Doenças psiquiátricas atingem cerca de 46 milhões de pessoas em

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BEM VIVER
AUTOESTIMA
ELEVADA
Eduardo Araúju
criou um
calendário com
modelos entre
57 e 77 anos.
WALLACE NOGUEIRA/DIVULGAÇÃO
ESTADO DE MINAS ● D O M I N G O ,
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O PREÇO DO
ESTIGMA
IST
OC
KP
HO
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Doenças psiquiátricas atingem cerca de 46 milhões de
pessoas em todo o Brasil, mas a maioria dos doentes é
ignorada. Associação Brasileira de Psiquiatria tenta aprovar no
Senado emenda que pune discriminação contra pacientes
CAROLINA COTTA
O céu tomado de azul – um azul mais azul que o
de outros tempos – anuncia tranquilidade. De um
calmo bairro da capital mineira não se pode esperar outra coisa a não ser que amanheça e caia o dia
em perfeita paz. R. tem 50 anos. Há 37 vive em um
mundo só seu. Toma uma dezena de banhos diários: precisa estar limpo, purificado, à espera do comando que chegará do céu. Não adiantaria explicar. A cena é um dos vários delírios do paciente
diagnosticado com esquizofrenia paranoica.
O quadro ilustra uma das doenças crônicas enfrentadas pela psiquiatria. Existem várias. O Ministério da Saúde fala em 46 milhões de pessoas com
transtorno mental no Brasil, algo em torno de 21% a
25% da população. No bolo, estão portadores de distúrbios psiquiátricos como transtorno bipolar, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH),
transtorno obsessivo compulsivo (TOC), depressão,
dependência química e outra série de doenças.
"Mas os doentes mentais são em geral ignorados,
neglicenciados e tornados invisíveis pelo Ministério
da Saúde", alerta Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. O mineiro
de Grão Mogol que fez carreira em Brasília é taxativo:
"O crack mata mais que todas as epidemias virais
juntas, entre elas Aids e hepatite. Cerca de 1,4 bilhão
da população mundial tem transtorno mental, mas
poucos têm atendimento básico. No Brasil, ele não
chega a 1,9%, o equivalente ao de países africanos".
O impacto na economia é devastador, mas a sociedade insiste em ver esses pacientes à margem.
Mas das 10 principais causas de incapacidade, cinco
são transtornos psiquiátricos e não há políticas públicas para isso. "Os transtornos mentais e do comportamento são 12% da carga mundial de doenças,
mas representam apenas 1% dos gastos totais com
a saúde. Nos últimos 10 anos, a verba para a Saúde
Mental no Brasil caiu de 6,5% para menos de 1,9%.
Isso é puro preconceito. O governo está cronificando
LEIA MAIS SOBRE PSICOFOBIA
PÁGINAS 3 E 4
esses pacientes por não trabalhar com ciência e sim
com ideologia." O estigma é um sofrimento a mais
para essas pessoas, questionadas sob sua condição
no trabalho, em casa e na própria rede de assistência.
Tanto que a psicofobia – o medo, o preconceito ou a
discriminação contra os doentes mentais – poderá
virar crime, como o racismo e o preconceito de gênero. A ABP tenta aprovar no Senado uma emenda
que estabelece prisão de dois a seis anos para ações
motivadas pela presença de transtornos ou deficiências psíquicas. A proposta é educar a população. Será que ela está preparada para conviver com doenças que ainda costuma negar?
E STA D O D E M I N A S
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BEMVIVER
❚ REPORTAGEM DE CAPA
Moradoras da Casa da Gente participam
ativamente das tarefas, servindo o
próprio lanche e interagindo
CAROLINA COTTA
Quando ainda era uma adolescente, Dayse Cristine Pereira
Belisário, de 53 anos, foi convidada a se retirar do prédio onde
morava. Não havia qualquer
pendência financeira ou outro
tipo de incompatibilidade de
sua família com o endereço. A
engenheira civil estava apenas
pagando o preço por ter um irmão esquizofrênico. R.T.S., três
anos mais novo, teve o primeiro
surto aos 13, assim que recebeu
a notícia da morte da mãe e do
avô em um acidente de trânsito.
“Ele tinha brigado com ela
naquele dia e sentiu muita culpa. Quando um vizinho deu a
notícia, ele começou a esmurrar
a parede. Achamos que era a forma como estava manifestando
sua dor. Só depois entendemos
que aquilo era uma crise”, lembra Dayse. O diagnóstico de esquizofrenia paranoica veio só
aos 18. “Meu pai tentou de tudo,
mas só quem tem um familiar
com doença mental sabe o que é
a dor de ver a limitação dele e
nossa também.”
Aquele surto mudou a vida
de R., a de Dayse e de seus familiares. Vieram tempos de várias internações, até que ele
tentou suicídio. Recuperado, a
médica que o acompanhava
orientou a família que ele não
voltasse para casa. Mas para
onde iria? Em 2001, já havia sido feita a reforma psiquiátrica
que definia, entre outras coisas, tratamento em ambiente
terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços
comunitários de saúde mental.
Por oito anos R. morou em
PERSONAGEM
DA NOTÍCIA
SENTIR-SE
EM CASA
Novos modelos de moradia estão transformando a vida
de pacientes psiquiátricos, embora as políticas públicas
estejam muito aquém das necessidades dos doentes
um abrigo. No mesmo período,
Dayse se dedicou a entender
melhor a doença do irmão, que
modificou também sua vida.
Até que veio a notícia de que a
instituição seria fechada. Uma
opção era levá-lo para uma casa particular especializada nesse tipo de assistência. Mas Dayse fez diferente: montou, ela
mesma, um lugar para receber
o irmão e outros como ele. Em
agosto de 2011, nascia a Casa
da Gente, no Bairro Jaraguá,
que com pouco mais de um
ano espera a chegada de seu
11º morador.
Dayse podia ter cuidado só de
seu irmão, mas decidiu dedicar-se
a outros 10. “Ao longo desse percurso percebi que meu problema
era menor. Da necessidade de ter
um lugar para ele morar nasceu
umobjetivodevida.Seioquesofri
com meu irmão e hora nenhuma
GERALDA VICENTE FERREIRA
MORADORA DA CASA DA GENTE
Vida normal e pura felicidade
Aos 50 anos, Geralda já
experimentou inúmeras
internações psiquiátricas. Na
última delas, passou 10 meses
no Hospital Raul Soares, de
onde foi direto para a Casa da
Gente. Carinhosa, faz questão
de chegar perto e se
apresentar. Está feliz em seu
novo endereço. “Amo a Dayse.
Aqui me sinto em casa.”
Vaidosa, Geralda ajuda nas
tarefas, principalmente
estendendo as roupas lavadas
no varal. Ela também não
perde as oportunidades de
passear e assim se sentir mais
parte de uma sociedade que
exclui pessoas como ela. “Aqui
eu posso até fazer
supermercado. Sinto que tenho
uma vida normal. É muito
melhor que ficar no hospital.
Fiquei meses no Raul Soares e
quando voltei lá ninguém me
deu bola. Não quero ir
lá nunca mais. Não quero ser
internada nunca mais.”
quis abandoná-lo. O doente mental e quem está a seu lado sofrem
muito preconceito. Essa casa não é
para ajudar apenas os pacientes,
mas também seus familiares”, diz
a voluntária, que mantém o espaço apenas com doações.
MODELO INOVADOR A Reforma
Psiquiátrica, de cunho antimanicomial, começou com a desinstitucionalização dos hospitais de
longa permanência, passando a
atender os pacientes em tempo
menor, apenas durante as crises.
FOTOS: RAMON LISBOA/EM/D.A PRESS
A voluntária Dayse Cristine Pereira Belisário e a terapeuta ocupacional
Kênia Silva Moreira: devoção e carinho aos pacientes e familiares
A Política Nacional da Saúde
Mental hoje prevê uma rede
composta pelos centros de referência em saúde mental (Cersams), centros de convivência e re
sidências terapêuticas. Mas a demanda não consegue ser suprida.
Como iniciativa do terceiro setor, a Casa da Gente é pioneira no
formato moradia assistida ou residência inclusiva. Segundo a terapeuta ocupacional Kênia Silva
Moreira, que atua no espaço desde sua fundação, trata-se de uma
casa pequena, com autogestão e
principalmente de resultados clínicos positivos. Os pacientes tiveram redução nas internações e na
medicação. Ocorreu ainda uma
melhora do estado clínico, dos
vínculos familiares e da sensação
de pertencimento à comunidade.
ENVOLVIMENTO Esse último as-
pecto, principalmente, visa a re-
duzir o estigma que pesa sobre os
doentes mentais. Lá eles podem e
devem receber os familiares, ajudam na manutenção do espaço,
saem para passear e fazer compras. “Acreditamos na possibilidade de convivência, no exercício incansável de negociação, muito
além da medicação. E também
cuidamos de quem cuida”, diz, referindo-se aos 10 profissionais
que atuam na casa.
Um dos diferenciais da casa é a
cozinhaaberta,que,sim,geroucertapolêmicanoinício,masrevelouseumsucesso.“Aideiaéquesesintam realmente em casa. Queremos dar a chance de eles próprios
se servirem e administrarem o
espaçoeoquesefazlá.Dámaisbagunça, é claro, mas é possível”, defendeaespecialista.Assim,recriando novas formas de habitar e
morar,resignificandocasa,família,
esses homens e mulheres marcados pelo destino encontram, dia
após dia, um jeito de continuar
acreditando em seus sonhos.
Renato e Dayse estão mais próximos. Sua doação é reconhecida
pelo irmão, hoje mais amável. “Eu
me sinto muito feliz e realizada
por ajudá-los. Desde que a casa começou a funcionar ninguém precisou ser internado em hospital
psiquiátrico. O meu irmão também está melhor. Um dia ele me
disse que o céu daqui é mais azul
e as pessoas são mais alegres. Se
uma pessoa consegue enxergar o
céu mais azul é porque está
bem”, sorri Dayse. Informações e
doações: (31) 8896-3459 ou
www.casadagente.org.br.
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PSICOFOBIA
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❚ REPORTAGEM DE CAPA
POR QUE TANTO
PRECONCEITO?
Dependentes de álcool, cigarro,
drogas ilícitas, sexo. Comedores, jogadores e compradores compulsivos. Depressivos, bipolares, esquizofrênicos. Portadores de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). No trabalho, em
nossas famílias, nas faculdades, em
todos os ambientes estaremos rodeados por eles. Para a medicina todos eles são pacientes com transtornos psiquiátricos ou de comportamento. Para quem está perto é
simplesmente o melhor amigo, a irmã, o namorado. Por que, então,
tanto preconceito?
O estigma contra essa parcela representativa – os pacientes psiquiátricos podem ser até 25% da população – é cultural. Segundo Paulo
Roberto Repsold, diretor da Associação Médica e da Associação Mineira
de Psiquiatria, o preconceito está
em todos os lados. “Vai do paciente
à gestão pública, passando pela família e os colegas de trabalho. O
preconceito está até em quem dá
assistência e principalmente naqueles que negam a doença e não reconhecem sua fragilidade.”
Com mais de 20 anos de profissão, tendo atuado no serviço público, na rede assistencial e em hospitais, Repsold chega a fazer um paralelo do estigma do doente mental
com o sofrido pelo tuberculoso ou
paciente com hanseníase no passado. “As pessoas têm muita dificuldade em aceitar doenças mentais porque elas dilapidam o que essa pessoa tem de mais importante: a mente. A questão se amplia com a prevalência dessas doenças: 30% das mulheres terão depressão ou um quadro de ansiedade durante a vida.”
A origem de tamanho preconceito, para o especialista, é uma imagem ultrapassada do problema. “A
doença mental é comum e em sua
maioria tranquila de lidar. É como a
pressão alta. Vem o diagnóstico,
prescrevemos um medicamento e o
paciente melhora e não volta a ter o
problema ou fica assintomático. A
partir dos anos 1950 e 1960, ocorreu
uma mudança significativa dos tratamentos com a descoberta dos antipsicóticos e antidepressivos. Tudo
mudou a partir daí.”
O problema é que a maioria das
pessoas mantém na memória a
ideia das doenças que alienam e tiram a capacidade de entendimento,
como a esquizofrenia. “Lembram-se
do paciente esquizofrênico em permanente estado de surto”, comenta
Repsold. E classe social, nesse aspecto, faz pouca diferença na avaliação
do psiquiatra. “As classes mais elevadas entendem melhor a doença,
mas isso não reduz a capacidade de
suportar a convivência.”
EMENDA O preconceito contra pacientes com transtornos psiquiátricos é tão grande que a Associação
Brasileira de Psiquiatria empenhou-
NOVO MANUAL
Maio de 2013 marcará a estreia da
esperada quinta edição do Manual
de diagnóstico e estatística de transtornos mentais, o Diagnostic and statistical manual of mental disorders
(DSM-V). A revisão da influente publicação da Associação Psiquiátrica
Americana é feita desde 1999 por
mais de 600 especialistas de saúde
mental, entre eles o psiquiatra brasileiro Luis Augusto Rohde, que atuou
em um dos setores mais polêmicos
do documento: a parte destinada ao
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).
Em relação à edição vigente, o
DSM-V vai reduzir um excesso de
categorias dos transtornos mentais
por meio de uma abordagem dimensional. Os atuais 12 transtornos
de personalidade, por exemplo, serão reduzidos a cinco: limítrofe, esquizotípico, evitador, obsessivocompulsivo e antissocial/psicopático. Para os pacientes muda pouca
coisa. Isso porque o Brasil adota a
Classificação Internacional de Doenças, a CID, da Organização Mundial
de Saúde (OMS), que em breve terá
lançada sua 11ª edição.
O objetivo dos manuais de diagnóstico é permitir que um mesmo
quadro sintomático seja diagnosticado de forma padronizada. “Em
qualquer lugar do mundo o relato
de alucinação visual e auditiva, delírio, isolamento social, insônia, perda
do cuidado com o corpo que persiste por mais de quatro anos é sinal de
esquizofrenia. A padronização evita
discursos diferentes e não deixa que
o aspecto cultural atrapalhe o diagnóstico ou tratamento”, explica Antônio Geraldo da Silva.
O DSM é especialmente aguardado pelos psiquiatras que atuam com
pesquisas. Segundo o presidente da
Associação Brasileira de Psiquiatria,
o DSM é mais ágil, mas está adequado à cultura norte-americana. “Só
que o mundo não é os Estados Unidos. O DSM é importante para quem
faz pesquisa, mas não afeta a prática
clínica, do dia a dia. A psiquiatria
brasileira é mais clínica, no sentido
de ouvir o paciente e valorizar o que
ele tem a dizer”, defende.
Por ser uma área eminentemente clínica, não há cirurgia nem exames para os diagnósticos – embora
o futuro da psiquiatria aponte uma
interseção com a neurociência e
consequentemente a maior adesão
a exames de imagem, a relação do
psiquiatra com o paciente é no plano relacional. “Trabalhamos com o
corpo a corpo. Temos uma relação
muito próxima com os pacientes. Os
psiquiatras norte-americanos são
mais frios, técnicos.”
se no combate e na criminalização
da psicofobia no Código Penal. Entre as ações que culminariam em
crime, de acordo com a emenda, estão impedir nomeação a cargo público, demitir de empresa ou vetar
acesso a transporte ou estabelecimentos comerciais. Pela proposta, a
psicofobia integrará o mesmo capítulo que trata do racismo e do preconceito de gênero.
Para Antônio Geraldo da Silva,
psiquiatra da Secretaria de Saúde
do Distrito Federal e presidente da
Associação Brasileira de Psiquiatria, o impacto desse preconceito é
tão grande que alguns grupos ideológicos querem provar que não
existe TDAH, por exemplo. “Isso é
de uma burrice sem tamanho. O
paciente psiquiátrico não tratado
migra para classes sociais mais baixas. Diminui a renda e o relacionamento social e familiar. Com tanto
preconceito, as pessoas acabam escondendo a doença.”
As pessoas
têm muita
dificuldade em
aceitar doenças
mentais porque
elas dilapidam o
que essa pessoa
tem de mais
importante:
a mente
■ Paulo Roberto Repsold,
diretor da Associação
Mineira de Psiquiatria
EULER JÚNIOR/EM/D.A PRESS
Especialistas
atribuem
estigma contra
portadores de
doenças mentais
a questão
cultural.
Associação
Brasileira de
Psiquiatria se
esforça para
incluir a
psicofobia no
Código Penal
CAROLINA COTTA
A psiquiatria
brasileira é
mais clínica,
no sentido
de ouvir o
paciente e
valorizar o que
ele tem a dizer
■ Antônio Geraldo da Silva,
presidente da Associação
Brasileira de Psiquiatria
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