Doença Hepática Alcoólica: Diagnóstico e Tratamento

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Hepatologia
Doença Hepática Alcoólica:
Diagnóstico e Tratamento
Prof. Dr. Moysés Mincis1 • Prof. Dr. Ricardo Mincis2
D
esde longa data são conhecidos alguns
dos malefícios que o consumo excessivo
de bebidas que contêm álcool (álcool
etílico ou etanol) pode causar. Em trabalho recente se concluiu que o consumo diário de vinho
tinto, em doses consideradas “pequenas“, atuou
como protetor de coronárias.(1) As conclusões de
trabalhos como esse devem ser muito cuidadosas,
não devem significar estímulo para o consumo de
bebidas alcoólicas. É indispensável “visão global”,
salientando seus enormes riscos quando consumidas de modo excessivo. Vale lembrar também
que mesmo em doses diárias pequenas há o
risco de desenvolver dependência (sendo esta
imprevisível). Os efeitos benéficos mencionados
não foram verificados em todos os trabalhos. Em
estudo epidemiológico, o mencionado consumo
de etanol (em qualquer bebida alcoólica) não
diminuiu os índices de mortalidade por doença
coronariana.(2) Se fosse recomendar-se o consumo
de álcool como cardioprotetor, deveria ser a partir
de que idade? Cerca de 75% dos acidentes fatais
com veículos ocorreram em pacientes com menos
de 50 anos.
Morrem, portanto, antes de iniciarem o consumo de álcool como tratamento (53 anos de idade
dos pacientes do citado trabalho de Mukamal et al.,
2003).(1) Como comentado em outros trabalhos, o
uso de álcool em indivíduos de meia-idade não se
justifica como terapêutica.(2,3) Mesmo em estudo de
metanálise não houve evidência de efeito benéfico
de vinho em homens sobre doença vascular.(4) Os
trabalhos realizados, a partir de 1960, possibilitaram
demonstrar a hepatotoxicidade do etanol.(5) Alguns
autores verificaram que o etanol produziu esteatose, com evidentes alterações ultra-estruturais
em ratos e no homem, assim
como fibrose e cirrose em macacos. Dados epidemiológicos
também reforçam os argumentos a favor da existência de
efeito hepatotóxico do álcool.
A hepatotoxicidade do etanol
está intimamente relacionada
com o metabolismo do etanol,
que se processa principalmente no fígado. O álcool é a
principal causa de cirrose nos
países ocidentais. Estudos
epidemiológicos possibilitaram demonstrar que há
correlação entre consumo per capita de álcool e
índices de mortalidade por cirrose em vários países
do mundo. Para ressaltar a importância da doença
hepática alcoólica (DHA), mencionaremos trabalho
prospectivo realizado nos EUA. Os autores estudaram 280 pacientes com DHA. Após 48 meses de
seguimento, verificaram que mais da metade do
grupo com cirrose e dois terços dos que tinham
cirrose e hepatite alcoólica (HA) haviam falecido.(6)
A doença hepática alcoólica é a causa mais
freqüente de disfunção hepática nos EUA. Essa
ocorrência naquele país está também relacionada
com o consumo elevado de bebidas alcoólicas,
onde cerca de metade da população adulta consome regularmente bebidas alcoólicas e 15 a 20
milhões de indivíduos são alcoólatras. Em alguns
hospitais universitários, o álcool é atualmente a
principal causa da cirrose, entre os cirróticos in-
Prof. Dr. Moysés Mincis
(à esq.) e Prof. Dr. Ricardo
Mincis
1 - Professor Titular da Disciplina de Gastroenterologia da Unifesp/EPM. Professor
Titular da Disciplina de Gastroenterologia da Faculdade de Ciências Médicas de Santos.
2 - Professor Mestre da Disciplina de Gastroenterologia da Faculdade de Ciências
Médicas de Santos.
Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 113
ternados.(7) No Brasil, onde, segundo dados
da Secretaria Nacional Antidrogas, há 11%
de indivíduos dependentes do álcool, a incidência de doença hepática alcoólica parece
ser elevada. Não há, contudo, dados sobre
essa incidência, como um todo, abrangendo
muitos Estados em nosso país. Em Inquérito
Nacional realizado em 1991, com dados
fornecidos por alguns Estados, a prevalência
de cirrose alcoólica variou entre 12% a 30%
dos etilistas estudados. (8) O consumo de
etanol pode causar os seguintes tipos de
lesões hepáticas:
• esteatose,
• hepatite alcoólica,
• cirrose,
• fibrose perivenular,
• hepatite crônica ativa,
• “fibrose alcoólica” (no Japão),
• hepatocarcinoma,
• lesões venosas oclusivas,
• degeneração gordurosa microvesicular,
• colangite microscópica.
A esteatose é a primeira e a mais
freqüente das lesões hepáticas, induzidas
pelo etanol, podendo ser a única ou estar
associada com outra(s) lesão(ões), como
hepatite alcoólica e cirrose. Esta surge,
invariavelmente, após ingestão de altas
doses de álcool, especialmente após três a
sete dias de consumo etílico. A esteatose
alcoólica pode evoluir, com a continuação
da ingestão etílica, para fibrose e cirrose.
Cerca de 10% a 35% dos pacientes com
esteatose desenvolvem HA e 10% a 20%
cirrose.(5)
Segundo dados da literatura, a prevalência da hepatite alcoólica variou entre 8%
e 63%, considerando trabalhos em diversos
países.(9) É a lesão pré-cirrótica mais importante. Autores relatam cirrose hepática em
50% dos casos de hepatite alcoólica. Os
índices de mortalidade por hepatite alcoólica
variaram, conforme os trabalhos consultados, de 0% a 13,5% nas formas leves e de
29% a 55% nas formas graves.(9) A hepatite
alcoólica comumente só se desenvolve em
pacientes que consomem pelo menos 80 g
de álcool etílico ao dia, durante pelo menos
cinco anos (geralmente dez anos ou mais).
A cirrose hepática é a fase da DHA
considerada irreversível. A incidência da
cirrose varia entre 12% e 30%, conforme
os trabalhos consultados.(7) A cirrose só se
estabeleceria após período mínimo de dez
anos do consumo etílico.(7) A fibrose perivenular caracteriza-se pela presença de fibrose
em torno da veia hepática, com extensão
de pelo menos 2/3 e espessura superior a
4 mm. É considerada lesão pré-cirrótica.(5)
Embora raramente o consumo crônico
de etanol pode causar quadro histológico
caracterizado pela presença de piecemeal
necroses. Cerca de 5% dos pacientes com
cirrose alcoólica desenvolvem carcinoma
hepatocelular(10) (que pode também, embora
raramente, se desenvolver em alcoólatras
sem cirrose).
Os fatores de risco para doença hepática alcoólica são:
• quantidade de álcool ingerida,
• duração (tempo) da ingestão,
• continuidade,
• sexo feminino,
• desnutrição,
• substâncias hepatotóxicas em bebidas
alcoólicas,
• outras condições patológicas (obesidade, deposição de ferro),
• hepatites pelos vírus B e C,
• fator genético (predisponente).(5,11)
Metabolismo do Etanol e suas
Conseqüências
Analisaremos resumidamente esse
item, sendo que mais detalhes constam
de outra publicação.(5) O álcool é absorvido
por difusão passiva simples sem sofrer
processos de digestão. Cerca de 75% do
álcool ingerido é absorvido no estômago e
25% nos intestinos, principalmente ao nível
de jejuno proximal. Excesso de ingestão de
álcool altera a absorção de nutrientes, tais
como vitaminas, proteínas, aminoácidos,
desencadeando desnutrição e o dano hepático de muitos alcoólicos. O metabolismo
normal de outros nutrientes, tais como o dos
lipídios, pode ser alterado pelo metabolismo
do etanol (que, como mencionado, ocorre
quase exclusivamente no fígado), contribuindo para a formação de espécies de oxigênio
114 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006
reativo, causando estresse e depleção de
glutationa, fatores que exacerbam o dano
hepático. O estresse oxidativo induzido pelo
etanol desempenha papel fundamental no
mecanismo pelo qual o etanol produz dano
hepático.(12) Álcool também interfere com o
ciclo do folato, resultando hipometilação de
DNA e pode predispor ao câncer. O álcool
pode ser oxidado por três vias:
• ADH (álcool-desidrogenase) localizada
no citosol ou fração solúvel,
• MEOS (sistema microssômico de oxidação do etanol localizado no retículo
endoplasmático) e
• catalase (acredita-se que essa via não
tenha papel significante no homem).
A principal via é a ADH, que produz aldeído acético, que pode formar complexos
estáveis de aldeído acético-proteína, que é
imunogênico, sendo capaz de induzir dano
inflamatório no fígado. Como conseqüência
da oxidação via ADH há maior produção de
NADH, causando alterações nos metabolismos dos lipídios, hidratos de carbono, ácido
úrico e diminuição da síntese protéica, aumento de colágeno e esteatose. A indução
do citocromo P4502E1 pelo consumo crônico de etanol desempenha papel importante
na patogenia da DHA e altera o metabolismo
de outros compostos, como o do acetaminofeno e ambiental de pró-carcinógenos.
Em vários trabalhos recentes destaca-se a
importância de determinantes genéticos do
alcoolismo e da DHA.(13,14) Para se contrapor
aos malefícios do consumo excessivo do
álcool, alguns autores mencionam que o
café e o chá reduzem o risco de doença
hepática crônica nos EUA.(15) No Japão, o
consumo habitual de café foi capaz, em um
estudo, de reduzir o risco de hepatocarcinoma. Alguns autores admitem e outros não,
que o vinho seja menos hepatotóxico que
outras bebidas alcoólicas.
Diagnóstico
O estudo diagnóstico da DHA deve
incluir: anamnese, exame físico, exames
laboratoriais, métodos diagnósticos por
imagem, dados morfológicos e avaliação
da resposta (clínica e laboratorial) após a
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abstenção alcoólica. O dado mais importante por ocasião da anamnese é procurar
“conhecer bem“ os hábitos etílicos. Os
alcoólatras freqüentemente subestimam
sua ingestão de álcool, informando que
“bebem socialmente”. Deve-se também
procurar saber se há história familiar de
alcoolismo, uso de medicamentos que
podem causar interação com o álcool,
distúrbios da personalidade e a existência
de doenças que poderiam ser causadas
pelo efeito do álcool (exemplo: polineurite),
entre outros dados.(16) Os pacientes com
DHA podem ou não apresentar sintomas.
Esses são inespecíficos e compreendem
principalmente anorexia, náuseas, vômitos,
emagrecimento e dores abdominais. Esses
sintomas podem existir nas formas leves e
intensas. Nas leves não há dados sugestivos de insuficiência hepatocelular ou de
hipertensão portal. Nas formas intensas,
com encefalopatia hepática há alterações
psíquicas (desorientação temporoespacial,
confusão, sonolência, letargia). Para se
formular a hipótese diagnóstica de DHA, o
consumo diário de álcool deve ser no mínimo de 40 g para a mulher e de 80 g para
o homem, durante período de pelo menos
um ano. Ao exame físico pode haver febre,
aranhas vasculares, icterícia, ginecomastia,
eritema palmar, hepatoesplenomegalia,
entre outros sinais. A hepatomegalia está
presente aproximadamente em 80% dos
casos de DHA (em pacientes que continuam
ingerindo bebidas alcoólicas).(5) Nas formas
intensas, com encefalopatia, há sinais que
caracterizam essa complicação hepática.
A ascite está presente em 80% das formas
intensas. Muitos pacientes apresentam também sinais relacionados com a síndrome de
feminização: ginecomastia, perda de pêlos
e atrofia testicular.
Entre os exames laboratoriais merecem
destaque aspartato aminotransferase (AST)
e alanina aminotransferase (ALT) que não
ultrapassam 300 UI/L, exceto em poucos pacientes com necrose esclerosante hialina ou
quando há associadamente doença hepática
induzida pelo paracetamol ou hepatite viral.
AST/ALT ≥ 2 é muito sugestivo de hepatite
ou cirrose alcoólicas. A gama-glutamiltrans-
ferase (GGT) está aumentada em número
considerável de pacientes com DHA, mas
pode também estar elevada em alcoólatras
sem hepatopatia evidente e ainda em algumas doenças não hepáticas. Altos índices
de GGT/FA são mais sugestivos de DHA do
que de doença hepática não-alcoólica. As
determinações dos níveis de albuminemia,
do tempo de protrombina e da bilirrubinemia
são úteis para detectar disfunção hepática.
A denominada função discriminante (FD) de
Maddrey et al. é muito útil para avaliação
prognóstica da HA.(17) A FD é calculada determinando os níveis séricos de bilirrubina (em
µmol/l) e o tempo de protrombina, utilizando
a seguinte equação:
FD = 4,6 (tempo de protrombina – tempo controle) + níveis de bilirrubina/17,1). A
divisão do nível de bilirrubina por 17,1 só
deve ser feita quando o nível de bilirrubina
for expresso em mg/dl, a fim de converter
para µmol/L. Valores de 32 ou mais denotam
doença hepática intensa, com índice de
mortalidade em quatro semanas superior
a 35%. Recentemente foi sugerido modelo
para avaliar a fase final de doença hepática
como fator preditivo de mortalidade de HA,
em 30 e 90 dias, especialmente entre os que
apresentam ascite e/ou encefalopatia. Esse
modelo (MELD) baseia-se em três variáveis:
creatinina sérica, bilirrubinas séricas e índice
internacional normalizado (INR) para tempo
de protrombina. Esse modelo é considerado
superior ao teste da FD de Maddrey e escores de Child-Turcote-Pugh.(18,19) Surgiram
recentemente vários testes bioquímicos
para o estudo diagnóstico de DHA (5hydroxytryptophol (metabólito urinário da
serotonina), ethylglucuronide etilsulfato,
peptídeo do pró-colágeno tipo III, transferrina carboidrato-deficiente, entre outros).
Entretanto, não apresentam sensibilidade e
especificidade que possibilitam diagnóstico
de certeza de alcoolismo e de DHA. Embora
os testes laboratoriais sejam úteis para o
estudo diagnóstico da DHA, nem sempre
há correlação entre os seus resultados e os
dados histológicos. Alguns exames devem,
por vezes, ser realizados para excluir doença
hepática não-alcoólica: hepatite crônica viral
(vírus B ou C), hepatopatias auto-imunes,
hemocromatose genética, doença de Wilson, entre outras.
A ultra-sonografia apresenta grande sensibilidade para o diagnóstico de esteatose,
porém de especificidade relativamente baixa. Alguns autores consideram a existência
do denominado “pseudo-sinal dos canais
paralelos” de utilidade para o diagnóstico de
HA (a sensibilidade seria de 82%, a especificidade de 87% e a acurácia de 84%). Esse
sinal não foi observado em pacientes com
hepatopatias não-alcoólicas e tampouco em
indivíduos sadios. A ultra-sonografia pode
ser útil para o diagnóstico diferencial com
icterícia obstrutiva. A tomografia computadorizada pode mostrar dados sugestivos de
esteatose e aspecto característico de fibrose
hepática confluente na cirrose hepática
avançada. A ressonância magnética é útil
para o diagnóstico de esteatose, cirrose e
para o diagnóstico diferencial entre cirrose
alcoólica e cirrose biliar primária, além de
identificar nódulos regenerativos (estes
podem, à ultra-sonografia e à tomografia
computadorizada, mimetizar hepatocarcinoma). Esofagogastroduodenoscopia
pode mostrar se há varizes do esôfago,
que podem existir mesmo na ausência de
cirrose hepática.(17)
Apesar da importância dos dados clínicos, testes laboratoriais e dos métodos
diagnósticos por imagem, o diagnóstico de
DHA, do tipo de lesão e de sua atividade
só pode ser estabelecido com a inclusão
de dados morfológicos, fornecidos pela
laparoscopia e biópsia. Entretanto, os dados
morfológicos, sem o conhecimento dos
dados clínicos (especialmente os hábitos
etílicos) não possibilitam o diagnóstico de
“doença hepática de etiologia alcoólica”.
Além disso, os dados do exame histológico
não informam sobre a disfunção hepática (e
desse modo não substituem os testes de
função hepática). Por outro lado, devemos
lembrar que freqüentemente a biópsia hepática não é realizada por várias razões. Dado
importante para o diagnóstico de DHA é a
melhora marcante, clínica e laboratorial, que
surge após abstenção alcoólica. Contudo, a
ausência dessa melhora não permite excluir
a hipótese de DHA.
Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 115
Tratamento
1. Abstenção total de bebidas alcoólicas. É de fundamental importância para
o tratamento. A esteatose não é, como
se supunha, lesão sempre benigna. Além
de poder evoluir (sem fase intermediária)
para a cirrose, pode ser importante por
ocasião de transplante hepático e em ressecções do fígado. Órgãos de doadores
com esteatose são mais propensos ao
desenvolvimento de falência primária do
enxerto. Órgãos com esteatose intensa
devem ser descartados (com relação ao
transplante). A presença de esteatose
também tem sido vista como potencial fator de risco para grandes cirurgias. Assim
sendo, a esteatose (mesmo leve) deve ser
tratada. Dependendo de sua intensidade,
essa lesão pode desaparecer após uma
a seis semanas de abstenção alcoólica
e dieta normal. A HA pode regredir e o
fígado se apresentar histologicamente
normal após período de cessação de
ingestão etílica. Essa cessação é importante, embora não suficiente em muitos
casos, para a regressão de HA. Como
mencionado, a cirrose é a fase irreversível da doença hepática, podendo se
apresentar sob as formas compensada
(sem ascite ou icterícia) ou descompensada.(20) A abstenção alcoólica em
pacientes com cirrose de etiologia etílica
pode aumentar a sobrevida, principalmente entre os que apresentam a forma
compensada. A fibrose perivenular, a
hepatite crônica ativa e a degeneração
gordurosa microvesicular podem, em
alguns casos, regredir após abstinência
alcoólica. Quanto ao tratamento da
dependência etílica, a Food and Drug
Administration dos EUA aprovou dois
medicamentos: dissulfiram e naltrexona.
Se durante o uso de dissulfiram houver
ingestão alcoólica, há aumento da concentração de aldeído acético (que não se
converte em acetato) e que é tóxico para
o sistema nervoso central. Os sintomas
que podem surgir são: náuseas, vômitos,
rubor facial e grande desconforto. Pode
ocorrer também aumento da pressão
arterial. Os efeitos colaterais da droga em
si são raros e incluem algumas formas de
neuropatia, surtos psicóticos e aumento
do tempo de ação de anticoagulantes,
anticonvulsivantes e antidepressivos.
A dose é de 250 mg ao dia. A naltrexona é antagonista opiáceo. Estudos
controlados têm demonstrado que uma
dose de 50 mg ao dia por 12 semanas
diminui consideravelmente o desejo de
beber, a taxa de recaídas e a gravidade
das mesmas. Doses diárias acima de
50 mg podem induzir hepatotoxicidade
dose-dependente, o que contra-indica
o uso em pacientes com hepatite aguda
e insuficiência hepática. Naltrexona é a
melhor escolha se o paciente não está
em abstenção etílica pelo menos três ou
cinco dias.(16) Efeitos adversos: náuseas,
vômitos, cefaléia, vertigens, insônia,
fadiga e sonolência.
2. Repouso. É recomendado na HA e nas
formas descompensadas da DHA, com
ascite, icterícia ou encefalopatia.
3. Tratamento sintomático. Das náuseas, vômitos e dores abdominais. Se
for necessário usar analgésicos, preferir
acetaminofeno, em doses não superiores a 2 g ao dia.
4. Correção dos distúrbios hidroeletrolíticos e metabólicos. Da desnutrição
protéico-calórica, das deficiências vitamínicas e do ácido fólico.
5. Administração endovenosa de aminoácidos. Na dose diária de 80 g,
associadamente com dieta de 100 g de
proteínas e 3.000 calorias ao dia, que
pode reduzir a hiperbilirrubinemia, elevar a concentração sérica de albumina
e diminuir o índice de mortalidade em
pacientes com HA.
6. Soluções ricas em aminoácidos ramificados (leucina, isoleucina, valinas,
quando houver encefalopatia hepática).
7. Cuidados. Relativos à retenção de
líquidos, disfunção renal, infecções e
hemorragias gastrointestinais.
8. Erradicação. Do Helicobacter pylori
(Hp) em pacientes com HA e encefalopatia hepática está indicada, segundo
alguns autores; pois diminui a formação
116 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006
de amônia (houve em alguns trabalhos
aumento da prevalência de Hp na HA).
Não há, contudo, consenso quanto a
essa indicação.
Tratamento específico
Corticosteróides. Os corticosteróides
têm, entre outros, os seguintes efeitos benéficos: aumentam o apetite, que está geralmente diminuído em etilistas; atuam como
antiinflamatório; podem proteger membranas
plasmáticas e de organelas contra efeitos
tóxicos do etanol e de seus metabólitos;
poderiam atenuar a ação citotóxica de anticorpos células T-dependente, assim como
da linfocina por essas produzidas; diminuem
a produção das interleucinas 6 e 8 e fator
alfa de necrose tumoral; inibem a adesão de
neutrófilos em células endoteliais. Os corticosteróides também aumentam a produção
de albumina e inibem a dos colágenos I e IV.
Entretanto, o seu emprego pode favorecer o
aparecimento de infecções, septicemia, em
pacientes com DHA, os quais são geralmente imunodeprimidos; podem desencadear,
embora raramente, pancreatite aguda, quadros psicóticos, e favorecer infecções por
vírus. Esses medicamentos estão indicados
no tratamento da forma intensa da HA, em
pacientes que não estejam apresentando
hemorragia gastrointestinal ou infecções.
Consideramos forma intensa da HA quando
a função discriminante for maior que 32 ou
quando houver encefalopatia espontânea.
Os corticosteróides estão contra-indicados
em doentes com o vírus da hepatite B, Aids
e, possivelmente, com o vírus da hepatite C. A
revisão da literatura permite verificar que foram
utilizados os seguintes corticosteróides: prednisona, prednisolona e 5-metilprednisolona,
doses que variam de, aproximadamente, 35
a 80 mg ao dia durante (na maioria dos trabalhos) quatro a seis semanas. Os efeitos benéficos desses medicamentos (na mencionada
forma intensa da HA), diminuindo os índices
de mortalidade, duram pelo menos um ano,
prednisolona seria melhor que prednisona,(21)
a qual requer a conversão para prednisolona
(forma ativa). Quanto às interações, vale lembrar que a co-administração de digoxina pode
aumentar a toxicidade digitálica secundária a
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hipocalemia; estrógenos podem aumentar
os níveis de metilprednisolona; fenobarbital,
fenitoína e rifampicina podem diminuir os níveis
de metilprednisolona; quando forem usados
concomitantemente diuréticos, deve-se monitorizar para hipocalemia.
Esteróides anabolizantes. Esses medicamentos foram usados com o objetivo de
estimular a síntese protéica e a regeneração
hepática em pacientes com HA. Entretanto,
em revisões sistemáticas e metanálises
envolvendo estudos randomizados conduzidos pela Cochrane Database não foram
demonstrados benefícios.
Propiltiuracil. Esse medicamento atua­
ria bloqueando o estado hipermetabólico
induzido pelo etanol e assim protegeria a
zona perivenular do dano hipóxico. No tratamento da cirrose o propiltiuracil foi eficaz
em um e ineficaz em outros trabalhos da
literatura. (22) Recomendamos não utilizar
esse medicamento até que outras pesquisas
comprovem sua eficácia.
Colchicina. Esse medicamento interfere no metabolismo de colágeno, inibindo
sua síntese, diminuindo sua deposição e
aumentando sua dissolução. Inibe também
a secreção de pró-colágeno no tecido embrionário. Alguns acreditam que a colchicina
possa atuar modificando a membrana de
hepatócitos ou regulando o fluxo de mononucleares para a área necrótica. Em uma
investigação em cirróticos, utilizando-se a
colchicina na dose de 1 g ao dia, durante
cinco dias por semana, houve melhora
clínica evidente.(23) Revisões sistemáticas e
metanálises envolvendo estudos randomizados conduzidas pela Cochrane Database
não verificaram benefícios.
Ácido ursodesoxicólico. Parece ter
propriedades hepatoprotetoras. (24) Seu
efeito benéfico é ainda mais evidente no
tratamento da colestase intra-hepática
(não incomum na DHA) leve ou moderada.
Indicamos esse medicamento na DHA com
colestase intra-hepática, na dose de 150 mg
três a quatro vezes ao dia, até o desaparecimento dos sintomas. Dados preliminares
de um pequeno ensaio clínico em pacientes
com HA mostraram significativa melhora dos
testes bioquímicos hepáticos.
S-adenosil-L-metionina (Same). Esse
medicamento parece ser realmente hepatoprotetor e segundo dados experimentais,
útil no tratamento da fase “inicial” do dano
hepático pelo etanol e outras substâncias
hepatotóxicas (exemplo: ciclosporina A).
Same é eficaz no tratamento da colestase
intra-hepática, mesmo quando esta surge
como complicação de insuficiência hepática
aguda. Same é um metabólito fisiológico sintetizado a partir da metionina e ATP e exerce
papel essencial nas reações bioquímicas
de transmetilação e transulfuração. Same
é convertido em cisteína que é necessária
para a síntese de glutatião, substânciachave na proteção do fígado contra a ação
de radicais livres e compostos tóxicos de
origem endógena; está diminuída em diversas doenças hepáticas e não-hepáticas. A
eficácia desse medicamento quanto à melhora ou normalização da função hepática na
DHA parece ser mais evidente após período
de abstenção alcoólica. Há na literatura um
trabalho prospectivo em pacientes com HA
intensa e no qual se observou que a administração IV de 200 mg, duas vezes ao dia,
durante 14 dias, ocasionou melhora clínica
e laboratorial em 36% dos casos. O efeito
benéfico no tratamento da HA seria por
sua ação antioxidante. Em recente trabalho
prospectivo, randomizado, duplo-cego,
verificou-se que Same foi eficaz no tratamento de pacientes com cirrose alcoólica,
especialmente Child A e B. Há fundamento
bioquímico para ser utilizado(25) e merece
ser pesquisado.(26) Pode ser administrado
via intravenosa, intramuscular ou via oral.
Recentemente surgiram estudos placebocontrolados nos quais não se verificaram
benefícios significativos.
Fosfatidilcolina. Em estudo realizado
em babuínos que ingeriam etanol, durante
mais de seis anos e meio, observou-se que
a suplementação da dieta com extrato de
lecitina poliinsaturada de feijão de soja, contendo 94%-98% de fosfatidilcolina, preveniu
o desenvolvimento de fibrose portal e cirrose. Esses resultados não foram confirmados
em pesquisas no homem.(27)
N-acetilcisteína EV. Embora em um
trabalho pareceu ter sido eficaz no trata-
mento da HA, aumentando a sobrevida em
56% dos casos, em ensaios prospectivos
randomizados preliminares seu uso não
mostrou benefício.
Pentoxifilina. Atua diminuindo a viscosidade do sangue, inibe a adesão e ativação
de neutrófilos e modula a liberação de citocinas (entre outros efeitos). A ação benéfica
no tratamento de HA intensa parece estar
relacionada com a diminuição do risco de
desenvolvimento da síndrome hepatorrenal,
e pelo efeito inibitório sobre o fator de necrose tumoral. Em grande ensaio randomizado,
duplo-cego e controlado por placebo em
101 pacientes com HA, verificou-se que
houve melhora significativa na sobrevida
de curto prazo.
Silimarina. Embora haja pesquisas em
que se observou melhora clínica e histológica da HA, após o emprego da silimarina, há
necessidade de maior número de estudos,
multicêntricos, para se assegurar a eficácia desse medicamento. Eventualmente
a associação de silimarina com ácido
ursodesoxicólico poderia ser benéfica no
tratamento da HA.
Infusão de insulina e glucagon. Esses
hormônios foram empregados no tratamento da HA porque estimulam a regeneração
celular. A melhora da função hepática foi
discreta. Como ocorreram casos de óbito
(conseqüentemente a hipoglicemia) não
devem ser utilizados.
Outros medicamentos e nutrição
parenteral e enteral artificial. Foram
estudados efeitos de antibióticos e lactobacilos (diminuem a absorção de endotoxinas),
tromboxano (capaz, em estudo experimental, de reverter a inflamação e fibrose), de
inibidor do fator de necrose tumoral, assim
como da nutrição parenteral e enteral artificial, sem eficácia comprovada.
Metformina poderia ser usada no tratamento da DHA ou prevenir sua progressão. (28) Infliximabe vem sendo estudado
atualmente.(13)
Medicamentos em pacientes com DHA
A administração de medicamentos aos
pacientes com disfunção hepática deve
ser feita levando-se em consideração o
Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 48 • Nov-Dez/2006 117
Hepatologia
fato de poderem apresentar redução do
clareamento e aumento da vida média de
drogas. Exemplos: cloranfenicol, lincomicina, clordiazepóxido, diazepam, fenobarbital,
meperidina, teofilina, propranolol, fenantoína, tolbutamida.
crônica, cardiomiopatia e anormalidades
musculoesqueléticas e psiquiátricas);
c. período de abstinência etílica de, pelo menos, seis meses antes do transplante.
Tratamento da hepatite C em pacientes
que consomem bebidas alcoólicas
Até recentemente esses pacientes eram
excluídos do tratamento específico da hepatite C. Em estudo multicêntrico recente
verificou-se que a terapêutica (interferon e
ribavirina) não alterava a resposta virológica
sustentada nos etilistas.(29)
Baseado nesses critérios, conclui-se que
não se deve, em princípio, indicar transplante
de fígado na HA aguda (ou seja, em fase de
consumo etílico). Em publicação recente salienta-se que não há consenso quanto à conveniência de se indicar transplante hepático
em pacientes com HA aguda que não responderam ao tratamento clínico, em abstenção
de seis meses. Atualmente a cirrose alcoólica
é a segunda indicação mais freqüente de
transplante no Brasil e no mundo. A sobrevida
após um ano de transplante é semelhante à
que ocorre em outras hepatopatias crônicas,
entre 66% e 100%. A sobrevida após cinco
anos também apresenta altos índices. Entretanto, a recidiva após o transplante, segundo
alguns autores, é de 33%, com potencial de
dano ao enxerto. Em estudo realizado em
nosso meio, os índices de recidiva, quanto
ao uso de álcool, foram pequenos.(31) Em
publicações recentes ressalta-se a importância da proibição do tabagismo, que constitui
problema adicional ao da recidiva do alcoolismo. Os indivíduos receptores de transplante
são submetidos durante períodos longos a
terapia imunossupressora, que juntamente
com fatores como o fumo constituem risco
de malignidade.(13) t
Vacinação contra a hepatite B em
alcoólatras
Dispõe-se, atualmente, de uma vacina
segura e eficaz (obtida por recombinação
genética) contra a hepatite B, amplamente
utilizada em todo o mundo. Essa vacinação
é feita com doses de 20 µg de antígeno, que
devem ser administradas por via intramuscular aos 0,30 e 180 dias. Com essa dose,
obtém-se o aparecimento de anticorpos em
95% dos indivíduos. Contudo, em etilistas, a
resposta quanto a essa imunoprofilaxia não
é satisfatória. Em pesquisa recente verificouse que, se a dose utilizada for o dobro da
mencionada, pode-se obter boa resposta,
ou seja, proteção contra a hepatite B.(30)
Tratamento cirúrgico
Deve-se evitar cirurgia em doentes com
HA (especialmente os que não estão em
abstenção alcoólica), pois a mortalidade
nesses casos é muito alta.
Quanto ao transplante hepático, as seguintes considerações devem ser feitas:
a. deve-se, em princípio, incluir entre os
“candidatos” a transplante de fígado os
pacientes com DHA;
b. o critério de seleção (indicação de doentes com DHA como “candidatos”) deve
basear-se em dados clínicos (os mesmos utilizados para hepatopatias nãoalcoólicas, excluindo-se, naturalmente,
os que apresentam comprometimento
significante extra-hepático, especialmente disfunção cerebral, pancreatite
Conclusão
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Endereço para correspondência:
R. Itapeva, 518 - 8º - conj. 804
CEP 01232-000 - São Paulo - SP.
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