Parafrenia fantástica é esquizofrenia? Referências bibliográficas: 1. Ey H, Bernard P, Brisset C. Manual de psiquiatria. 5a ed. Rio de Janeiro: Masson do Brasil; 1981:522-526. 2. Doyle I. Nosologia Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1956:308. 3. Almeida O, Dractu L, Laranjeira R. Manual de psiquiatria. Rio de Janeiro: Guanabara; 1996:154-155. 4. Teixeira-Jr AL, Alvarenga-Silva H, Huguet AC, Lamounier MG. Um caso de psicose de início tardio: considerações diagnósticas. Casos Clin Psiquiat 1999; 1:21-23. 5. World Health Organization. Esquizofrenia, transtorno esquizotípico e delirantes. In: Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992:83-107. 6. American Psychiatric Association. Schizophrenia and other psychotic disorders. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 4th ed. (DSM-IV). Washington: American Psychiatric Association; 1994:263-302. 7. American Psychiatric Association. Schizotypal personality disorder. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 4th ed. (DSM-IV). Washington: American Psychiatric Association; 1994:604-608. 8. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000:134. REAÇÃO ESQUIZOFRÊNCIA EM PACIENTE INDÍGENA SCHIZOPHRENIC REACTION IN AN INDIAN PATIENT Maximiliano Loiola Ponte de Souza * Resumo O autor descreve o caso de paciente indígena que desenvolveu episódios psicóticos recorrentes, com sintomas positivos que surgiam quando a paciente saía de sua comunidade, remitindo com seu retorno. O autor discute a dificuldade de utilização dos critérios do DSM-IV e propõe como alternativa o diagnóstico de reação esquizofrênica. Palavras-chave: Psiquiatria Transcultural; Índios Sul-americanos; Reação Esquizofrênica; Psicose. Introdução Estima-se a existência de cerca de 206 sociedades indígenas no Brasil, distribuídas em 562 terras indígenas, correspondendo a uma população de cerca de 315 mil índios. Estes estão concentrados, em sua maioria – 70% do total –, numa parcela da Amazônia Legal que engloba seis estados brasileiros: Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia, Mato Grosso e Pará. Uma primeira dificuldade ao se lidar com a temática de transtornos mentais em População Indígena (PI) é ao fato de a literatura nacional sobre o tema ser escassa. As pesquisas nessa * Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria, Mestrando do Programa Sociedade e Cultura na Amazônia, Universidade Federal do Amazonas. Trabalho realizado no Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro da Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas 30 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1):30-32 área encontram-se concentradas principalmente em grandes áreas temáticas, tais como alcoolismo1 e suicídio.2,3 Desconhecemos trabalhos que tenham como foco principal a discussão diagnóstica, ou descrição fenomenológica da sintomatologia apresentada por PI. Em trabalho anterior4, demonstramos que o atendimento psiquiátrico aos PI no Amazonas é bastante deficiente. Baseamonos no fato de que o atendimento aos PI foi realizado principalmente em nível emergencial, caracterizado por avaliação por psiquiatras em sistema de rodízio, levando a: multiplicidade diagnóstica, baixo vínculo com um profissional de referência e baixa aderência ao tratamento. Dessa forma, a partir de 2001, passamos a centralizar o atendimento psiquiátrico dos PI no Estado, visando a minimizar os aspectos negativos descritos acima. Assim, deparamo-nos com inúmeras situações em que a sintomatologia apresentada pelos PI consistia em desafio diagnóstico, principalmente quando se objetivava realizar diagnóstico baseado nos critérios padronizados (DSM IV ou CID-10). A relevância em descrever um caso como o que será aqui apresentado, ao nosso ver, deve-se a: i) carência de relatos semelhantes na literatura nacional; ii) demonstrar a dificuldade da utilização de códigos de classificação de transtornos mentais em contextos culturais distintos. Endereço para correspondência: Rua B, Quadra B, Casa 249 Conjunto Parque das Palmeiras I Bairro de Flores, Manaus - AM. Descrição do Caso Identificação Paciente do sexo feminino, 45 anos, casada, indígena, etnia Palmari, mãe de oito filhos, analfabeta, fala e entende o português e sua língua nativa, agricultora, procedente de área indígena nas proximidades de Lábrea – AM. Histórico da moléstia atual A paciente estava assintomática até aproximadamente 12 dias antecedendo a entrevista, quando teve que vir para Manaus para realizar tratamento ortopédico devido a fratura no membro inferior direito. A paciente veio para Manaus de barco. Segundo o esposo, a partir do segundo dia de viagem a paciente começou a apresentar alteração do comportamento, dizia haver pessoas querendo matá-la, bem como seu esposo e filhos, que ouvia vozes que a ameaçavam, falava sozinha, mostrava-se assustada, isolada e não dormia, por medo de “que algo de mal acontecesse” com ela ou com seus parentes. Chegando em Manaus, foi para a Casa de Saúde Indígena de Manaus (CASAI), mantendo o mesmo comportamento, além de passar a dizer que os outros índios que estavam na CASAI tramavam contra ela, bem como se mostrava reticente em alimentar-se. História Familiar Desconhece casos psiquiátricos na família. Exame mental Paciente adequadamente vestida, boa higiene, algo envelhecida, tala gessada em membro inferior direito, orientada halo e autopsiquicamente, memória globalmente preservada, delírios persecutórios, alucinações auditivas, referia estar se sentindo bem, embora sua apresentação fosse perplexa e assustada, colaborativa com a entrevista, juízo crítico prejudicado. Exames laboratoriais Hemograma, bioquímica, sorologia para Toxoplasmose, sífilis e HIV e Tomografia de Crânio, sem anormalidades. Evolução Como a paciente teria que permanecer em Manaus por um período de, no mínimo, um mês para tratamento ortopédico, optou-se pela seguinte conduta: Haloperidol dez gotas de 12/12h e Clonazepam 0,25 mg de 12/12h e reavaliações semanais. No primeiro retorno, o quadro estava inalterado, apenas com discreta melhora no padrão de sono, dessa forma mantive as medicações, dobrando a dose. No segundo, terceiro e quarto retornos apresentava melhora importante e progressiva das alucinações, com melhora discreta da sintomatologia persecutória. Com um mês em Manaus, recebeu alta da ortopedia, com liberação para retornar para a aldeia A conduta psiquiátrica foi de manter as medicações, com orientação para diminuição progressiva do ansiolítico. Ficamos em um impasse com relação ao seguimento psiquiátrico após a ida da paciente para aldeia. Optamos por manter a paciente na aldeia. À revelia das orientações, ambas as medicações foram suspensas. A paciente encontra-se há aproximadamente seis meses na aldeia, dos quais cinco sem medicação e, pelos contatos que fizemos com a equipe de saúde da área, está bem, sem queixas, fato confirmado pelo esposo. Discussão Neste momento, tentaremos evidenciar as dificuldades em construir uma hipótese diagnóstica utilizando como referência os critérios do DSM-IV5. Considerando que a paciente passou a apresentar o quadro após a saída de seu ambiente social, ou seja, na presença de um estressor identificável, poderíamos, inicialmente, pensar na hipótese de um Transtorno de Adaptação. Entretanto, tal proposta não se aplica, uma vez que, nessa categoria diagnóstica, não se incluem sintomas psicóticos, apenas emocionais e comportamentais. Como o primeiro episódio descrito ocorreu após a vivência de um evento envolvendo a morte de uma pessoa, e que as alterações psicopatológicas são semelhantes àquelas que apresentou após a exposição ao evento traumático, isso nos remeteria à hipótese de um Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Entretanto, não se trata de recordações aflitivas ou intrusivas, sonhos aflitivos e recorrentes ou agir como se estivesse vivenciando o evento traumático, o que também afasta essa hipótese. Direcionando o olhar para a presença de sintomas psicóticos, os seguintes diagnósticos poderiam ser aventados: Transtorno Psicótico Devido a uma Condição Médica Geral, Transtorno Psicótico Induzido por Substância, Transtorno do Humor com sintomas psicóticos, Esquizofrenia, Transtorno Esquizofreniforme e Transtorno Psicótico Breve. Não existem evidências, quer na história ou nos exames, que corroborem as duas primeiras hipóteses. Em relação à terceira possibilidade, teríamos a seu favor apenas o desenvolvimento de sintomas psicóticos em padrão episódico; por outro lado, a ausência de alterações do humor afasta essa proposição. Em relação às demais hipóteses, o fator tempo é crucial. Entretanto, aqui encontramos um obstáculo diagnóstico. Segundo o esposo, a duração da alteração comportamental é semelhante ao tempo que permanece fora da aldeia. Supondo que a paciente ficasse seis meses, um mês ou uma semana longe da aldeia, procederíamos, respectivamente, aos diagnósticos de Esquizofrenia, Transtorno Esquizofreniforme ou Transtorno Psicótico Breve? Essa opção não nos parece razoável, uma vez que, no caso, não traria nenhum esclarecimento adicional. Por outro lado, manter a paciente longe de seu ambiente apenas por uma vaidade diagnóstica seria no mínimo antiético. Considerando a situação real, em que os sintomas duraram entre um e seis meses, a hipótese de Transtorno Esquizofreniforme poderia ser considerada para o último episódio, entretanto não explicaria a recorrência dos sintomas. A particularidade deste caso demonstra certa fragilidade dos critérios diagnósticos do DSM IV. Assim, tivemos que buscar subsídios em autores clássicos da psicopatologia,6,7,8 principalmente no que se refere ao conceito de Reação Esquizofrênica, Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):30-32 31 Reação esquizofrência em paciente indígena que nos parece ser uma opção diagnóstica razoável. Maris9 trabalha esse conceito, a partir da obra de Nobre Melo, que caracterizaria a Reação Esquizofrênica como: a) quadro de início súbito, de evolução aguda, com características paranóide ou catatônica; b) inexistência de diferença na apresentação clínica quando comparado a esquizofrenia; c) difere desta por estar ligada a “fatores psicogenéticos” e por remitir tão longo seja removida a situação que a desencadeou. Os códigos de classificação de doenças trouxeram importantes contribuições para a prática da psiquiatria, entretanto, não se pode deixar de admitir que trouxeram consigo um engessamento do pensamento clínico e uma tendência à simplificação da psicopatologia. Ou seja, como nos diz Nunes10: “O uso indiscriminado de DSMs e CIDs vem transformando a psiquiatria numa especialidade extremamente fácil. Os sintomas são descritos de modo simplista e as pessoas acreditam conhecer a especialidade pelo manejo facilitário dessas bulas. Muitos jovens sabem apenas da existência de um certo Karl Jasper que costumava complicar cousas simples tal como os DSMs e CIDs vieram a comprovar”. Por outro lado, a singularidade deste caso aponta para conclusões semelhantes de pesquisadores nacionais, que evidenciam a necessidade de que os estudos em psiquiatria levem em consideração a diversidade cultural e étnica de nosso povo,11 visto que o contato com realidades culturais diferentes atua como agente estressor para o surgimento de transtornos mentais,12 bem como a apresentação clínica destes podem apresentar variações culturais relevantes,13 trazendo desafios para utilização dos modelos classificatórios atuais14. Summary The author describes a case of a female Brazilian Indian who developed recurrent psychotic episodes with positive symptoms when she lefts her community, remitting in the return. The author discusses the difficulty to use the DSM-IV criteria and proposes as alternative the diagnostic of schizophrenic reaction. Keywords: Cross-cultural Psychiatry; South American Indians; Schizophrenic Reaction; Psicosis. 32 Casos Clin Psiquiatria 2002; 4(1,2):30-32 Referências Bibliográficas 1. Aguiar JIA, Souza JA. Alcoolismo em população Terena no Estado do Mato Grosso do Sul - Impacto da sociedade envolvente. Anais do Seminário de Alcoolismo e DST/AIDS entre os povos indígenas, 2001. 2. Erthal R.M. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cad Saúde Pública 2001; 17(2):299-311. 3. Levcotivz S. Kandiré: O paraíso Terral – O suicídio entre os índios guaranis do Brasil. Belo Horizonte (MG): Te Cora Editora, 1998. 4. Souza MLP. 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