Hepatologia Doença Hepática Alcoólica: Diagnóstico e Tratamento Prof. Dr. Moysés Mincis1 • Prof. Dr. Ricardo Mincis2 D esde longa data são conhecidos alguns dos malefícios que o consumo excessivo de bebidas que contêm álcool (álcool etílico ou etanol) pode causar. Em trabalho recente se concluiu que o consumo diário de vinho tinto, em doses consideradas “pequenas“, atuou como protetor de coronárias.(1) As conclusões de trabalhos como esse devem ser muito cuidadosas, não devem significar estímulo para o consumo de bebidas alcoólicas. É indispensável “visão global”, salientando seus enormes riscos quando consumidas de modo excessivo. Vale lembrar também que mesmo em doses diárias pequenas há o risco de desenvolver dependência (sendo esta imprevisível). Os efeitos benéficos mencionados não foram verificados em todos os trabalhos. Em estudo epidemiológico, o mencionado consumo de etanol (em qualquer bebida alcoólica) não diminuiu os índices de mortalidade por doença coronariana.(2) Se fosse recomendar-se o consumo de álcool como cardioprotetor, deveria ser a partir de que idade? Cerca de 75% dos acidentes fatais com veículos ocorreram em pacientes com menos de 50 anos. Morrem, portanto, antes de iniciarem o consumo de álcool como tratamento (53 anos de idade dos pacientes do citado trabalho de Mukamal et al., 2003).(1) Como comentado em outros trabalhos, o uso de álcool em indivíduos de meia-idade não se justifica como terapêutica.(2,3) Mesmo em estudo de metanálise não houve evidência de efeito benéfico de vinho em homens sobre doença vascular.(4) Os trabalhos realizados, a partir de 1960, possibilitaram demonstrar a hepatotoxicidade do etanol.(5) Alguns autores verificaram que o etanol produziu esteatose, com evidentes alterações ultra-estruturais em ratos e no homem, assim como fibrose e cirrose em macacos. Dados epidemiológicos também reforçam os argumentos a favor da existência de efeito hepatotóxico do álcool. A hepatotoxicidade do etanol está intimamente relacionada com o metabolismo do etanol, que se processa principalmente no fígado. O álcool é a principal causa de cirrose nos países ocidentais. Estudos epidemiológicos possibilitaram demonstrar que há correlação entre consumo per capita de álcool e índices de mortalidade por cirrose em vários países do mundo. Para ressaltar a importância da doença hepática alcoólica (DHA), mencionaremos trabalho prospectivo realizado nos EUA. Os autores estudaram 280 pacientes com DHA. Após 48 meses de seguimento, verificaram que mais da metade do grupo com cirrose e dois terços dos que tinham cirrose e hepatite alcoólica (HA) haviam falecido.(6) A doença hepática alcoólica é a causa mais freqüente de disfunção hepática nos EUA. Essa ocorrência naquele país está também relacionada com o consumo elevado de bebidas alcoólicas, onde cerca de metade da população adulta consome regularmente bebidas alcoólicas e 15 a 20 milhões de indivíduos são alcoólatras. Em alguns hospitais universitários, o álcool é atualmente a principal causa da cirrose, entre os cirróticos in- Prof. Dr. Moysés Mincis (à esq.) e Prof. Dr. Ricardo Mincis 1 - Professor Titular da Disciplina de Gastroenterologia da Unifesp/EPM. Professor Titular da Disciplina de Gastroenterologia da Faculdade de Ciências Médicas de Santos. 2 - Professor Mestre da Disciplina de Gastroenterologia da Faculdade de Ciências Médicas de Santos. Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 113 ternados.(7) No Brasil, onde, segundo dados da Secretaria Nacional Antidrogas, há 11% de indivíduos dependentes do álcool, a incidência de doença hepática alcoólica parece ser elevada. Não há, contudo, dados sobre essa incidência, como um todo, abrangendo muitos Estados em nosso país. Em Inquérito Nacional realizado em 1991, com dados fornecidos por alguns Estados, a prevalência de cirrose alcoólica variou entre 12% a 30% dos etilistas estudados. (8) O consumo de etanol pode causar os seguintes tipos de lesões hepáticas: • esteatose, • hepatite alcoólica, • cirrose, • fibrose perivenular, • hepatite crônica ativa, • “fibrose alcoólica” (no Japão), • hepatocarcinoma, • lesões venosas oclusivas, • degeneração gordurosa microvesicular, • colangite microscópica. A esteatose é a primeira e a mais freqüente das lesões hepáticas, induzidas pelo etanol, podendo ser a única ou estar associada com outra(s) lesão(ões), como hepatite alcoólica e cirrose. Esta surge, invariavelmente, após ingestão de altas doses de álcool, especialmente após três a sete dias de consumo etílico. A esteatose alcoólica pode evoluir, com a continuação da ingestão etílica, para fibrose e cirrose. Cerca de 10% a 35% dos pacientes com esteatose desenvolvem HA e 10% a 20% cirrose.(5) Segundo dados da literatura, a prevalência da hepatite alcoólica variou entre 8% e 63%, considerando trabalhos em diversos países.(9) É a lesão pré-cirrótica mais importante. Autores relatam cirrose hepática em 50% dos casos de hepatite alcoólica. Os índices de mortalidade por hepatite alcoólica variaram, conforme os trabalhos consultados, de 0% a 13,5% nas formas leves e de 29% a 55% nas formas graves.(9) A hepatite alcoólica comumente só se desenvolve em pacientes que consomem pelo menos 80 g de álcool etílico ao dia, durante pelo menos cinco anos (geralmente dez anos ou mais). A cirrose hepática é a fase da DHA considerada irreversível. A incidência da cirrose varia entre 12% e 30%, conforme os trabalhos consultados.(7) A cirrose só se estabeleceria após período mínimo de dez anos do consumo etílico.(7) A fibrose perivenular caracteriza-se pela presença de fibrose em torno da veia hepática, com extensão de pelo menos 2/3 e espessura superior a 4 mm. É considerada lesão pré-cirrótica.(5) Embora raramente o consumo crônico de etanol pode causar quadro histológico caracterizado pela presença de piecemeal necroses. Cerca de 5% dos pacientes com cirrose alcoólica desenvolvem carcinoma hepatocelular(10) (que pode também, embora raramente, se desenvolver em alcoólatras sem cirrose). Os fatores de risco para doença hepática alcoólica são: • quantidade de álcool ingerida, • duração (tempo) da ingestão, • continuidade, • sexo feminino, • desnutrição, • substâncias hepatotóxicas em bebidas alcoólicas, • outras condições patológicas (obesidade, deposição de ferro), • hepatites pelos vírus B e C, • fator genético (predisponente).(5,11) Metabolismo do Etanol e suas Conseqüências Analisaremos resumidamente esse item, sendo que mais detalhes constam de outra publicação.(5) O álcool é absorvido por difusão passiva simples sem sofrer processos de digestão. Cerca de 75% do álcool ingerido é absorvido no estômago e 25% nos intestinos, principalmente ao nível de jejuno proximal. Excesso de ingestão de álcool altera a absorção de nutrientes, tais como vitaminas, proteínas, aminoácidos, desencadeando desnutrição e o dano hepático de muitos alcoólicos. O metabolismo normal de outros nutrientes, tais como o dos lipídios, pode ser alterado pelo metabolismo do etanol (que, como mencionado, ocorre quase exclusivamente no fígado), contribuindo para a formação de espécies de oxigênio 114 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 reativo, causando estresse e depleção de glutationa, fatores que exacerbam o dano hepático. O estresse oxidativo induzido pelo etanol desempenha papel fundamental no mecanismo pelo qual o etanol produz dano hepático.(12) Álcool também interfere com o ciclo do folato, resultando hipometilação de DNA e pode predispor ao câncer. O álcool pode ser oxidado por três vias: • ADH (álcool-desidrogenase) localizada no citosol ou fração solúvel, • MEOS (sistema microssômico de oxidação do etanol localizado no retículo endoplasmático) e • catalase (acredita-se que essa via não tenha papel significante no homem). A principal via é a ADH, que produz aldeído acético, que pode formar complexos estáveis de aldeído acético-proteína, que é imunogênico, sendo capaz de induzir dano inflamatório no fígado. Como conseqüência da oxidação via ADH há maior produção de NADH, causando alterações nos metabolismos dos lipídios, hidratos de carbono, ácido úrico e diminuição da síntese protéica, aumento de colágeno e esteatose. A indução do citocromo P4502E1 pelo consumo crônico de etanol desempenha papel importante na patogenia da DHA e altera o metabolismo de outros compostos, como o do acetaminofeno e ambiental de pró-carcinógenos. Em vários trabalhos recentes destaca-se a importância de determinantes genéticos do alcoolismo e da DHA.(13,14) Para se contrapor aos malefícios do consumo excessivo do álcool, alguns autores mencionam que o café e o chá reduzem o risco de doença hepática crônica nos EUA.(15) No Japão, o consumo habitual de café foi capaz, em um estudo, de reduzir o risco de hepatocarcinoma. Alguns autores admitem e outros não, que o vinho seja menos hepatotóxico que outras bebidas alcoólicas. Diagnóstico O estudo diagnóstico da DHA deve incluir: anamnese, exame físico, exames laboratoriais, métodos diagnósticos por imagem, dados morfológicos e avaliação da resposta (clínica e laboratorial) após a Hepatologia abstenção alcoólica. O dado mais importante por ocasião da anamnese é procurar “conhecer bem“ os hábitos etílicos. Os alcoólatras freqüentemente subestimam sua ingestão de álcool, informando que “bebem socialmente”. Deve-se também procurar saber se há história familiar de alcoolismo, uso de medicamentos que podem causar interação com o álcool, distúrbios da personalidade e a existência de doenças que poderiam ser causadas pelo efeito do álcool (exemplo: polineurite), entre outros dados.(16) Os pacientes com DHA podem ou não apresentar sintomas. Esses são inespecíficos e compreendem principalmente anorexia, náuseas, vômitos, emagrecimento e dores abdominais. Esses sintomas podem existir nas formas leves e intensas. Nas leves não há dados sugestivos de insuficiência hepatocelular ou de hipertensão portal. Nas formas intensas, com encefalopatia hepática há alterações psíquicas (desorientação temporoespacial, confusão, sonolência, letargia). Para se formular a hipótese diagnóstica de DHA, o consumo diário de álcool deve ser no mínimo de 40 g para a mulher e de 80 g para o homem, durante período de pelo menos um ano. Ao exame físico pode haver febre, aranhas vasculares, icterícia, ginecomastia, eritema palmar, hepatoesplenomegalia, entre outros sinais. A hepatomegalia está presente aproximadamente em 80% dos casos de DHA (em pacientes que continuam ingerindo bebidas alcoólicas).(5) Nas formas intensas, com encefalopatia, há sinais que caracterizam essa complicação hepática. A ascite está presente em 80% das formas intensas. Muitos pacientes apresentam também sinais relacionados com a síndrome de feminização: ginecomastia, perda de pêlos e atrofia testicular. Entre os exames laboratoriais merecem destaque aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT) que não ultrapassam 300 UI/L, exceto em poucos pacientes com necrose esclerosante hialina ou quando há associadamente doença hepática induzida pelo paracetamol ou hepatite viral. AST/ALT ≥ 2 é muito sugestivo de hepatite ou cirrose alcoólicas. A gama-glutamiltrans- ferase (GGT) está aumentada em número considerável de pacientes com DHA, mas pode também estar elevada em alcoólatras sem hepatopatia evidente e ainda em algumas doenças não hepáticas. Altos índices de GGT/FA são mais sugestivos de DHA do que de doença hepática não-alcoólica. As determinações dos níveis de albuminemia, do tempo de protrombina e da bilirrubinemia são úteis para detectar disfunção hepática. A denominada função discriminante (FD) de Maddrey et al. é muito útil para avaliação prognóstica da HA.(17) A FD é calculada determinando os níveis séricos de bilirrubina (em µmol/l) e o tempo de protrombina, utilizando a seguinte equação: FD = 4,6 (tempo de protrombina – tempo controle) + níveis de bilirrubina/17,1). A divisão do nível de bilirrubina por 17,1 só deve ser feita quando o nível de bilirrubina for expresso em mg/dl, a fim de converter para µmol/L. Valores de 32 ou mais denotam doença hepática intensa, com índice de mortalidade em quatro semanas superior a 35%. Recentemente foi sugerido modelo para avaliar a fase final de doença hepática como fator preditivo de mortalidade de HA, em 30 e 90 dias, especialmente entre os que apresentam ascite e/ou encefalopatia. Esse modelo (MELD) baseia-se em três variáveis: creatinina sérica, bilirrubinas séricas e índice internacional normalizado (INR) para tempo de protrombina. Esse modelo é considerado superior ao teste da FD de Maddrey e escores de Child-Turcote-Pugh.(18,19) Surgiram recentemente vários testes bioquímicos para o estudo diagnóstico de DHA (5hydroxytryptophol (metabólito urinário da serotonina), ethylglucuronide etilsulfato, peptídeo do pró-colágeno tipo III, transferrina carboidrato-deficiente, entre outros). Entretanto, não apresentam sensibilidade e especificidade que possibilitam diagnóstico de certeza de alcoolismo e de DHA. Embora os testes laboratoriais sejam úteis para o estudo diagnóstico da DHA, nem sempre há correlação entre os seus resultados e os dados histológicos. Alguns exames devem, por vezes, ser realizados para excluir doença hepática não-alcoólica: hepatite crônica viral (vírus B ou C), hepatopatias auto-imunes, hemocromatose genética, doença de Wilson, entre outras. A ultra-sonografia apresenta grande sensibilidade para o diagnóstico de esteatose, porém de especificidade relativamente baixa. Alguns autores consideram a existência do denominado “pseudo-sinal dos canais paralelos” de utilidade para o diagnóstico de HA (a sensibilidade seria de 82%, a especificidade de 87% e a acurácia de 84%). Esse sinal não foi observado em pacientes com hepatopatias não-alcoólicas e tampouco em indivíduos sadios. A ultra-sonografia pode ser útil para o diagnóstico diferencial com icterícia obstrutiva. A tomografia computadorizada pode mostrar dados sugestivos de esteatose e aspecto característico de fibrose hepática confluente na cirrose hepática avançada. A ressonância magnética é útil para o diagnóstico de esteatose, cirrose e para o diagnóstico diferencial entre cirrose alcoólica e cirrose biliar primária, além de identificar nódulos regenerativos (estes podem, à ultra-sonografia e à tomografia computadorizada, mimetizar hepatocarcinoma). Esofagogastroduodenoscopia pode mostrar se há varizes do esôfago, que podem existir mesmo na ausência de cirrose hepática.(17) Apesar da importância dos dados clínicos, testes laboratoriais e dos métodos diagnósticos por imagem, o diagnóstico de DHA, do tipo de lesão e de sua atividade só pode ser estabelecido com a inclusão de dados morfológicos, fornecidos pela laparoscopia e biópsia. Entretanto, os dados morfológicos, sem o conhecimento dos dados clínicos (especialmente os hábitos etílicos) não possibilitam o diagnóstico de “doença hepática de etiologia alcoólica”. Além disso, os dados do exame histológico não informam sobre a disfunção hepática (e desse modo não substituem os testes de função hepática). Por outro lado, devemos lembrar que freqüentemente a biópsia hepática não é realizada por várias razões. Dado importante para o diagnóstico de DHA é a melhora marcante, clínica e laboratorial, que surge após abstenção alcoólica. Contudo, a ausência dessa melhora não permite excluir a hipótese de DHA. Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 115 Tratamento 1. Abstenção total de bebidas alcoólicas. É de fundamental importância para o tratamento. A esteatose não é, como se supunha, lesão sempre benigna. Além de poder evoluir (sem fase intermediária) para a cirrose, pode ser importante por ocasião de transplante hepático e em ressecções do fígado. Órgãos de doadores com esteatose são mais propensos ao desenvolvimento de falência primária do enxerto. Órgãos com esteatose intensa devem ser descartados (com relação ao transplante). A presença de esteatose também tem sido vista como potencial fator de risco para grandes cirurgias. Assim sendo, a esteatose (mesmo leve) deve ser tratada. Dependendo de sua intensidade, essa lesão pode desaparecer após uma a seis semanas de abstenção alcoólica e dieta normal. A HA pode regredir e o fígado se apresentar histologicamente normal após período de cessação de ingestão etílica. Essa cessação é importante, embora não suficiente em muitos casos, para a regressão de HA. Como mencionado, a cirrose é a fase irreversível da doença hepática, podendo se apresentar sob as formas compensada (sem ascite ou icterícia) ou descompensada.(20) A abstenção alcoólica em pacientes com cirrose de etiologia etílica pode aumentar a sobrevida, principalmente entre os que apresentam a forma compensada. A fibrose perivenular, a hepatite crônica ativa e a degeneração gordurosa microvesicular podem, em alguns casos, regredir após abstinência alcoólica. Quanto ao tratamento da dependência etílica, a Food and Drug Administration dos EUA aprovou dois medicamentos: dissulfiram e naltrexona. Se durante o uso de dissulfiram houver ingestão alcoólica, há aumento da concentração de aldeído acético (que não se converte em acetato) e que é tóxico para o sistema nervoso central. Os sintomas que podem surgir são: náuseas, vômitos, rubor facial e grande desconforto. Pode ocorrer também aumento da pressão arterial. Os efeitos colaterais da droga em si são raros e incluem algumas formas de neuropatia, surtos psicóticos e aumento do tempo de ação de anticoagulantes, anticonvulsivantes e antidepressivos. A dose é de 250 mg ao dia. A naltrexona é antagonista opiáceo. Estudos controlados têm demonstrado que uma dose de 50 mg ao dia por 12 semanas diminui consideravelmente o desejo de beber, a taxa de recaídas e a gravidade das mesmas. Doses diárias acima de 50 mg podem induzir hepatotoxicidade dose-dependente, o que contra-indica o uso em pacientes com hepatite aguda e insuficiência hepática. Naltrexona é a melhor escolha se o paciente não está em abstenção etílica pelo menos três ou cinco dias.(16) Efeitos adversos: náuseas, vômitos, cefaléia, vertigens, insônia, fadiga e sonolência. 2. Repouso. É recomendado na HA e nas formas descompensadas da DHA, com ascite, icterícia ou encefalopatia. 3. Tratamento sintomático. Das náuseas, vômitos e dores abdominais. Se for necessário usar analgésicos, preferir acetaminofeno, em doses não superiores a 2 g ao dia. 4. Correção dos distúrbios hidroeletrolíticos e metabólicos. Da desnutrição protéico-calórica, das deficiências vitamínicas e do ácido fólico. 5. Administração endovenosa de aminoácidos. Na dose diária de 80 g, associadamente com dieta de 100 g de proteínas e 3.000 calorias ao dia, que pode reduzir a hiperbilirrubinemia, elevar a concentração sérica de albumina e diminuir o índice de mortalidade em pacientes com HA. 6. Soluções ricas em aminoácidos ramificados (leucina, isoleucina, valinas, quando houver encefalopatia hepática). 7. Cuidados. Relativos à retenção de líquidos, disfunção renal, infecções e hemorragias gastrointestinais. 8. Erradicação. Do Helicobacter pylori (Hp) em pacientes com HA e encefalopatia hepática está indicada, segundo alguns autores; pois diminui a formação 116 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 de amônia (houve em alguns trabalhos aumento da prevalência de Hp na HA). Não há, contudo, consenso quanto a essa indicação. Tratamento específico Corticosteróides. Os corticosteróides têm, entre outros, os seguintes efeitos benéficos: aumentam o apetite, que está geralmente diminuído em etilistas; atuam como antiinflamatório; podem proteger membranas plasmáticas e de organelas contra efeitos tóxicos do etanol e de seus metabólitos; poderiam atenuar a ação citotóxica de anticorpos células T-dependente, assim como da linfocina por essas produzidas; diminuem a produção das interleucinas 6 e 8 e fator alfa de necrose tumoral; inibem a adesão de neutrófilos em células endoteliais. Os corticosteróides também aumentam a produção de albumina e inibem a dos colágenos I e IV. Entretanto, o seu emprego pode favorecer o aparecimento de infecções, septicemia, em pacientes com DHA, os quais são geralmente imunodeprimidos; podem desencadear, embora raramente, pancreatite aguda, quadros psicóticos, e favorecer infecções por vírus. Esses medicamentos estão indicados no tratamento da forma intensa da HA, em pacientes que não estejam apresentando hemorragia gastrointestinal ou infecções. Consideramos forma intensa da HA quando a função discriminante for maior que 32 ou quando houver encefalopatia espontânea. Os corticosteróides estão contra-indicados em doentes com o vírus da hepatite B, Aids e, possivelmente, com o vírus da hepatite C. A revisão da literatura permite verificar que foram utilizados os seguintes corticosteróides: prednisona, prednisolona e 5-metilprednisolona, doses que variam de, aproximadamente, 35 a 80 mg ao dia durante (na maioria dos trabalhos) quatro a seis semanas. Os efeitos benéficos desses medicamentos (na mencionada forma intensa da HA), diminuindo os índices de mortalidade, duram pelo menos um ano, prednisolona seria melhor que prednisona,(21) a qual requer a conversão para prednisolona (forma ativa). Quanto às interações, vale lembrar que a co-administração de digoxina pode aumentar a toxicidade digitálica secundária a Hepatologia hipocalemia; estrógenos podem aumentar os níveis de metilprednisolona; fenobarbital, fenitoína e rifampicina podem diminuir os níveis de metilprednisolona; quando forem usados concomitantemente diuréticos, deve-se monitorizar para hipocalemia. Esteróides anabolizantes. Esses medicamentos foram usados com o objetivo de estimular a síntese protéica e a regeneração hepática em pacientes com HA. Entretanto, em revisões sistemáticas e metanálises envolvendo estudos randomizados conduzidos pela Cochrane Database não foram demonstrados benefícios. Propiltiuracil. Esse medicamento atua­ ria bloqueando o estado hipermetabólico induzido pelo etanol e assim protegeria a zona perivenular do dano hipóxico. No tratamento da cirrose o propiltiuracil foi eficaz em um e ineficaz em outros trabalhos da literatura. (22) Recomendamos não utilizar esse medicamento até que outras pesquisas comprovem sua eficácia. Colchicina. Esse medicamento interfere no metabolismo de colágeno, inibindo sua síntese, diminuindo sua deposição e aumentando sua dissolução. Inibe também a secreção de pró-colágeno no tecido embrionário. Alguns acreditam que a colchicina possa atuar modificando a membrana de hepatócitos ou regulando o fluxo de mononucleares para a área necrótica. Em uma investigação em cirróticos, utilizando-se a colchicina na dose de 1 g ao dia, durante cinco dias por semana, houve melhora clínica evidente.(23) Revisões sistemáticas e metanálises envolvendo estudos randomizados conduzidas pela Cochrane Database não verificaram benefícios. Ácido ursodesoxicólico. Parece ter propriedades hepatoprotetoras. (24) Seu efeito benéfico é ainda mais evidente no tratamento da colestase intra-hepática (não incomum na DHA) leve ou moderada. Indicamos esse medicamento na DHA com colestase intra-hepática, na dose de 150 mg três a quatro vezes ao dia, até o desaparecimento dos sintomas. Dados preliminares de um pequeno ensaio clínico em pacientes com HA mostraram significativa melhora dos testes bioquímicos hepáticos. S-adenosil-L-metionina (Same). Esse medicamento parece ser realmente hepatoprotetor e segundo dados experimentais, útil no tratamento da fase “inicial” do dano hepático pelo etanol e outras substâncias hepatotóxicas (exemplo: ciclosporina A). Same é eficaz no tratamento da colestase intra-hepática, mesmo quando esta surge como complicação de insuficiência hepática aguda. Same é um metabólito fisiológico sintetizado a partir da metionina e ATP e exerce papel essencial nas reações bioquímicas de transmetilação e transulfuração. Same é convertido em cisteína que é necessária para a síntese de glutatião, substânciachave na proteção do fígado contra a ação de radicais livres e compostos tóxicos de origem endógena; está diminuída em diversas doenças hepáticas e não-hepáticas. A eficácia desse medicamento quanto à melhora ou normalização da função hepática na DHA parece ser mais evidente após período de abstenção alcoólica. Há na literatura um trabalho prospectivo em pacientes com HA intensa e no qual se observou que a administração IV de 200 mg, duas vezes ao dia, durante 14 dias, ocasionou melhora clínica e laboratorial em 36% dos casos. O efeito benéfico no tratamento da HA seria por sua ação antioxidante. Em recente trabalho prospectivo, randomizado, duplo-cego, verificou-se que Same foi eficaz no tratamento de pacientes com cirrose alcoólica, especialmente Child A e B. Há fundamento bioquímico para ser utilizado(25) e merece ser pesquisado.(26) Pode ser administrado via intravenosa, intramuscular ou via oral. Recentemente surgiram estudos placebocontrolados nos quais não se verificaram benefícios significativos. Fosfatidilcolina. Em estudo realizado em babuínos que ingeriam etanol, durante mais de seis anos e meio, observou-se que a suplementação da dieta com extrato de lecitina poliinsaturada de feijão de soja, contendo 94%-98% de fosfatidilcolina, preveniu o desenvolvimento de fibrose portal e cirrose. Esses resultados não foram confirmados em pesquisas no homem.(27) N-acetilcisteína EV. Embora em um trabalho pareceu ter sido eficaz no trata- mento da HA, aumentando a sobrevida em 56% dos casos, em ensaios prospectivos randomizados preliminares seu uso não mostrou benefício. Pentoxifilina. Atua diminuindo a viscosidade do sangue, inibe a adesão e ativação de neutrófilos e modula a liberação de citocinas (entre outros efeitos). A ação benéfica no tratamento de HA intensa parece estar relacionada com a diminuição do risco de desenvolvimento da síndrome hepatorrenal, e pelo efeito inibitório sobre o fator de necrose tumoral. Em grande ensaio randomizado, duplo-cego e controlado por placebo em 101 pacientes com HA, verificou-se que houve melhora significativa na sobrevida de curto prazo. Silimarina. Embora haja pesquisas em que se observou melhora clínica e histológica da HA, após o emprego da silimarina, há necessidade de maior número de estudos, multicêntricos, para se assegurar a eficácia desse medicamento. Eventualmente a associação de silimarina com ácido ursodesoxicólico poderia ser benéfica no tratamento da HA. Infusão de insulina e glucagon. Esses hormônios foram empregados no tratamento da HA porque estimulam a regeneração celular. A melhora da função hepática foi discreta. Como ocorreram casos de óbito (conseqüentemente a hipoglicemia) não devem ser utilizados. Outros medicamentos e nutrição parenteral e enteral artificial. Foram estudados efeitos de antibióticos e lactobacilos (diminuem a absorção de endotoxinas), tromboxano (capaz, em estudo experimental, de reverter a inflamação e fibrose), de inibidor do fator de necrose tumoral, assim como da nutrição parenteral e enteral artificial, sem eficácia comprovada. Metformina poderia ser usada no tratamento da DHA ou prevenir sua progressão. (28) Infliximabe vem sendo estudado atualmente.(13) Medicamentos em pacientes com DHA A administração de medicamentos aos pacientes com disfunção hepática deve ser feita levando-se em consideração o Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 117 Hepatologia fato de poderem apresentar redução do clareamento e aumento da vida média de drogas. Exemplos: cloranfenicol, lincomicina, clordiazepóxido, diazepam, fenobarbital, meperidina, teofilina, propranolol, fenantoína, tolbutamida. crônica, cardiomiopatia e anormalidades musculoesqueléticas e psiquiátricas); c. período de abstinência etílica de, pelo menos, seis meses antes do transplante. Tratamento da hepatite C em pacientes que consomem bebidas alcoólicas Até recentemente esses pacientes eram excluídos do tratamento específico da hepatite C. Em estudo multicêntrico recente verificou-se que a terapêutica (interferon e ribavirina) não alterava a resposta virológica sustentada nos etilistas.(29) Baseado nesses critérios, conclui-se que não se deve, em princípio, indicar transplante de fígado na HA aguda (ou seja, em fase de consumo etílico). Em publicação recente salienta-se que não há consenso quanto à conveniência de se indicar transplante hepático em pacientes com HA aguda que não responderam ao tratamento clínico, em abstenção de seis meses. Atualmente a cirrose alcoólica é a segunda indicação mais freqüente de transplante no Brasil e no mundo. A sobrevida após um ano de transplante é semelhante à que ocorre em outras hepatopatias crônicas, entre 66% e 100%. A sobrevida após cinco anos também apresenta altos índices. Entretanto, a recidiva após o transplante, segundo alguns autores, é de 33%, com potencial de dano ao enxerto. Em estudo realizado em nosso meio, os índices de recidiva, quanto ao uso de álcool, foram pequenos.(31) Em publicações recentes ressalta-se a importância da proibição do tabagismo, que constitui problema adicional ao da recidiva do alcoolismo. Os indivíduos receptores de transplante são submetidos durante períodos longos a terapia imunossupressora, que juntamente com fatores como o fumo constituem risco de malignidade.(13) t Vacinação contra a hepatite B em alcoólatras Dispõe-se, atualmente, de uma vacina segura e eficaz (obtida por recombinação genética) contra a hepatite B, amplamente utilizada em todo o mundo. Essa vacinação é feita com doses de 20 µg de antígeno, que devem ser administradas por via intramuscular aos 0,30 e 180 dias. Com essa dose, obtém-se o aparecimento de anticorpos em 95% dos indivíduos. Contudo, em etilistas, a resposta quanto a essa imunoprofilaxia não é satisfatória. Em pesquisa recente verificouse que, se a dose utilizada for o dobro da mencionada, pode-se obter boa resposta, ou seja, proteção contra a hepatite B.(30) Tratamento cirúrgico Deve-se evitar cirurgia em doentes com HA (especialmente os que não estão em abstenção alcoólica), pois a mortalidade nesses casos é muito alta. Quanto ao transplante hepático, as seguintes considerações devem ser feitas: a. deve-se, em princípio, incluir entre os “candidatos” a transplante de fígado os pacientes com DHA; b. o critério de seleção (indicação de doentes com DHA como “candidatos”) deve basear-se em dados clínicos (os mesmos utilizados para hepatopatias nãoalcoólicas, excluindo-se, naturalmente, os que apresentam comprometimento significante extra-hepático, especialmente disfunção cerebral, pancreatite Conclusão Referências 1. Mukamal KL, Conigrave KM, Mittlemen MA et al. Roles of drinking pattern and type of alcohol consumed in coronary heart disease in men. N Engl J Med. 2003;348:109-18. 2. Criqui MH, Ringel BL. Does diet or alcohol explain the French paradox? Lancet. 1994;344:1719-23. 3. Wannamethee SG, Shaper AG. Taking up regular drinking in middle age: effect on major coronary heart disease events and mortality. Heart. 2002;87:32-6. 4. Di Castelnuevo A, Rotondo S, Iacoviello L, Donati MB, De Gaetano G. 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