O Estado moderno e as artes de governo em Foucault

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O Estado moderno e as artes de
governo em Foucault
Ubiratan Trindade*
Resumo: O objetivo deste artigo é fazer uma reflexão sobre as tecnologias
de poder que aparecem na historia a partir do Século XVI e a primeira metade do Século XVII. Vamos analisar, na obra Segurança, território, população, de Michel Foucault, mais precisamente na aula de 22 de março de
1978, como surgiu a noção de razão de Estado, as artes de governo, a relação de concorrência entre os Estados, a força como elemento da razão
política, o sistema diplomático-militar e a busca do equilíbrio europeu.
Palavras-chave: Razão de estado. Governamentalidade. Biopolítica. Sistema
diplomático-militar. Equilíbrio europeu. Foucault.
Comemorou-se, no dia 25 de junho de 2014, trinta anos da morte do
filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Conforme Safatle, Foucault
foi um dos mais influentes filósofos do Século XX. Criador de uma obra
inovadora por seu método arqueológico e genealógico, sua influência só aumenta e tem crescido no meio acadêmico, assim, não há setor
das Ciências Humanas que possa desprezar suas problematizações.
Michel Foucault marcou de modo decisivo o pensamento do Século XX,
* Professor de Filosofia da Universidade e Santa Cruz do Sul (Unisc), doutorando no
Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos.
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nas áreas da Filosofia, Ciências Humanas, Biomédicas, Jurídicas, na
Psicologia e na Ciência Política. Para Paul Veyne (2009), Foucault não
foi um inimigo do homem e do sujeito, como muitos de seus opositores o julgaram. Ele apenas considerava que o sujeito não podia fazer cair
do céu uma verdade absoluta nem agir soberanamente na constelação
das verdades. Segundo Veyne (2009), Foucault era um personagem magro, elegante e incisivo que nada e ninguém fazia recuar e cuja esgrima
intelectual manejava a escrita como se fosse um sabre.
Entre as principais obras de Michel Foucault podemos destacar:
História da loucura na idade clássica (1961), que abre o caminho para o
seu sucesso, Doença mental e psicologia (1954) e O nascimento da clínica
(1963). As palavras e as coisas (1966) aprofundam as elaborações teóricas
do autor. Torna-se finalmente conhecido no disputado meio acadêmico,
trazendo uma série de contribuições para o debate histórico-crítico.
Nessa obra, o autor deixa claro que todo o pensamento, toda a prática
e toda a fala de uma época são coordenados por um conjunto de ideias
fundamentais, funcionando como matrizes de um tempo determinado.
Tais matrizes mudam com o tempo, modificando toda a configuração do
saber, proporcionando diferentes camadas de discursos e práticas, possibilitando uma arqueologia do saber. Seu último livro da fase chamada
arqueológica é Arqueologia do saber (1969).
Nos anos 1970 torna-se professor do Collège de France e profere
uma aula inaugural publicada sob o título A ordem do discurso (1970).
É quando Foucault inova ao procurar discernir os procedimentos inerentes às relações de poder. Trata-se, agora, de estudar como o poder
domina e se faz obedecer. Foucault nos leva a crer que, a partir do Século XVII, desenvolveram-se novas tecnologias de poder culminando
com a ideia de que ele está disseminado em todos os lugares e em todas
as relações. O poder está distribuído em todas as partes das relações
sociais, numa trama complexa e heterogênea na qual, ao mesmo tempo,
surgem espaços de resistência ao próprio poder. Na obra Vigiar e punir
(1975), o filósofo francês conduz ao entendimento que houve nos últimos séculos: uma transformação na temática das tecnologias do poder.
Novas configurações na modelagem política apareceram, tendo como
função o governo e o controle das populações. O panóptico1 passa a ser
1 Para maiores detalhes sobre o panoptismo, ver a obra Vigiar e Punir, de Michel
Foucault, capítulo III.
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o modelo de controle de toda a sociedade. Sem saber, estamos sendo
olhados, vigiados e controlados.
Para Foucault, o desenvolvimento dessas novas tecnologias de poder
e saber, elaboradas na idade moderna, possibilitaram um elevado grau
de intervenção sobre o ser humano. O poder é exercido sobre cada indivíduo e, ao mesmo tempo, sobre a população, proporcionando, dessa forma, a
construção das identidades. Ou seja, ao mesmo tempo em que controlamos, estamos sendo controlados. Ao mesmo tempo em que agimos algo
age em nós. Essas técnicas disciplinares que surgiram, a partir do Século
XVII, têm como objeto o corpo, sua regulação, adestramento e a ampliação de suas forças pela intervenção das instituições como o Estado,
a escola, a fábrica, o hospital e a família. Essas técnicas normalizadoras
trouxeram como consequência, o controle das pessoas e de grupos sociais, determinando comportamentos, normas de conduta e até mesmo
padrões morais. Um deslocamento no tempo nos mostra que esta noção
moderna de economia política seria vista de forma estranha pelos gregos
e outras sociedades tradicionais.
A noção de cuidado da vida, assim como o governo dos outros,
eram completamente alheios à pólis grega. A política grega se
caracterizava pela isonomia dos cidadãos, a autonomia dos sujeitos e a autogestão na Ágora. A oikos (casa) era o espaço onde
se administrava a vida, onde se governavam os outros, onde se
cuidava da vida dos outros (RUIZ, 2014, p. 45).
A prática política que tinha como objetivo governar a vida dos outros
nas sociedades antigas era associada à figura do rei-pastor.
Na obra Segurança, Território, População (2008), Foucault trabalha
a noção de território, espaço e população. Destaca, sobretudo, o que ele
vai chamar de sociedade de segurança ou biopolítica, baseada no poder
sobre a vida, na ação sobre o homem enquanto espécie ou população.
Segundo o que se depreende dessa obra, a noção de governo é uma noção moderna. A genealogia proposta por Foucault em sua analítica do
poder, ou biopolítica, remete ao entendimento de que somos sujeitos
e, ao mesmo tempo, objetos de governo. Se antes o soberano baseado
em leis governava o território, agora o governo governa as pessoas. A
vida humana e suas multiplicidades passam a fazer parte das relações
de poderes e da construção de saberes. A tese que Foucault sustenta é
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que, a partir dos Séculos XVI e XVII, houve uma ruptura no modo de
governar. Se antes havia um Rei divino que legislava em nome de Deus,
agora surge o Estado moderno com suas novas tecnologias de poder,
com dispositivos de segurança, tendo como objeto o governo da vida. O
ser humano passa a ser um elemento útil e um problema a ser administrado pelo Estado. Assim, a riqueza do Estado é também sua população
que passa a ter, por parte desse, cuidados especiais, configurando-se
uma espécie de lógica utilitarista. Nessa nova modalidade, dispositivos
de segurança passam a ser fundamentais para assegurar a ideia de um
Estado protetor. Novas técnicas de governo são implantadas como segurança alimentar, policial, cuidados com a saúde da população e a organização
do espaço urbano.
Na aula de 22 de março de 1978, objeto desse artigo, Foucault deixou
pistas fundamentais para entendermos a genealogia do Estado moderno.
Demonstrou como se realizou na Europa aquilo que chama de razão
governamental, ou seja, novas práticas políticas visando à manutenção
do Estado através de dispositivos de poder.
O que veio à luz – é o que procurei lhes mostrar – foi uma arte
absolutamente específica de governar, uma arte que tinha sua
própria razão, sua própria racionalidade, sua própria ratio.
Acontecimento na história da razão ocidental, da racionalidade
ocidental, que não é sem dúvida menos importante do que aquele que, exatamente na mesma época, isto é, fins do Século XVI
– correr do Século XVII, foi caracterizado por Kepler, Galileu,
Descartes, etc. (FOUCAULT, 2008, p. 383).
O que aparece nesse novo momento é outra maneira de pensar, de
raciocinar e de calcular aquilo que se chamava de política. Outra forma
de pensar o poder, outra maneira de pensar o reino, de pensar o fato
de reinar e governar, outra maneira de pensar as relações entre o reino
do céu e o reino terrestre. Essa nova ratio governamental ou razão de
Estado vai desencadear um movimento ou um deslocamento, proporcionando o aparecimento do Estado como conhecemos hoje, com todo
esse aparato governamental e com toda sua capacidade de intervenção.
Regulando populações, regulando a economia, os mercados a educação
e a saúde das pessoas. O Estado moderno surge com essa nova modalidade, uma capacidade reguladora, esta nova ideia de razão governamental,
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uma arte de governar. Governar agora exige saber o que significa um
soberano, um magistrado, as leis, um território e suas riquezas. Estado
governamentalizado, rompimento com a soberania e, no limite, com as
formas personalistas do poder.
Aparece com os dispositivos de governo a ideia de uma política
como forma racional da arte de governar. O Estado se constitui como
razão governamental, fazendo com que se possa governar racionalmente, segundo as suas necessidades. É a função de inteligibilidade do
Estado. Governar racionalmente porque há um Estado e para que haja
um Estado. Foucault menciona em seu texto dois autores que, no Século
XVII, já trabalhavam a noção de razão de estado. Comenta o texto de Palazzo, escrito, editado e publicado em italiano, no ano de 1606, afirmando a necessidade da conservação do estado com o objetivo de ampliar
o próprio Estado e também manter a paz (FOUCAULT, 2008, p. 386).
O outro autor é Botero (1589) que, para Foucault, é o primeiro na Itália
a desenvolver uma teoria da razão de Estado ao afirmar que a razão de
estado é um conhecimento perfeito dos meios pelos quais os Estados se
formam, se mantém, se fortalecem e se ampliem. Como pano de fundo
desse debate certamente está a preocupação com a manutenção do Estado,
evitando seu desaparecimento como ocorreu com alguns impérios.
O que há que evitar, segundo Botero, segundo Palazzo e os outros,
são esses processos praticamente inevitáveis, sempre ameaçadores em todo caso, que trazem embutido o risco de fazer o Estado
entrar em decadência e de, depois de tê-lo levado ao zênite da historia, fazê-lo desaparecer e se apagar. O que se trata de evitar, no
fundo – e é nisso e por isso que a razão de estado funciona, segundo Botero e Palazzo –, é o que aconteceu ao reino da Babilônia,
ao Império Romano, ao Império de Carlos Magno, esse ciclo de
nascimento, do crescimento, da perfeição e, depois, da decadência
(FOUCAULT, 2008, p. 387-388).
Diferente de Platão que, contra a decadência sempre ameaçadora
das cidades, propunha uma boa constituição, boas leis e magistrados virtuosos, esses homens do Século XVI, para defender o Estado contra mudanças ou até mesmo revoluções, oferecem a alternativa da arte de governar. Agora será preciso ter uma espécie de habilidade e uma racionalidade
nos meios utilizados para governar.
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Outro dispositivo que vai aparecer nesse momento da história será
a concorrência entre os Estados. Embaixadores, dirigentes e funcionários reais são orientados quanto à sua manutenção e à sua ampliação. É a
constatação de que os Estados são postos uns ao lado dos outros num espaço de concorrência (FOUCAULT, 2008, p. 389). Essa é uma ideia nova
e consolida-se como aquilo que Foucault vai denominar de tecnologia
política. Sob o ponto de vista teórico, o Estado não se subordina mais
a nenhuma lei divina ou natural ou até mesmo moral. Tem agora, um
fim em si mesmo, só se subordinando a ele próprio. Não há nenhuma
lei que possa se impor quando proveniente de fora do estado. Com
a razão de Estado, estamos agora num mundo de historicidade indefinida, num tempo aberto. Com a razão de estado há, necessariamente,
uma pluralidade de Estados que terão sua lei e seu fim apenas em si
mesmos. Essa pluralidade de Estados é uma necessidade da história, que
faz com que desapareça aquela noção de unidade última de um Império
como detentor de todo poder.
Os Séculos XVI e XVII vão ser de grande importância para a
historicidade da Europa. As velhas formas de universalidade que haviam
sido impostas à Europa começam a ruir. A ideia de que tudo deveria se
resumir em um grande Império como, por exemplo, o Império Romano,
começa a desaparecer. Tal noção de universalidade, que era fundamental para a Igreja e era de extrema importância para a conjuntura política e
econômica da Europa Medieval, começa a perder força. O célebre tratado
de Vestfália,2 que é o marco inicial da diplomacia moderna e o ponto inicial do que conhecemos hoje como Estado e Nação, é o reconhecimento
da soberania de cada Estado envolvido. Velhas formas desaparecem para
dar lugar a novas técnicas de governo. A própria Igreja, com seu modelo
impenetrável, vê suas bases serem corroídas. Aquilo que conhecíamos
como unidade da Igreja passa a sofrer séria transformação com as guerras religiosas. O Império Romano, que antes servia de modelo na arte de
governar, e a Igreja, com sua cisão, perdem o sentido de universalidade.
Conforme Rawls, a Reforma do Século XVI foi um processo histórico
que influenciou profundamente a filosofia moral e política. Segundo ele,
2 A chamada Paz de Vestfália é um conjunto de tratados elaborados que encerrou
a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) proporcionando uma nova configuração
geopolítica à Europa. Foi firmada em Münster no dia 24 de outubro de 1648, após
o resultado de cinco anos de intensas e difíceis negociações entre as principais
potências europeias.
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a Reforma fragmentou a unidade religiosa da Idade Média levando a um
pluralismo religioso com consequências profundas para os séculos posteriores, inclusive possibilitando o surgimento dos vários tipos de liberalismo tais como conhecemos hoje: liberdade de religião, liberdade política e
liberdade econômica (RAWLS, 2005, p. XXII).
O fascínio e a glória, que eram um legado da Igreja Católica e do
Império Romano e que influenciaram por Séculos a política e a economia
de toda a Europa juntamente com sua forma de universalidade, já não
fazem mais sentido. Uma nova forma de governar começa a aparecer.
O império e a Igreja perderam sua vocação, seu sentido de ser, ao menos
no nível dessa universalidade. Com essa nova realidade articulam-se
novas possibilidades na arte de governar. Aparece a noção de que se está
num tempo politicamente aberto e num espaço estatalmente múltiplo
(FOUCAULT, 2008, p. 391). Novas unidades surgem com mais espaço para a autonomia política e novas articulações entre essas próprias
unidades se realizam. Intercâmbios econômicos são intensificados,
ampliados e multiplicados.
Eles procuram se afirmar num espaço que é o da concorrência
comercial e da dominação comercial, num espaço de circulação
monetária, num espaço de conquista colonial, num espaço de
controle dos mares, e tudo isso dá à afirmação de cada estado por
si mesmo não simplesmente a forma de auto- finalidade de que eu
lhes falava na última vez, mas esta nova forma, a da concorrência
política e econômica, para empregar palavras meio anacrônicas
em relação à realidade, num espaço de concorrência que vai dar
seu sentido a esse problema da ampliação do estado como princípio, fio condutor da razão de estado (FOUCAULT, 2008, p. 391).
Intercâmbios econômicos, concorrência comercial, circulação
monetária, conquistas coloniais e controle dos mares aparecem agora, como
novas formas e novas técnicas de governar. As possibilidades de manutenção
e ampliação dos Estados se afirmam nesse novo espaço político e econômico.
Conforme Foucault (2008), a partir dos Séculos XVI e XVII as
relações entre os Estados foram percebidas não mais sob a forma da
rivalidade mas, sim, sob uma nova perspectiva, denominada de concorrência. Nesse sentido, pode-se afirmar que agora se tem uma rivalidade
entre dinastias ou reinados. Surge um novo modelo para pensar a política.
Uma nova forma de enfrentamento entre os reinos em que tudo deve ser
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pensado, calculado, percebido e reconhecido a partir da concorrência.
Os Estados mercantilistas deixam de ser rivais para serem concorrentes.
As riquezas dos príncipes sob a forma de tesouros ou sob a forma de
recursos fiscais, dos recursos monetários que eles dispunham, já não é
o mais importante. Uma ruptura acontece. Um corte na história, determinando que o que vale agora é a riqueza ou as riquezas do próprio
Estado. Passagem da riqueza do príncipe como fator de poder à riqueza
do Estado como a própria força do reino (FOUCAULT, 2008, p. 395).
Aparece na história, nesse momento, conforme Foucault (2008), uma
transformação profunda no modo de ver o Estado e suas riquezas. As
riquezas intrínsecas do Estado tais como seus recursos naturais, possibilidades econômicas, as trocas e a balança comercial passam a ter mais
importância. É o mercantilismo, com seu metalismo e seu colonialismo.
Outra transformação ocorrida neste momento é o fato de que quando se
pensavam os enfrentamentos em termos de rivalidades dos príncipes, o
que caracterizava a força do príncipe era seu sistema de alianças, no sentido familiar ou no sentido das obrigações familiares a ele ligadas. No
entanto, a partir do momento em que se começou a pensar os enfrentamentos em termos de concorrência entre Estados, as relações passam
a serem outras. A passagem da rivalidade dos príncipes à concorrência
dos Estados é uma mutação que vai marcar profundamente a vida política e a história do Ocidente a partir do Século XVI. Deslocamento da
soberania para a governamentalidade do Estado.
Com o lento desaparecimento das forças dinásticas, o enfrentamento
passou a ser pensado em termos de concorrência entre os Estados, levando ao aparecimento ou ao surgimento da noção de força. A partir de então
não é mais a ampliação dos territórios, mas o aumento da força do Estado o fator de maior importância. Não é mais a extensão das posses ou
das alianças matrimoniais e não é mais a combinação de heranças por
meio de alianças dinásticas o que vai ter relevância. O que conta agora é
a força de Estado, a composição das forças estatais em alianças políticas
e provisórias. Esse novo modelo vai servir de matéria-prima, o objeto
e, ao mesmo tempo, o princípio de inteligibilidade da razão política. A
Guerra dos Trinta Anos3 serve como exemplo desse novo paradigma de
3 A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que transformou pouco a pouco a Alemanha
em campo de batalha da Europa (a Suécia interveio em 1630, a França, após uma
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se fazer política através do cálculo e da razão de estado. O resultado da
guerra demonstra claramente o surgimento de um novo estrato analítico
e teórico, um novo elemento da razão política, que foi a força dos Estados envolvidos. A política agora vai ter por objeto principal a utilização
e o cálculo das forças. A política e a ciência política vislumbram, nesse
momento, a questão da dinâmica, um dispositivo das forças que irão regular as relações entre os Estados. A tese que Foucault quer demonstrar
é que a noção de universalidade, como a empregada por grandes Impérios ou até mesmo a universalidade proposta pela Igreja em tempos anteriores, já não tem mais o mesmo efeito. As forças dinâmicas
que passam a referendar as mudanças agora são outras. Vive-se nesse
instante um novo tempo. O mundo ficou maior com a descoberta de
novas terras e de um novo continente. Os Estados se multiplicaram e
o que acontece é uma fragmentação de poderes e não mais uma centralização como ocorrera antes. Todos esses fenômenos conduzem a
uma mutação no pensamento político. Estamos, pela primeira vez, na
presença de um pensamento político que pretende ser, ao mesmo tempo, uma estratégia e uma dinâmica das forças envolvidas. É interessante
observar que, nessa mesma época, as Ciências da Natureza, mais especificamente a Física, também vão encontrar essa noção de força. A
dinâmica política e a dinâmica como ciência física são praticamente
contemporâneas (FOUCAULT, 2008, p. 397). A própria ideia genealógica da democracia poderia ser pensada a partir de Galileu, quando ele
afirma a equivalência dos corpos.
Com a implantação dessa nova ordem política e de novos dispositivos
de governo, consolida-se no Ocidente o que passamos a conhecer como razão de estado. O Estado aparece como um aparelho que pode controlar
tudo aquilo que está em seu entorno. Essa dinâmica de forças, a manutenção, a conservação e até mesmo a ampliação do Estado, criaram,
segundo Foucault (2008), dois grandes conjuntos que só podem ser entendidos a partir da racionalização dessas forças. De um lado, criou-se
um dispositivo diplomático-militar e, de outro, o dispositivo da polícia.
Cada um com suas funções bem determinadas. O primeiro, tendo como
“guerra velada”, em 1635), foi ao mesmo tempo uma guerra civil e o primeiro grande
conflito internacional a por em ação, no século XVII, lógicas de potência. Sobre o
Tratado de Vestfália, que puseram fim a essa guerra, conferir supra, nota 5.
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objetivo a manutenção de uma relação de forças externas ao Estado. O
segundo, o desenvolvimento de forças internas, o que se pode chamar
de mecanismo de segurança. As novas técnicas diplomático-militares representam uma nova relação com os Estados concorrentes. Os Estados
possuem seus espaços de mobilidade, sua ambição, sua necessidade de
manutenção e de ampliação. Trata-se, no momento, de deixar aberturas suficientes para evitar seu enfraquecimento. Esse novo dispositivo
foi aperfeiçoado e levado ao seu mais alto nível a partir da Guerra dos
Trinta Anos. Ao término desse ciclo de mais ou menos 100 anos4 de lutas
religiosas e políticas, pelo qual desaparece de forma definitiva tanto o sonho imperial, como o universalismo eclesiástico, ocorre esta ruptura na
maneira de enfrentar o concorrente. Estabelece-se, então, um novo olhar
sobre os Estados concorrentes. Cada Estado detém certa autonomia e
aspira a afirmação de si mesmo, tendo como fim a sua própria política.
Esses novos instrumentos, ou novos dispositivos de governo, têm como
finalidade a razão de estado e proporcionam, por sua vez, essa razão, a
qual trará como consequência, o equilíbrio da Europa. As relações diplomáticas e as negociações entre embaixadores recebiam de seus governos
a incumbência ou a recomendação explícita para que agissem de tal
modo que os novos traçados de fronteiras, as novas divisões dos Estados,
as novas relações estabelecidas entre os Estados alemães e o Império,
as zonas de influência da França, da Suécia e da Áustria fossem feitas
em função de um princípio: manter certo equilíbrio entre os diferentes
Estados da Europa (FOUCAULT, 2008, p. 399). Tudo isto passou a ser
pensado para que houvesse um equilíbrio, uma balança, entre as nações.
Nesse novo contexto político da primeira metade do Século XVII
surge, pela primeira vez, o conceito de Europa. Segundo Foucault (2008),
a Europa, como conhecemos hoje, é uma ideia absolutamente nova. Devemos lembrar que os Impérios e a Igreja eram instituições que tinham
como vocação a ideia de universalidade. O cristianismo, como religião
expansionista visava por definição, cobrir o mundo inteiro. A Europa, ao
contrário, é, nesse momento, uma divisão geográfica sem pretensões de
universalidade. É uma divisão delimitada, inclusive não compreendendo
4 Cem anos considerando-se o período que vai da paz de Augsburgo (1555), que reconhecia a cada Estado no seio do Império o direito de praticar a religião (católica ou
luterana) que ele confessava – princípio chamado mais tarde cujus régio, ejus religio – e
consagrava, com isso, o fim do império medieval, até a paz de Vestfália (1648).
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à Rússia e a própria Inglaterra, as quais não faziam parte ativa do tratado
de Vestfália. Pode-se dizer também que a Europa não é mais uma forma
hierárquica de Estados que ficam subordinados uns aos outros, tendo
como fim um Império. Cada soberano, ao menos, os principais deles,
é Imperador em seu próprio reino, o que afasta a possibilidade de uma
Europa vista como uma unidade ou uma espécie de conjunto único.
A Europa agora é absolutamente plural. Uma divisão geográfica, uma
multiplicidade sem unidade de Estados, com uma diferença importante
entre os pequenos e os grandes. Mas, ao mesmo tempo que ela é uma
divisão geográfica, uma pluralidade, ela tem suas relações com o mundo.
Especificamente, a Europa, tem com o resto do mundo uma relação
de dominação econômica e comercial, aquilo que veio a ser conhecido
como colonização. Surge uma nova Europa, uma região de Estados múltiplos, sem unidade, e plural, com desníveis entre pequenos e grandes,
tendo com o resto do mundo uma relação de dominação e de utilização.
Foi esse pensamento que se formou no fim do Século XVI. Um pensamento que vai se cristalizar no Século XVII com o conjunto de tratados
que vão ser assinados. Segundo Foucault (2008), esta é uma realidade
histórica da qual ainda não saímos. Para ele, isso é o que define a Europa.
Novas formas de governar levaram a um certo equilíbrio, a uma
balança entre os países agora concorrentes. Todos os países possuem a
iniciativa de praticar suas políticas, segundo os diferentes momentos,
marcando posição conforme seus interesses particulares. Essa balança
europeia é o que causa o equilíbrio entre as nações. Não há espaço para
o Estado mais forte ditar sua lei a qualquer outro Estado. Em outras
palavras, manter-se-á a balança da Europa se houver um arranjo para
que a diferença entre o Estado mais forte e os que o seguem não seja
tal que o mais forte dos Estados possa impor sua lei a todos os outros
(FOUCAULT, 2008, p. 401). Consolida-se a ideia de limitar as forças do
poder entre Estados concorrentes e balancear as desigualdades entre os
mais fortes e os mais fracos. A consequência do equilíbrio europeu foi a
constituição de um número limitado de Estados mais fortes tendo como
objetivo claramente impedir a um deles de tomar a frente e prevalecer
sobre os demais. Para Foucault (2008), essa é uma construção de uma
aristocracia de Estados. Uma aristocracia igualitária que levou a uma
igualdade de forças entre, por exemplo, a Inglaterra, a Áustria, a França
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e a Espanha. Consolida-se, assim, um equilíbrio entre essas forças
ocasionando consequências no campo jurídico nos séculos seguintes.
Encontramos em Wolff, no Jus Gentium, o seguinte: a “União de várias
nações” deve poder se dar de tal modo “que a força preponderante de um
ou vários países seja igual à força reunida dos outros” (WOLFF, 1749, p.
415). Fica a noção de que a relação tem de ser de tal modo que a reunião
de várias pequenas potências possa contrabalançar a força da potência
superior, que poderia vir a ameaçar uma delas. Abria-se a possibilidade
de coligações tendo como efeito contrabalançar a um momento dado e
num lugar dado qualquer das preponderâncias estabelecidas. O equilíbrio teve como origem uma relação recíproca entre as forças de resistência e as forças de agressão entre os diversos corpos políticos envolvidos.
Assim, com essa limitação do poder do mais forte, com a equalização
entre os mais fortes e com a combinação dos mais fracos para enfrentar
os mais fortes, construiu-se a ideia de um equilíbrio europeu e daquilo
que conhecemos como balança europeia.
A noção que deixa Foucault é de que temos então, nesse momento,
na Europa, uma escatologia relativa, ou seja, uma espécie de destino que
envolveria as nações tendo como fim a paz. Não mais uma paz suprema
e universal como a desejada pelo Império ou pela Igreja. Agora, o que se
almeja é atingir a paz pela pluralidade, pela multiplicidade de Estados
com relativa autonomia. Se antes se impunha a paz pela força, pela dominação, agora se deseja a paz e se realizam tratados em nome da paz,
respeitando o outro como forma de alteridade. Não é mais da unidade
que se origina a paz, mas sim, da não unidade, ou melhor, da pluralidade. Aparecem novas formas de governar. Técnicas diplomáticas bem
diferentes daquelas utilizadas na Idade Média. Antes, era da Igreja que
se esperava a paz, pois era ela a potência que unificava. Agora espera-se
a paz dos próprios Estados e da sua pluralidade. Para Foucault, esta é
uma mudança considerável ao ponto de causar uma ruptura nas relações
entre os governos. Cada Estado tem o direito de aumentar sua segurança
ou suas forças, sem que o aumento de suas forças seja a causa da ruína
do outro ou dele próprio. Constroem-se, dessa forma, instrumentos ou
ferramentas que levam a uma razão de estado, uma armadura diplomática envolvendo a constituição de uma nova Europa, através de uma balança europeia. Alguns eventos colaboraram para essa nova modalidade
geopolítica. A guerra, por exemplo, é utilizada como instrumento para
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almejar a paz. Pode-se guerrear com o fim de se manter esse equilíbrio.
Altera-se completamente o pensamento jurídico da guerra em elação ao
que era na Idade Média. Se antes se guerreava em nome de um Deus, da
herança de uma família, litígios por confisco de terras ou pela discórdia
em relação a uma pessoa, a partir da modernidade as relações são outras.
Na guerra medieval 5 não havia descontinuidade entre o universo do
direito privado, em que se tratava de liquidar litígios e o mundo do direito, o qual não se chamava de direito internacional ou público. Perdi,
logo o direito não está do meu lado.
A guerra, a maneira de se fazer a guerra ou o porquê de se fazer a
guerra, passa, a partir de então, por grandes transformações. Vai funcionar de outra maneira. Não se está mais numa guerra do direito. Está-se agora, numa guerra do Estado, de razão de Estado. As guerras já não
são mais deflagradas em nome de litígios entre os príncipes. As razões,
então, passam a ser diplomáticas. Se o equilíbrio entre as nações está
comprometido, será necessário restabelecê-lo. O excesso de poder de um
lado já não é mais tolerado. Apesar de haver ainda pretextos jurídicos,
o uso da guerra se desloca, tem outros contornos e necessita de outras
justificativas. A política vai ordenar se se entra ou não em guerra, determinando outro ordenamento jurídico. Agora é a política como uma espécie de arte da guerra que tem a função de manter o equilíbrio entre os
Estados. A mesma política que deve assegurar a balança dos Estados no
âmbito da Europa, o equilíbrio entre eles, e a projeção ou realização de
alianças. Uma antecipação daquilo que iríamos conhecer bem mais tarde, ou seja, a guerra como continuação da política por outros meios. Ou
ainda como afirma Bobbio (2000): a política para evitar a guerra. Uma
mutação que ocorre a partir do Século XVII, uma nova razão política,
uma razão diplomática que teve origem no famoso tratado de Vestfália.
Valoriza-se, a partir de então, o instrumento militar-diplomático que,
diga-se, é tão antigo quanto a guerra.
O tratado de Vestfália é um tratado multilateral que vai resolver o
litigio entre Estados e não entre pessoas, Reis ou Príncipes. O que aparece de novo é que os conflitos deverão ser resolvidos em nome de um
conjunto que é a Europa. E resolver conflitos nesse novo momento não
5 Sobre esta abordagem entre o direito e a guerra, entre a batalha e a vitória e o
julgamento de Deus, ver mais na obra de George Duby sobre o domingo de Bouvines
onde se terá maiores esclarecimento sobre o funcionamento judicial da guerra.
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significa seguir as linhas jurídicas prescritas pelas leis e pela tradição.
Não é mais seguir as linhas jurídicas prescritas pelos direitos de herança, cláusulas de resgate, de casamento ou de cessão. As normas, a partir
desse tratado multilateral, têm como finalidade ou até como necessidade
a busca do equilíbrio. O princípio fundamental dessa nova diplomacia
é uma física dos Estados e não mais o direito dos soberanos. Missões
diplomáticas permanentes passam a ter substancial importância na relação entre os Estados. Aquilo que conhecemos hoje como corpo diplomático, ou a embaixada como representação de um país, data dessa
época. Aparece a ideia de um dispositivo permanente de relações entre
Estados. Dispositivo que não é mais a representação de uma unidade
imperial ou da universalidade eclesiástica. É a ideia de uma verdadeira
sociedade das nações (FOUCAULT, 2008, p. 406). Surge então no espaço europeu, aquilo que podemos nomear como sendo uma sociedade, a
percepção de que os Estados são indivíduos e que devem manter entre si
certo número de relações. Relações essas que o direito deve determinar
e codificar, culminando com o que foi chamado de Direito das Gentes, o
jus gentium, que se torna um dos pontos fundamentais do pensamento
jurídico. São novas relações jurídicas entre esses novos indivíduos que
coexistem em um novo espaço, a saber, os Estados na Europa, os Estados numa sociedade das nações. Maiores detalhes sobre essa nova relação podemos encontrar em Burlamaqui, 6 em um texto do Século XVIII.
Para Foucault, esse foi o maior teórico do direito das gentes. Formula
Os princípios do direito na natureza e das gentes. Nesse texto, Burlamaqui afirma que a Europa forma um sistema político, um corpo, em
que tudo está ligado por relações e pelos diversos interesses das nações
que habitam aquela parte do mundo. A Europa já não seria como em
outros tempos, ou seja, um amontoado de peças isoladas sem interesse
pelos outros. Surge um novo momento, um novo tempo para a Europa,
em que representantes de cada nação passam a viver permanentemente
em outros países, buscando estreitar as relações em todos os setores e
6 Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748), Principes du droit de la nature et des gens,
parte IV, cap. II, edição Póstuma por Yverdon de Felice (1767-1768), 8 vols.; nova ed.
revista e corrigida por M. Dupin, Paris, chez B. WARÉE, 1820, 5 vol. Citado por L.
Donnadieu, La Théorie de L’equilibre, p. 46 que acrescenta: “As ideias de Burlamaqui
são encontradas, palavra por palavra, em Vattel, Droit des gens” (Cf. E. de Vattel, Le
Droit des Gens, ou Principes de la loi naturelle..., III, 3, parágrafo 47 (De L’Équilibre
politique), Londres, [s.n], 1748, t.2, p. 39-40).
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atividades. Contínuas negociações da nova Europa geram uma espécie
de República, cujos membros, independentes, mas ligados por interesses
comuns, se reúnem para manter a ordem e a liberdade.
Essa é a essência da ideia de Europa e da balança europeia. Ela se
concretiza com o advento do tratado de Vestfália, que foi a primeira
manifestação consciente de uma política do equilíbrio europeu. O tratado
teve como função principal reorganizar territorialmente a Europa. Definiu também os direitos em relação aos principados alemães, as zonas de
influência da Áustria, da Suécia e da França sobre o território alemão.
Tudo isso em função das leis do equilíbrio, visando prioritariamente, já
naquela época, algum controle sobre a Alemanha. Não podemos esquecer, conforme Foucault (2008), que a Europa, como entidade jurídico-política, a Europa como sistema de segurança diplomática e política,
é o jugo que os países mais poderosos impuseram à Alemanha com o
propósito de controlar a ameaça do poderio germânico que já se fazia
sentir naqueles tempos.
Instrumentos como a guerra, um sistema diplomático-militar e
agora um dispositivo militar permanente foram fundamentais para a
formação da Europa Moderna como conhecemos hoje. O dispositivo
militar permanente surge como forma de oportunizar a profissionalização do homem de guerra, a constituição de uma carreira das armas.
Criou-se, dessa forma, um saber, uma inteligência e estratégias de guerra com o propósito de ataque e defesa. Em resumo, toda uma reflexão
própria e autônoma sobre o aparato militar e as guerras possíveis. A
existência de um dispositivo militar permanente em cada Estado torna-se um instrumento fundamental para o equilíbrio europeu e para a
construção de tempos de paz. A possibilidade de cada um fazer a guerra
e a mesma possibilidade de todos os outros se defenderem à altura foi
o que possibilitou o equilíbrio possível entre as nações. Proporcionou o
surgimento e a presença da diplomacia na política, na economia e em
outros setores da atividade humana. A política passou a ser comandada
pelo cálculo e pelo equilíbrio, sempre tendo em mente que o equilíbrio e
a balança entre os Estados eram consequência do dispositivo militar que
era um dos elementos essenciais na concorrência entre os Estados. Apareceu a noção de força como forma de manter o equilíbrio. Cada Estado procurou inverter a relação de força a seu favor sendo que, na prática, o que acontecia é que todos acabavam mantendo em conjunto uma
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relação equilibrada de forças. Era muito forte a ideia de que a guerra era a
continuação da política. Consolidou-se e incorporou-se todo um aparato
em nome da profissionalização militar. A guerra, definida politicamente,
passou a fazer parte da atividade dos homens. A função militar tinha
dimensões bem estabelecidas. Um complexo político-militar definia as
relações entre os Estados, sendo até mesmo necessário à constituição
do equilíbrio europeu como mecanismo de segurança. Esse complexo
político-militar estava sempre em ação e a guerra era apenas uma de
suas funções. A relação entre a paz e a guerra e a relação entre o civil e o
militar se manifestava em torno desses dispositivos de poder. Destaca-se também aquilo que Foucault chama de um aparelho de informação
(FOUCAULT, 2008. p. 410). É absolutamente fundamental para a continuidade e para o fortalecimento desse aparato de guerra, cada Estado
conhecer suas forças e é claro, ocultá-las. Conhecer a força dos outros,
dos aliados, dos adversários, e ocultar que as conhece.
Foucault (2008), com seu método genealógico, mostrou como, nos
Séculos XVI e XVII, a partir de dispositivos de governo ou da arte de
governar, apareceu na Europa aquilo que denominamos de razão de estado. No Curso Segurança, território, população tratou da gênese de um
saber político que colocou no centro de suas preocupações a noção de
população e os mecanismos que asseguram sua regulação. O aparecimento de novos problemas e de novas técnicas de governo. Para os
gregos que inventaram a política, a vida das pessoas não era um problema do Estado, pois a sua economia, os cuidados com a saúde e a educação constituíam-se como uma questão restrita à vida privada. Embora
a noção de cuidar do outro ou cuidar das pessoas apareça no pastorado
cristão, ela vai somente tomar novos contornos a partir do Século XV
e XVI, exatamente com a crise geral do pastorado. O questionamento
geral sobre a maneira de governar e de se governar, de conduzir e se conduzir, acompanha, no fim da feudalidade, o nascimento de novas formas de relações econômicas e sociais (FOUCAULT, 1997). Novas artes
de governar aparecem no Ocidente, no final do Século XVI e primeira
metade do Século XVII, formando uma nova governamentalidade política. Tudo isso proporciona o surgimento da razão de estado, uma nova
matriz de racionalidade, segundo a qual o governo deve governar a população. Desaparecem, a partir de então, princípios ligados às virtudes
tradicionais tais como sabedoria, justiça e respeito às leis divinas, dando
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lugar a um novo domínio de aplicação que é o Estado. Desaparecem
também temas relacionados ao Império. Roma como Império tem seu
fim. Uma nova percepção histórica se forma. Abre-se um novo tempo
em que mais do que os problemas de legitimidade de um soberano sobre
um território, o importante será o conhecimento e o desenvolvimento
das forças de um Estado. Desta forma, a razão de estado toma forma
em dois grandes conjuntos de saber e de tecnologias políticas: uma tecnologia diplomático-militar, que consiste em assegurar e desenvolver as
forças do Estado, visando sua manutenção e ampliação através de um
sistema de alianças buscando sempre um equilíbrio. A outra caracterizada pela polícia no sentido que se dava a esse termo, ou seja, o conjunto
dos meios necessários para fazer crescer as forças do Estado. O ponto
de junção dessas duas grandes tecnologias apoiadas pela afirmação do
comércio e da circulação monetária interestatal reafirmam essa nova
modelagem governamental. Tudo isso possibilitou o aumento da população e da mão-de-obra, o aumento da produção e da exportação. Para
Foucault (2008), o par população-riqueza foi, na época do mercantilismo,
o objeto principal da nova razão governamental.
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