2 0 D E J A N E I R O D E 2 0 1 3 ● E D I T O R A - A S S I S T E N T E : Te r e s a C a r a m ● S U B E D I T O R A : E l l e n C r i s t i e ● E - M A I L : b e m v i v e r . e m @ u a i . c o m . b r ● T E L E F O N E : ( 3 1 ) 3 2 6 3 - 5 7 8 4 BEM VIVER AUTOESTIMA ELEVADA Eduardo Araúju criou um calendário com modelos entre 57 e 77 anos. WALLACE NOGUEIRA/DIVULGAÇÃO ESTADO DE MINAS ● D O M I N G O , PÁGINA 5 O PREÇO DO ESTIGMA IST OC KP HO TO Doenças psiquiátricas atingem cerca de 46 milhões de pessoas em todo o Brasil, mas a maioria dos doentes é ignorada. Associação Brasileira de Psiquiatria tenta aprovar no Senado emenda que pune discriminação contra pacientes CAROLINA COTTA O céu tomado de azul – um azul mais azul que o de outros tempos – anuncia tranquilidade. De um calmo bairro da capital mineira não se pode esperar outra coisa a não ser que amanheça e caia o dia em perfeita paz. R. tem 50 anos. Há 37 vive em um mundo só seu. Toma uma dezena de banhos diários: precisa estar limpo, purificado, à espera do comando que chegará do céu. Não adiantaria explicar. A cena é um dos vários delírios do paciente diagnosticado com esquizofrenia paranoica. O quadro ilustra uma das doenças crônicas enfrentadas pela psiquiatria. Existem várias. O Ministério da Saúde fala em 46 milhões de pessoas com transtorno mental no Brasil, algo em torno de 21% a 25% da população. No bolo, estão portadores de distúrbios psiquiátricos como transtorno bipolar, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno obsessivo compulsivo (TOC), depressão, dependência química e outra série de doenças. "Mas os doentes mentais são em geral ignorados, neglicenciados e tornados invisíveis pelo Ministério da Saúde", alerta Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. O mineiro de Grão Mogol que fez carreira em Brasília é taxativo: "O crack mata mais que todas as epidemias virais juntas, entre elas Aids e hepatite. Cerca de 1,4 bilhão da população mundial tem transtorno mental, mas poucos têm atendimento básico. No Brasil, ele não chega a 1,9%, o equivalente ao de países africanos". O impacto na economia é devastador, mas a sociedade insiste em ver esses pacientes à margem. Mas das 10 principais causas de incapacidade, cinco são transtornos psiquiátricos e não há políticas públicas para isso. "Os transtornos mentais e do comportamento são 12% da carga mundial de doenças, mas representam apenas 1% dos gastos totais com a saúde. Nos últimos 10 anos, a verba para a Saúde Mental no Brasil caiu de 6,5% para menos de 1,9%. Isso é puro preconceito. O governo está cronificando LEIA MAIS SOBRE PSICOFOBIA PÁGINAS 3 E 4 esses pacientes por não trabalhar com ciência e sim com ideologia." O estigma é um sofrimento a mais para essas pessoas, questionadas sob sua condição no trabalho, em casa e na própria rede de assistência. Tanto que a psicofobia – o medo, o preconceito ou a discriminação contra os doentes mentais – poderá virar crime, como o racismo e o preconceito de gênero. A ABP tenta aprovar no Senado uma emenda que estabelece prisão de dois a seis anos para ações motivadas pela presença de transtornos ou deficiências psíquicas. A proposta é educar a população. Será que ela está preparada para conviver com doenças que ainda costuma negar? E STA D O D E M I N A S ● D O M I N G O , 2 0 D E J A N E I R O D E 2 0 1 3 3 BEMVIVER ❚ REPORTAGEM DE CAPA Moradoras da Casa da Gente participam ativamente das tarefas, servindo o próprio lanche e interagindo CAROLINA COTTA Quando ainda era uma adolescente, Dayse Cristine Pereira Belisário, de 53 anos, foi convidada a se retirar do prédio onde morava. Não havia qualquer pendência financeira ou outro tipo de incompatibilidade de sua família com o endereço. A engenheira civil estava apenas pagando o preço por ter um irmão esquizofrênico. R.T.S., três anos mais novo, teve o primeiro surto aos 13, assim que recebeu a notícia da morte da mãe e do avô em um acidente de trânsito. “Ele tinha brigado com ela naquele dia e sentiu muita culpa. Quando um vizinho deu a notícia, ele começou a esmurrar a parede. Achamos que era a forma como estava manifestando sua dor. Só depois entendemos que aquilo era uma crise”, lembra Dayse. O diagnóstico de esquizofrenia paranoica veio só aos 18. “Meu pai tentou de tudo, mas só quem tem um familiar com doença mental sabe o que é a dor de ver a limitação dele e nossa também.” Aquele surto mudou a vida de R., a de Dayse e de seus familiares. Vieram tempos de várias internações, até que ele tentou suicídio. Recuperado, a médica que o acompanhava orientou a família que ele não voltasse para casa. Mas para onde iria? Em 2001, já havia sido feita a reforma psiquiátrica que definia, entre outras coisas, tratamento em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Por oito anos R. morou em PERSONAGEM DA NOTÍCIA SENTIR-SE EM CASA Novos modelos de moradia estão transformando a vida de pacientes psiquiátricos, embora as políticas públicas estejam muito aquém das necessidades dos doentes um abrigo. No mesmo período, Dayse se dedicou a entender melhor a doença do irmão, que modificou também sua vida. Até que veio a notícia de que a instituição seria fechada. Uma opção era levá-lo para uma casa particular especializada nesse tipo de assistência. Mas Dayse fez diferente: montou, ela mesma, um lugar para receber o irmão e outros como ele. Em agosto de 2011, nascia a Casa da Gente, no Bairro Jaraguá, que com pouco mais de um ano espera a chegada de seu 11º morador. Dayse podia ter cuidado só de seu irmão, mas decidiu dedicar-se a outros 10. “Ao longo desse percurso percebi que meu problema era menor. Da necessidade de ter um lugar para ele morar nasceu umobjetivodevida.Seioquesofri com meu irmão e hora nenhuma GERALDA VICENTE FERREIRA MORADORA DA CASA DA GENTE Vida normal e pura felicidade Aos 50 anos, Geralda já experimentou inúmeras internações psiquiátricas. Na última delas, passou 10 meses no Hospital Raul Soares, de onde foi direto para a Casa da Gente. Carinhosa, faz questão de chegar perto e se apresentar. Está feliz em seu novo endereço. “Amo a Dayse. Aqui me sinto em casa.” Vaidosa, Geralda ajuda nas tarefas, principalmente estendendo as roupas lavadas no varal. Ela também não perde as oportunidades de passear e assim se sentir mais parte de uma sociedade que exclui pessoas como ela. “Aqui eu posso até fazer supermercado. Sinto que tenho uma vida normal. É muito melhor que ficar no hospital. Fiquei meses no Raul Soares e quando voltei lá ninguém me deu bola. Não quero ir lá nunca mais. Não quero ser internada nunca mais.” quis abandoná-lo. O doente mental e quem está a seu lado sofrem muito preconceito. Essa casa não é para ajudar apenas os pacientes, mas também seus familiares”, diz a voluntária, que mantém o espaço apenas com doações. MODELO INOVADOR A Reforma Psiquiátrica, de cunho antimanicomial, começou com a desinstitucionalização dos hospitais de longa permanência, passando a atender os pacientes em tempo menor, apenas durante as crises. FOTOS: RAMON LISBOA/EM/D.A PRESS A voluntária Dayse Cristine Pereira Belisário e a terapeuta ocupacional Kênia Silva Moreira: devoção e carinho aos pacientes e familiares A Política Nacional da Saúde Mental hoje prevê uma rede composta pelos centros de referência em saúde mental (Cersams), centros de convivência e re sidências terapêuticas. Mas a demanda não consegue ser suprida. Como iniciativa do terceiro setor, a Casa da Gente é pioneira no formato moradia assistida ou residência inclusiva. Segundo a terapeuta ocupacional Kênia Silva Moreira, que atua no espaço desde sua fundação, trata-se de uma casa pequena, com autogestão e principalmente de resultados clínicos positivos. Os pacientes tiveram redução nas internações e na medicação. Ocorreu ainda uma melhora do estado clínico, dos vínculos familiares e da sensação de pertencimento à comunidade. ENVOLVIMENTO Esse último as- pecto, principalmente, visa a re- duzir o estigma que pesa sobre os doentes mentais. Lá eles podem e devem receber os familiares, ajudam na manutenção do espaço, saem para passear e fazer compras. “Acreditamos na possibilidade de convivência, no exercício incansável de negociação, muito além da medicação. E também cuidamos de quem cuida”, diz, referindo-se aos 10 profissionais que atuam na casa. Um dos diferenciais da casa é a cozinhaaberta,que,sim,geroucertapolêmicanoinício,masrevelouseumsucesso.“Aideiaéquesesintam realmente em casa. Queremos dar a chance de eles próprios se servirem e administrarem o espaçoeoquesefazlá.Dámaisbagunça, é claro, mas é possível”, defendeaespecialista.Assim,recriando novas formas de habitar e morar,resignificandocasa,família, esses homens e mulheres marcados pelo destino encontram, dia após dia, um jeito de continuar acreditando em seus sonhos. Renato e Dayse estão mais próximos. Sua doação é reconhecida pelo irmão, hoje mais amável. “Eu me sinto muito feliz e realizada por ajudá-los. Desde que a casa começou a funcionar ninguém precisou ser internado em hospital psiquiátrico. O meu irmão também está melhor. Um dia ele me disse que o céu daqui é mais azul e as pessoas são mais alegres. Se uma pessoa consegue enxergar o céu mais azul é porque está bem”, sorri Dayse. Informações e doações: (31) 8896-3459 ou www.casadagente.org.br. ❚ LEIA MAIS SOBRE PSICOFOBIA PÁGINA 4 ❚ E STA D O D E M I N A S ● D O M I N G O , 4 2 0 D E J A N E I R O D E 2 0 1 3 BEMVIVER ❚ REPORTAGEM DE CAPA POR QUE TANTO PRECONCEITO? Dependentes de álcool, cigarro, drogas ilícitas, sexo. Comedores, jogadores e compradores compulsivos. Depressivos, bipolares, esquizofrênicos. Portadores de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). No trabalho, em nossas famílias, nas faculdades, em todos os ambientes estaremos rodeados por eles. Para a medicina todos eles são pacientes com transtornos psiquiátricos ou de comportamento. Para quem está perto é simplesmente o melhor amigo, a irmã, o namorado. Por que, então, tanto preconceito? O estigma contra essa parcela representativa – os pacientes psiquiátricos podem ser até 25% da população – é cultural. Segundo Paulo Roberto Repsold, diretor da Associação Médica e da Associação Mineira de Psiquiatria, o preconceito está em todos os lados. “Vai do paciente à gestão pública, passando pela família e os colegas de trabalho. O preconceito está até em quem dá assistência e principalmente naqueles que negam a doença e não reconhecem sua fragilidade.” Com mais de 20 anos de profissão, tendo atuado no serviço público, na rede assistencial e em hospitais, Repsold chega a fazer um paralelo do estigma do doente mental com o sofrido pelo tuberculoso ou paciente com hanseníase no passado. “As pessoas têm muita dificuldade em aceitar doenças mentais porque elas dilapidam o que essa pessoa tem de mais importante: a mente. A questão se amplia com a prevalência dessas doenças: 30% das mulheres terão depressão ou um quadro de ansiedade durante a vida.” A origem de tamanho preconceito, para o especialista, é uma imagem ultrapassada do problema. “A doença mental é comum e em sua maioria tranquila de lidar. É como a pressão alta. Vem o diagnóstico, prescrevemos um medicamento e o paciente melhora e não volta a ter o problema ou fica assintomático. A partir dos anos 1950 e 1960, ocorreu uma mudança significativa dos tratamentos com a descoberta dos antipsicóticos e antidepressivos. Tudo mudou a partir daí.” O problema é que a maioria das pessoas mantém na memória a ideia das doenças que alienam e tiram a capacidade de entendimento, como a esquizofrenia. “Lembram-se do paciente esquizofrênico em permanente estado de surto”, comenta Repsold. E classe social, nesse aspecto, faz pouca diferença na avaliação do psiquiatra. “As classes mais elevadas entendem melhor a doença, mas isso não reduz a capacidade de suportar a convivência.” EMENDA O preconceito contra pacientes com transtornos psiquiátricos é tão grande que a Associação Brasileira de Psiquiatria empenhou- NOVO MANUAL Maio de 2013 marcará a estreia da esperada quinta edição do Manual de diagnóstico e estatística de transtornos mentais, o Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-V). A revisão da influente publicação da Associação Psiquiátrica Americana é feita desde 1999 por mais de 600 especialistas de saúde mental, entre eles o psiquiatra brasileiro Luis Augusto Rohde, que atuou em um dos setores mais polêmicos do documento: a parte destinada ao transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Em relação à edição vigente, o DSM-V vai reduzir um excesso de categorias dos transtornos mentais por meio de uma abordagem dimensional. Os atuais 12 transtornos de personalidade, por exemplo, serão reduzidos a cinco: limítrofe, esquizotípico, evitador, obsessivocompulsivo e antissocial/psicopático. Para os pacientes muda pouca coisa. Isso porque o Brasil adota a Classificação Internacional de Doenças, a CID, da Organização Mundial de Saúde (OMS), que em breve terá lançada sua 11ª edição. O objetivo dos manuais de diagnóstico é permitir que um mesmo quadro sintomático seja diagnosticado de forma padronizada. “Em qualquer lugar do mundo o relato de alucinação visual e auditiva, delírio, isolamento social, insônia, perda do cuidado com o corpo que persiste por mais de quatro anos é sinal de esquizofrenia. A padronização evita discursos diferentes e não deixa que o aspecto cultural atrapalhe o diagnóstico ou tratamento”, explica Antônio Geraldo da Silva. O DSM é especialmente aguardado pelos psiquiatras que atuam com pesquisas. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, o DSM é mais ágil, mas está adequado à cultura norte-americana. “Só que o mundo não é os Estados Unidos. O DSM é importante para quem faz pesquisa, mas não afeta a prática clínica, do dia a dia. A psiquiatria brasileira é mais clínica, no sentido de ouvir o paciente e valorizar o que ele tem a dizer”, defende. Por ser uma área eminentemente clínica, não há cirurgia nem exames para os diagnósticos – embora o futuro da psiquiatria aponte uma interseção com a neurociência e consequentemente a maior adesão a exames de imagem, a relação do psiquiatra com o paciente é no plano relacional. “Trabalhamos com o corpo a corpo. Temos uma relação muito próxima com os pacientes. Os psiquiatras norte-americanos são mais frios, técnicos.” se no combate e na criminalização da psicofobia no Código Penal. Entre as ações que culminariam em crime, de acordo com a emenda, estão impedir nomeação a cargo público, demitir de empresa ou vetar acesso a transporte ou estabelecimentos comerciais. Pela proposta, a psicofobia integrará o mesmo capítulo que trata do racismo e do preconceito de gênero. Para Antônio Geraldo da Silva, psiquiatra da Secretaria de Saúde do Distrito Federal e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, o impacto desse preconceito é tão grande que alguns grupos ideológicos querem provar que não existe TDAH, por exemplo. “Isso é de uma burrice sem tamanho. O paciente psiquiátrico não tratado migra para classes sociais mais baixas. Diminui a renda e o relacionamento social e familiar. Com tanto preconceito, as pessoas acabam escondendo a doença.” As pessoas têm muita dificuldade em aceitar doenças mentais porque elas dilapidam o que essa pessoa tem de mais importante: a mente ■ Paulo Roberto Repsold, diretor da Associação Mineira de Psiquiatria EULER JÚNIOR/EM/D.A PRESS Especialistas atribuem estigma contra portadores de doenças mentais a questão cultural. Associação Brasileira de Psiquiatria se esforça para incluir a psicofobia no Código Penal CAROLINA COTTA A psiquiatria brasileira é mais clínica, no sentido de ouvir o paciente e valorizar o que ele tem a dizer ■ Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria ABP/ DIVULGAÇÃO