualizações, pois ela perde o
contato com o resto de si, deixa de ser uma unidade e passa a ser uma multiplicidade
independente. As formas vivas que o Impulso cria são caracterizadas pela mudança
contínua, sendo um esforço do Élan ―ultrapassar as diversidades e as formas em direção
a uma novidade por vir‖ (idem). Esse esforço do Impulso Vital pode ser explicado pelo
fato de que o mesmo tem como principal característica a mudança, a criação. Quando há
uma forma pronta e acabada ele não pode mais continuar a mudança de criação e
atualização de suas possibilidades: há uma possibilidade estabelecida na matéria e esta
não pode ser ultrapassada. Por isso Bergson diz que o Impulso não cessa de tentar
ultrapassar a materialidade das coisas. Assim, ―toda espécie é uma parada de
movimento‖ (DELEUZE, p. 84), pois o Élan ―perde-se‖ na materialidade, tendo seu
movimento de criação interrompido por ela. Porém o Élan quer continuar seu caminho
pela diversidade e consequente criação interna à vida, promovendo assim o
evolucionismo invocado por Bergson porque ―a vida biológica (...) é constante e
incessante novidade, é criação e imprevisibilidade, é vida sempre nova (...)‖ (SILVA, p.
5). Desse modo, podemos dizer que Bergson quer que entendamos que vida é incessante
criação. E se quisermos compreender como acontecem as mudanças estudadas e
equacionadas pelas ciências física e biológica, devemos entender como é que esse
movimento interno de criação da vida transmite sua diferenciação, criando sempre
novas e imprevisíveis materialidades. Devemos verificar também que a vida orgânica é
sempre uma luta entre vida e materialidade: é a vida tentando ultrapassar a inércia que a
materialidade lhe impõe; é a materialidade tentando se estabelecer e as ciências
questionando o dado material. Bergson dá ao Élan um poder extremamente criativo,
compreendendo que matéria e espírito são dois tipos de movimento que diferem um do
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outro, mas que estão na mesma experiência. Para ele, a mudança da coisa é acidental e
por isso ele entende que as ciências da natureza cometem erros ao estudar a mudança do
objeto sem levar em consideração o que a faz ser mudança. A Duração é mudança por
essência, enquanto que o objeto é somente mudança acidental. O erro consiste em partir
da mudança acidental do objeto dado. Bergson propõe que é só no homem, enquanto
atualização da Duração, que o Élan Vital ―passa‖ com sucesso, uma vez que ele entende
que a Duração é, de direito, memória, consciência, liberdade. A questão agora é
descobrir como, de fato, ela se torna consciência de si; é aqui que entra o homem: ele é,
certamente, a razão de ser da totalidade do desenvolvimento. Para Deleuze, é na emoção
que Bergson vê que o Impulso Vital toma consciência de si, fazendo com que o homem
seja uma linha de diferenciação privilegiada. Mas a emoção surge do intervalo
inteligência-sociedade. O intervalo é o instante entre a excitação e a reação. Esse
intervalo é criado porque quando a mente humana recebe uma excitação ela seleciona
uma reação; ele torna possível a inteligência porque nele a memória se infiltra e se torna
atual: através do nosso corpo, podemos nos instalar na virtualidade. Logo, é por causa
da memória que podemos voltar a encontrar toda a virtualidade da Duração e toda a sua
linha de diferenciação. No intervalo inteligência-sociedade surge a função fabuladora,
pois a inteligência procura preservar certo egoísmo e a sociedade tem suas exigências
sociais sob a forma de obrigações, sendo estas uma espécie de ―instinto virtual‖, ―um
equivalente de instinto que a inteligência guarda em si ao separar-se dele, de acordo
com a lei da diferenciação‖(FORNAZARI, 2004, p. 49). A função fabuladora é a
responsável pela criação dos deuses e das religiões, segundo Bergson, sendo ela
responsável pelo processo de naturalização de representações fictícias criadas pela
inteligência e de persuadir a inteligência a ser do interesse dela ratificar a obrigação
social, tirando toda liberdade que lhe é própria. Assim, Bergson diz que o que se insere
nesse intervalo é precisamente uma coisa distinta da inteligência e do instinto: a
emoção. Ela é como se fosse a transcendência do amor que uma música exprime; nós
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nos introduzimos na emoção que a música transmite por ela mesma, como se fôssemos
apenas passantes levados a dançar. Isso quer dizer que a emoção nos introduz nela
mesma e, desse modo, nos inserimos bem no meio do intervalo inteligência-sociedade,
podendo então compreender o poder da função fabuladora e reconhecer o movimento
que podemos fazer para recuperar a liberdade que ela nos oculta. Nesse sentido, ela nos
dá o privilégio de nos tornar criadores e de podermos continuar a função do Impulso
Vital: a criação.
III. Conclusão
Vimos com este trabalho que o Impulso Vital tem um papel realmente novo na Filosofia
e na querela da criação da natureza como um todo. Com ele, identificamos o que
Bergson entende por criação e uma evolução criadora. É através do movimento de
diferenciação da Duração que há o novo e é com o Impulso que a percorre que a criação
se faz. É no Impulso Vital que ocorrem as mudanças referentes à Evolução e é nesse
movimento de mudança e criação que Bergson identifica o verdadeiro movimento da
vida. O conceito de um movimento de diferenciação da vida é o que faz com que
Bergson instaure algo de totalmente novo na questão da criação e da evolução da
natureza. Esse conceito mostra que as ciências biológicas estão presas a concepções
materialistas e que, por isso, não conseguem enxergar o movimento gerador da vida por
completo, mas apenas partes isoladas do movimento criador.
Bibliografia
BERGSON, H. Memória e Vida - Henri Bergson. Textos escolhidos por Gilles Deleuze;
tradução Cláudia Berliner; revisão técnica e tradução Bento Prado Neto. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
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_________. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
DELEUZE, G. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 1 Ed. (2ª reimpressão
2008). São Paulo: Ed. 34, 1999 (Col. TRANS).
FORNAZARI, S. K. O bergsonismo de Gilles Deleuze. Trans/Form/Ação, São Paulo,
27(2): 31-50, 2004.
SILVA, A. J. da. O impulso vital enquanto criador do princípio explicativo da evolução
no pensamento bergsoniano. ―Existência e Arte‖ - Revista Eletrônica do Grupo PET Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano
II - Número II – janeiro a dezembro de 2006.
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O MEDO COMO PAIXÃO MOTIVADORA DO ESTADO CIVIL - Josete
Soboleski
Mestranda em Filosofia pela Unioeste
[email protected]
Palavras-chave: Igualdade, Direito, Medo, Estado.
Para que a paz seja alcançada e a guerra do estado de natureza tenha fim, faz-se
necessário um poder suficientemente forte para fazer com que todos atuem segundo a
razão, tornando desvantajoso qualquer ato contrário a ela. Há também outro motivo: o
homem, no estado de natureza, sempre age buscando o máximo de benefício para si, e
tudo acaba tornando-se uma questão de cálculo de vantagens. Quando julga que algo vai
ser vantajoso para ele, com certeza irá tomar posse e se beneficiar disso, caso contrário,
o medo o impedirá de seguir adiante. O medo torna-se a principal causa instituidora do
Estado quando a morte violenta se torna algo iminente fazendo com que os homens
decidam-se pelo mal menor. De acordo Hobbes, ―o medo é a origem das sociedades
grandes e duradouras‖ (2002, p. 28) por ser uma antecipação de males futuros, ―o medo
alarga a visão, faz com que antecipem o mal futuro e leva os homens à precaução‖
(FRATESCHI, 2008, p. 146). Pode até ser difícil compreender que o medo faça o
homem pensar em uma situação assim, uma vez que o homem não deixa de sentir medo
quando quer, no entanto, é da compreensão de todos que ao passar por uma situação que
lhe cause temor, o homem passará a evitá-la no futuro. Os temores pelos quais um
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homem passa quando se encontra na condição de guerra já são suficientemente fortes
para levá-lo a desejar uma situação melhor do que essa. Se as relações contratuais que
se estabelecem no estado natural fossem realmente efetivas, não seria necessária a
instituição do Estado, pois os homens respeitariam a palavra dada. Se, por outro lado,
todos os pactos fossem inválidos, o contrato social não seria possível, uma vez que
também é um contrato. Num estado onde a igualdade prevalece, qualquer novo motivo
de medo que surja tem força suficiente para paralisar toda vontade de cumprir o pacto
primeiro, Hobbes considera isso bem imprudente e tolo quem o faz. Por este motivo, as
leis naturais são insuficientes para garantirem sozinhas que a paz seja estabelecida, pois
não tem quem obrigue os homens a segui-las, tornando-se desnecessário se
comprometer salvo imaginando um pacto que cria imediatamente a segurança que os
pactuantes cumprirão suas promessas. Este é o pacto que dá origem ao Estado. Os
homens não se associam porque tendem naturalmente a sociedade, segundo Hobbes:
toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória [...] essa glória é como a
honra: se todos os homens a têm, nenhum a tem, pois consiste em comparação e
precedência [...], pois todo homem vale o quanto vale por si, sem a ajuda dos outros.
Mas embora os benefícios dessa vida possam ser ampliados, e muito, graças à
colaboração recíproca, contudo – como podem ser obtidos com mais facilidade pelo
domínio, do que pela associação com outrem -, espero que ninguém vá duvidar de que,
se fosse removido todo o medo, a natureza humana tenderia com muito mais avidez a
dominação do que a construir uma sociedade. Devemos portanto concluir que a origem
de todas as grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que
os homens tivessem uns para com os outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos
outros (HOBBES, 2002, p. 28). É pelo medo da morte, da invasão e dos ferimentos que
os homens buscam o Estado, essa é uma segurança que eles não podem ter no estado
natural. Hobbes continua seu raciocínio dizendo em nota que é ―tão improvável que os
homens chegassem à sociedade civil devido ao medo que, tivessem eles medo, nem
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mesmo suportariam o olhar uns dos outros. Mas quem assim pensa presume, creio eu,
que temer é exatamente o mesmo que apavorar-se‖ (2002, p. 359) Medo e pavor não são
a mesma coisa. O medo é a aversão ligada à crença de dano, já o pavor é o medo sem
saber de quê ou por que. O pavor não é algo que os homens suportem com facilidade,
mas isso se apresenta com um caráter muito psicológico, não concernente ao presente e
estudo. Não que o caráter psicológico não seja importante para a instituição do Estado,
ou para o estudo do medo como uma paixão política, apenas este não é o melhor lugar
para tratar dele. O medo é visto por Hobbes como ―a antevisão de um mal futuro‖, a
sociedade civil provêm do medo e este medo se origina da igualdade, característica que
anula qualquer garantia de que está protegido no estado natural, salvo pela sua própria
força e inteligência. O medo não é visto por Hobbes, apenas como o causador das fugas,
mas também como o causador das desconfianças, das precauções, e até mesmo da
coragem. As primeiras duas conseqüências não nos causam estranhamento, mas
podemos explicar a última da seguinte forma: o medo faz muitas vezes, o indivíduo
pegar em armas para se defender, principalmente quando não vê outra forma de escapar
da morte. Os homens sempre estão agindo por inclinação ou aversão e, como a condição
do estado natural é algo que ameaça a sua vida, desejam sair dele. É pelo medo,
portanto, que os homens se protegem, ora fugindo, ora se armando para a luta.
Conforme Hobbes, quando os homens mostram-se uns aos outros conseguem observar
melhor as suas disponibilidades; assim, se a luta for inevitável, a sociedade civil nasce
do confronto, se, de outra forma, eles concordarem, a sociedade nascerá de um acordo.
De acordo com o pensador, é mais fácil que os homens consigam os seus benefícios
pela dominação do que pela associação, embora os mesmos possam ser ampliados pela
cooperação recíproca. Segundo Pinzani (2006), este último caso pressupõe um alto grau
de racionalidade, enquanto o primeiro segue a lógica do medo e da esperança, pois são
estas paixões que levam os homens a acreditar que todos os outros são potencialmente
inimigos e que transferindo seus direitos a uma pessoa em comum, estarão protegidos
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da violência dos outros mesmo que não estejam protegidos de soberano. Essa não
proteção parece ser contraditória, mas é explicável; o soberano tem poder absoluto
sobre os direitos e bens daqueles que o estabeleceram como tal, mas só vai interferir
contra eles se estes não cumprirem as leis estabelecidas pelo Estado. O poder do Estado
é legítimo e absoluto porque garante a segurança e a paz que estavam ausentes na
condição natural. Os homens podem desejar o mesmo fim: preservar e garantir a vida,
mas as opiniões de como devem fazer para atingir isso são diferentes de um para outro.
Isso justifica porque Hobbes defende o poder absoluto de um Estado; uma vez que é
impossível apenas por meio da cooperação espontânea de todos sair do estado natural
seguindo as leis de natureza, pois embora os interesses sejam os mesmo, as opiniões de
como consegui-los são diferentes e isso sempre causará divergências. Quando levamos
em consideração as características do estado natural, o direito que todos os homens têm
a todas as coisas e a sua igualdade percebemos como é fácil que ocorram os confrontos,
pois quando um enfrenta com direito, o outro resiste pelo mesmo motivo e isso resulta
naquilo que Hobbes define como a ―guerra de todos contra todos‖, tornando a sua
convivência algo insuportável: O estado de hostilidade e de guerra é tal que a própria
natureza é destruída e os homens matam-se uns aos outros [...], por isso quem deseja
viver em tal estado, como o estado de liberdade e de direito de todos a todas as coisas,
contradiz a si mesmo. Pois, por necessidade natural cada homem deseja o seu próprio
bem, o que é contrário a este estado, no qual supomos uma contenda entre homens
iguais por natureza, capazes de destruírem uns aos outros (HOBBES, 2010, p.70-71).
Disso decorre que a razão, movida pelo medo da morte e pela esperança de uma
condição melhor busca motivações para instituir o Estado. A guerra traz aos homens
muitos prejuízos, entre eles, o medo de perder a vida, então podemos dizer que o que
motiva os homens a saírem dessa condição de desconfiança não é apenas a razão, mas o
desejo de continuar a viver e desfrutar de uma vida mais longa e confortável. Os
indivíduos entram em confronto por terem muitas vezes o mesmo desejo, que não pode
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ser satisfeito por ambos, ou simplesmente o desejo por mais poder e por
reconhecimento. Se essa é a característica principal a levar os homens ao enfrentamento,
a característica principal a sinalizar que essa não é uma boa condição pra estar vivendo
é sem dúvida, o medo, uma vez que é ele que os faz perceber que é melhor estar sob a
proteção de um poder soberano do que enfrentar os perigos sozinhos. Essa ameaça
constante à vida leva os indivíduos a um único caminho pra sair do estado de guerra:
trata-se do contrato de instituição do Estado, esse é o único meio de remover
definitivamente o medo da morte e estabilizar a questão da segurança. Ou seja, os
homens trocam a sua liberdade absoluta de fazer o que quiserem pela segurança que não
tinham no estado natural. No estado natural não há obrigação válida entre os homens
porque não há poder que garanta o cumprimento das leis; tampouco a proteção está
garantida. O Estado entra como agente solucionador, uma vez que, encontrando-se os
homens sob um contrato, deixam de serem seus juízes, advogando em causa própria.
Esse papel passa a ser do Estado civil. É bem clara em Hobbes a idéia de que os homens
não se associam naturalmente, mas movidos por interesses, buscando sempre a
companhia dos outros por honra ou por qualquer outro motivo que julguem proveitoso.
Isso fica evidente, segundo Hobbes, quando observamos uma reunião qualquer, não
sendo raro que procurem ser os últimos a sair para evitar os comentários dos outros que
ainda ficam. Assim como os pactos que sem uso da espada, não passam de palavras sem
valor, uma vez que é preciso garantias de que eles sejam cumpridos pela outra parte e só
o uso do poder é capaz de dar esta garantia. A simples união dos homens numa multidão
não é suficiente para garantir a segurança e a preservação da vida dos indivíduos.
Segundo o filósofo, não temos como precisar uma quantidade exata de homens como
suficiente para garantir a segurança, pois sempre há a possibilidade de que outro grupo
em maior número os ameace, ou ainda, os homens por estarem sempre buscando o que é
melhor para si podem entrar em confronto dentro desse próprio grupo que formaram. É
necessário que se institua um contrato artificial entre os homens, firmado de forma
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irreversível.
Um contrato nada mais é do que ―a transferência mútua de direitos‖, isso
explica porque alguns direitos não são transferidos na instituição do Estado, como o
direito a vida por exemplo. Se o indivíduo apenas renunciasse aos seus direitos, então
também abdicaria do direito de se preservar, fazendo do soberano seu senhor absoluto,
com poderes sobre tudo, até mesmo sobre a vida dos súditos. Como os direitos são
transferidos, se o soberano não for capaz de garantir a segurança, os súditos retomam
automaticamente estes direitos para si, retornando ao antigo estado de natureza. São
dois os tipos de pacto que estabelecem o Estado: os pactos por associação, ou união, e
os pactos por submissão. O único pacto aceitável para Hobbes é o primeiro, pois os
indivíduos acordam entre si em transferirem seus direitos a uma terceira pessoa não
contratante. Esse pacto consiste na renúncia recíproca de direitos a uma única vontade e,
ao se submeterem a esta vontade, os homens fazem nascer o Estado: a realização de
uma união consiste em que por um pacto cada um se obrigue para um único e mesmo
homem, ou para um único e mesmo conselho, nomeado e determinado por todos a
executar as ações que o dito homem ou conselho lhes ordene que faça: e a não executar
nenhuma ação que este homem ou esse conselho lhes proíba ou ordene não fazer. Além
disso, caso se trate de um conselho a cujas ordens eles concordam em obedecer, então
eles também concordam que todo homem deve ter por comando o conselho inteiro, que
corresponde ao comando da maioria daqueles homens que compõe o conselho. Ainda
que a vontade do homem, que é voluntária apenas no início das ações voluntárias, não
esteja sujeita à deliberação e ao pacto, quando um homem concorda em sujeitar a sua
vontade ao comando de outrem, ele se obriga a isto: a resignar a sua força e os meios de
que dispõe àquele que ele concorda em obedecer; por isso, aquele que deve comandar
pode, pelo uso de todos os meios e forças deles, inspirar o terror com vistas a ajustar a
vontade de todos em uma unidade e concórdia entre si (HOBBES, 2010, p.99). Esse
tipo de união é o que Hobbes define como a sociedade civil e só ocorre quando todos os
homens contratam entre si. O contrato social em Hobbes não pode ser um contrato de
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submissão de toda uma multidão de homens a um único homem ou a uma assembléia
deles, pelo contrário, em Hobbes o que ocorre é que os homens aceitam e reconhecem
um homem ou grupo de homens como autores de seus atos, assumindo entre si uma
obrigação recíproca. Essa ação é mútua, simultânea e ocorre no tempo presente. Como
os pactos supõem promessas futuras eles não são garantia. O Estado, portanto, deve se
iniciar por um contrato, uma vez que a transferência de direitos deve ser feita por todos
os homens ao mesmo tempo. A finalidade de um Estado é a segurança individual de
cada indivíduo. Ao aceitarem as restrições que o contrato de instituição impõe a todos,
os homens garantem a sua conservação e uma vida mais confortável. De acordo com
Hobbes, as leis de natureza, na ausência do temor que as fará ser respeitadas, não levam
ninguém à paz. Estas leis naturais são respeitadas quando os homens desejarem, nada os
obriga a fazer algo que não queiram; portanto, não garantem a paz. O fim máximo do
Estado é garantir a paz e a segurança e a causa disso é o medo de perder a vida em uma
condição de guerra sempre iminente que é o estado natural. Por este motivo, os homens
estabelecem o contrato social: ―é como se cada homem dissesse a cada homem: autorizo
e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembléia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando
de uma maneira semelhante todas as suas ações‖(HOBBES, 2008, p.147). Apesar da
relação entre os homens ser sempre uma relação de desconfiança e temor, nesse
momento o medo da morte violenta é um medo tão superior ao medo de submeter-se a
um poder soberano que ele aceita o Estado como sendo o que há de melhor para
continuar a viver de forma confortável e sem ameaças. O medo de estar sob o
julgamento de um soberano é um medo bem menor do que o de perder a vida a qualquer
momento. O Estado é estabelecido dessa forma como a solução para a falta de
segurança e esperança de uma vida longa. A razão dos homens, movida pelas paixões,
principalmente do medo, assim estabelece que eles o façam, reconhecendo mais uma
vez a igualdade de todos. Conforme encontramos nos textos do filósofo de maneira
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bem clara, a causa que em geral leva um homem a tornar-se súdito de outrem é (como
eu já disse) o medo de não poder se preservar de outro modo. E um homem pode por
medo sujeitar-se a quem o ataca, ou pode atacá-lo; ou ainda, os homens podem se juntar
para se sujeitar àquele sobre quem estão de acordo, por medo dos outros. Quando
muitos homens se sujeitam conforme o primeiro modo, surge daí como que
naturalmente, um corpo político do qual procede a dominação paternal e despótica; e
quando se sujeitam conforme o outro modo, por meio da mútua concordância entre
muitos, o corpo político que formam é na maioria das vezes chamado de república, para
distingui-lo do modo anterior ainda que este seja o nome geral dado a ambos
(HOBBES, 2010, p.101). O medo no estado de natureza é capaz de apresentar ao
homem que esta é uma condição imprópria e que ele precisa deixá-la para poder
preservar-se. Essa passagem dos Elementos torna clara a expectativa criada por Hobbes
em torno da instituição do Estado. A morte violenta que o limita no estado natural dá
espaço para o medo apresentar juntamente com a esperança de garantir uma vida mais
segura uma solução, que é o Estado. Isso tudo racionalmente calculado pelo que ele
julga ser melhor para si mesmo, mas não há problema em compreender esse ponto já
bastante discutido nos textos de Hobbes. Para Pinzani (2006, p. 129), o medo é o que
estimula o homem a sair do estado de natureza, assumindo um papel de paixão
civilizadora. No entanto, se ele não estiver ligado à esperança não será suficiente para
dar vida ao Estado civil. A razão, segundo ele, ―não impele os homens a abandonarem o
estado de natureza, mas sua aversão contra aquilo que ameaça a vida deles ou torna esta
desprazerosa‖ (PINZANI, 2006, p.129). O medo deixa os homens tão amedrontados a
ponto deles perceberem que esta condição de guerra que está sempre em via de se
efetivar é extremamente frágil. No entanto, apenas o medo não é suficiente para fazer
sozinho com que os indivíduos desejem sair do estado natural, por isso a esperança de
melhorar a situação em que se encontram também tem um papel importante na
instituição do Estado. E é isso, na leitura de Pinzani que leva os homens a desejarem o
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Estado, pois a razão não aponta o fim (que é sair do estado de guerra) este é apontado
(como vimos) pelo medo e pela esperança; a razão aponta os meios para que os
indivíduos possam chegar até ele. Essa discussão, no entanto, nos leva a outro aspecto
tão relevante quanto aos que foram abordados até aqui: como ficará a paixão do medo
após a instituição do Estado? Seria possível que os homens deixassem de senti-lo?
Referencias bibliográficas:
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. 3ªed. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
______. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2008
FRATESCHI, Yara Adário. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas:
Editora Unicamp, 2008.
PINZANI, Alessandro. Ghirlande di fiori e catene di ferro: Istituzioni e virtù politiche
in Machiavelli, Hobbes, Rousseau e Kant. Firenze: Le Lettere, 2006.
O NATURALISMO BIOLÓGICO COMO ALTERNATIVA AO DUALISMO
SUBSTANCIAL E DE PROPRIEDADES - André Rosolem Sant’Anna
Universidade Estadual de Maringá
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1. O DUALISMO SUBSTANCIAL
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A filosofia da mente contemporânea dedica parte de seu escopo investigativo acerca da
relação entre mente e corpo, investigação que procura lograr a explanação concernente
aos processos que dão origem à mente, assim como a possível relação que possa existir
entre processos mentais e processos físicos ocorrentes em nosso corpo. O problema da
relação mente-corpo pode ser contextualizado historicamente na discussão proposta
pelos filósofos modernos acerca da ontologia da realidade. René Descartes (1596-1650)
defendeu através de suas Meditações1 uma forma de dualismo substancial no qual
―mental‖ e ―físico‖ constituem duas categorias ontológicas distintas que estão em íntima
relação no homem. Na terminologia cartesiana, o homem é constituído por alma e
corpo, respectivamente substância pensante e substância corpórea2, sendo que extensão
e pensamento constituem a natureza destas duas substâncias, pois os primeiros ―não
podem ser concebidos senão como as próprias substâncias pensante e extensa‖
(DESCARTES, 1644, p. 50). A primeira verdade a qual Descartes se refere nas
Meditações consiste no conhecimento direto de algo que pensa, e na medida que este
algo pensa, ele não pode deixar de existir. É a partir do conhecimento claro e distinto do
seu ser enquanto ser pensante que Descartes descobre em si atributos que não são
aplicáveis a substância pensante, tal como a extensão e a figura. Através da distinção,
isto é, através do conhecimento de predicados que não são aplicáveis à substância
1
DESCARTES, R. Meditações. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. In: Coleção Os Pensadores,
São Paulo: Nova Cultural, 1996.
2
A afirmação da substância extensa não significa a afirmação da existência da matéria. Descartes (1641)
aduz a dificuldade de se obter conhecimento claro e distinto da substância corpórea enquanto objeto
material. Todavia, considerando a nossa grande inclinação para a crença da existência destes objetos
somado ao fato de que Deus não nos induz ao erro, Descartes considera a hipótese da existência dos
objetos materiais como verdadeira, embora não conhecida clara e distintamente.
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pensante, Descartes sintetiza a hipótese da substância extensa como algo distinto da
substância pensante. Em resumo, a substância extensa é conhecida por distinção3. Com
efeito, sendo a existência do corpo evidenciada pela distinção de predicados existentes
na alma, ambos são considerados como pertencentes a categorias ontológicas
necessariamente distintas. Por um lado, a alma (ou mente) representa uma entidade
indivisível e simples, constituindo assim a entidade da qual possuo conhecimento
absoluto e infalível, isto é, não posso estar enganado sobre o que ocorre em minha
mente. Mais idiossincraticamente, a mente só é acessível para o sujeito da qual ela é
mente, de modo que sua perspectiva de acesso seja uma perspectiva de primeira pessoa.
Gilbert Ryle define essa descrição da mente como ―stream of consciousness‖ (RYLE,
1963, p. 15) na qual imagens são apresentadas a um único expectador, o sujeito. O
corpo, por sua vez, constitui o ente ao qual a alma está correlacionada no mundo físico,
sendo caracterizado pelo seu aspecto divisível e pela sua observabilidade. Deste modo, a
minha atividade corporal como elemento essencial do mundo físico é inteiramente
observável por um observador externo, de modo que sua perspectiva de acesso seja de
terceira pessoa. Neste contexto, a distinção ontológica de substâncias demonstra uma
assimetria no modo epistemológico pelo qual tenho acesso a minha mente e ao meu
corpo, o que introduz, como corolário, a dificuldade em situar a relação entre mente e
corpo, uma vez que estes últimos pertencem a duas categorias ontológicas distintas.
Esta assimetria acarreta uma série de dificuldades na discussão contemporânea acerca
da relação mente-corpo, dado que teorias como o behaviorismo e o eliminativismo
3
O termo distinção não deve ser entendido em um sentido ontológico, mas sim epistemológico. Por
conseguinte, a afirmação do conhecimento da substância extensa através da distinção de predicados em
relação à substância pensante reflete o fato de que no processo da dúvida o conhecimento desta última
substância antecede o da primeira. No sentido ontológico, todavia, ambas as substâncias coexistem e a
relação de precedência não se segue.
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buscam explicar a consciência fora do seu âmbito subjetivo. A primeira tentativa tenta
situar a mente como a disposição comportamental, ao passo que a segunda alternativa
nega a existência da consciência.
2. O NATURALISMO BIOLÓGICO
A visão científica de mundo segundo a qual o universo físico é causalmente fechado e a
pressuposição de que o objeto da investigação científica deve ser universalmente
observável gera um impasse conceitual em relação o problema histórico da interação
mente-corpo. A mente na concepção cartesiana é um reduto impenetrável e
independente ao qual somente o sujeito tem acesso direto, não podendo, deste modo, ser
explicada nos termos pressupostos pela nossa visão científica atual; paralelamente, a
concepção idealista extrapola o âmbito do sujeito ao afirmar toda a realidade como
produto da mente, ferindo assim o estatuto da afirmação segundo a qual os objetos do
mundo devem ser igualmente observáveis por todos os observadores. John Searle, em
sua obra intitulada A Redescoberta da Mente4, aponta o vocabulário tradicional como
proponente de um determinado conjunto de hipóteses que esgotam o campo de
investigação acerca da mente (SEARLE, 1997, p. 9) e, deste modo, restringem as
explicações teóricas sobre a realidade a termos puramente dualistas ou monistas. Searle
dedica sua investigação a uma crítica dos conceitos recorrentes na história da filosofia
tais como o dualismo e ao monismo, propondo como alternativa uma concepção do
mundo em que a realidade objetiva seja preservada, sem, no entanto, eliminar o aspecto
subjetivo e qualitativo dos estados mentais, visto que estes são elementos tão essenciais
4
SEARLE, John, A Redescoberta da Mente, São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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da realidade quanto a mesa que observo neste momento. O escopo da crítica de Searle
se situa na fragilidade do vocabulário tradicional em abordar as nuances do estudo da
mente; a explanação desta, tanto na abordagem dualista quanto monista incorre nas
dificuldades já mencionadas. A crítica searleana aponta para a nossa visão científica
global como o principal empecilho para o estudo da consciência como elemento natural
do mundo; a visão de que a realidade em sua totalidade deve ser explicada em termos
objetivos ou de terceira pessoa, e desta forma, ser igualmente acessível para todos os
observadores, constitui um obstáculo à inserção da consciência neste padrão
epistemológico, já que esta última possui uma ontologia assimétrica em relação à
ontologia padrão aduzida pela ciência. A consciência possui uma ontologia de primeira
pessoa, isto é, a consciência em sua essência é subjetiva, os aspectos qualitativos dos
estados mentais só podem ser explicados enquanto estados mentais de um ser humano
ou de um animal. Isto quer dizer, em outras palavras, que a consciência não pode ser
explicada em uma ontologia de terceira pessoa, não obstante, podemos estudá-la
através de uma epistemologia de terceira pessoa. Segundo Searle, a consciência é
irredutível no sentido ontológico, mas não no sentido epistemológico (SEARLE, 1997,
p. 171). Mas o que se quer dizer quando se afirma o caráter irredutível da ontologia da
consciência? A irredutibilidade da consciência pode ser melhor compreendida uma vez
que se leve em consideração a consequência do modelo de redução definido por Searle:
―Assim, onde a característica superficial é uma aparência subjetiva, redefinimos a noção
original de modo a excluir a aparência de sua definição‖ (SEARLE, 1997, p. 172). O
modelo de redução que explicita a separação de aspectos objetivos e subjetivos de um
determinado fenômeno (por exemplo, o movimento molecular e a experiência de calor,
respectivamente) só é empreendido na medida em que a distinção entre ―realidade‖
(disposição de moléculas) e ―aparência‖ (sensação de calor) seja possível. A redução,
portanto, tem como objetivo distinguir a ―realidade objetiva‖ da ―aparência subjetiva‖ e
a partir desta resolução o sentido em que a redução não se aplica ao caso da consciência
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torna-se claro: na consciência, idiossincraticamente, a aparência é igual à realidade. Nas
palavras de Searle, a consciência não é redutível porque: ―as reduções que deixam de
lado as bases epistêmicas, as aparências, não podem funcionar no caso das próprias
bases epistêmicas. Em tais casos, a aparência é a realidade‖ (SEARLE, 1997, p. 177).
Deste modo, a separação entre ―realidade‖ e ―aparência‖ não se dá no caso da
consciência porque a experiência subjetiva é sua própria base epistêmica, de modo que
afirmar a redução da consciência seria afirmar a separação da experiência subjetiva da
própria experiência subjetiva. É neste contexto que surge o naturalismo biológico,
alternativa proposta por Searle como capacitada para adstringir o fenômeno da
consciência nos limites do mundo físico. Searle a define da seguinte maneira: ―os
fenômenos mentais são causados por processos neurofisiológicos no cérebro, e são, eles
próprios, características do cérebro‖ (SEARLE, 1997, p. 7). Na abordagem do
naturalismo biológico o cérebro causa5 determinados estados mentais e estes são
características emergentes e de nível superior do cérebro na mesma medida em que a
solidez é emergente e de nível superior em relação à determinada disposição das
moléculas de H2O. Tem-se como implicação que uma molécula de água não é sólida
isoladamente, mas a solidez só aparece consoante a organização de moléculas de H2O e
é causada por estas moléculas, embora seja uma característica de nível superior à
individualidade das moléculas. Igualmente, portanto, a consciência não se restringe à
atividade neuronal, embora seja, de fato, causada por ela. A crítica de Searle pode ser
resumida na seguinte passagem: ―A consciência é uma propriedade mental, e portanto
5
É importante ressaltar que a abordagem searleana propõe a identificação da base causal da consciência
com eventos neurofisiológicos no cérebro. Searle resguarda, entretanto, afirmando que os processos
exatos pelos quais estes eventos neurofisiológicos dão origem à consciência ainda são em grande parte
desconhecidos pela neurociência. (Cf. SEARLE, 1997, p. 86-§2/3-7, pp. 114-115-§2/5-9, p. 133-§1/1-5,
p. 148-§1/7-12, p. 152-§2/13-20; ver também SEARLE, 2002, p. 10-§2/5-12, pp. 18-19- §3)
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física, do cérebro, no sentido em que a liquidez é uma propriedade de sistemas de
moléculas. Se há uma tese que gostaria de tornar clara nesta discussão, esta tese é
simplesmente a seguinte: o fato de uma característica ser mental não implica que não
seja física; o fato de uma característica ser física não implica que não seja mental‖.
(SEARLE, 1997, p. 26). Entretanto, asseverar que a consciência seja causada por
eventos físicos pode levar a suposição de que a consciência seja um epifenômeno do
cérebro. Tal suposição, segundo Searle, é equivocada. Adotando a analogia da solidez e
sua relação com a disposição de moléculas de água, é possível perceber que a solidez
não é um epifenômeno da organização molecular, mas sim que tal organização e a
característica de nível superior denominada por solidez são concomitantes no sentido
em que não existe a distinção causa e efeito, mas antes, estes coexistem. O mesmo se
aplica a consciência. Torna-se claro, dentro do naturalismo biológico, a importância da
ontologia subjetiva do mental. A consciência enquanto causada pelo cérebro é um
fenômeno físico e não epifenomenal, entretanto, seus aspectos qualitativos não podem
ser explicados em termos físicos porque sua ontologia é especialmente de primeira
pessoa. Tal fato se mostra evidente na asserção de que a consciência é uma
característica emergente de nível superior do cérebro, ou seja, este ―nível superior‖ só
pode ser expresso em termos subjetivos uma vez que a consciência é a sua própria base
epistêmica e, deste modo, a distinção ―realidade‖ e ―aparência‖ torna-se impossível.
3.
DUALISMO
DE
PROPRIEDADES:
EPIFENOMENALISMO
E
SOBREDETERMINAÇÃO CAUSAL
O dualismo de propriedades representa uma forma de monismo que busca
explicar a mente por uma atribuição disjuntiva de propriedades. A abordagem sob o viés
de um monismo do qual se identificam diferentes propriedades evita a formulação de
uma entidade metafísica como a alma. Deste modo, em consonância com o dualismo
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substancial, a proposta do dualismo de propriedades consiste na asserção de que a
mundo pode ser divido em físico e mental, entretanto, e neste ponto em assimetria com
o dualismo substancial, este mesmo mundo só é constituído por uma única ontologia: o
físico. Deduz-se desta singularidade ontológica a asserção de que as entidades físicas
são capazes de possuir propriedades mentais, como é o caso do cérebro. O naturalismo
biológico advogado por Searle parece aludir a uma distinção de propriedades tal como
propõe o dualismo de propriedades, visto que a consciência, essencialmente subjetiva e,
deste modo, ontologicamente irredutível, é causada por eventos neuronais no cérebro.
Esta resolução, no entanto, não é legítima em função de duas distinções conceituais
explicitadas por Searle em seu artigo Why I‟m Not a Property Dualist6. Primeiramente,
o naturalismo biológico configura-se como uma doutrina emergentista, ao passo que o
dualismo de propriedades, segundo Searle, representa uma forma de epifenomenalismo,
uma vez que a partir do momento em que a consciência é causada pelo cérebro, esta
constitui algo a parte do seu substrato físico. É no sentido da afirmação da consciência
como epifenomenal que surge a segunda distinção: no naturalismo biológico, a
consciência é causalmente redutível aos processos neuronais, não constituindo uma
entidade situada em um plano metafísico distinto do físico, mas antes, a consciência em
seu sentido mais estrito é um fenômeno natural do mundo físico. Em contrapartida,
Searle argumenta que o dualismo de propriedades pressupõe que a consciência seja algo
―acima‖7 (―over and above‖) dos processos neuronais, de modo que, a ação de se
6
SEARLE,
J.
Why
I‟m
Not
a
Property
Dualist,
2002.
Disponível
<http://socrates.berkeley.edu/~jsearle/PropertydualismFNL.doc>. Acesso em 29 set. 2011.
7
em:
Traduzo ―over and above‖ por ―acima‖. Esta última expressão pode ser entendida quando afirmo, ainda
neste trabalho, que o dualismo de propriedades é um epifenomenalismo no qual ―a consciência constitui
algo a parte do seu substrato físico‖ (P. 6)
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levantar o braço sofre uma sobredeterminação causal, ou seja, além dos processos
ocorrentes no cérebro que causarão a movimentação muscular, há ainda a eficácia
causal da mente do sujeito que deseja ter seu braço levantado. Conforme explicitado
anteriormente, o sentido em que se afirma ser o naturalismo biológico uma postura não
epifenomenal se dá em função de não haver distinção temporal entre causa e efeito no
processo de causação do cérebro no qual se origina a consciência. Um ponto mais
pertinente e mais importante para os propósitos deste trabalho situa-se no fato de que a
eficácia causal da consciência dentro do naturalismo biológico é igual à eficácia causal
do cérebro. Searle explicita este ponto na seguinte passagem: ―a consciência não tem
poder causal por si própria em adição ao poder causal da neurobiologia
subjacente‖(Trad. minha) (SEARLE, 2002). Conclui-se, portanto, que sendo a eficácia
causal da consciência igual à eficácia causal do cérebro, aquela não é epifenomenal na
abordagem searleana. Todavia, afirmar ser a consciência não epifenomenal e ao mesmo
tempo não tendo papel causal por si própria parece tornar paradoxal a última conclusão
explicitada. Searle argumenta que na mesma medida em que a solidez de um sistema
não é epifenomenal em relação ao movimento molecular, a consciência também não o é
(SEARLE, 2002)8. Deste modo, a solidez de uma mesa de madeira (uma característica
emergente de nível superior ao movimento molecular) impede que os itens sobrepostos
a ela caiam no chão, introduzindo analogamente como conseqüência o fato de que a
consciência, sendo igualmente uma característica de nível superior ao movimento
molecular, não seja epifenomenal, e assim tendo sua eficácia causal resguardada
enquanto característica de nível superior do cérebro.
8
Searle aponta para o momento em que esta analogia não sucede: a solidez de um determinado sistema de
moléculas não possui uma ontologia subjetiva ou de primeira pessoa, podendo ser, portanto, causalmente
e ontologicamente redutível. A consciência, por seu lado, é causalmente, mas não ontologicamente
redutível.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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DESCARTES, R. (1641). Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São
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O PROCESSO EDUCATIVO NA PERSPECTIVA DE DEWEY: O PAPEL DA
AÇÃO REFLEXIVA NA CONSTRUÇÃO DE EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS Diego Bechi1
[email protected]
Mestrando do PPG em Educação da UPF – UPF/Bolsista Capes
Palavras-chave: John Dewey. Educação. Experiência. Reflexão. Desenvolvimento
cognitivo. Construção de conhecimentos.
Introdução
Introdução
O presente trabalho tem por propósito refletir sobre as principais críticas e conceitos que
fundamentam os ideais pedagógicos e epistemológicos desenvolvidos e defendidos por
Dewey (1859 – 1952) em sua teoria da educação. No decorrer desse estudo, é realizada
uma crítica ao processo de ensino e aprendizagem baseado exclusivamente na
transmissão e memorização de informações. Em contrapartida, são postos à prova a
importância da problematização e da ação reflexiva na construção de conhecimentos e
no aprimoramento das faculdades de espírito. No tocante a esse indicador, cabe ressaltar
1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo –
UPF/Bolsista Capes.
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que a concepção pragmática deweyana de educação possui os fundamentos que poderão
auxiliar os docentes a atuarem de forma reflexiva. Logo no início da obra Experiência e
educação Dewey faz uma distinção entre a educação tradicional e a educação
progressiva. De acordo com o filósofo (1979, p. 05), ―o surto do que se chama de
educação nova e escola progressiva é ele próprio o resultado do descontentamento com
a educação tradicional‖. A crítica ao antigo modelo é direcionada aos esquemas de
imposição de padrões, conhecimentos e métodos. Na escola tradicional o ato do ensinar
e do aprender resume-se ao momento da aula expositiva. Enquanto isso, no modelo
pragmático deweyano o processo de ensino e aprendizagem não se limita a simples
exposição e memorização de conteúdos: visa ao desenvolvimento da capacidade de
raciocínio e espírito crítico dos educandos. Dewey também faz essa distinção no sexto
capítulo de Democracia e educação ao propor um modelo de educação calcado no
conceito de experiência, contrapondo-o aos moldes da educação conservadora. Esta
última, ao inibir a formação de faculdades existentes no espírito, não desenvolve as
potencialidades humanas necessárias à construção de uma nova sociedade. Por sua vez,
a educação progressiva se esforça ―por modelar as experiências dos jovens de modo
que, em vez de reproduzirem os hábitos dominantes, venham a adquirir hábitos
melhores, de modo que a futura sociedade adulta seja mais perfeita as suas próprias
sociedades atuais‖ (Dewey 1959a, p. 85).
1 A educação como processo reflexivo
Ao posicionar-se a favor do conceito de Escola Ativa, Dewey defende que o
aluno deve ter iniciativa, originalidade e precisa agir de forma cooperativa. Cabe ao
professor dirigir o ensino no sentido de estimular o pensamento reflexivo por meio de
situações que despertem e favoreçam o fluxo de ideias. O desafio é superar o modelo
tradicional, que, de acordo com Dewey (1979, p. 05), ―é em essência, esquema de
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imposição de cima para baixo e de fora para dentro‖. Para o filósofo, a escola nova ou
progressiva tem como base a igualdade entre professor e aluno, fazendo do ambiente
escolar um espaço livre, a fim de promover o senso crítico do aluno por meio de um
processo interativo, deixando de ser um movimento de cima para baixo, como ocorria
na pedagogia tradicional. Contudo, para a aula se tornar interativa e reflexiva o
professor deverá obter as habilidades e as competências que os torne apto a exercer essa
nova proposta pedagógica, isto é, para proporcionar uma prática pedagógica reflexiva o
professor deverá ser reflexivo. Não há como instaurar um debate em sala de aula
apresentando-se como autoridade incontestável, reprimindo as opiniões dos alunos por
meio de afirmações inquestionáveis, como se o conhecimento fosse algo acabado e
estático. Em tese Dewey (1959b, p. 63) afirma que: ―o problema de método na
formação de hábitos de pensamento reflexivo é o problema de estabelecer condições
que despertem e guiem a curiosidade; de preparar nas coisas experimentadas, as
conexões que, ulteriormente, promovam o fluxo de sugestões, criem problemas e
propósitos que favoreçam a consecutividade na sucessão de idéias‖. Em análise a essa
mesma problemática, no décimo segundo capítulo de Democracia e educação o filósofo
traz à tona importantes considerações acerca dos pressupostos metodológicos
compatíveis ao fomento de experiências educativas ligadas ao desenvolvimento da
capacidade de pensar e à produção de conhecimentos. Em relação a isso, Dewey (1959a,
p. 167) direciona uma crítica à pedagogia tradicional ao afirmar que ―os conhecimentos
informativos separados da ação reflexiva são conhecimentos mortos, peso esmagador
para o espírito. Como simulam os verdadeiros conhecimentos, segregam o veneno do
preconceito, e são poderosos obstáculos para o ulterior desenvolvimento da
inteligência‖. Dito de outro modo, a mera aquisição de palavras mediante o auxilio de
práticas e materiais condizentes com a metodologia passiva - por fornecer soluções já
prontas às atividades realizadas - não propicia as condições adequadas ao eficaz
desenvolvimento da reflexão, como também embaraça o raciocínio. O aprimoramento
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das faculdades de espírito depende exclusivamente de situações que suscitem a reflexão.
Em observância a essa problemática, Dewey (1959a, p. 167) defende que ―o único
caminho direto para o aperfeiçoamento duradouro dos métodos de ensinar e aprender
consiste em centralizá-los nas condições que estimulam, promovem e põe em prova a
reflexão e o pensamento‖. O processo de ensino e aprendizagem não pode limitar suas
funções às tradicionais técnicas de ler, ouvir e reproduzir aquilo que foi dito e lido. Não
há dúvida quanto à relevância da leitura e da escuta no decorrer do processo formativo,
porém, faz-se necessário propiciar algumas mudanças nos propósitos pelos quais vêm
sendo utilizadas. A substituição do ―repetir‖ e do ―reproduzir‖ pelo ―fazer‖ constitui
uma das iniciativas metodológicas mais eficientes em favor da reflexão. Diante dessas
transformações, a problematização passa a ser valorizada em detrimento da inculcação e
memorização de conteúdos. As atividades escolares elaboradas com o auxílio de
questões e problemas a serem resolvidos pelos próprios alunos incentivam o surgimento
de experiências reflexivas. Assim descreve o autor (1959a, p. 169): ―todos esses
métodos dão aos alunos alguma coisa para fazer e não alguma coisa para aprender; e o
ato de fazer é de tal natureza que exige a reflexão ou a observação intencional das
relações; daí, naturalmente, resulta aprendizagem‖. Contudo, a técnica pessoal do
professor é insuficiente se a instituição de ensino não contar com bons materiais,
aparelhos e uma estrutura que favoreça tais iniciativas. Assim, a escola precisa oferecer
as condições necessárias à implantação de experiências reflexivas. O aluno não exercita
o pensamento reflexivo quando assume o papel de puro espectador dos conteúdos
proferidos em aula. Ele deve ser instigado a buscar por si mesmo as respostas referentes
às atividades e aos problemas propostos pelo professor. A ação reflexiva reorganiza e
reconstrói a experiência humana, proporcionando o desenvolvimento das capacidades
cognitivas. Na interpretação do filósofo (1959a, p. 172), o material para o pensamento
são ―as ações, os fatos, os acontecimentos e as relações entre as coisas. Por outras
palavras, para pensar-se produtivamente devem-se ter tido, ou ter atualmente, as
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experiências que forneçam os recursos para se vencerem as dificuldades que se trata de
resolver‖.
2 A natureza da experiência e suas contribuições ao processo pedagógico
Para compreender a origem e a função do pensar reflexivo faz-se necessária a
junção de uma nova e importante premissa às considerações até então apresentadas. Em
síntese, a experiência representa, na teoria deweyana, o estágio inicial do ato de pensar.
Tendo em vista tais propósitos, torna-se relevante encontrar uma definição satisfatória
do conceito de pensar. Para Dewey (1959a, p. 165), ―pensar é o ato cuidadoso e
deliberado de estabelecer relações entre aquilo que se faz e as suas consequências‖. Pelo
pensamento as pessoas conseguem prever as consequências e determinar a significação
de algum ato realizado ou a se realizar. O esforço de pensar e o uso do raciocínio dão
origem a experiências significativas. A experiência é, de modo geral, uma ação ativopassiva: o sujeito age sobre o objeto da experiência transformando-o e,
consequentemente, sendo por ele transformado. Contudo, à medida que se manifestam o
pensamento e a reflexão na combinação entre o fazer e o sofrer as conseqüências,
aumenta proporcionalmente o valor da experiência. No âmbito pedagógico, ―aprender
da experiência‖ é fazer uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que
fazemos às coisas e aquilo que em conseqüência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer‖
(Dewey 1959a, p. 153). Ao fundamentar sua teoria educacional, ele adota a experiência
como ponto de partida do processo formativo-educacional humano, a qual será a chave
para a solução de problemas ou para a aquisição de novos conhecimentos. O filósofo
não aceita a tese de que o aluno aprende passivamente, na condição de simples
espectador. A educação precisa ser concebida como processo ativo e construtor da
experiência humana. O processo educativo deve levar em conta os dois princípios
fundamentais da experiência: o conceito de continuidade e o conceito de interação. Em
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observância ao primeiro princípio, Dewey defende que a experiência sofre constantes
mutações por meio da da interação dos sujeitos com o meio. ―O princípio de
continuidade de experiência toma algo das experiências passadas e modifica de algum
modo as experiências subsequentes‖ (1979, p. 26). Porém, a relação do sujeito com o
meio irá afetar para pior ou para melhor as experiências subsequentes. Por assim dizer,
o processo educativo exerce um papel extremamente importante na formação de
experiências significativas. Cabe ao professor criar meios que promovam o crescimento
físico, intelectual e moral dos sujeitos, isto é, ele deve ―ser capaz de julgar quais atitudes
são conducentes ao crescimento contínuo e quais lhe são prejudiciais‖ (Dewey 1979, p.
30). Ao iniciar sua prática pedagógica, o professor precisa, primeiramente, conhecer
quem são os agentes de sua ação. O processo de ensino-aprendizagem deve estar
associado ao contexto social, econômico e cultural dos sujeitos envolvidos. Toda
proposta pedagógica tem sentido quando ela é inscrita num tempo, num espaço e num
determinado grupo. Assim, Dewey defende que, para mobilizar o interesse dos alunos,
os conteúdos devem entrar em contato com suas experiências. Cunha (2007, p. 103)
reproduz essa ideia afirmando que ―tanto algo sobre Marte como sobre algum país
imaginário só se tornará conhecimento se frutificar na própria vida do indivíduo‖. Um
equívoco educacional apontado por Dewey na chamada Escola Tradicional refere-se à
ideia de que o aluno é concebido como sendo uma ―página em branco‖. Esse modelo
educacional não valoriza os saberes e as experiências adquiridas pelos alunos dentro e
fora do contexto escolar. Na visão do autor (1979, p. 39), ―o erro estava no fato de não
considerarem o outro fator na criação da experiência, ou seja, as capacidades e os
propósitos daqueles que iam ensinar‖. Em consequência disso, por não dar atenção às
necessidades e às capacidades dos indivíduos, o modelo baseado na imposição de
conhecimentos viola o princípio de interação. O processo de interação provém da
relação entre o sujeito e o meio em que está inserido. Nessa relação, os dois polos são
ativos, ou seja, um exerce influência sobre o outro. Assim como as experiências dos
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sujeitos sofrem transformações ao se relacionarem com o mundo externo, num processo
de interação, o sujeito também transforma a realidade externa ao traduzir suas
experiências em ações. Seguindo essa lógica, para haver interação no contexto
educacional é preciso que os alunos sejam sujeitos ativos na construção de seus
conhecimentos e, como consequência, na reconstrução de suas experiências. Sobre isso,
Cunha (2007, p. 105) afirma que ―só é realmente conhecimento o que foi organizado
para nos habilitar a adaptar o ambiente a nossas necessidades e nossos objetivos e
desejos à situação em que vivemos‖. Na concepção pragmática Deweyana, o
conhecimento se organiza através de situações problematizadoras que envolvem o
indivíduo e o ambiente. Isso significa que, na escola progressiva o professor cria
elementos que venham a superar a apropriação passiva de conteúdos, estimulando a
interação dos sujeitos com as pessoas e com as coisas. Na medida em que é estabelecido
um estado de cooperação entre os membros envolvidos no processo de ensinoaprendizagem, a educação torna-se um processo social. O professor ―como membro
mais amadurecido do grupo cabe-lhe a responsabilidade especial de conduzir as
interações e intercomunicações que constituem a própria vida do grupo, como
comunidade‖(Dewey 1979, p. 54 - 55). Ele deve ser capaz de criar estratégias
metodológicas que promovam o crescimento intelectual dos alunos por meio da
reconstrução progressiva de suas experiências. Sobre isso, é importante ressaltar que a
teoria da ação proposta por Dewey possui um conjunto de conhecimentos extremamente
importante para a construção de práticas reflexivas. Conforme havia sido salientado
anteriormente, através do processo pedagógico de cunho reflexivo, o professor
oportunizará a formação de sujeitos capazes de pensar e refletir criticamente sobre suas
ações, incentivando-os a serem ativos no processo de construção de conhecimentos. Isso
justifica a relevância do pensamento deweyano para a formação de um novo perfil de
professor e, consequentemente, para a implantação de um novo paradigma educacional.
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O QUE É O RACIONALISMO CRÍTICO? - Alexandre Klock Ernzen
Mestrando da Unioeste (Bolsista CAPES)
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Palavras-chave: racionalismo crítico, conhecimento científico, metafísica
O racionalismo crítico é um advento teórico filosófico que tem como expoente
contemporâneo Karl Popper e sua importância atual remonta ao início do século XX,
suas consequências são objetos de estudo e de crítica desde então e tem alterado a
configuração do debate sobre o que seja o conhecimento. Entretanto o leitor atento
poderá se perguntar qual é o problema em questão ao falar sobre este tema cujas
consequências de pensamento nos são importantes. Este trabalho pretende apontar
alguns pontos fundamentais para o entendimento da proposta popperiana da
constituição do conhecimento do ponto de vista racional, e, assim, evitar equívocos
histórico-conceituais acerca desta proposta de explicação do cosmos.
O primeiro ponto que merece atenção especial é sobre a questão do positivismo lógico:
muitos têm situado o trabalho de Popper entre os filósofos positivistas do Círculo de
Viena. Isto é um erro grave. Embora a principal obra intitulada Logik der Forschung
(1934) fora publicada dentro da série de estudos coordenada pelos positivistas, esta obra
foi uma tentativa ousada de refutação de suas teses principais, iniciando a derrocada
desta corrente de pensamento iniciada com Wittgenstein, cuja intensão logrou êxito.
Segundo a descrição de Popper, ―todos sabem atualmente, que o positivismo lógico está
morto. Mas poucos se lembram de que há uma estão a propor aqui – a pergunta ―Quem
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é o responsável?‖ [...] Receio que eu deva assumir esta responsabilidade. Todavia, não
agi propositadamente: minha intenção era apenas assinalar o que me parecia uma série
de enganos fundamentais‖ (POPPER, 1976, p. 95-96).
Um destes enganos cometidos pelos membros do Círculo, segundo Popper, foi tentar a
eliminar a metafísica da constituição científica sob a alegação de que toda especulação
desta natureza não passava de palavreado sem sentido. A ideia central seria fortalecer a
tese positivista de que seria possível através da verificabilidade de enunciados efetuar a
demarcação entre o conhecimento científico de um lado, e a pseudociência, teologia e
em consequência a metafísica, de outro lado. Tal critério de demarcação positivista foi
instituído baseado na afirmação de que somente a partir de enunciados de observação
seria possível a constituição de leis da ciência.
Outra preocupação de Popper em sua obra principal fora delinear a solução ao problema
da indução ou como ele mesmo menciona “problema de Hume”, dada sua proposta de
que a Logik der Forschung deveria apresentar outro modo de constituição da teoria do
conhecimento acrescida de um método da ciência. Do mesmo modo que o filósofo esta
ciente de que não existe um método para se fazer ciência, ele foi convicto de que é certo
que não se pode partir de teorias constituídas pela indução, pois, a lógica é nosso ponto
seguro para iniciarmos a tarefa de conhecer o mundo, e a crítica é o meio pelo qual
decidimos entre uma ou outra teoria concorrente.
Os grandes problemas teóricos sempre foram, para o autor, as grandes propulsoras do
pensamento filosófico e científico, ou como diz o filósofo ―Estudamos problemas, não
matérias: problemas que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer matéria ou
disciplina‖ (POPPER, 1963, p. 96). Ou seja, a discussão positivista em torno do
significado de palavras aliada à função da filosofia como apenas uma atividade
destituiria qualquer esforço para resolução de problemas. Popper é claro ao dizer que
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está interessado em problemas filosóficos e a atitude correta da filosofia é a de tentar
resolve-los racionalmente.
Se a humanidade tem um problema genuíno, este é apresentado na tentativa de entender
o cosmos e como ele funciona, portanto, com leis universais que pudessem demostrar as
possíveis regularidades do mundo. A filosofia tem muito a colaborar com o
conhecimento científico na medida em que possibilita que o cientista faça especulações
metafísicas, na tentativa ousada de resolução de problemas. Nosso autor está convicto
de que exista ao menos um problema ao afirmar que,
Eu, entretanto, acredito que exista pelo menos um problema filosófico no qual todos
os homens de cultura estão interessados. É o problema da Cosmologia: o problema de
compreender o mundo – inclusive nós próprios e nosso conhecimento como parte do
mundo. Segundo, entendo toda ciência é Cosmologia e, para mim, o interessante que
tem a Filosofia, assim como o que tem a Ciência, reside apenas nas contribuições que
elas trazem para a Cosmologia. Tanto a Filosofia como a Ciência perderiam, a meu
ver, todo o atrativo, se abandonassem esse alvo (POPPER, 1934, p. 535).
Logo, o problema principal que possuímos é o do conhecimento sobre o mundo, sobre
aquilo que nos rodeia. Obviamente que este problema se arrasta com várias explicações
desde os Gregos. Então qual é a novidade? Popper não está também tentando constituir
uma teoria científica aos moldes de teorias existentes? A resposta é: não. A proposta
inicia com a constituição de uma teoria do conhecimento na qual se possam pensar as
teoria científicas, cuja origem não seja o método indutivo, isto é, as leis científicas não
são elevações de casos particulares à leis universais. Entretanto, estes dados singulares
podem refutar ou até mesmo corroborar nossas teorias, inaugurando o chamado
dedutivismo, em oposição ao indutivismo.
Pois bem, se anteriormente as teorias científicas eram produtos da indução, e este
processo fora abandonado, como surgem hipóteses e teorias? Segundo nosso autor, a
pergunta a ser feita não é pela ―origem de teorias‖, ao contrário, devemos perguntar se
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nossas teorias ―resolvem problemas‖, e se temos um problema genuíno, ou seja,
explicar como funciona o mundo, a pretensão da ciência seria delinear suas possíveis
regularidades. Então deveremos nos perguntar se nossas teorias – em especial as teorias
físicas – nos possibilitam dar soluções adequadas por meio de hipóteses e conjecturas
ousadas que pretendam resolver este problema.
Entretanto, em uma leitura atenta da história possibilita citar inúmeras teorias que
tentaram a resolução de problemas. O que perturbava profundamente Popper era o fato
de que teorias, até então, eram justificadas por meio da observação – com o uso da
indução – e quando suas soluções não mais se aplicavam, simplesmente eram
abandonadas em detrimento a novas teorias. Esta situação possibilitou que nosso autor
inaugurasse uma nova perspectiva acerca da ciência, postulando que ela deve ser
constituída de hipóteses, que mesmo bem testadas, ainda assim, não garantem a
explicação última para determinados problemas em questão. O passo decisivo neste
aspecto fora a chamada ―revolução einsteiniana‖, alusão com a revolução copernicana
de Kant.
O ponto decisivo, no que concerne ao caráter hipotético dedutivo de todas as teorias,
parecia, no meu modo de ver, uma consequência razoavelmente trivial da revolução
einsteiniana, a qual mostrara que nem mesmo a teoria mais satisfatoriamente
submetida a prova, como a de Newton, deve ser encarada como algo situado acima do
nível das hipóteses, como uma aproximação da verdade (POPPER, 1976, p. 89).
Popper ainda nos dá outro bom argumento em favor do caráter hipotético de teorias
apresentando o argumento de Kant sobre a impossibilidade de conhecermos a coisa em
si:
Também interpretava a doutrina kantiana da impossibilidade de se chegar ao
conhecimento das coisas em si como algo que correspondia ao permanente caráter
hipotético de nossas teorias (POPPER, 1976, p. 90)
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Pode-se acrescentar que com o renascimento do método crítico surge novo modo de ver
a ciência, baseada agora em conjecturas que pretendem efetuar descrições ricas sobre a
realidade, isto é, o modus operandi da ciência será partir de problemas rumo a hipóteses
que possam solucioná-los. Popper chama de ―situação-problema‖ a conjuntura da qual
possibilita o nascimento de novas tentativas de solução a determinados problemas que
se põe ao cientista ou filósofo, seja um problema teórico ou prático.
Através do método crítico de apreciação de teorias, foi possível argumentar em favor da
substituição de teorias de forma racional, não mais pela sua acumulação de observações.
Ao contrário, teorias foram sendo substituídas na medida em que eram refutadas por
fatos singulares possibilitando ter a noção de progresso científico baseada na
substituição constante de teorias por outras que apresentassem descrições melhores e
mais adequadas na tentativa de solução de problemas. Porém, Popper não pode deixar
de lado outro problema decorrente do método tradicional da ciência baseada na indução,
ou seja, demarcação entre teorias científicas e especulações filosóficas.
Mesmo insustentável por meio da lógica, a indução apresentava uma linha divisória
entre ciência e pseudociência. Entretanto, a rejeição ao método indutivo não só foi
acertada, mas, também propiciou que Popper se se utiliza de sua proposta alternativa ao
sistema vigente com relação à chamada demarcação: o critério proposto foi de que
podemos ter uma linha divisória entre ciência e pseudociência baseado no critério de
falseabilidade, isto é, teorias que são falseadas por suas consequências dedutivas. Tal
critério pode ser aplicado sem qualquer contradição ao sistema popperiano.
Se possuímos ao menos um problema genuíno, ou seja, o problema da cosmologia, o
critério de demarcação proposto por nosso autor possibilita pensar teorias que
pretendam dar soluções a este problema, bem como outros que nos possam surgir.
Partimos de problemas concretos, e nossas hipóteses tentam descrever a realidade como
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ela é, mas, toda teoria se mantém como apenas uma hipótese. Popper se declara um
realista, porém, admite duas particularidades sobre sua postura realista metafísica:
seguindo a linha de pensamento kantiana acerca da realidade afirma que,
Também interpretava a doutrina kantiana da impossibilidade de se chegar ao
conhecimento das coisas em si como algo que correspondia ao permanente caráter
hipotético de nossas teorias (POPPER, 1976, p. 90).
Desta maneira, a postura de um realista metafísico pode ser expressa na passagem em
Logik der Forschung manifestando que mesmo a busca por regularidades dentro da
ciência não passa de uma crença metafísica, e, portanto, não é possível submetê-la à
crítica. Deste modo fica demonstrado em um argumento claro porque no sistema
popperiano a metafísica sempre esta presente e cuja origem da ciência é de fato,
metafísica.
Uma pergunta, por certo, permanece – pergunta que obviamente não pode ser
respondida por qualquer teoria falseável, e que é, portanto ―metafísica‖: como explicar
que tão frequentemente alcançamos êxito com as teorias por nós elaboradas – como
explicar que existam ―leis naturais‖? (POPPER, 1934, p. 114).
Entretanto, não é pelo fato de que não possamos provar que existem regularidades
dentro do mundo que não podemos tentar procurar teorias que nos possam dar
explicações a determinados eventos. Neste prisma surge o método de tentativa e erro
proposto por Popper, com o qual é possível concebermos teorias e cujos resultados
podem ser avaliados e testados com rigor e seriedade, buscando sempre purificar nossas
teorias de elementos metafísicos, quando possível, e também eliminando possíveis erros
de nossas conjecturas.
Portanto, o racionalismo crítico proposto pela teoria popperiana permite pensarmos a
ciência de maneira conjectural, propondo que teorias são constituídas com o intuito de
descrever a realidade através da resolução de problemas. Através de tentativas ousadas
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com conjeturas acerca de problemas genuínos poderemos avançar rumo ao
conhecimento da realidade, ou seja, do mundo em que vivemos. Mesmo que teorias e
conjecturas não ultrapassem o limite de especulação, a vontade de conhecer o mundo é
que faz o homem conjecturar e tentar resolver problemas que envolvem grandes
questões, como esta apresentada acima.
A ideia de pensar o racionalismo crítico aliado a descrições da realidade, ainda que esta
última em termos de realismo metafísico possibilitou que Popper aliasse à ciência a
ideia de busca pela verdade, no sentido de que nossas teorias são verdadeiras, se, e
somente se, corresponderem aos fatos. Ou seja, em momento algum o filósofo afirma
que a metafísica carece de sentido, e ao mesmo tempo ela também influencia a
constituição de novas teorias, embora, baseado em seu critério de demarcação, a
metafísica não possa fazer parte de uma teoria científica.
Podemos asseverar que quase todas, senão todas, as teorias físicas, químicas ou
biológicas implicam realismo, no sentido de que, se forem verdadeiras, também o
realismo deve ser verdadeiro. Esta é uma das razões pelas quais certas pessoas falam
de ―realismo científico‖. E é uma razão muito boa. Em vista de sua (aparente) falta de
testabilidade, acontece que eu mesmo prefiro chamar ao realismo ―metafísico‖ em vez
de ―científico‖ (POPPER, 1972, p. 48).
O realismo metafísico possibilitou a Popper ampliar o alcance da ciência ao afirmar que
também a filosofia entra no rol das pesquisas científicas com especulações, ainda que
sua natureza seja metafísica. O que importa para o cientista – assim como para o
filósofo – é um problema genuíno, ultrapassando as barreiras do positivismo ao incluir a
filosofia como o local que possibilita as especulações científicas. Popper está convicto
de que somente o realismo científico não é suficiente para que haja progresso.
Necessitamos também de especulações, como vemos neste trecho:
É um fato que as ideias puramente metafísicas – e, portanto, as ideias filosóficas –
têm-se revelado da maior importância para a Cosmologia. De Tales a Einstein, do
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atomismo antigo às especulações de Descartes acerca da matéria, das considerações de
Gilbert, Newton, Leibniz e Boscovic, a propósito das forças, às de Faraday e Einstein,
a respeito de Campos de Forças – a Metafísica sempre indicou rumos (POPPER, 1934,
p. 540).
Portanto, o racionalismo crítico pode ser considerado uma inovação no campo da
filosofia das ciências, inaugurando uma nova tradição de pensamento na qual as teorias
são consideradas tentativas de resolução de problemas genuínos por meio de
especulações e testes empíricos. Através do método de tentativa e erro, foi possível
estabelecer e entender que a ciência – assim como a filosofia – atua de forma
conjectural propiciando conhecimento sempre provisório, com a substituição constante
de teorias.
Nossas teorias serão consideradas verdadeiras, se, e somente se, corresponderem aos
fatos, possibilitem apontar para a realidade à sua luz, visualizando dados conforme
previstos em nossas especulações filosóficas. Todo o conhecimento científico é
conhecimento provisório, e seu progresso ocorrerá por meio de novas e mais ousadas
hipóteses e teóricas, sempre visando alcançar melhores descrições do cosmos. Esta é a
pretensão do racionalismo crítico.
REFERÊNCIAS
POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira
da Motta. São Paulo: Cultrix, 1° ed., 1976.
POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. Leônidas Hegenberg. São
Paulo: Cultrix, 2° ed., 1934.
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POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. Trad. de Sérgio Bath. Brasília: Editora da
UNB, 3º ed., 1963.
POPPER, Karl R. Conhecimento Objetivo. Trad. de Milton Amado. Belo Horizonte,
Editora Itatiaia, 1972.
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O QUE PODEMOS CONHECER? - Remi Schorn
Professor da Graduação e Mestrado em Filosofia da Unioeste
[email protected]
Palavras-chave: Episteme, Doxa, Falibilismo, Não Contradição.
Assim como Quine responde à pergunta ontológica, ―o que há?‖ com um único termo:
tudo; podemos responder a pergunta epistemológica do título com uma única palavra:
nada. Essa resposta, entretanto, não necessariamente será aceita como verdadeira por
nossos interlocutores, então, falemos um pouco mais sobre ela. Se considerarmos a
distinção clássica platônica entre episteme e doxa, seremos obrigados a concordar com
Platão que relativamente ao mundo contingente somente podemos ser verossímeis, não
verdadeiros. Esta é a base da resposta, para podermos afirmar que conhecemos algo
teríamos que poder dizer que alcançamos a possibilidade de demonstração formal de tal
conhecimento. A despeito do debate quineano sobre o tema, podemos dizer que quando
o conteúdo do conhecimento é empírico e exige proposições sintéticas, a possibilidade
de demonstração inexiste, quando é formal, em sentenças analítica, não há conteúdo
empírico. Como resolver o problema do conhecimento?
Se por um lado podemos afirmar que o que há é não contraditório, que a realidade não
apresenta contradições e sim nossas teorias sobre ela é que são confusas, por outro,
sabemos que somente correm o risco de serem verdadeiras aquelas teses não
contraditórias – elas podem estar em simetria com o que descrevem. Aristóteles, no
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Livro Quarto da Metafísica, afirma ser ―impossível que a mesma coisa, ao mesmo
tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto‖. O
princípio de não-contradição impede que uma proposição seja verdadeira, se e quando
ela se contradiz, quando ela afirmar simultaneamente a verdade de uma proposição
qualquer e sua falsidade. A refutabilidade na epistemologia de Karl Popper, fundamento
do critério de demarcação entre proposições científicas e não-científicas, implica
respeito ao princípio de não-contradição. Alfred Tarski, arquiteto da concepção de
verdade defendida por Popper retira da Metafísica de Aristóteles uma passagem do que
chama de a primeira explicação: ―dizer do que é, que não é, ou do que não é que é, é
falso, já dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro.‖
Se, contudo, o princípio de não-contradição deve ser obedecido por todo sujeito que
quer conhecer algo sobre o mundo, então, ele constitui uma proposição refutável, aos
moldes do receituário popperiano. Se sim, tal princípio é legitimamente incluído no
universo científico, se não, a pretensão de universalidade da refutabilidade popperiana,
parece ameaçada. O princípio de não-contradição pode ser expresso em uma
proposição que é altamente requerida como norteadora do debate científico e, ao mesmo
tempo, não ser atingida ou não se enquadrar nos limites da cientificidade desenhados
por Popper?
Popper distingue quatro funções principais da linguagem: a) função expressiva ou
sintomática; b) função estimulante ou sinalizadora; c) função descritiva; e d) função
argumentativa. Essas quatro funções pressupõem uma hierarquia no sentido de que cada
uma delas pressupõe as que lhe são inferiores, as quais podem existir sem as superiores.
O interesse fundamental da ciência e da filosofia reside, segundo Popper, nas funções
descritiva e argumentativa da linguagem. Com a função descritiva da linguagem,
emerge a idéia reguladora de verdade. A argumentação é desenvolvida sobre as
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descrições, criticam descrições do ponto de vista da idéia reguladora de verdade. Com o
desenvolvimento da linguagem descritiva, surge um terceiro mundo lingüístico, e só
assim é que podem desenvolver-se os problemas e os padrões da crítica racional. É a
esse desenvolvimento das funções superiores da linguagem que devemos a nossa
humanidade, a nossa razão, a nossa inventividade artística, pois os poderes de raciocinar
são poderes de argumentação crítica. A crítica é o principal instrumento do crescimento
do conhecimento humano. O mundo autônomo das funções superiores da linguagem
torna-se o mundo da ciência. Uma teoria é considerada científica à medida que for
possível refutá-la; sua racionalidade é definida, necessariamente, pela crítica. Em uma
linguagem enriquecida é que a argumentação crítica e o conhecimento objetivo se
tornam possíveis, quando temos uma meta-linguagem que contenha a linguagem-objeto,
no âmbito da qual se pode decidir sobre a verdade por uma avaliação correspondêncial.
Tomemos o princípio de não-contradição como elemento de teste do critério de
refutabilidade apresentado por Popper. Será esse princípio refutável? Lembremos que
não se trata de afirmar a necessidade da refutação, mas sua possibilidade. Esse é o
critério que parece não cumprir o princípio de não-contradição, e, por isso parece ser
irrefutável. Ou, tratar-se-ia de desconsiderar o princípio de não-contradição, como
seguidamente se acusa a tradição dialética de ter feito? Ou, antes, trata-se de aceitá-lo
apesar de ser irrefutável e, assim, desconsiderar, mesmo que pontualmente, o critério de
Popper?
Se o mundo é contingente, os eventos nele são igualmente contingentes e ocorrem
porque o mundo existe. Esse é seu aspecto necessário que, contudo, não destrói o
caráter contingente. O caráter contingente desse mundo é baseado na possibilidade de
outros mundos. Tanto Leibniz quanto Wolff concebem a verdade necessária, derivada
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de deduções finitas, enquanto as verdades contingentes são derivadas de deduções
infinitas; assim, para o ser humano, o mundo é mais contingente que necessário.
A Lógica hegeliana diz que o princípio de não-contradição é limitado, já que o formal é
uma dimensão do real e não há contradição ou não-contradição. Leibniz e Wolff atuam
em consonância com o princípio de não-contradição, já Hegel entende a contradição
como totalização do que é parte real e tenta explicar o todo pela parte. A totalidade é
efetiva, é superação da contradição.
O nosso problema é saber se o princípio de não-contradição é refutável. Popper abona o
princípio de não-contradição e o utiliza quando de sua crítica a Hegel e à tradição
dialética precisamente ao acusar a posição dialética de pretender refazer o entendimento
do que seja lógica. As contradições, abonadas por Hegel, têm, para Popper, fertilidade
proporcional à nossa disposição de não aceitá-las e de criticá-las. Aceitar as
contradições implicaria decretar o fim da crítica, da ciência e do progresso intelectual.
Popper valida o princípio de não-contradição apesar de tal princípio ser irrefutável? Por
esse ângulo, podemos levantar a seguinte questão: ou Popper não sabia o que fazia ao
propor que os enunciados científicos devem sempre ser refutáveis, ou não sabia o que
fazia ao aceitar como válido o princípio de não-contradição, ou, ainda, há uma terceira
forma de analisar o problema e compreender o entendimento para essa questão que nos
parece paradoxal.
A acusação de Popper é de que a dialética é inútil como raciocínio por aceitar a
contradição e implicar, assim, na admissão valida de qualquer outra afirmativa. Ocorre
que as regras de inferência estabelecem como válidos os argumentos que extraem, de
premissas verdadeiras, somente conclusão verdadeira. Suas duas regras de inferência
são as seguintes: 1) De uma premissa p, pode-se deduzir validamente qualquer
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conclusão do tipo p v q. Isso porque uma proposição do tipo ―p v q‖ será verdadeira
mesmo que somente um de seus componentes for verdadeiro, e a verdade da proposição
p encontra-se igualmente na conclusão ―p v q‖. 2) De duas premissas não-p e p v q,
chegamos à conclusão válida q. Isso porque q será sempre verdadeiro se as premissas
forem verdadeiras. Assim, utilizando-se das proposições ―(a) O sol está brilhando neste
momento‖ e ―(b) O sol não está brilhando neste momento‖, Popper afirma a
possibilidade de inferência válida de qualquer proposição – ―por exemplo: César foi um
traidor‖. Da premissa (a) podemos inferir (de acordo com a regra 1) a conclusão: (c) ―O
sol está brilhando neste momento v César foi um traidor‖. Tomando (b) e (c) como
premissas, podemos deduzir (de acordo com a regra 2) (d) ―Cezar foi um traidor‖. Da
mesma forma como esta conclusão é válida, poder-se-ia retirar qualquer outra conclusão
do tipo ―2+2=5‖ e ―2+2 4‖. ―Vemos, portanto, que se uma teoria contém contradição,
ela implica, tudo, - por conseguinte, nada. Uma teoria que acrescenta a toda informação
que afirma sua respectiva negação não nos informará nada. Assim, uma teoria que
implica uma contradição é inteiramente inútil como teoria‖. Esse resultado inviabiliza
qualquer critério de cientificidade e, se é impossível estabelecer critério de distinção
entre o que é e o que não é ciência, não há ciência.
Contemporaneamente, os dialéticos têm uma resposta a Popper que inclui uma mea
culpa, mas que parece desfazer o impasse entre as duas grandes tradições de
pensamento, analíticos e dialéticos. Cirne-Lima afirma que os dialéticos, incluindo
Platão e Hegel, usaram equivocadamente o termo ―contraditório‖ quando deveriam usar
―contrários‖ ou ―opostos‖. Isso porque, a oposição entre uma proposição universal
afirmativa, em lógica denominada de A e uma proposição particular negativa,
denominada de O, como também a oposição entre uma proposição particular afirmativa
I e uma universal negativa, E é chamada de ―oposição de contraditórios‖. Uma vez que
a regra sobre contraditórios diz: se um dos contraditórios é verdadeiro, então o outro é
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falso e vice-versa, se um é falso, o outro é verdadeiro, a oposição entre contrários é
aquela que existe entre proposições do tipo A e do tipo E, isto é, entre proposições
universais positivas e universais negativas. A regra é: se um contrário é verdadeiro, o
outro é sempre falso. Mas isso não funciona ao inverso: se soubermos que um dos
contrários é falso, não dá para concluir nada sobre o contrário oposto. Este pode ser
falso como pode ser verdadeiro; ambas as hipóteses são possíveis. Alem disso, o
desencontro entre dialéticos e analíticos foi agravado pelo fato de que os dialéticos não
usaram o sujeito expresso, e assim também não usaram o quantificador expresso. Deste
modo, torna-se difícil saber se falavam de ―opostos‖ ou de ―contraditórios‖.
Tradicionalmente, o termo utilizado foi ―contraditório‖, contudo, segundo Cirne-Lima,
―é claro que os Dialéticos não querem dizer contradição, mas sim contrariedade. É claro
que o jogo dos opostos é o jogo dos contrários. Os Dialéticos não são idiotas. Platão,
Cusanus e Hegel não são bobos para dizer e ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto,
desdizer-se. Eles não negam o princípio de não-contradição; ninguém pode negá-lo
sem abandonar a racionalidade da argumentação‖. Para Cirne-Lima, o princípio de nãocontradição determina os processos de fala, pensamento e ser. As contradições existem
efetivamente na fala e no pensamento, quando devem ser superadas por duplicação
lógica. Um tal princípio é, assim, um dever-ser. Isso significa que os dialéticos
entendem que o jogo dialético tese e antítese são opostas, contrárias, e podem, portanto,
ser ambas proposições falsas e, conseqüentemente, levar a síntese e, que as contradições
do pensamento e da fala devem ser superadas, a não-contradição é dever-ser.
Com o acerto de contas promovido entre analíticos e dialéticos, de forma que ninguém
mais questiona o princípio de não-contradição, nosso problema aumenta. Popper pode
responder por que abona o irrefutável ao mesmo tempo em que afirma a necessidade da
refutabilidade de todas as proposições que se pretendem científicas? A resposta a essa
questão pode ser formulada como segue: Popper exige cumprimento ao critério de
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refutabilidade empírica para as proposições que afirmam algo sobre o mundo, as
sentenças declarativas. No uso da função descritiva da linguagem, deve-se utilizar
proposições que possam ser julgadas quanto à sua correção ou incorreção descritiva.
Isso quer dizer que não haverá contradição no sentido lógico. A adequada descrição da
realidade será mais facilmente corroborada pelos cientistas pares. As proposições
descritivas são sempre particulares e se referem diretamente a um estado de coisas
determinado e particular. No uso da função argumentativa da linguagem deve-se usar
proposições que são não-contraditórias e sustentá-las em proposições descritivas
verdadeiras para produzir a melhor ciência possível.
Assim, a exigência de refutabilidade em base empírica incide sobre aquele conjunto de
proposições particulares que descrevem, ou pretendem descrever, o mundo dos objetos
empíricos e delas é exigida a possibilidade de serem concordantes ou discordantes com
as teorias científicas. Desta forma, ―não precisamos dizer que uma teoria é ‗falsa‘, mas
ao invés, dizer que ela é contrastada por certo conjunto de enunciados básico já aceito.
Não estamos obrigados a dizer que os enunciados básicos são ‗verdadeiros‘ ou ‗falsos‘,
pois a aceitação que lhes damos pode ser resultado de uma decisão convencional e os
enunciados aceitos podem ser vistos como resultado dessa decisão‖. A corroboração não
é ―valor-verdade‖ por ser temporal. O registro de uma corroboração requer definir o
sistema de enunciados básicos a que a refutação, ou corroboração, se associa.
Em relação ao nosso problema inicial, qual seja, analisar a possibilidade da
refutabilidade do princípio de não-contradição, fica claro que não se trata de uma
refutabilidade que poderia ocorrer em base empírica. Por ser um princípio, a referência
à empiria poderia ser unicamente indireta e não constituiria razão suficiente para a
refutação. Uma argumentação será contraditória ou não-contraditória e sua refutação se
dará em bases lógicas, formais. Em uma argumentação é que ocorre afirmar,
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simultaneamente, a verdade de ‗p‘ e ‗não-p‘. Para Popper, são conceitos não empíricos
que tornam possível a resolução de uma situação argumentativa. Os conceitos lógicos
descrevem ou apreciam os enunciados, ―independentemente de qualquer alteração do
mundo empírico‖, de tal forma que, ―se um enunciado é tautológico, então é tautológico
de uma vez para sempre‖. Assim ―o uso dos conceitos ‗verdadeiro‘ e falso‘ é análogo ao
uso de conceitos tais como ‗tautologia‘, ‗contradição‘, ‗conjunção‘, ‗implicação‘ e
outros dessa espécie. Trata-se de conceitos não empíricos, de conceitos lógicos‖.
Agora parece possível responder por que Popper abona o irrefutável ao mesmo tempo
em que afirma a necessidade da refutabilidade de todas as proposições que se pretendem
científicas. O princípio de não-contradição impõe veto à afirmação simultânea da
verdade de ‗x‘ e de ‗não-x‘. Esse princípio é não-refutável, mas é, ao mesmo tempo,
não-científico, não-empírico, nem argumentativo, é um princípio da razão para quem
quer conhecer o mundo. O princípio de não-contradição é anterior ao conhecimento e é
a condição para todo o conhecimento racional. Já Aristóteles assim o definiu: ―E se não
é possível que os contrários subsistam juntos no mesmo sujeito, e se uma opinião que
está em contradição com outra é o contrário dela, é evidentemente impossível que, ao
mesmo tempo, a mesma pessoa admita verdadeiramente que a mesma coisa exista e não
exista. Quem se enganasse sobre esse ponto teria ao mesmo tempo opiniões
contraditórias. Portanto, todos os que demonstram alguma coisa remetem-se a essa
noção última porque, por sua natureza, constitui o princípio de todos os outros axiomas‖
(Aristóteles, 2002, p. 145).
Poder-se-ia ainda argumentar que a refutabilidade lógica é possível, mesmo sendo o
princípio de não-contradição anterior a todos os axiomas, já que logicamente a verdade
é não-temporal. Mas Aristóteles fala de princípio, condição para todos os outros
axiomas, e não de antecedência temporal. O princípio de não-contradição não pode ser
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refutado por ser condição de toda ação teórica racional e ser o que se deve ter em conta
para conhecer racionalmente, cientificamente. Ele é condição para o conhecimento
racional, é anterior aos axiomas, por isso, a ele não se aplica a exigência de
refutabilidade. Assim, o século XXI iniciou com esse problema resolvido. Em filosofia,
hoje, analíticos e dialéticos concordam que a contradição tem importância na exata
condição de suas descoberta e superação. Que não podem sobreviver juntas afirmações
contraditórias sem que uma seja falsa e outra verdadeira. Que é legítimos o vínculo
tradicional com a proposição aristotélica e que respeitar o princípio de não-contradição
é condição para evitar a falsidade e a refutação. Assim, cremos conhecer na medida da
incapacidade de identificar a inconsistência da nossa crença. O conhecimento é a
covardia teórica, é a face negativa, aceitação dogmática, a racionalidade é amiga da
dúvida e da crítica, não da crença.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES, Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e
comentários de Giovanni Reale. Tradução: Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loiola,
V. 1, 2 e 3, 2002.
CIRNE-LIMA, Carlos R.V. Sobre a contradição. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.
______, Dialética para principiantes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
KUSCH, Martin e MANNINEN, Juha. Modern modalities: studies of the History of
Modal Theories fron Medieval Nominalism to Logical Positivism, Editad by S.
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Knuuttila,
University
of
Helsinki,
Kluwer
Academic
Publishers,
Dordrecht/Boston/London, s/d.
MAGEE, Bryan. Confissões de um filósofo. Tradução: Waldéa Barcellos. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução Leônidas
Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1974.
______, Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução: Milton
Amado. Belo Horizonte/,São Paulo, Itatiaia/USP, 1975.
______, Conjecturas e refutações. Tradução: Sérgio Bath, 3a Edição, Brasília: UnB,
1994.
TARSKI, Alfred. ―Truth and proof‖. Scientific Américan, Junho 1969, p. 63-70, 75-77.
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O RETRATO DE BASIL HALLWARD - Gleisson Roberto Schmidt
Doutorando em Filosofia – Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Palavras-chave: Wilde, Oscar (1854-1900); Merleau-Ponty, Maurice (1908-1961);
expressão; instituição; pintura.
O Retrato de Dorian Gray (1891) é uma obra que dispensa comentários. Sua
importância na literatura universal é inconteste. Símbolo da juventude intelectual
"decadente" da época de sua redação, o texto do irlandês Oscar Wilde (1854-1900) foi
considerado pela BBC uma das 200 obras mais populares da literatura ocidental,
ocupando a 118ª posição do ranking. Esta novela das influências1 causadas e sofridas
pelo belo jovem Dorian Gray em sua passagem súbita da inocência juvenil à tentativa de
viver uma vida dandesca isenta de implicações morais centra-se no problema da
dicotomia entre arte e verdade, aparência e realidade. A nosso ver, é para problematizar
essa cisão – apresentada por Wilde como um ideal estético-literário – que emerge a
personagem do pintor Basil Hallward. Deixaremos de lado certa interpretação
psicológica que vê no protagonista do romance um caso típico de autoscopia ou de
1
O termo influência – geralmente no sentido de uma influência corruptora – aparece nela pelo menos 30
vezes.
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desordem de múltiplas personalidades2. Ela se funda sobre pressupostos epistêmicos
que alimentam a distinção radical entre e os domínios somático e mental. Ora, se por
um lado Wilde não estava interessado em discutir a validade de tais pressupostos, por
outro ele parece tê-los problematizado (como é próprio da arte na visão de MerleauPonty) ao erigir o retrato por verdadeiro herói da trama: é o quadro, a despeito da
autoindulgência perene de Dorian com relação a seus crimes e da sedução contínua que
sua imagem apolínea exerce sobre seus achegados, que revela ao mesmo tempo o duplo
invisível da idolatria secreta de Basil por ele (WILDE, 1994, p. 18) e dos pecados
íntimos do protagonista. Em sua aguda crítica à cultura vitoriana do final do século 19,
O Retrato de Dorian Gray retoma um elemento típico do puritanismo moral da
sociedade britânica da época: os pecados de alguém, ainda que ocultos, são inscritos na
tela da consciência - e esta, no caso de Dorian, torna-se visível na pintura. Costuma-se
ler, nesse enredo, a postulação da cisão entre aparência e realidade: ainda que Dorian
mantivesse diante de todos uma imagem sedutora característica de um típico dândi
dedicado a desfrutar o melhor dos prazeres da vida sem afetação moral, seu retrato,
demasiado honesto, registra sobre a tela suas transgressões. Em outras palavras, a
superficialidade de uma vida estética aparentemente inofensiva não escapa ao
desvelamento da realidade nas tintas do retrato. O motivo? Há muito de Basil no retrato.
2
A primeira alternativa é endossada por um dos statements de Wilde que compõem o Prefácio da obra:
―É o expectador, e não a vida, o que a arte realmente espelha‖ (WILDE, 1994, p. 6). Segundo essa leitura,
seria a percepção de Dorian acerca da pintura o que estaria mudando, e não a própria obra. A
interpretação segundo a qual Dorian sofreria de um transtorno de personalidades múltiplas deve-se à
consideração de Dr. Jekyl e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson (1887) como uma das fontes de Wilde
na redação do romance.
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É o que o pintor confessa - como que confessando uma transgressão3 - a seu amigo,
Lord Henry Wotton. Diante da pressão do nobre para que o artista exibisse a imagem do
belo jovem na qual trabalhava com afinco, Basil desabafa: ―Eu realmente não posso
exibi-la. Eu pus muito de mim mesmo nela‖ (WILDE, 1994, p. 9). Basil sentira-se
atraído por Dorian como nunca antes. Num desses encontros entediantes na casa da
aristocrata Lady Brandon, percebera que Dorian o observava. Uma sensação de terror
ocorreu-lhe. ―Soube que tinha diante de mim alguém cuja simples personalidade era tão
fascinante que, se eu o permitisse, absorveria minha natureza por inteiro, toda minha
alma, minha própria arte‖ (WILDE, 1994, p. 13). A bela imagem do rapaz fê-lo
experimentar uma dimensão de sua própria arte que lhe era até então desconhecida: ―sua
personalidade sugeriu-me uma maneira inteiramente nova em arte, um modo de estilo
completamente novo. Eu vejo as coisas diferente. Penso a respeito delas diferentemente.
Eu posso agora recriar a vida de uma maneira que me era oculta antes. 'Um sonho da
forma em dias de pensamento' (...)‖ (WILDE, 1994, p. 17). Essa fora, precisamente, a
transgressão de Basil: sua pintura tornara-se honesta demais, fiel demais. Revelara a
maneira como ele próprio via Dorian, trazendo à visibilidade o Ser fragmentário e
fragmentado de Dorian. Esse Cézanne romântico transgrediu as regras de estilo de uma
época de superficialidades, dividida entre um realismo4 (considerado por ele) ―vulgar‖ e
3
―Um artista deveria criar coisas belas, mas sem por nada de sua própria vida nelas‖, admite o pintor
(WILDE, 1994, p. 18).
4
Escola artística que surge no século 19 em reação ao Romantismo e que se desenvolveu baseada na
observação da realidade, na razão e na ciência. Seu advento coincide com um crescente respeito pelo fato
empiricamente averiguado, pelas ciências exatas e experimentais e pelo progresso técnico. Das
influências intelectuais que mais ajudaram no sucesso do Realismo denota-se a reação contra as
excentricidades românticas e contra as suas idealizações da paixão amorosa. Caracteriza-se
principalmente pela reprodução da realidade observada, objetividade no compromisso com a verdade,
contemporaneidade e pela preocupação em mostrar personagens nos aspectos reais, até mesmo de
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uma idealidade vazia, para retratar na tela a expressão de sua percepção do futuro sitter,
a qual integrava alma e corpo num todo harmonioso. ―Todo retrato pintado com
sentimento é um retrato do artista, não do modelo. O modelo é meramente o acidente, o
motivo. Não é ele que é revelado pelo pintor; é antes o pintor que, sobre a tela colorida,
revela a si mesmo. A razão pela qual eu não exibirei o retrato‖, afirma Basil, ―é que eu
temo ter mostrado nela o segredo de minha própria alma‖ (WILDE, 1994, pp. 11-12). E
complementa: ―Dorian Gray é para mim apenas um motivo em arte. Você
provavelmente não verá nada nele. Eu vejo tudo‖ (WILDE, 1994, p. 18). A new
manner, o new mode of style de Basil na pintura traduz essa estrutura ontológica que, na
Phénoménologie de la perception, Merleau-Ponty denomina expressão, esse ―interior
que se revela no exterior, uma significação que desce ao mundo e se põe a existir ali‖
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 369); e ulteriormente, isso que Chaui (1994, p. 468)
afirma acerca do conceito de criação como atividade própria do ―espírito selvagem‖:
trata-se de uma ―experiência ativa de determinação do indeterminado‖ na qual o artista
―sai de si para ex-por sua interioridade prática como obra”. O próprio Wilde – que
―fala‖ pela boca de Lord Henry Wotton – não sustenta essa perspectiva acerca da arte.
Para o irlandês, a arte deve ser apenas bela, e o artista, um ―criador de coisas belas‖
(WILDE, 1994, p. 5), não um fiel reprodutor da realidade. A realidade, diz, é feia e
bestial (WILDE, 1994, p. 10). É por essa razão que a personagem de Basil Hallward
ocupa um lugar central e paradoxal na obra, pois problematiza a cisão entre realidade e
aparência, existência e essência, interior e exterior: sua pintura externa o interior, retrata
a realidade do caráter de Dorian, o que constitui uma violação estética. Gray, tomado
pela ameaça narcísica de um dia perder sua beleza, dispõe-se a dar sua alma pela
miséria, isentos de idealizações. A passagem do Romantismo para o Realismo corresponde uma mudança
do belo e ideal para o real e objetivo.
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juventude eterna e tenta fazer-se arte divorciando-se de sua consciência ética. Contudo,
já que é impossível ao indivíduo viver uma vida estética livre de consequências morais,
o quadro torna-se fiel depositário de sua interioridade – motivo pelo qual precisa ficar
oculto aos olhos de todos. É por isso também que a vida dandesca extremada de Gray
leva ele próprio e aos demais à destruição: o desprezo de Dorian por sua amante, Sybil,
que a leva a cometer suicídio, coincide com a emergência da realidade do amor e sua
perda da capacidade de interpretar; da mesma maneira, Wilde faz Dorian matar Basil ao
contemplar sua verdadeira interioridade na imagem degradada sobre a tela. A arte, para
Wilde, não deve retratar a realidade. A realidade é feia, bruta, bestial; a arte, por sua
vez, deve ser apenas bela. Dorian falha em integrar o ideal grego de beleza como
harmonia de corpo e alma. Se a new manner de Basil faz a pintura tornar-se
representativa do realismo moral, é ofensivo e vulgar contemplá-la. E se a aparência de
Dorian é representativa da idealidade, é vazia de verdade e de caráter emocional. Dorian
falha ainda em construir sua identidade (projeto, aliás, sempre fadado à falência se
entendido como instituição de uma positividade idêntica a si mesma), e seu ser nunca
torna-se integrado; antes, passa abruptamente da inocência à decadência. Os
comentários de Basil acerca do vulgar e do ideal, malgrado a intenção do artista,
acabam recaindo sobre o próprio rapaz: a conduta de sua vida secreta é vulgar
(malgrado a opinião até de Lord Henry, para quem um rapaz de aparência tão nobre não
poderia praticar crimes tão hediondos), e sua aparência idealizada é vazia, vã, oca. Sua
tentativa final de emendar-se ao saber da morte acidental do irmão de Sybil, James (que
o perseguira nos últimos dezoito anos), apunhalando o retrato que o observa com um
olhar cínico, resulta na sua própria morte e o retorno final da pintura ao seu estado
original. Quando os criados chegam ao local encontram um homem velho e asqueroso
caído ao chão, e o retrato intacto conforme fora pintado por Basil. Independente do que
fizesse com sua conduta ou com a pintura, Dorian não poderia livrar-se de sua
consciência. O retorno da pintura ao estado original representa seu fracasso em viver a
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integração desejada pelo pintor. Havia muito de Basil no retrato. Sua tentativa fora de
não apenas retratar um belo e idealizado modelo, mas de retratá-lo como o via. Swann
apaixonado5, subtraído às banalidades sociais pelo olhar de Dorian, esforçou-se por
imprimir na tela um visível que traduzisse a experiência mais primordial que tivera
deste momento instituinte de seu new style, uma imagem que retratasse o invisível de
sua sedução – seu olhar fulminante, prenúncio de uma mudança radical em sua vida
(WILDE, 1994, p. 13). Se a sonata que Swann frui em Em busca do tempo perdido
evoca ao mesmo tempo a banalidade do amor e a possibilidade de transformá-lo em
algo sublime (PROUST, 2003, pp. 206-209), em Wilde é a imagem de Dorian que
inspira Basil a escapar à superficialidade estética e ao puritanismo moral: o retrato é a
expressão da harmonia e integração entre interior e exterior que o pintor experimentara
a partir de Dorian e que cria poder reproduzir sobre a tela. Experiência constituinte,
momento fundador de um interdito que, tragicamente, não escapa ao juízo da pena do
autor: a arte deve ser apenas bela, sustenta Wilde. Basil não pode retratar a realidade, e
sua tentativa transgressora não escapa à punição. O mesmo Dorian que o inspirara a
libertar-se das amarras do formalismo artístico, que o levara a um modo de expressão
original e criativo é o responsável por sua morte.
Referências:
CHAUI, M. S. Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia. In: NOVAES, A. (Org.).
Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 467-490.
5
É digna de nota a semelhança entre as reações de Swann à sonata de Vinteuil e de Basil ao olhar de
Dorian. Em No Caminho de Swann, Proust descreve a reação do personagem como o ―amor por uma frase
musical‖ que por um instante parecer ―trazer a Swann alguma possibilidade de renovação‖ (PROUST,
2003, p. 208).
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MERLEAU-PONTY. A dúvida de Cézanne. In: Edmund Husserl, Merleau-Ponty –
Textos Escolhidos. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril, 1975, pp. 303-316.
_____. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.
_____. Le visible et l‟invisible. Paris: Gallimard, 1964.
PROUST, M. Em Busca do Tempo Perdido. Vol. 1: No Caminho de Swann. São Paulo:
Globo, 2003.
WILDE, O. The Picture of Dorian Gray. Penguin Popular Classics. Londres: Penguin
Books, 1994.
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O SENTIDO ONTOLÓGICO DA NOÇÃO DE INCONSCIENTE SEGUNDO A
INTERPRETAÇÃO DE FREUD POR MICHEL HENRY - José Luiz Furtado
Professor de Filosofia UFOP
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Que sentido haveria em ensejar o desenvolvimento de uma filosofia para a
psicanálise? Não se trata de cotejar, à maneira de Assoun, a relação entre Freud e os
filósofos ou de contabilizar a influência da obra freudiana sobre a filosofia. Trata-se de
pensar a possibilidade de um sentido filosófico imanente à própria psicanálise, como tal.
Em termos mais precisos, trata-se de pensar o sentido metafísico, ou ontológico, da sua
mais importante noção: a de inconsciente e sua constituição pulsional interna. Tal é o
propósito de Michel Henry em ―Genealogia da psicanálise‖. Pois bem, qual seria então
esse processo genealógico no qual a noção de inconsciente estaria inserida? Para Michel
Henry o que está em questão aí é o desdobramento da noção originariamente grega de
fenomenalidade, ou seja, o desdobramento das tentativas, quase sempre malogradas ao
longo da história da filosofia, de pensar a essência da manifestação em geral. Ser, diz
Michel Henry, significa ―aparecer‖. Mas de acordo com a noção grega de
fenomenalidade, mantida durante toda a história do pensamento Ocidental, o aparecer
do ente, isto é, disso que aparece no e como fenômeno, se apóia sobre a eclosão do
mundo como horizonte universal da presença e do ser. É isso, segundo Heidegger, o que
os gregos denominaram physis. Ora, no aparecer, não é apenas o ente que se manifesta.
O próprio aparecer deve, por sua vez, já ser, deve aparecer ele próprio anteriormente ao
surgir do ente nele. ―A consciência... nem é a primeira a criar a abertura do ente, nem a
primeira que dá ao homem o estar aberto para o ente. Pois, qual seria a meta, o lugar de
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origem e a dimensão livre para o movimento da intencionalidade da consciência se o
homem já não tivesse sua essência na in-sistência‖? - pergunta Heidegger.6 Em outra
obra, no mesmo sentido, afirma o filósofo que "o mundo há de estar aberto já ekstaticamente para que se possam confrontar entes desde dentro dele"(SZ, p.39). Por esta
via a fenomenologia deve tomar como objeto de investigação essa abertura
absolutamente prévia de um horizonte de presença e analisá-la em sua forma purificada,
na ausência de todo ente. A passagem de Heidegger citada acima já indica algo sobre a
determinação da essência desse aparecer. Ela afirma se tratar da abertura de um
primeiro ek-stase, de uma exterioridade primordial, da projeção de um fora e de uma
distância ontológicos. Enfim trata-se da distância do ―objectum‖ que não coincide
absolutamente com a distância física do ente em relação a mim pois por mais longícuo
ou próximo que ele esteja dos meus olhos, ele será sempre exterior, radicalmente
falando, ao meu olhar. Esta distância é pois a de uma transcendência. Se ser quer dizer
aparecer sob a luminosidade do horizonte do mundo, então, a transcendência é a
essência do ser. O ser des-aparece na medida em que promove o aparecer do ente. Nessa
medida Heidegger tem toda razão em censurar Husserl por inserir no homem, a partir da
noção de consciência, essa estrutura ontológica absolutamente originária do aparecer.
Afinal de contas a que se reduz a noção de consciência intencional senão à estrutura da
transcendência, tal como a descrevemos acima? O Sein do Bewustsein e do Dasein, não
seria, afinal o mesmo? O ser é sempre o ser do ente sem ser jamais nenhum ente, afirma
Heidegger. A consciência sendo sempre consciência de alguma coisa que ela própria
não é e que lhe é absolutamente estranha, com a qual jamais pode coincidir; não
apresenta, nesse sentido nenhuma outra estrutura ontológica. Em outros termos, o dado
6
O que é a metafísica, p. 72. ―A consciência é posta entre parênteses – o que constituía para Husserl, um
puro escândalo!‖(Seminário de Zahringen, 315).
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difere sempre do processo da sua doação. Daí Sartre afirmar que a presença implica
essencialmente uma degradação da coincidência, a projeção de um espaço ontológico
puro de distanciamento de si. É preciso que o ser seja à distância de si, escreve. 7 Assim,
tanto em Husserl como em Heidegger, a consciência e o ser, que vem a ser para os dois,
respectivamente, a designação da essência da manifestação, não se manifestam eles
próprios. Como a luz que a tudo ilumina sem ser ela própria visível independentemente
do anteparo das coisas na qual se reflete, que se retira para o nada para deixar ver as
coisas mesmas por ela iluminadas – e não seu efeito em cada uma delas – assim também
ocorre com a essência da manifestação. O ser se retira para o nada da sua própria
essência, a consciência para sua própria transcendência de si. A consciência é então
nesse sentido, inconsciente. Ela repousaria sobre a inconsciência de si da sua própria
essência interior. Aliás, como dirá Sartre, ela não possui nenhum dentro. Ela seria um
turbilhão exteriorizador no interior do qual nada permaneceria encerrado. Mas o que
vem a ser esse Si que se transcenderia na projeção intencional da consciência da direção
do mundo? Esse si cuja essência seria justamente jamais permanecer ―em si mesmo‖?
Que seria exatamente o contrário de um si mesmo, quer dizer, de uma ipseidade?
Paradoxalmente, após Descartes, a constituição desse ―si‖ será tributada ao ego, à vida
egológica. A inserção do homem na problemáttica ontológica dá-se via a compreensão
da subjetividade como essência do objeto, ou seja, da manifestação do ente sob a forma
de fenômeno para nós. Citar Heidegger o mais anti-humanista dos anti-humanistas se
embaraçar com seus próprios conceitos e afirmar que ―que a essência do homem é
essencial para a essencialização do ser‖. Mas o que vem a ser a subjetividade pensada a
7
―La transcendance véritable est le propre d'un pour-soi, de l'être qui est capable d'un essor absolut, d'un
recul radical à la fois par rapport au monde et par rapport à lui-même: qui est conscience‖. DUFRENNE,
M. La Notion d`"a priori". Paris: PUF, 1959, p. 196.
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partir dessa recuperação ontológica e fenomenológica do sentido do mundo e do caráter
ek-stático da sua estrutura? Consciência quer dizer para a fenomenologia de Husserl,
consciência de, de qualquer coisa que ela própria não é e, nessa primeiríssima
exterioridade em relação a si ela vem a ser a essência mesma da fenomenalidade do
objeto, de todo objeto possível. Mas a consciência não é apenas essa abertura através da
qual o ente vem ao nosso encontro a partir do horizonte aberto do mundo. Ela é também
manifestação ou consciência de si mesma, olhar que se vê e se possui interiormente
mediante sua própria visibilidade. ―Todo vivido intelectual e todo vivido em geral, no
mesmo momento em que se efetua, pode vir a ser objeto de uma visão e apreensão puras
e nesta visão ele é um dado absoluto‖, afirma o fundador da fenomenologia. Ora este
texto opera, subrepticiamente, um deslocamento na problemática da determinação da
vivência real, cuja elucidação eidética constitui o telos da investigação fenomenológica.
De fato Husserl afirma que toda vivência trás em si a possibilidade de entrar no campo
abrangido pela visão objetivante da consciência intencional, tornando-se, por esta via
um ―dado absoluto‖. Assim a vivência não é, considerada em si mesma, no momento
da sua fluição subjetiva, ainda um dado absoluto. Ela vem a sê-lo na medida em que é,
paradoxalmente, constituída como tal pela reflexão que sobre ela se volta. Michel Henry
formula a aporia resultante do deslocamento da cogitatio intencional para a visão pura,
sob a forma de duas questões radicais endereçadas ao pensamento de Husserl: ―1/o que
é a cogitatio antes da sua vinda perante a visão pura e assim antes de vir a ser um dado
absoluto? 2/ o que é, considerada em si mesma, essa visão pura senão uma outra
cogitatio?‖ A fenomenologia de Michel Henry se auto denomina ―material‖ justamente
por que ela afirma a irredutibilidade do ser da cogitatio ao campo aberto pela
intencionalidade objetivante da consciência de si. Ao contrário de Husserl, para Henry
não só a cogitatio é real de uma forma independente da sua doação secundária em uma
pura visão, mas, mais radicalmente ainda, é apenas com a condição não ser dada sob
aquela forma alienada que ela pode ser o que é, em e por si mesma. Quando se trata
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então da cogitatio o seu ser dado a si mesma, sua doação de si e, por fim o processo de
constituição desse si, deve ser confiado a uma esfera da subjetividade distinta da
consciência de si. Deve ser reenviada a um outro modo da manifestação, confiada a uma
outra essencialidade ontológica: à afetividade cuja essência é auto-afecção. Agora não
se trata mais do horizonte transcendental de um mundo mas de uma interioridade tão
radical que todo distanciamento objetivante e toda exterioridade se encontram doravante
banidos e, através dessa radical redução da esfera da consciência intencional, o grande
mal entendido idealista da fenomenologia será então, superado. O mal entendido
segundo o qual, afirma Henry, ―o processo do pensamento é tomado como sendo o
processo da própria realidade, o mal entendido pelo qual a vinda da cogitatio à
evidência na visão pura do pensamento é tomada como sendo a essência dessa cogitatio,
isto é ainda, o mal entendido pelo qual o fenômeno puro, o fenômeno em sentido
fenomenológico faz-se passar pela essência original da fenomenalidade ela própria
como tal – pela essência da vida‖(FM, 69).
II
Mas como o desenvolvimento da problemática da elucidação do princípio último
da subjetividade como tal, conduz a fenomenologia material de Michel a interrogar a
psicanálise freudiana? Para Michel Henry a Psicanálise não representa, vista de um
ponto filosófico, nenhuma novidade conceitual. Antes da psicanálise, afirma, e como
seu antecessor incontornável, o conceito de inconsciente vai também aparecer por todo
lado na filosofia clássica ocidental seja como uma recusa (é o caso de Lacan) ou uma
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conseqüência do cogito cartesiano.8 Assim o pensamento de Freud seria um herdeiro
tardio do desenvolvimento da metafísica Ocidental, orientada exclusivamente pela
concepção da essência da manifestação enquanto fenômeno ou representação. De fato,
seria psicanálise um novo começo radial ou uma continuação tardia de uma antiga
tradição metafísica? Se interrogarmos o pensamento de Freud, parece que a noção de
consciência assume aí o lugar de um pressuposto evidente por si mesmo e tradicional: a
representação.9 ―Chamemos consciência, afirma Freud, à ―representação‖ que está
presente à nossa consciência‖10, ou seja, ao seu objeto. Michel Henry descobre ai,
imediatamente, a identificação do ser com o ser representado, ou seja, projetado no
horizonte aberto pela consciência. Ora desde que considerado em si mesmo, de forma
pura, independentemente do ente que se revela a nós sob sua luz, esse horizonte de
visibilidade, substancialmente idêntico ao mundo, é essencialmente finito. Toda coisa
somente aparece envolta num halo de sombras e de invisibilidade, toda figuração
implicando seu envolvimento por um fundo obscuro do qual se destaca e ao qual pode
retornar. Deste modo, se ser designa para Freud, ―a representação que está presente à
nossa consciência e que percebemos como tal‖, como afirma a ―Metapsicologia‖ então a
quase totalidade deste ser permanece ausente do espaço de presença.11 ―A consciência,
8
Signification Du concept d´inconscient pour La connaissance de l´homme, in Autodonation, Paris:
Beauchesne, 2004, p. 87.
9
―Não é preciso explicar aquilo que chamamos consciente e o consciente dos filósofos, do trato público‖.
Abrégé de psychanalyse, 1912.
10
Nota sobre o inconsciente em psicanálise (1912)
11
Cf. Freud, O interesse da psicanálise, 1913, p. 34. E A Interpretação dos sonhos ( V, II, 650). Para
Freud a psicologia tradicional tratou da questão através da simples "explanação verbal", afirmando a
identidade dos significados de "psíquico" e "consciente". Esta é identicamente a posição dos "filósofos".
Ao contrário, a psicanálise tem que se render à evidência da existência de "processos de pensamento mais
complicados e mais racionais, aos quais, certamente, não se pode negar o nome de processos psíquicos, e
que podem ocorrer sem excitar a consciência do sujeito"(p. 650) A tese da existência de um inconsciente
transpsíquico, ou seja, da manifestação, no espírito humano de algo que não possui realidade subjetiva, é
defendida por Hartmann em "A filosofia do inconsciente" e criticada por Brentano para quem não existe
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afirmará Freud, não comporta a cada momento senão um conteúdo mínimo de tal forma
que exceto este, a maior parte daquilo a que chamamos conhecimento consciente se
encontra ... num estado de inconsciência psíquica .. se tomássemos em consideração a
existência de todas as nossas lembranças latentes, passaria se perfeitamente
inconcebível contestar o inconsciente‖ (Metapsicologia). Ora em que os conteúdos deste
inconsciente, perfeitamente reversível em relação à consciência, mediante sua
representação, se distinguiriam dos conteúdos conscientes? Para Freud o psíquico é o
conjunto dos fenômenos subjetivos situados à margem da representação da consciência,
ou seja, ―conhecimento consciente‖. Isto significa que eles são definidos e constituídos
pela estrutura da representação da qual se encontram excluídos por sua finitude
intrínseca, não por uma incompatibilidade fundada numa diferenciação ontológica
radical, porque os conteúdos psíquicos nos quais não mais pensamos permanecem
apenas esquecidos no inconsciente. Desta forma podem ser resgatados e trazidos à
consciência – quer dizer representados nela - por um ato de lembrança ou de atenção. O
que Freud elabora aí então através da noção de inconsciente, o que ele visa como
qualquer coisa que escapa do campo da ―atualidade consciencial‖, ―representações
virtuais‖ contidas em um ―inconsciente grosseiramente realista inventado com o
propósito de as receber nele‖ (p. 90). Nesta medida a noção de inconsciente deveria ser
rejeitada como isenta de qualquer importância filosófica verdadeiramente significativa.
Neste ponto a compreensão filosófica da psicanálise implica a desconstrução dos
preconceitos metafísicos sobre os quais ela ergue as suas próprias noções.
Desconstrução que não significa, no entanto, a rejeição pura e simples da noção de
nenhuma manifestação da consciência que não provenha da subjetividade. A idéia de uma "consciência
inconsciente" seria, deste ponto de vista, inaceitável. Porém como mostra Assoun (op. cit., p. 43), ainda
que Freud critique o conciencialismo de Brentano - seu antido mestre - partilha com ele a tese do
imanentismo psicológico. Se o inconsciente deve ser admitido, então tratar-se-ia de uma realidade
imanente ao psiquismo.
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inconsciente mas que, ao contrário, pretende exibir, liberando-a dos preconceitos que
envolvem a sua interpretação - da parte de Freud – sua verdadeira significação. Através
do inconsciente, afirma Henry, o que a psicanálise efetivamente pretende, é nos
conduzir para além do mundo transparente – em maior ou menos medida - e objetivo
das representações, a fundamento mais profundo e que não apenas escapa ao campo da
efetividade da consciência mas que a determina radicalmente. É ali onde não há mais
pensamento e onde o pensamento não pode penetrar, onde tudo nenhuma consciência
intencional pode resolver-se em intuição preenchida, na afetividade interior da vida
psíquica, que residirá o fundamento ontológico e o sentido último do inconsciente
freudiano. Mas uma importante ressalva deve ser feita. A afetividade característica do
inconsciente nada tem a ver com qualquer forma os estados mentais ou psíquicos da
psicologia. ―O que os psicólogos denominam afeto, sentimento etc. É sempre só a
objetivação posterior daquilo que é edificado interiormente em nós próprios, como se
edifica o primeiro aparecer, a essência original da Psique‖(98). Assim essa afetividade
deve ser denominada originária porque nada tem a ver com nossas alegrias, tristezas,
prazeres, a não ser o fato de torná-las possível. Ela designa a vinda a si originária do
sentimento no fluir imanente da vida, a afetividade no sentido da auto-afecção essencial
que caraceriza a unidade de conteúdo e forma dessa vinda a si. Nas palavras de Henry:
―a primeira implosão de si da experiência, o pathos primitivo do ser e dessa forma de
tudo o que é será‖ (98).
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O SISTEMA PARTIDARISTA SOB O OLHAR DE ARENDT E SCHMITT Roberto Lopes de Souza
Bacharel em Filosofia e Teologia
Mestrando em Filosofia na Unioeste
Bolsista Capes
[email protected]
Palavras-chave: partido; decisão; participação.
Introdução
Com o propósito da representatividade surgem os partidos políticos. Arendt e
Schmitt entendem que no contexto político ocidental contemporâneo, eles representam
o próprio interesse, mas não o da população. Para Arendt, os partidos impedem a
pluralidade. Para Schmitt, eles impossibilitam a homogeneidade. Nosso objetivo é
entender a base das críticas destes dois autores e em que medida suas ideias se
entrecruzam.
1. Política e Liberdade
Em seu livro Sobre a Revolução, Hannah Arendt se propõe a fazer uma análise
da Revolução Francesa e da Revolução Americana. A causa da liberdade, num primeiro
momento, parece ser o grande motor destas revoluções. E, de fato, tanto a Revolução
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Francesa como a Americana se propunham a realizar uma libertação. O problema é que
libertação não pode ser confundida com liberdade. A libertação está ligada, não só às
questões de tirania de um governo, mas também às questões sociais. No caso da
Revolução Francesa, segundo Arendt, a questão social tornou-se uma motivação muito
mais incisiva do que a fundação da liberdade. A grande massa de pobres lutava para se
libertar da miséria, e não para ter liberdade de participação na política. No caso da
Revolução Americana, o contexto social no qual ela se desenrola é bem diferente. Do
ponto de vista da liberdade, ela teve mais sucesso que a Revolução Francesa. Para
assegurar estabilidade e liberdade dentro do corpo político ela instituiu uma República.
No entanto, também ela não atingiu um ideal de liberdade tão pleno dentro da
perspectiva política. (Cf. ARENDT, 2011, p. 103). A crítica arendtiana sempre presente
nestas análises é o predomínio do aspecto econômico e social sobre o político. Para ela,
a Revolução Francesa esteve muito influenciada por questões sociais, o que não foi tão
diferente na Americana, na qual a busca pela prosperidade parece desempenhar uma
preocupação muito maior nos cidadãos do que a reivindicação pela participação política.
Apesar de, até certo ponto, elogiar a Revolução Americana, por ela ter conseguido
fundar uma Constituição que garantia estabilidade e preservava a liberdade, por outro,
ela percebe limitações também no modelo político americano, dado o predomínio da
liberdade privada sobre a liberdade pública. Isto mostra um outro aspecto presente em
praticamente todo o mundo ocidental, que são as necessidades da vida privada
dominando o palco da esfera pública. O risco que se corre é transformar o Estado em
uma mera função administrativa, o que, para Arendt, é um pressuposto do absolutismo.
(Cf. ARENDT, 2011, p. 130). No bojo das revoluções, tanto a Francesa como a
Americana, e outras revoluções que foram desencadeadas já no século XX, aconteceram
autênticas manifestações de organização política a partir dos cidadãos. Exemplos disso
são as seções da Comuna de Paris e as sociedades populares durante a Revolução
Francesa, bem como os conselhos, sovietes e Räte, que apareceram nas revoluções dos
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séculos XIX e XX. ―Sempre que apareciam, elas brotavam como órgãos espontâneos do
povo, não só fora de todos os partidos revolucionários, mas também de maneira
inesperada para eles e seus dirigentes.‖(ARENDT, 2011, p. 313). Arendt diz que estas
experiências foram negligenciadas por políticos, historiadores, teóricos políticos, e até
pela própria tradição revolucionária. Por que o sistema de conselhos não foi aceito?
Qual o novo absoluto que impedirá a sua continuidade? Ela questiona o fato de que,
tanto os partidos políticos como os conselhos, surgiram com as revoluções, entretanto,
apenas os partidos sobreviveram. No que se refere à forma de governo – e por toda parte
os conselhos, à diferença dos partidos revolucionários, alimentavam um interesse
infinitamente maior pelo aspecto político do que pelo aspecto social da revolução -, a
ditadura do partido único é apenas o último estágio no desenvolvimento do Estado
nacional em geral e do sistema pluripartidário em particular. (ARENDT, 2011, p. 332333). Enquanto Arendt vê na espontaneidade dos conselhos a possibilidade de um novo
começo, próprio da ação política, ela vê nos partidos o perigo da petrificação das idéias,
e com isto o distanciamento das opiniões dos cidadãos. Quem se filia a um partido
geralmente já encontra um projeto pronto, do qual apenas tem que compactuar e,
quando eleito, mesmo que diga que está representando os eleitores, no fundo, está
representando o seu partido. Neste sentido, Arendt chega a conceber os partidos como o
novo absoluto do século XX: ―Depois que a nação ‗ocupou o lugar do príncipe
absoluto‘ no século XIX, foi a vez de o partido, durante o século XX, ocupar o lugar da
nação.‖ (ARENDT, 2011, p. 335) Certamente, a história política do século XX no
mundo ocidental, teve muitas experiências diferentes em diversos países, mas um dado
praticamente inquestionável em todos eles é a existência de um ou mais partidos.
1.
Política e Decisão
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Diante da crítica arendtiana ao sistema representativo, poderíamos procurar
respaldo nas idéias de Carl Schmitt. Ele vê na aliança entre liberalismo e democracia a
raiz do problema do sistema parlamentar. Para ele, a democracia fundamenta-se na
homogeneidade, enquanto que o liberalismo propõe a heterogeneidade. O liberalismo
propõe uma igualdade de todas as pessoas de modo individualista humanitário, mas não
uma homogeneidade. As decisões são tomadas com base na soma das vontades
individuais. A democracia, segundo Schmitt, consiste na vontade do povo, de modo
homogêneo, ou seja, é baseada na unanimidade entendida de modo natural. A função
dos partidos no sistema parlamentar deveria ser a de representar a vontade do povo,
através de discussões que visem ao consenso, mas não é isto que acontece. Os partidos
(que de acordo com o texto da Constituição escrita nem existem oficialmente)
atualmente não se apresentam mais em posições divergentes, com opiniões passíveis de
discussão, mas sim como grupos de poder sociais ou econômicos, que calculam os
interesses e as potencialidades de ambos os lados para, baseados nestes fundamentos
efetivos, selarem compromissos e formarem coalizões. As massas são conquistadas por
meio de um aparato de propaganda, cujos bons resultados derivam de um apelo a
interesses e paixões mais imediatos. (SCHMITT, 1996, p. 8). Schmitt opõe-se aos
partidos porque, ao invés de representarem a vontade do povo, eles procuram convencer
as massas. Ele tem em comum com Arendt a rejeição a este modelo de
representatividade, porém difere dela quando se aproxima da noção de vontade geral
presente no Contrato Social de Rousseau. Arendt rejeita a noção de vontade geral
porque isto nega as particularidades e a diversidade. Ela propõe a pluralidade como
condição para a política, enquanto Schmitt propõe a homogeneidade como condição da
verdadeira democracia e da soberania de um povo. O problema de fundo, em ambos os
casos, parece ser a fundamentação da autoridade. Como chegar a uma decisão no campo
político? Quem tem a última palavra? Carl Schmitt resolve o problema da decisão
através da sua definição de soberania. ―Soberano é quem decide sobre o estado de
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exceção.‖ (SCHMITT, 2006, p. 7) Sua afirmação parte do argumento de que existem
momentos em que a Constituição de um Estado não é suficiente para dar respostas a
certas situações inesperadas, que escapam daquilo que é o ordinário. Para estes
momentos é preciso ter uma solução, alguém precisa decidir, e este é o soberano. ―Ele
decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como o que se
deve fazer para saná-lo. O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente
vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a
Constituição pode ser suspensa in Toto.‖ (SCHMITT, 2006, p. 8) Não é difícil perceber
que esta concepção de estado de exceção pode levar a uma justificação dos regimes
absolutistas, mesmo que não fosse esta a intenção de Carl Schmitt. Mas, o que
queremos destacar aqui é o modo como ele fundamenta a noção de soberano. Para ele,
este conceito, como tantos outros utilizados na política moderna, são de origem
teológica. ―Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos
teológicos secularizados. [...] O estado de exceção tem um significado análogo para a
jurisprudência, como o milagre para a teologia.‖ (SCHMITT, 2006, p. 36) Neste
sentido, o soberano, para Schmitt, seguindo o modelo religioso, é aquele que é o ―todo
poderoso‖ na terra. É o que tem a última palavra. Disso poderíamos concluir que a
secularização, como característica do mundo moderno, não significa que a religião
cristã tenha deixado de exercer influência na política ocidental, pois alguns de seus
conceitos são utilizados, mesmo sem a referência ao transcendente. Neste ponto,
queremos contrapor o pensamento de Hannah Arendt. Se por ‗secularização‘ nada mais
se entende que o surgimento do secular e o concomitante eclipse de um mundo
transcendente, então é inegável que a moderna consciência histórica está estreitamente
conectada com ela. Isso, contudo, de modo algum implica a duvidosa transformação de
categorias religiosas e transcendentais em alvos e normas terrenas imanentes, em que os
historiadores das ideias recentemente têm insistido. Secularização significa, antes de
mais nada, simplesmente a separação de religião e política, e isso afetou ambos os lados
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de maneira tão fundamental que é extremamente improvável que haja ocorrido a gradual
transformação de categorias religiosas em conceitos seculares que os defensores da
continuidade ininterrupta procuram estabelecer. (ARENDT, 2007, p. 102). Arendt não
concorda que categorias religiosas tenham se transformado em conceitos seculares. Mas
será que a utilização que ela faz de conceitos como o perdão, o milagre e o pacto não
seria a confirmação da tese de Schmitt? Samuel Moyn, em seu artigo intitulado Hannah
Arendt on the Secular, diz que ―Arendt ocasionalmente usa linguagem teológica para
descrever precisamente a política secular que ela defende.‖ (MOYN, 2008, p. 95-96
[tradução livre]) Este autor analisa os pontos de convergência e diferença entre a
teologia política de Carl Schmitt e a teoria política de Hannah Arendt. Seus
questionamentos giram em torno da esperança que Arendt coloca no secular como
condição para se fazer política. Segundo ele, até mesmo na análise que faz sobre as
revoluções ela não deixa claro esta passagem para o secular, e na elaboração da
Constituição Americana admite que existiram certos elementos religiosos. Ou seja, em
sua compreensão Arendt se contrapõe a Schmitt, mas acaba identificando-se com ele, ao
aceitar alguns conceitos vindos do judaísmo e do cristianismo. A crítica que Moyn faz a
Arendt é pertinente, e merece uma análise mais profunda, o que não seria possível neste
artigo. Por ora, consideramos suficiente mostrar em que Arendt difere de Schmitt
quanto à solução apresentada ao problema do partidarismo. Quando ela fala do encontro
entre filosofia e política, realizado a partir de Platão, critica uma metafísica que queria
oferecer padrões de verdade com alcance universal, pois este modelo não levava em
conta as particularidades e o valor da opinião. Porém, ela constata que o rompimento
com esta tradição na era moderna contribuiu para o relativismo dentro da ética e da
política, e possibilitou o surgimento de regimes totalitários. A falta de um absoluto
transcendente parece conduzir a dois extremos: ou ao relativismo ou a invenção de um
novo absoluto. Schmitt teria se identificado com esta última opção, a qual Arendt
rejeita. Sendo assim, poderíamos questionar: e ela, não estaria identificando-se com o
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relativismo? Arendt propõe a recuperação do mundo como espaço comum, no qual as
particularidades são valorizadas através da troca de opiniões. Mas isto não significa
inconstância ou falta de segurança. O diálogo deve conduzir a consensos que são
objetivados na ação política. Não se trata de trocar opiniões sobre qualquer assunto. Em
última análise, para Arendt, a política deve ocupar-se com o melhoramento do mundo.
Se os partidos políticos não propiciam este debate, por estarem debatendo os seus
próprios interesses, por outro lado, o soberano dispensa qualquer debate. O que nos
causa certa estranheza é que Arendt faz as suas críticas, mas parece não apresentar uma
solução concreta. De fato, ela não está preocupada em apresentar soluções prontas, mas
em identificar elementos que impedem que o novo da política aconteça.
Conclusão
O rompimento com a tradição iniciada por Platão significa, para a política, a
rejeição de uma fundamentação transcendental de autoridade. A proposta da democracia
liberal se pauta numa Constituição, na qual as leis regulam a organização social, e o
sistema representativo partidário é o espaço oficial onde a diversidade de opiniões
deveria ser respeitada. O problema é que tais opiniões se desviam do interesse dos
cidadãos para o interesse de grupos fechados, e o consenso é substituído pela
negociação. Schmitt propõe o estado de exceção para os momentos em que a
Constituição e o próprio sistema representativo não dão conta de resolver situações
inesperadas dentro do Estado. Isto só é possível partindo do pressuposto de que a
decisão não se encontra na Constituição, mas no soberano. Na crítica ao modelo
partidarista Arendt se assemelha a Schmitt, mas diferencia-se dele em relação ao
soberano. Para ela, o sentido da política não está na apresentação de soluções prontas
por parte de alguém que sabe sobre os que não sabem, mas numa ação conjunta na qual
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as opiniões dos cidadãos sejam de fato consideradas como matéria-prima para a
construção do novo.
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. [Tradução: Mauro W. Barbosa]. 6 ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
________, Hannah. Sobre a Revolução. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
MOYN, Samuel. Hannah Arendt on the Secular. In: New German Critique 105, Vol.
35, No. 3, Fall 2008.
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução: Inês Lohbauer. São
Paulo: Scritta, 1996.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Tradução: Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del
Rei, 2006.
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O SUJEITO POLÍTICO: RAZÃO E SENTIMENTO EM ROUSSEAU - Rita de
Cássia Ferreira Lins e Silva
Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR
[email protected]
Palavras chave: Sujeito político. Razão. Sentimento. Reconhecimento. Vontade geral.
Do homem natural ao homem social: o lugar dos sentimentos e da razão
Parte-se da tese de Rousseau (1712-1778) acerca do homem natural e sua
condição no estado de sociabilidade para apresentar um dimensionamento sobre sujeito
político. Trata-se dos elementos que podem ser ordenados enquanto critério de análise
acerca das relações sociais seguidas da noção acerca dos sentimentos de humanidade e
virtude que enlaçam entre si os principais aspectos característicos do processo de
reconhecimento na filosofia política do autor. Que possibilita ser possível refletir a
formação da identidade política assentada na subjetividade e no princípio reciprocidade
no âmbito político-normativo.
Tal entendimento parte da concepção rousseauniana acerca do homem natural
impressa no ‗Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens‟ (1754), onde o autor postula pelo afastamento dos fatos, distanciando o homem
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das características presentes no contexto do estado social.
1
O estado de natureza é
pensado hipoteticamente onde a concepção de homem aparece numa condição de présociabilidade. 2
Para Rousseau o estado de natureza não pode ser representado pela existência de
relações morais ou deveres comuns. O homem natural move-se instintivamente pela
satisfação de suas necessidades imediatas relacionadas à sua sobrevivência. Há, todavia,
neste estado, uma leitura que pressupõe ainda, a existência de sentimentos
representativos de impulsos inatos anteriores a razão: o amor de si e a piedade. Movidos
pelo interesse único de autopreservação. 3
Sobre isto, pressupõe-se ser o sentimento a base primeira apontada pelo filósofo
como fonte do reconhecimento anterior à razão. Rousseau afirma: ―a piedade nos faz,
sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o
lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado
a desobedecer à sua doce voz‖. 4 Trata-se da capacidade humana de sentir-se no ‗Outro‘
ou, dito de outra forma, de se compadecer em relação ao outro por impulso natural.
Estas são as principais características que se quer destacar acerca do estado de
natureza rousseauniano, e que devem ser retomadas enquanto possibilidade de mediação
entre os homens no estado de sociabilidade, em que o amor é engendrado pela razão.
Sentimento revelador de desejos egoísticos que afastam o homem de si mesmo,
1
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. Coleção ‗Os Pensadores‘. São Paulo: Victor Civita,
1983a. p. 236.
2
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1996. p. 44.
3
Em Rousseau o homem natural só possui a razão em potência, e vive sem nenhuma relação moral com
seus semelhantes. DENT, Nicholas John Henry. Dicionário Rousseau. Tradução de Álvaro Cabral. Rio
de Janeiro: Zahar, 1996. p. 107.
4
ROUSSEAU, 1983a, p. 254.
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tornando-o ―escravo das aparências enganosas, senhor da natureza à custa de sua
própria desnaturação‖. 5
A sociabilidade, que marca o processo de construção das relações humanas,
também se compõe de paradoxos acerca da conjugação entre razão e individualidade.
Na obra ‗Ensaio sobre a origem das línguas‟, Rousseau esclarece que a linguagem,
considerada enquanto elemento característico do reconhecimento entre os homens
possibilitado pela ―evolução‖ do princípio da perfectibilidade e inteligibilidade passa
por transmutações que acabam por torná-la estranha aos mesmos.
6
A linguagem que
permite estabelecer laços sócios afetivos, a identificação de costumes, das diferenças e
das similaridades é tomada no sentido da opressão pela conjugação do ‗amor próprio‘ –
guia do ‗Eu‘ individual racional dirigido pela moral convencional.
Em síntese, o amor próprio é um tipo de paixão que se guia por preferências, e
realiza-se na satisfação de necessidade e desejos particulares, em que o ‗Outro‘ se
reproduz enquanto assessório superficial. Daí a afirmação de que a sociabilidade leva os
homens a reunirem-se e, ao mesmo tempo, separarem-se.7 O que nos permite afirmar
que a razão na modernidade conduz o homem a sua própria alienação.
A crítica rousseauniana à razão
A crítica à razão movida por Rousseau não autoriza a afirmação de que ele
sustente a sua negação. A razão para o filósofo é uma ―faculdade dotada de uma função
5
STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre Rousseau.
Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 281.
6
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Lourdes Santos
Machado. Coleção ‗Os Pensadores‘. São Paulo: Victor Civita, 1983b.
7
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do Espetáculo: política e poética em Rousseau. São Paulo:
Discurso Editorial, 1997. p. 44.
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diretora porque é capaz de apreender as verdadeiras relações‖. 8 A sua crítica está na
relação que se estabelece entre razão e individualidade.
O movimento iluminista elege a razão enquanto fonte de luz às trevas que
reveste a humanidade. Entretanto, ao exaltar os aspectos mais individuais do homem,
esta parece seguir um percurso na contramão. Nisto reside à crítica rousseauniana à
razão, que transforma a virtude e a moral em um culto às aparências. Erguida no
estímulo à realização dos interesses humanos mais egoístas; e que faz o homem eximirse de seus compromissos com seus semelhantes. 9
Nisto se inscreve à própria concepção do que se denomina por lei natural
criticada pelo autor sob uma linha que a inscreve enquanto regra prescrita a um ser
moral dotado de razão, e que acaba por assumir uma forma substancial tal, que a torna
incompreensível e contraditória. 10 Assim, diferentemente dos filósofos jusnaturalistas, o
autor compreende que as regras do direito natural deveriam ser reproduzidas pelos
princípios: amor de si e piedade – reprodutores do sentimento de humanidade e
virtude.11
Este entendimento nos leva ao posicionamento de que Rousseau se contrapõe a
noção de razão ancorada nas máximas do individualismo. Igualmente se entende que a
fonte das regras de tal direito caracterizadas pela humanidade e a virtude, também leva
ao entendimento de que o filósofo afasta-se da ideia de ‗julgamento de práticas
universais‘. O que Rousseau mostra é a necessidade de reconhecimento entre os
homens. Já que o principio de humanidade e de virtude não pode se ancorar na
realização monológica do ‗Eu‘.
8
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 1976. p. 64.
ROUSSEAU, 1983a, p. 281
10
Ibid., 1983a, p. 229-230.
11
Ibid., 1983a, p. 230-231.
9
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Dito isto, entende-se que Rousseau afasta-se de uma tradição que postula uma
concepção de direito natural racional. O seu posicionamento centra-se em elementos do
estado de natureza anteriores à sociabilidade, capazes de produzir sentimentos de
humanidade e virtude, e que enseja numa perspectiva de razão que deve ser mediada por
tais sentimentos. E, é sob tal perspectiva que se discute a possibilidade de uma
fundamentação acerca da constituição de um novo sujeito: político.
Do possível ao impossível representável: a possibilidade do sujeito político
Os termos até aqui delineados nos permite uma concepção de vontade geral
numa perspectiva de vontade reciprocamente expressa. O que se entende ser possível a
partir da constituição de uma identidade política pautada no reconhecimento do
‗outro‘.12 Que se forma pelos laços estabelecidos a partir de relações promovidas por
sujeitos concretos.
Uma perspectiva analisada a partir da obra ‗Do Contrato Social‟ (1762), que
imprime em suas alíneas a possibilidade de interpretação de se pensar em um ‗Eu‘
redimensionado em um ‗Outro‘, que forma o ‗Nós‘: a vontade geral (‗eu‘ comum).
Posto que, como leciona o filósofo, ―ato de associação compreende um compromisso
recíproco entre o público e os particulares‖.13 De onde se extrai a ideia de que a
humanidade e a virtude devem estar associadas à construção da reciprocidade, base
importante para a edificação do corpo político.
A vontade geral não pode, assim, ser entendida enquanto ato de racionalidade
que impõe a produção de um Eu monológico (neutro). Tal entendimento é fundamental
12
INSTON, Kevin. Rousseau and Radical Democracy. London: Continuum, 2010.p. 43.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. Coleção ‗Os
Pensadores‘. São Paulo: Victor Civita, 1983c. p. 34.
13
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na medida em que a vontade geral apresenta-se enquanto fundamento e meio de criação
da lei. E que, portanto, não pode se reservar ao império do ser individual racional
guiado unicamente por interesses privados.
Observamos que o filósofo se refere a uma forma de racionalidade associada a
elementos propícios ao desenvolvimento do sentimento de humanidade. O que reside,
em última análise, no necessário reconhecimento do ‗Outro‘. Este motor de partida
eleva os sentidos orientadores à identificação do sujeito político como agente capaz de
reconhecer e ser reconhecido na expressão da vontade geral. Daí a importante
interpretação que se busca traçar acerca da subjetividade, que neste contexto reveste-se
sob sua face política.
Uma interpretação que permite, portanto, fundamentar a expressão da vontade
não consubstanciada numa unidade abstrata. Pulverizada pelo processo de
representação. Uma reflexão que perpassa por considerações de ordem filosófica e
político-normativa que implicam em uma concepção de sujeito político que se expressa
no espaço público.
Em Rousseau, como já visto, este entendimento tem sua raiz motora no
reconhecimento do ‗Outro‘, nas formas e modos de vida construídos a partir de uma
linguagem não monológica que se pretende racionalmente absoluta. Pois a vontade geral
é o único meio possível de dirigir as forças do Estado no sentido de como este deve ser.
Sendo a sua finalidade o bem comum.14 São os laços sociais, e os pontos comuns
identificados que serve de base à condução do governo, e devem ser tomadas com o
objetivo de alcançá-lo.
Os pontos importantes aqui revelados dizem respeito a duas questões: a) aos
laços sociais associados à definição dos interesses – não sustentados unicamente numa
14
Ibid., 1983c, p. 43.
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racionalidade associada à individualidade. Mas a uma forma de racionalidade que
compreendemos associarem-se aos sentimentos movidos pelas paixões – introduzidas
na política; b) a ideia de que se a vontade geral dirige as forças do Estado com o
objetivo focado no bem comum, tal vontade somente deve ser guiada pela identificação
de um sujeito político. De modo que, a ideia de soberania
15
traduz um sentido de não
representatividade da vontade.
Ao se retomar o pensamento de Rousseau, entende-se que o abismo que presume
tal ideia corresponde à impossibilidade de alcançar o representável. Pois a subjetividade
não é facilmente alcançada por terceiros que se encontrem distante de um mundo
concreto no qual esta se corporifica. Termos que concluem pela usurpação da soberania
resultante do distanciamento do poder do cidadão: seu verdadeiro depositário. Daí a sua
afirmação de que ―o princípio da vida política reside na autoridade soberana‖.16
O potencial subjetivo que se dá a partir das relações que mantenho enquanto
referência de identificação com o ‗Outro‘, e que constrói o meu valor como sujeito17 é
que permite a identificação e a solidificação daquilo que pode ser inscrito enquanto bem
comum. De modo que outrem não pode alcançar de forma integral a realidade concreta
daquele que se submeterá a uma norma que se distancia de seu consentimento e, por
conseguinte, devem alcançar o princípio máximo de humanidade.18
Nestes termos, a radicalização do ‗possível representável‘ somente pode
encontrar seu eixo na expressão da subjetividade, que não é passível de transferência.
Portanto, o indivíduo tomado em suas relações é o único capaz de representá-la. Um ser
15
Ibid., 1983c, p. 108.
Ibid., 1983c, p. 102.
17
INSTON, 2010, p. 49.
18
Id.
16
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moral e político, que deve ser guiado pela razão e absorvido pelos sentimentos de
humanidade e virtude, distanciando-se daquela paixão movida pelo amor próprio.
A partir da consideração da obra ‗Do Contrato Social‟, o sujeito ganha em
fundamentos, uma dimensão política antes não existente. Trata-se de um ‗Nós‘ que se
reveste de força política, onde o poder é realizado na vontade política do soberano. Esta
ideia reflete na modernidade uma série de interpretações que culminam em retóricas
marcadamente contraditórias. A questão que se insurge em relação a isto segue uma
perspectiva de relações de poder em que a subjetividade, no contexto de uma
comunidade política, não pode mais ser calcada numa visão substancial do sujeito.
Nesta ordem, Rousseau empreende uma teoria política normativa que leva à
filosofia política e do direito uma ideia de que a subjetividade, atrelada ao universo dos
sentimentos e das paixões, representa o locus da política – núcleo e sentido teleológico
do poder: o conflito.
De tal modo, Rousseau se opõe ao fim da subjetividade
reservando a esta um espaço confiado ao poder – o locus do sujeito político.
Posto assim, consideramos a importância de que sejam reforçadas as relações
impressas pelo filósofo entre as noções de homem natural e homem político numa
perspectiva de pensar a subjetividade consubstanciada no reconhecimento. O que se
depreende se um todo complexo que contempla um pensamento capaz de conjugar a
devida relação entre sujeito político, razão e sentimento.
REFERÊNCIAS
DENT, Nicholas John Henry. Dicionário Rousseau. Tradução de Álvaro Cabral. Rio
de Janeiro: Zahar, 1996.
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 1976.
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_________. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1996.
_________. Paradoxo do Espetáculo: política e poética em Rousseau. São Paulo:
Discurso Editorial, 1997.
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. Coleção ‗Os
Pensadores‘. São Paulo: Victor Civita, 1983a.
_________. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Lourdes Santos
Machado. Coleção ‗Os Pensadores‘. São Paulo: Victor Civita, 1983b.
_________. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. Coleção ‗Os
Pensadores‘. São Paulo: Victor Civita, 1983c.
STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre
Rousseau. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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OBJETO, SUJEITO E CERTEZA SENSÍVEL EM SUA UNIDADE: O
CAPÍTULO PRIMEIRO DA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO - Saulo Sbaraini
Agostini
Graduando em Filosofia – Unioeste Campus de Toledo/PET
Orientador: Rosalvo Schütz
[email protected]
Palavras-chave: certeza sensível, consciência, sujeito, objeto
Hegel inicia a Fenomenologia do Espírito, que ele compreendia como o projeto da
ciência da experiência da consciência, pelo capítulo intitulado ―A certeza sensível ou: o
Isto ou o Visar‖19. Ao que parece, Hegel retorna ao saber do ―senso-comum‖ ou ainda
antes, o puro saber que vem da sensibilidade; procura o conhecimento primeiro e
imediato, cuja aparência é de ser o mais rico, pela capacidade de captar o objeto em sua
totalidade. Este trabalho tem o intuito de averiguar a certeza sensível em seu caráter
simples, descobrindo como suas verdades se mantêm e até que ponto. O que é a verdade
da certeza sensível? Há um conhecimento imediato do objeto? Como se dá? Deve-se
analisar a certeza sensível da maneira mais receptiva e simples, sem a intenção de
19
Neste caso foi usada a tradução de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken, no entanto
meu estudo também foi acompanhado pela tradução de Henrique Lima Vaz, em que o título é traduzido
por: A Certeza Sensível ou o isto e o opinar.
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mudar o modo como ela se oferece. É importante enfatizar o fato de Hegel colocar-nos
como observadores da experiência que a consciência faz de si mesma. No decorrer deste
artigo, tentarei apontar a maneira por que o autor nos faz espectadores de toda esta
experiência. Imaginando uma criança, que aprende o que é cada objeto, a indagar pelo
que está ao seu redor, observamos que ela pergunta: ―Que é isto?‖. Antes mesmo de
saber que o isto é uma árvore, um estojo ou apontador, sabe-se que isto é. Eis o que
exprime a certeza sensível: algo é. Esta visão julga ser uma operação simples e sem
mediações, sabe-se que isto é, e o que é um ―isto‖, ―algo‖. Os elementos desta relação
aparentemente imediata são: eu, este sujeito, e isto, objeto, que é. Desta forma, o
conhecimento imediato aparece como uma verdade abstrata e pobre; afinal, capta
apenas o ser da coisa. O eu está apenas como um puro este que está diante de um puro
isto. Aí aparece o primeiro problema: a certeza sensível, que julga ter como
característica principal o saber imediato, opera por meio de uma mediação: este – eu,
consciência, sujeito – sabe disto – objeto, coisa – e isto está na certeza do saber mediato
como este. O problema apontado no parágrafo anterior é superado pelo próprio Hegel da
seguinte maneira: ao atentar para a mediação interna à certeza sensível, estamos tendo
uma visão própria desta última.20 Observa-se novamente a experiência e o essencial está
no objeto; por isso, ele é tomado pela certeza sensível como verdade, deixando a relação
com o sujeito dependente do objeto. Apesar de o eu estar posto mediatamente junto à
coisa, ele não é em-si, torna-se inessencial para a certeza sensível. Independentemente
de o sujeito conhecer o objeto ou de ser ele mesmo objeto do saber imediato, é, é algo, e
assim se concebe como verdadeiro. A certeza sensível pressupõe que ―verdade‖
20
Hegel aponta para experiência da certeza sensível como ela é, propõe que sejamos como espectadores
observando a própria consciência de uma forma primitiva, sem nos apropriar dos acontecimentos
determinando-os.
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significa ―ser algo que se oferece imediatamente‖. Para podermos averiguar se o objeto
é realmente essencial, deve-se perguntar à certeza sensível: o que é isto que detém tanta
verdade a ponto de o sujeito tornar-se secundário, numa relação de conhecimento?
Retomemos o exemplo da criança. Ela se depara com um estojo e indaga-se pelo que é.
O que ocorre? Ocorre que ela está perguntando por isto, estojo, aqui e agora. Resta-nos
indagar o que é a dimensão que oferece o ‗aqui e agora‘. Ao olhar pela janela, vê que o
sol está nascendo, portanto agora é de manhã; aqui é a posição que o estojo está
referência ao que vê: em frente. Em outras palavras, o Isto é ―estojo-de-manhã-naminha-frente‖ (isto-aqui-e-agora). Anoto estes dados verdadeiros da consciência em seu
momento inicial num papel e os guardo. O que ocorre é que depois de algum tempo
abre-se o papel e a verdade do escrito ―O estojo aqui em frente, nesta manhã, é
(verdadeiro)‖, está vazia – pois agora é noite. O agora se mantém, neste caso como um
agora que não é manhã mas noite: um agora como negativo ou incluindo negação.
Portanto o agora não é um saber imediato e sim mediatizante, porque para o agora ser
manhã é preciso que tarde e noite não sejam. Da mesma forma, quando olhamos a frase
seguinte anotada no papel: ―Aqui, é a posição que o estojo está, na minha frente‖, se
movermos para o lado o estojo e o observamos, o aqui não é mais o local do estojo à sua
frente e sim ao lado; Da mesma forma como se deu com o agora, o aqui permanece, mas
como negação. Falta-nos refazer a pergunta de outro modo: o que são Aqui e Agora,
antes de ser ―na minha frente‖ ou ―dia‖, ―tarde‖, ―noite‖ etc.? Tais representações,
aparentemente determinadas e imediatas, são universais: simplicidade mediatizada!
Percebe-se que o Isto é o que se mantém e ele está vazio pois o isto não é mais estojo,
apontador, árvore; o agora não é dia, tarde, noite; o aqui não é ao meu lado, na minha
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frente; apenas se sabe que mudam os objetos mas o Aqui e o Agora, por consequência o
Isto, continuam. Desta experiência com o aqui e o agora podemos observar o seguinte: a
expressão da singularidade do objeto não cabe na linguagem. Apenas podemos ter a
―visão‖ ou o ―opinar‖21 do objeto como singular, mas ao expressá-lo a linguagem é
universal, impossibilitando de afirmar o particular. Aí se instala um problema – que não
será resolvido no capítulo da Certeza Sensível. Outro ponto é que a certeza sensível
passa a ter um caráter de experiência da negação do conteúdo da ―verdade‖22. O objeto
passa a ser um universal que é expresso pela linguagem – Isto. Neste sentido a essência
da certeza sensível passa do objeto para o sujeito. Ele está na imediatez do eu, do meu
ver, ouvir, etc. Assim o Isto é meu isto. Para este momento é importante o
esclarecimento do conceito ―visar‖ ou ―opinar‖ para compreendermos o jogo conceitual
feito por Hegel, marcando também a passagem da essência do objeto para o sujeito. O
termo original utilizado pelo autor é o meinen ou Meinung no alemão. Hegel associa
Meinung com (o etimologicamente não aparentado) mein (―meu‖) e, portanto, com
idiossincrasia: é uma ‗REPRESENTAÇAO (Vorstellung) subjetiva, um pensamento
fortuito, uma fantasia, que posso formar de qualquer modo que me agrade, enquanto que
outrem pode fazê-lo de modo inteiramente diverso. Um Meinung é mein; não é um
pensamento intrinsecamente universal, um pensamento que é EM E PARA SI. (...)
Neste caso, meinen e Meinung correspondem a ‗pretender, intensionar‘ e ‗pretensão,
intenção‘, mas sempre no sentido do que uma pessoa quer dizer ou pretende significar
por uma expressão ou elocução, não pelo significado de uma palavra.‖(INWOOD,1997.
21
Coloco os dois termos pois não opto especificamente por uma ou outra tradução, no decorrer do artigo
explanarei mais quanto ao uso do Meinung e Meinen, os quais são o termo original do visar e opinar.
22
Uso o termo entre aspas pois não se trata de uma verdade absoluta, com estruturas suficientes para
afirma-la e sim de uma ‗verdade‘ que será suprassumida.
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pp 84 – 85)
Na versão original do Dicionário Hegel, usa-se o termo inglês meaning
para a explicação do conceito alemão. Meaning: ―significação, sentido‖; Meinung: uma
forma de o sujeito situar o objeto numa intenção de significação. É o ―querer dizer‖, no
português comum. O mais importante é o jogo de palavras hegeliano entre mein e
Meinung, também comentado por Lima Vaz em sua tradução da Fenomenologia do
Espírito: ―Ist in dem Gegenstande als meinem Gegenstande, oder in Meinen: jogo de
palavras entre mein (meu) e meinen (opinar) que acentua o caráter subjetivo da
opinião.‖ (In Os Pensadores, ―Hegel‖, 1985, p. 64.) Com isso, Hegel enfatiza a
transição operada na Certeza Sensível: o objeto, que era fonte de toda verdade, tornouse ―meu‖, dependente das condições universais e subjetivas de minha – mein – visão,
audição etc. Deve-se, neste instante, averiguar o que a experiência nos indica desta
verdade que está sendo apresentada: o sujeito como essência. Retornemos ao exemplo
da criança; ela vê o estojo e pensa: ―Eu, este sujeito, vejo um estojo à minha frente e
afirmo o estojo, aqui-e-agora, como verdadeiro.‖ Parece que, aconteça o que acontecer,
o sujeito da certeza sensível garante continuamente a verdade imediata do que conhece.
No entanto, um outro eu, o pai da criança, responde: ―Eu vejo uma cadeira à minha
frente e afirmo a cadeira , aqui-e-agora, como verdadeira‖. As duas sentenças têm a
mesma credibilidade, já que o objeto está pautado no sujeito; porém uma anula a outra.
O problema da essência como sujeito é apresentado neste breve diálogo. Ao determinar
a verdade como no sujeito; o Eu passa a ser o ponto de referência. Contudo este é
afirmado enquanto universal. sendo esta a problemática desta parte da Certeza Sensível:
o Eu apenas visa ou opina (meinen) como Eu singular, mas ao contrário disto, o Eu é
como Aqui e Agora, um universal vazio, mediatizado. Quando afirmamos Eu, este
significa: todo e qualquer eu. Voltamos com o problema de expressão do singular:
quando falamos ―este eu‖, singular, ―este aqui‖, particular, ―este agora‖, estamos
falando todo este, todo singular, todo aqui, todo particular, todo agora e, inclusive,
todo Eu. Mais uma vez, o que se mantém é o Eu mas não o sujeito particular.
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Nesta
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etapa, já passamos por dois dos três eixos estruturantes do primeiro capítulo, os quais
seriam, respectivamente, objeto como verdade e sujeito como verdade. A certeza
sensível não se afirma nem como objeto essencial, nem como sujeito. Somos, assim,
levados a propor que a essência da certeza sensível está no seu todo, não havendo
distinção nenhuma de essencialidades ou do seu contrário no sujeito e objeto. Portanto,
o exemplo da criança ficaria da seguinte forma: ―Eu, sujeito, afirmo o Isto como um
estojo e não me viro, nem mudo meu visar de que Isto possa se tornar um não-estojo,
não tenho noção de que um outro Eu, meu pai, possa ver Isto como uma cadeira e nãoestojo, ou até mesmo que Eu num, outro momento, visse Isto como um não-estojo.‖
Evidencia-se a partir deste exemplo um forte intuir, afirmado numa firme relação
imediata: Isto é um estojo – aqui-e-agora.
É preciso experienciar novamente a certeza
sensível para averiguar este imediato que está se propondo. Pensemos na indicação do
agora, quando dizemos que ele é, este já foi. Aí está por se desenvolver uma dialética
que não é imediata, como propõe a certeza sensível. 1) Indico o agora, que é afirmado
como o verdadeiro; mas o indico como o-que-já-foi, ou como um suprassumido.
Suprassumo
a
primeira
verdade,
e:
2)agora afirmo como segunda verdade que ele foi, que está suprassumido.
3)mas o-que-foi não é. Suprassumo o ser-que-foi ou o ser-suprassumido – a segunda
verdade; nego com isso a negação do agora e retorno à primeira afirmação de que o
agora é. (HEGEL, G. W. F. 1992 Fenomenologia do Espírito, p. 79). Pela própria
exposição do texto hegeliano pode-se perceber que não há uma relação imediata no
agora e sim um movimento dialético que tem vários momentos. Ao indicarmos o agora,
dizemos que ele é, porém quando afirmamos o agora, este já foi e não é mais. Eis o
primeiro momento em que a primeira verdade – o agora é – é suprassumida. O segundo
momento é o de que o agora foi, todavia, como que o agora que é, pode ser o que já foi
e não é mais? Passa-se para o terceiro momento, em que suprassumo a segunda verdade,
retornando a primeira afirmação de que o agora é! Mas, de uma forma diferente, na
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suprassunção nada é aniquilado, apenas conservado. Desta forma podemos pensar o
agora, depois desses três movimentos, como o que sustenta a passagem do tempo. Pois a
última suprassunção faz com que o agora seja uma unidade de agoras todos englobados
formando o tempo. Este mesmo processo acontece com o aqui, de forma genérica: 1) O
aqui não é só um aqui, também é um lá; 2) Ao afirmarmos o aqui como lá, este não
pode ser, é suprassumido; 3) Ocorre a negação do aqui como lá e resta-nos o ‗novo‘
aqui que sustenta a possibilidade de todos os aqui. Assim, a certeza sensível antes
apresentada se reveste de características totalmente diferentes. Depois de passar pela
problematização da negação interna – do objeto, do sujeito e da unidade, - ela afirma
sempre o universal. Por mais que se vise ou opine um objeto singular, a linguagem se
não pode expressá-lo. Ela tem a característica de sempre manifestar o contrário do que
foi visado. Visando uma coisa singular, o conhecimento dá o universal. Até a coisa
singular pode ser remetida a todas as coisas que são singulares e é, ela mesma,
universal. Assim, a verdade da certeza sensível é sua suprassunção, sua negação:
afirma-se como apontando o universal e tomando-o como verdade. Ao invés de um
saber imediato, apreendemos algo mediatamente: percebemos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução Paulo Meneses e Karl-Heinz
Efken. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.
______. Fenomenologia do Espírito. Tradução Cláudio de Lima Vaz. In Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1985.
MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Edições Loyola,
1999.
HYPPOLITE, J. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Editora
Discurso, 1999.
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HÖSLE, Vittorio. O Sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da
intersubjetividade. São. Paulo: Loyola, 2007
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel; tradução, Álvaro Cabral; revisão técnica, Karla
Chediak. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
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PAUL RICOEUR: RECONHECIMENTO POSITIVO E RESPEITO
(AUCHTUNG) - Adriane da Silva Machado Möbbs1
Universidade Federal de Santa Maria/CAPES
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Palavras-chave: reconhecimento, respeito e solicitude
Neste artigo pretende-se evidenciar, de forma bastante sintética, a proposta
ricoeuriana de um reconhecimento positivo e como o filósofo se utiliza da noção
kantiana de respeito (auchtung) que será peça fundamental nesta proposta. Ricoeur
propõe a reversão do processo de reconhecimento pela luta. Uma vez que, para o autor,
o que decorre da teoria hegeliana do reconhecimento é uma luta constante que
impulsiona um desejo ilimitado e uma vontade insaciável de eliminar o outro, o que o
leva a ver na ideia do reconhecimento negativo apenas a satisfação egoísta do ―desejo
de solidão mediante a morte do outro‖, e não a presença de uma ―vontade de
alteridade‖. Sua proposta é de um reconhecimento positivo, que é colocada em prática,
primeiramente, mediante a recuperação da ideia de economia do dom, que pode ser
exemplificada pelos gestos de presentear alguém, pela polidez nas relações humanas e
pelos ritos festivos. Para Ricoeur, são esses alguns dos modos não violentos de
1
Doutoranda em Filosofia - Universidade Federal de Santa Maria, bolsista CAPES, sob a orientação do
Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto. Professora/Tutora do Curso de Licenciatura em Pedagogia a Distância Universidade Federal de Pelotas.
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reconhecimento do outro. Em outro momento, mais sistemático, denominado de estados
de paz, − que compreendem entre eles os gestos de grandeza e perdão ou a prática da
discriminação invertida −, o filósofo indica os diferentes caminhos do reconhecimento
positivo. Contudo, no que tange o contexto geral de sua ética, Ricoeur toma um
elemento da moral kantiana que irá desempenhar um papel complementar em relação à
solicitude, a saber: a noção kantiana de respeito. O tema reconhecimento está presente
em três estudos ricoeurianos: nos capítulos finais de O si mesmo como um outro, em
uma conferência pronunciada na Unesco (2002) que se intitula A luta por
reconhecimento e a economia do dom, e na última obra do autor, Percurso do
Reconhecimento.
Introdução:
Percebe-se que a intenção de Ricoeur em sua obra Parcous de la reconnaissance
é estabelecer um diálogo entre Hobbes e Hegel no que tange o conceito de
reconhecimento.
Esta
obra
pode
ser
interpretada
como
um
convite
ao
autorreconhecimento, de forma analítica e humilde (Cf. CORÁ, 2010, p.18). É, nesta
obra, a última publicada em vida, que o filósofo elabora uma fenomenologia do
reconhecimento capaz de oferecer as bases para fundamentar uma ética da gratuidade,
da solidariedade e da hospitalidade. Ricoeur, ao retomar o problema da alteridade,
investe na tentativa de enfraquecer as chamadas teorias da deposição do outro e, em
sentido contrário, ―procura confeccionar uma teoria do reconhecimento que resgate a
relação com e para o outro, segundo as exigências da solicitude e do respeito e a busca
de articulação entre a perspectiva ética e a moralidade‖ (Cf. ROSSATTO, 2008, p. 06).
Nossa intenção é apresentar a proposta ricoeuriana de um reconhecimento positivo, não
mais baseado na luta, mas sim, na economia do dom, como propõe Ricoeur. O conceito
de reconhecimento entrou na filosofia através da obra de Hegel, em seus primeiros
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estudos de Iena, entre 1802 e 1806. O núcleo da obra Fenomenologia do Espírito, é a
luta por reconhecimento, mas que segundo Ricoeur, entorno de um tema um pouco
redutor, a luta do senhor e escravo. Contudo, a saída para a luta do reconhecimento é o
estoicismo em que ambos, senhor e escravo, dizem ―nós pensamos‖. E como os dois
pensam, senhor ou escravo são indiferentes. O estoicismo produz um ceticismo (Cf.
Ricoeur, 2010, p. 357).
1. O conceito de reconhecimento em Hegel
O tema do desconhecimento originário fora observado por Hegel em sua teoria
do reconhecimento, este faz referência à teoria do estado de natureza de Hobbes. A
violência do homem contra o outro homem, além de uma verdade de fato, consiste
numa verdade de direito. Na retomada da obra de Hegel, principalmente, com relação ao
período de Iena, Ricoeur destaca que o adversário que toda a filosofia política buscou
combater e excluir, é Hobbes do ―Leviatã‖. Na perspectiva de Ricoeur (2010), a ideia de
Hobbes com relação ao conceito de estado de natureza, é uma espécie de fábula da
origem, que é perfeitamente reconstruída através de uma descrição empírica do estado
das coisas. O que resta aos homens é o medo da morte violenta pela mão do outro.
Assim, as paixões que dominam esse medo são a competição, a desconfiança e a glória.
Hobbes apresenta a tese da insociabilidade natural, aspecto que o afasta de Aristóteles.
Outro aspecto, também inovador em Hobbes, é a sua concepção de direito natural. No
estado de natureza, o homem encontra-se numa situação de constante conflito, tensão e
desconfiança, trata-se de uma guerra de todos contra todos. Os conflitos devem-se ao
fato de que todos são iguais e têm o mesmo direito e que não há um poder superior para
garantir a segurança (Cf. CORÁ, 2010, p. 24). Em sua obra Parcous de la
reconnaissance, no que tange a questão do reconhecimento recíproco – que resume-se a
uma luta pelo reconhecimento do si-mesmo pelos outros – Ricoeur (2006) concede a
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Hegel um lugar de destaque em contraposição a Hobbes. Pois Hegel, ao substituir o
medo de uma morte violenta e a luta pela sobrevivência, características do estado de
natureza, pela necessidade de viver em conjunto e pelo desejo e luta pelo
reconhecimento, contribuiu para trazer à esfera da filosofia política o tema do
reconhecimento (SALDANHA, 2009). É graças a Hegel que o conceito de
reconhecimento nasce no contexto filosófico, já no princípio de sua obra filosófica, em
Iena, entre 1802 e 1806. De acordo com Ricoeur (2010), o tema reconhecimento
aparece graças ao trabalho de Kojève sobre a grande obra Fenomenologia do Espírito
de Hegel. Esta obra hegeliana está centrada na luta pelo reconhecimento, mas também,
na luta do senhor e do escravo, que se reconhecem mutuamente compartilhando o
pensamento. Contudo, o resultado hegeliano para da luta por reconhecimento é uma
espécie de estoicismo que conduz ao ceticismo, pois senhor e escravo constatam: ―nós
pensamos‖. E, como ambos pensam, são indiferentes, não consideram esse fato,
permanecem, ainda, o escravo e o senhor. Torna-se evidente que a dialética do senhor e
do escravo é indispensável para se alcançar a questão do outro e seu reconhecimento em
Hegel. Em sua concepção, o outro consiste numa passagem, momento necessário para
se chegar a si mesmo. O outro é pensado como uma etapa no caminho para se chegar a
si mesmo, tendo primazia o mesmo e não o outro, que é sempre pensado como
momento de inteligibilidade que reúne o mesmo e o outro, um discurso universal. Sendo
assim, a separação entre o mesmo e o outro, necessariamente, superada. Contudo,
existem os trabalhos de outra geração de pesquisadores, os quais remetem ao período de
Iena, em que as obras fragmentárias inacabadas colocam em discussão a ideia da luta
por reconhecimento, com um horizonte mais promissor do que a essa espécie de
conclusão a propósito de um estoicismo seguido de um ceticismo. A ideia exposta é a
seguinte: se nós permanecemos somente no horizonte da luta por reconhecimento,
criaremos uma demanda insaciável, um tipo de nova consciência infeliz, uma
reivindicação sem fim (Cf. RICOEUR, 2010, p. 357 - 358).
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2. Ricoeur: o reconhecimento positivo
Ricoeur (2010) segue uma abordagem diversa daquela proposta por Hegel na
Fenomenologia do Espírito que leva a um estoicismo seguido de um ceticismo, e,
também, diversa daquela das obras fragmentárias inacabadas de Iena. A proposta
ricoeuriana consiste na experiência de sermos reconhecidos, de sermos efetivamente
reconhecidos, uma mudança que consiste precisamente na troca do dom. É uma aposta,
a experiência de ser reconhecido em uma troca que é precisamente a troca do dom: ―É,
então, isso uma tentativa que desconheço o sucesso, mas da qual estou certo que ela é
fecunda, para completar e, ao final, corrigir a ideia violenta da luta pela ideia não
violenta do dom‖ (RICOEUR, 2010, p. 358). A aposta ricoeuriana consiste num tipo de
relação que não esteja mais assentada, primeiramente, na deposição do outro. E, que de
igual modo, rejeita a luta e o conflito como ponto de partida exclusivo na relação entre
as consciências, tendo deste modo, que investir em novas formas de reconhecimento
(Cf. ROSSATTO, 2008, p. 31). A economia do dom pode ser exemplificada pelos
gestos de presentear alguém, pela polidez nas relações humanas e pelos ritos festivos.
Para o filósofo, são esses alguns dos modos não violentos de reconhecimento do outro.
Em outro momento denominado de estados de paz, − que compreendem entre eles os
gestos de grandeza e perdão ou a prática da discriminação invertida ou positiva −, o
filósofo indica os diferentes caminhos do reconhecimento positivo. Para Ricoeur, a
busca por reconhecimento não se pode dar na luta, do contrário, tenderia a nos levar a
uma reivindicação, um desejo de ser reconhecido, sem limites. Para Ricoeur: ―o ser
reconhecido na luta pelo reconhecimento não é mais que a aposta numa busca
indefinida, que resulta na figura do mal infinito‖ (Cf. ROSSATTO, 2008, p. 32, grifo do
autor). Observa-se que a tentativa ricoeuriana consiste em confeccionar uma teoria do
reconhecimento que resgate a relação com e para o outro, segundo as exigências da
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solicitude e do respeito e a busca da articulação entre a perspectiva ética e a moralidade
(Cf. ROSSATTO, 2008, p. 31). A solicitude possibilitaria estimar o si-mesmo como um
outro e o outro como um si-mesmo; e, o respeito (no sentido kantiano) traria consigo a
distinção entre coisa e objeto, possibilitando a compreensão de que o reconhecimento
do outro não se deve dar com base nos moldes da relação pessoa-coisa, mas segundo a
relação recíproca entre pessoas, tomando o outro como fim em si mesmo. Contudo, para
Ricoeur, diferentemente de Kant, o respeito não pode ser tomado apenas em relação à
lei, mas diante do outro, uma vez que o outro como pessoa agredida e sofrida é bem
mais que a lei violada. Ricoeur considera três experiências de reconhecimento mútuo
descritas pela cultura ocidental e às quais dá o nome de estados de paz, a saber: a filia
(amizade) na perspectiva aristotélica; o eros na abordagem platônica (desejo de
ascensão espiritual); e o ágape (amor ou caridade) no sentido bíblico e pós-bíblico,
sendo que o autor privilegia o ágape, uma vez que este envolve a máxima ―dar sem
nada esperar receber em troca‖, e ignorando toda a comparação e todo cálculo,
apresenta-se como pura e absoluta generosidade. É que a experiência pacífica do ágape,
que Ricoeur procura fundamentar através da problemática complexa e paradoxal do
dom e do contra-dom. (SALDANHA, 2009, p. 23). O homem do ágape (que é o
homem do primeiro gesto, o do dom, isto é, do gesto de dar generosamente, sem nada
esperar em troca) e o homem da justiça (que é o do segundo gesto, o do contra-dom, isto
é, o do gesto de retribuição que repõe o equilíbrio), estejam ―prontos a fazer
concessões e a negociar um compromisso aceitável entre a generosidade pura que se
exclui do mundo e a segurança fundada apenas na regra de equivalência (SALDANHA,
2009, p. 170).
Conclusão:
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Entende-se que a proposta de Ricoeur, de um reconhecimento positivo, não retira o
conflito, sua proposta consiste em retirar o conflito unilateral. Para Ricoeur, a violência
na luta por reconhecimento é o resultado de não ter sido reconhecido positivamente. A
este respeito diz Ricoeur: ―Enquanto temos o sentimento do sagrado e o caráter de nãorecompensa na cerimônia da troca sob seu aspecto cerimonial, então nós temos a
promessa de termos sido reconhecidos ao menos uma vez em nossa vida. E se nós não
tivermos jamais a experiência de ser reconhecidos, de reconhecer na gratidão da troca
cerimonial, seremos violentos na luta por reconhecimento. São essas experiências raras
que protegem a luta por reconhecimento do retorno à violência de Hobbes‖ (RICOEUR,
2010, p. 366). Ainda no que tange a questão do reconhecimento do outro mediado pela
via do respeito mútuo, este traz implicado consigo que: ―A pessoa se encontre
imediatamente situada num âmbito de pessoas, cuja alteridade recíproca, em qualquer
caso, seja rigorosamente fundada sobre a irredutibilidade aos meios, dito de outro modo,
a sua existência é a sua dignidade, seu valor não é comercial e ela não tem preço‖
(ROSSATTO apud RICOEUR, 2008, p. 33). Para Rossatto (2008), o respeito, no
sentido kantiano, distintamente dos outros afetos que advêm da sensibilidade, é o único
móbil que a razão prática imprime de maneira direta na sensibilidade; e, por isso, ele
alcança o grau de meta-sentimento. Assim, o respeito possibilita, num segundo
momento, amparar uma releitura crítica da simpatia, uma vez que somente a retirada
dos elementos que desencadeiam a fusão com o outro, poderá ela ser alcançada a um
lugar privilegiado em relação aos demais afetos. Por fim, simpatia e respeito serão
vistos como partes integrantes de uma mesma experiência vivida: a simpatia é o próprio
respeito considerado em seu modo afetivo, e o respeito é a simpatia elevada ao nível
ético. Contudo, para Ricoeur, diferentemente de Kant, o respeito não pode ser tomado
apenas em relação à lei, mas diante do outro, uma vez que o outro como pessoa agredida
e sofrida é bem mais que a lei violada. Neste sentido, a vida ética, de um lado, precisa
ultrapassar o plano moral e jurídico e, de outro, se ancorar no mundo da vida que
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antecede a esses dois planos: só assim o respeito mútuo poderá abrigar a alteridade num
mesmo círculo ético que resguarda a um só tempo o si-mesmo como um outro e o outro
como um si-mesmo.
Referências:
CORÁ, Élsio J. Reconhecimento, intersubjetividade e vida ética: o encontro com a
filosofia de Paul Ricoeur. (Tese apresentada no curso de pós-graduação em Filosofia na
PUC-RS) Porto Alegre: PUC-RS, 2010.
RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.
______. A luta por reconhecimento e a economia do dom. Trad. Cláudio Reichert do
Nascimento e Noeli Dutra Rossatto. Revista Ethic@ - Florianópolis v. 09, n.2 p. 357 367, Dez. 2010.
______. O si-mesmo como um outro. Trad.: Lucy Moreira César. São Paulo - Brasil:
Papirus, 1991.
ROSSATTO, Noeli D. Viver bem: a pequena ética de Paul Ricoeur. In: Mente, Cérebro
& Filosofia. V. 11, p. 26-33. São Paulo - Brasil: 2008.
SALDANHA, F. A. M. Do sujeito capaz ao sujeito de direito: um Percurso pela
Filosofia de Paul Ricoeur. Coimbra: Faculdade de Letras, 2009.
PEDAGOGIA DA AUTONOMIA: A CURIOSIDADE E A BUSCA DO
CONHECIMENTO EM PAULO FREIRE - Hélio da Siqueira
Graduando em Filosofia
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Bolsista do PIBID / Filosofia
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INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo, através da obra Pedagogia da Autonomia:
Saberes Necessários à Prática Educativa de Paulo Freire, abordar alguns aspectos
referentes ao ensino e ao processo de aprendizado no ensino médio, e para tal
finalidade, será desenvolvida a dimensão da curiosidade, conceito descrito e
problematizado pelo autor na referida obra. Temos como escopo, neste texto, mostrar
como a curiosidade influência na relação entre professor e aluno e também na busca
pela construção do pelo conhecimento. Por meio da curiosidade, busca-se a pesquisa e o
comprometimento do conhecer. No entanto, eis alguns questionamentos que surgem a
partir disso, no processo de ensino: Como fazer com que o aluno tenha curiosidade?
Qual deve ser a postura e a função do professor diante dessa questão e como deve ser o
relacionamento com o aluno para o despertar a curiosidade? Percebe-se que são
questões amplamente complexas e polêmicas para serem desenvolvidas. Dessa forma,
abordaremos somente alguns pontos em torno dessa problemática, apresentando, assim,
alguns horizontes para reflexão.
ENSINAR EXIGE CURIOSIDADE
De acordo com Freire ―Ensinar exige curiosidade‖(FREIRE, 1996, p. 84), sendo
assim, podemos nos perguntar: O que é curiosidade e qual a sua importância no
processo do aprendizado?
Podemos defini-la como o ―exercício que convoca a
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imaginação, a intuição, às emoções, à capacidade de conjecturar, de comparar, na busca
da perfelização do objeto ou do achado de sua razão de ser‖. (FREIRE, 1996, p. 88). A
curiosidade é de extrema importância para o ensinar, como também para o aprender: é
ela que possibilita a realização de perguntas, a busca do conhecer, o atuar, o reconhecer.
A construção ou a produção do conhecimento implica nesse exercício da curiosidade, da
capacidade crítica, da observação e da comparação de argumentos. Freire admite que,
muitas vezes, o próprio educador que, entregue a àquilo que ele chama de
―procedimentos autoritários ou paternalistas‖, ou, dito de outra forma, em nome da
eficácia da memorização do ensino dos conteúdos, acaba impedindo o exercício da
curiosidade presente nos educandos. Uma vez feito isso, acaba por ―tolher‖ a sua
própria curiosidade como também a do estudante, sua liberdade e sua capacidade de
aventurar-se pelo conhecimento.
1.1 Relação professor e aluno na busca pelo conhecimento
Para falar da relação entre professor e aluno na busca pelo conhecimento a partir
do conceito da curiosidade, voltemo-nos à primeira questão introduzida: como despertar
a curiosidade dos alunos? Para Freire, o professor deve ter a consciência de que sem o
exercício da curiosidade, que inquieta e que insere o aluno na busca do saber, não se
aprende e nem se ensina. Exercer a curiosidade é para ele um direito, e, sendo assim,
deve-se lutar por ele. Segundo ele a curiosidade é apresentada como fator
importantíssimo no processo de ensinar. A construção ou a produção do conhecimento
do objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade critica de ―tomar
distancia‖ do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de ―cercar‖ o objeto ou
fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar. (FREIRE,
1996, p.85). Um dos primeiros fatores para motivar o estudante ao estudo e possibilitar
a curiosidade é criar um ambiente, uma convivência favorável de produção do
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conhecimento. É importante que professores e alunos sejam curiosos, instigadores. "É
preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache repousado no saber de que a
pedra fundamental é a curiosidade do ser humano" (FREIRE, 1996, p. 86). Faz-se
necessário, portanto, que se proporcionem momentos para experiências e para buscas. O
professor precisa estar disposto a ouvir, a dialogar, a fazer de suas aulas momentos de
liberdade para falar, debater e ser aberto para compreender o querer de seus alunos. Para
tanto, é preciso querer bem, gostar do trabalho e do educando. Não com um gostar ou
um querer ingênuo que permite atitudes erradas e não impõe limites, ou que sente pena
da situação de menos experiente do aluno, ou ainda que deixa tudo como está, mas um
querer bem pelo ser humano em desenvolvimento que está ao seu lado, a ponto de
dedicar-se, de doar-se e de trocar experiências, e um gostar de aprender e de incentivar a
aprendizagem, um sentir prazer em ver o aluno descobrindo o conhecimento. Para que
isso aconteça, Freire ressalta que professor e aluno devem ter a consciência da
importância do dialogo aberto, curioso, indagador. Para ele ―o que importa é que
professores e alunos se assumam epistemologicamente curiosos‖ (FREIRE, 1996, p.
86.). Segundo ele o bom professor é aquele que, enquanto dialoga, consegue trazer o
aluno até a intimidade de seu pensamento, com isso afirma que: ―Sua aula é assim um
desafio e não uma ―cantiga de ninar‖. Seus alunos cansam, não dormem. Cansam
porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, que surpreendem suas pausas,
suas dúvidas, suas incertezas‖. (FREIRE, 1996, p. 86.). Para Freire, o exercício da
curiosidade nos torna mais críticos e perseguidores do objeto a ser conhecido. Quanto
mais a curiosidade se intensifica, mais rigorosa ela fica, e desta forma mais
epistemológica se torna. É importante que o professor esteja disposto a ouvir seu a
aluno com paciência, acolhendo suas dúvidas e seus receios, é através desse exercício
de escuta que o educando aprende a entendê-lo. O bom professor deve ser curioso e
provocar curiosidade, que deve ser incentivada para que mantenha viva a chama do
querer saber, do querer entender. Se isso não ocorrer, com o tempo o professor se verá
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diante de uma situação quase estática, dificultando assim o exercício livre da
curiosidade. Já o aluno por sua vez sentirá temor em expressar e defender suas idéias e
seus pensamentos, tornando a sala de aula um ambiente não favorável para a prática da
curiosidade e busca do conhecimento.
1.2 Postura e a função do professor diante da questão da curiosidade
Para falarmos sobre a postura e a função do professor diante da curiosidade fazse necessário voltarmos à questão introduzida anteriormente, ou seja, qual é a postura e
a função do professor diante da questão curiosidade, e como deve ser seu
relacionamento com os alunos para desperta-la? O professor, assim como o aluno,
também é movido pela curiosidade. É ela a mola propulsora do aprendizado e do ensino
do educador, da construção e produção de conhecimentos, que por sua vez, favorece um
diálogo entre o professor e o aluno. Porém, este diálogo não deve ser tratado como
apenas um vai e vem de perguntas e respostas, mas sim é importante que aconteça
momentos explicativos por parte do educador. Freire defende que para acontecer à
produção de conhecimento é necessária uma relação de confiança entre professor e
aluno. Primeiramente é preciso agir eticamente respeitando as experiências individuais
de cada um. Como também é necessário que ele tenha uma postura pedagógicodemocrática para que assim exercite a curiosidade e estimule o estudante para a busca
do conhecimento. O professor deve estimular a passagem da curiosidade espontânea
para a epistemológica, ou seja, do senso comum para um conhecimento crítico.
(FREIRE, 1996, p. 88). No decorrer dos anos, as pessoas adquiriram certos
conhecimentos, certas experiências que devem ser levadas em consideração,
experiências essas conhecidas também como senso comum ou curiosidade espontânea.
Para Freire é importante que o aluno tenha certa intimidade com as experiências do
professor, pois isso facilita essa passagem do senso comum para o conhecimento crítico.
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De acordo com Renata Lima Aspis e Sílvio Gallo2 em seu Livro Ensinar Filosofia - um
Livro para Professores é absolutamente necessário que o professor faça essa mediação
com seus alunos, para que esses possam começar na filosofia. Mas por outro lado o
autor afirma que: ―(...) Os alunos só começarão, de fato, seu próprio processo de
filosofar, seu movimento autônomo de pensamento, com a saída de cena do professor
(...) a autonomia do pensamento só pode ser fundada em um começo próprio, que parte
do mestre (do professor) para prescindir dele em um momento seguinte‖.(ASPIS,
GALLO, 1999. p. 70.). É importante que o professor não influencie diretamente nessa
passagem, mas somente apresente alternativas, pontos de vistas para que o aluno por si
só busque o seu conhecimento de maneira independente. É fundamental que o professor
demonstre comprometimento, interesse e responsabilidade para incentivar a curiosidade
do estudante. Esse incentivo está explicitamente ligado às dinâmicas utilizadas pelo
educador em suas aulas, o que torna determinante no estimulo pela busca da curiosidade
por parte dos alunos. Freire afirma que o professor com atitude autoritária ou
paternalista dificulta e até mesmo, impede o exercício da curiosidade do estudante. O
docente deve ter uma postura de equilíbrio entre a autoridade e a liberdade, ou seja, uma
postura pedagógico-democrática. Para isso, a harmonia entre estes dois extremos
implica o respeito de ambas as partes, ou seja, professor e aluno. A partir dessa reflexão
realizada em torno dessa problemática de conduta do professor, Freire afirma que
―Somente nas práticas em que autoridade e liberdade se afirmam no respeito mútuo e se
preservam enquanto elas mesmas, é que se pode falar de práticas disciplinadas como
2
Renata Lima Aspis: Professora formada em Filosofia, mestre pela Faculdade de educação da
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, membro do Grupo de Estudos Transversal do DIS –
Grupo de Estudos e Pesquisas, Diferenças e Subjetividades em Educação – UNICAMP, e professora de
Filosofia na rede particular de ensino em São Paulo. Sílvio Gallo: Pedagogo e Filósofo, Doutor em
Educação e Professor no Departamento de Educação na UNICAMP.
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também em práticas favoráveis à vocação para o ser mais‖. (FREIRE, 1996, p. 89). Eis
uma questão muito complexa. No entanto, essa postura pedagógico-democrática deve
ser praticada para que o processo de ensino alcance seus objetivos. É importante que o
docente dê a liberdade ao estudante até o momento em que a atividade esteja de acordo
com o objetivo que a aula propõe. A autoridade é inevitável para que não ocorra uma
desordem estrutural do ambiente escolar ou da temática trabalhada. Porém, é importante
a liberdade em certos aspectos, por exemplo, o docente não deve querer influenciar nas
ideologias e nas culturas existentes na sala de aula, ou seja, o seu papel é apresentar
somente as teorias e assim deixar que o próprio aluno avalie criticamente a sua posição.
Outro aspecto importante a ser ressaltado é que o docente deve proporcionar uma
reflexão crítica na sala de aula, estimulando perguntas sobre perguntas, ou seja, não
basta somente o método de perguntar e responder, mas sim, é preciso haver um diálogo
de perguntas e respostas sobre perguntas. Esse método não reduz a atividade do
professor, não exclui os momentos explicativos e narrativos, mas somente acrescenta
uma alternativa pedagógica a mais em suas aulas. Por último, Freire escreve
direcionando exatamente para os futuros professores. Ele afirma que a experiência
enquanto aluno é muito importante para a prática docente no amanhã. ―É vivendo
criticamente a liberdade de aluno ou aluna que, em grande parte, me preparo para
assumir ou refazer o exercício de minha autoridade de professor‖. Não se deve apenas
analisar os conteúdos programáticos expostos pelos professores nas diferentes
disciplinas, mas também, ao mesmo tempo, a maneira mais aberta, dialógica ou mais
fechada, autoritária com que o professor ensina. (FREIRE, 1996, p. 90). Portanto, a
postura do docente é fundamental para estimular a curiosidade do aluno e assim
favorecer a produção do conhecimento. Deve ocorrer esse equilíbrio entre a autoridade
e liberdade em todos os aspectos. ―O fundamental é que professor e alunos saibam que a
postura deles, do professor e alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não
apassivada enquanto fala ou enquanto ouve.‖ (FREIRE, 1996. p. 86.). É a curiosidade
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que leva a produção e construção do conhecimento. Eis um desafio importante para
todos os professores e alunos.
Referência Bibliográfica:
ASPIS, Renata Lima. GALLO, Silvio. Ensinar Filosofia: um livro para professores. –
São Paulo: Atta Mídia e educação, 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura).
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RECONSTRUÇÃO DO “EU” PELA LINGUAGEM - Vitor Leite Primo Diogo
Graduando do 4° ano de Filosofia (Licenciatura)
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Palavras-chave: Conhecimento objetivo, Linguagem, “eu”
A proposta desta investigação é expor o que Popper considera conhecimento objetivo e
suas implicações na relação entre o Mundo 2 e o Mundo 3. O uso do termo ―objetivo‖
Popper afirma que o utiliza concebendo o significado que Kant lhe deu, isto é: ―Ele usa
a palavra ‗objetivo‘ para indicar que o conhecimento científico deve ser justificável,
independente de capricho pessoal; uma justificação será ‗objetiva‘ se puder, em
princípio, ser submetida à prova e compreendida por todos.‖ (POPPER, 1972, p.46).
Ora, eu sustento que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou
verificáveis, mas que, não obstante, são suscetíveis de se verem submetidas a prova.
Direi, consequentemente, que a objetividade dos enunciados científicos reside na
circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste. (POPPER,
1972, p.46)
O que Popper afirma é a necessidade de conceber a objetividade do conhecimento
atrelada ao seu critério de demarcação. É necessário para que o conhecimento seja
considerado objetivo que ele esteja disponível a um teste intersubjetivo. A novidade em
Popper é o que compõe os sujeitos que fazem este teste. Esses sujeitos são concebidos
como produtores de conhecimento, e esta produção deve ser criticável. Tendo em vista
que o conhecimento é uma produção do homem essa produção não possui garantia
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alguma de verdade acabada, pelo contrário, faz-se necessária revisão a todo instante,
visto que este produto do homem é uma interpretação limitada do mundo.
Outra consideração sobre a necessidade de um plano do conhecimento objetivo
diferençável dos processos físicos e mentais está na não possibilidade de justificação de
uma teoria ou enunciado por um sentimento de convicção, ou qualquer experiência
subjetiva de convencimento.
Por mais intenso que seja um sentimento de convicção, ele jamais pode justificar um
enunciado. Assim, posso estar inteiramente convencido da verdade de um enunciado,
estar certo da evidência de minhas percepções; tomado pela intensidade de minha
experiência, toda dúvida pode parecer-me absurda. Mas estaria aí uma razão qualquer
para a ciência aceitar meu enunciado? [...]A resposta é ―não‖, e qualquer outra
resposta se mostraria incompatível com a ideia de objetividade científica.(POPPER,
1972, p. 48)
Considerar que um estado de convicção subjetiva é suficiente para justificar uma teoria
é confundir o que seriam os estados mentais com o conhecimento objetivo. Eis a
relevância em distinguir aquele que produz e critica, do seu produto. Afirmar que os
processos da mente humana justificam a verdade do que ela produz por uma certeza
interna é descaracterizar o que Popper considera axial na demarcação de um
conhecimento objetivo, a possibilidade de teste intersubjetivo, e que se compreenda este
teste como a possibilidade de falsificação da teoria e não de justificação positiva da
mesma. Isto, a demarcação, é o que para Popper, caracteriza a ciência. Em última
instância, justificar uma proposta teórica em processos mentais subjetivos, para Popper,
é uma postura que impossibilitaria o fazer científico, visto que a ciência é uma atividade
que emerge do conhecimento objetivo. (POPPER, 1995) E tendo em vista que os
processos mentais não são testáveis, na medida em que uma certeza interna (subjetiva)
não pode ser posta a teste por ser inacessível a qualquer instância objetiva, deve ser
desconsiderado qualquer argumento que não busque justificar a validade ou falsidade de
um enunciado no plano da objetividade.
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A justificação de um enunciado ou teoria científica em processos subjetivos busca a
efetivação do mesmo como algo verdadeiro e inquestionável. Esta postura de afirmar a
inquestionabilidade de uma teoria, entretanto, vai de encontro a concepção de
conhecimento objetivo em um duplo sentido a) por conceber a objetividade de um
enunciado como justificável de maneira positiva e indubitável b) e compreende-lo como
justificável aquém de testes intersubjetivos, não sendo necessária a consulta de outros
sujeitos.
A possibilidade de teste intersubjetivo implica em que outros enunciados suscetíveis
de teste possam ser deduzidos dos enunciados que devam ser submetidos a teste.
Assim, se os enunciados básicos devem ser, por sua vez, suscetíveis de teste
intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver,
em Ciência, enunciado insuscetível de teste e, consequentemente, enunciado que não
admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele
possam ser deduzidas.(POPPER, 1972, p.49)
O que se expressa é uma clara postura contra o método indutivo que afirmava a
possibilidade de justificar o conhecimento científico em enunciados básicos, estes que
seriam a figuração dos fatos empíricos na linguagem, e sua verdade estaria garantida
pela verificação de processos empíricos incontestavelmente verdadeiros. O que Popper
chama a atenção é o tratamento que se dá a concepção de conhecimento objetivo e as
conseqüências que decorrem desta visão na construção da ciência. Ao reduzir a
justificação de uma teoria científica ou mesmo de um enunciado básico a comprovação
perceptiva da empiria, o método indutivo declara que a percepção sobre um
acontecimento empírico prevalece como justificativa da ciência, esta que tem como
característica necessária o conhecimento objetivo.
E aqui se estabelece a confusão alimentada pelo dualismo que Popper procurou resolver
lançando mão da teoria dos três mundos. Isto é, como os processos internos subjetivos
de crenças e sentimentos de convicção podem justificar um conhecimento objetivo. A
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resposta de Popper foi que confundiram os processos mentais (Mundo 2) com o
conhecimento objetivo (Mundo 3)
O terceiro mundo, ou antes, os objetos pertencentes a ele, as Formas ou Ideias
objetivas que Platão descobriu, tem sido, na maioria das vezes confundidos com ideias
subjetivas ou processos de pensamento; isto é, com estados mentais, com objetos
pertencentes ao segundo mundo e não ao terceiro. (POPPER, 1975, p.154)
Algumas respostas ao problema corpo-mente se viram atreladas a concepção que
afirmava os processos mentais como existentes e por isso, objetivos. A objetividade foi
confundida, então, com os processos do Mundo subjetivo. Por não compreenderem
claramente que os produtos dos processos mentais não continuavam trancados na
subjetividade.
Popper reconhece como um primeiro passo rumo a distinção entre o conhecimento
objetivo e processos mentais a concepção de linguagem sustentada pelos Estóicos,
afirma Popper que estes compreenderam a diferença ―entre o conteúdo lógico objetivo
do que estamos dizendo e os objetos acerca dos quais estamos falando.‖ (POPPER,
1975, p.154). E é nesta distinção que a realidade do Mundo 3 pode ser concebida como
uma explicação para além do problema corpo-mente. Uma diferenciação do que se pode
considerar conhecimento objetivo do que é subjetivo.
A linguagem humana, como eles compreenderam, pertence a todos os três mundos.
Até onde consiste de ações materiais ou símbolos materiais, pertence ao primeiro
mundo. Até onde exprime um estado subjetivo ou psicológico, ou até onde apreender
ou entender uma linguagem envolve uma modificação em nosso estado subjetivo,
pertence ao segundo mundo. E até onde a linguagem contém informação, ou até onde
diz, ou exprime, ou descreve qualquer coisa, ou transmite qualquer significado [...],
pertence ao terceiro Mundo. As teorias, ou proposições, ou asserções são as entidades
linguisticas mais importantes do terceiro mundo.(POPPER, 1975, p.154)
Nesta análise da objetividade do conhecimento surge algo que estava velado na questão
do conhecimento objetivo e que agora se explicita, a saber: a relevância da linguagem
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na formação do conhecimento objetivo. Partindo da concepção descrita na última
citação, é possível compreender que o elemento mais relevante do conhecimento
objetivo é a linguagem, e que esta linguagem é produto do pensamento, entretanto, não
é a mesma coisa que os processos mentais. A linguagem interage com o Mundo 1 ao
denotar via entidades linguisticas objetos pertencentes ao mundo físico. Ao se referir a
sentimentos e certezas internas, isto é, subjetivas se referem ao Mundo 2. E ao tratar de
teorias ou de alguma significação objetiva está tratando com elementos com conteúdos
lógico objetivos, interage com o Mundo 3. (POPPER, 1975). O que se expressa é uma
interrelação em que o conhecimento objetivo mantêm contato com todos os mundos
incluso o Mundo 3, ambiente a que pertence. Nisto há uma distinção já apontada entre
os objetos do Mundo 3, aquilo que tem conteúdo lógico e objetivo do que estamos
dizendo e o outros objetos que podem pertencer a qualquer mundo, objetos estes dos
quais se refere.
Esses objetos,por sua vez, podem pertencer a qualquer dos três mundos: podemos falar
primeiro acerca do mundo material [...], ou também acerca de nossos estados mentais
subjetivos [...], ou ainda acerca dos conteúdos de algumas teorias, tais como umas
proposições aritméticas e, digamos, sua verdade ou falsidade.(POPPER, 1975, p.155)
É no ambiente de um conhecimento objetivo que se efetiva a possibilidade de falar da
verdade ou falsidade de uma construção cognitiva. A linguagem surge como
instrumento fundamental para a elaboração do conhecimento objetivo e através dela
compreender como o Homem produz conhecimento, porém, sem com isso confundir-se
com os processos mentais. Apesar de a linguagem se referir aos processos mentais, por
ser objetiva, ela (a linguagem) é acessível a teste e crítica, característica esta antagônica
aos processos subjetivos que são inacessíveis a processos racionais críticos.
A distinção entre o plano do conhecimento objetivo (Mundo 3) e dos processos mentais
(Mundo 2) se instaura quanto a compreensão dos seus conteúdos. Mas, esse
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conhecimento objetivo, ao passo que é o componente diferenciador entre Mundo 2 e 3,
também é o que torna possível a conexão entre Mundo 2 e 3, e esta conexão se efetiva
por uma influência mútua, na medida em que os processos mentais manipulam os
objetos do mundo 3 e nesta manipulação transformam o conhecimento objetivo e a si
mesmo. A linguagem aparece como expressão facilmente identificável, como elo entre
estes dois Mundos.
Assim, a aprendizagem de uma linguagem é um processo no qual disposições
geneticamente fundamentadas, desenvolvidas por seleção natural, de alguma forma
sobrepõem-se e interagem com um processo consciente de exploração e aprendizagem
baseado na evolução cultural. Isto sustenta a ideia de uma interação entre os Mundos 3
e 1 e, em vista dos nossos argumentos anteriores, sustenta a existência do Mundo
2.(POPPER, 1995, p.74)
A linguagem é o ponto fundamental para corroborar, a existência do Mundo 3, e mais, a
sua influência no Mundo 1 pelas transformações que causa no Mundo 2. Apesar de a
linguagem ser exposta por Popper como sustentada pela genética humana, isto é, é o
gene humano que possibilitou o surgimento, desenvolvimento e transformação
(evolução) da linguagem, esta é um produto humano, é uma criação do homem e por ser
criada pelo homem, está caracterizada como uma expressão da cultura humana
(POPPER, 1995). A interpretação do mundo físico, dos processos mentais
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