— maio 2014 QUALIDADE DO LEITE marcos Veiga dos santos Professor Associado da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia Universidade de São Paulo Coordenador do Qualileite-FMVZ-USP – Laboratório de Pesquisa em Qualidade do Leite www.qualileite.org Mastite no período de transição Estima-se que cerca de 75% da incidência de doenças das vacas leiteiras ocorram durante o período de transição, o que inclui as doenças infecciosas (metrite e mastite clínica), as desordens metabólicas, entre outras. Desta forma, conhecer as alterações metabólicas e hormonais, assim como os fatores de risco dessas doenças, é fundamental para a prevenção e para a garantia de produção eficiente de leite durante a lactação D urante as últimas décadas, tem ocorrido um aumento constante de aproximadamente 2 a 3% ao ano no potencial genético de produção de leite por vaca. Este aumento da capacidade de produção tem sido reflexo das ferramentas de me» 38 lhoramento genético e da demanda dos sistemas de produção por maior eficiência da vaca. Além do melhoramento genético, para suportar este aumento de produção/ vaca são necessárias melhorias nas instalações a serem utilizadas, na nutrição, na sanidade e no manejo em geral. Se por um lado ocorreram grandes avanços na nutrição e no manejo das vacas leiteiras, a sanidade não avançou na mesma velocidade e pode ser considerada uma das principais áreas críticas, uma vez que vacas — maio 2014 Vacas com cetose subclínica apresentam risco aumentado de ocorrência de mastite clínica e com normais podem ocorrer: mais produtivas tendem sintomas mais graves do 1) mobilização excessiva a apresentar maiores que vacas sadias de reservas de gordura, 2) riscos de ocorrência de aumento da imunossupresdoenças e redução do desempenho reprodutivo. são (redução da capacidade de Dentro do ciclo produtivo da vaca resposta imune) e do risco de doenleiteira, o período de transição é um dos ças durante o início da lactação. momentos mais críticos e de maior desafio quanto ao bem-estar, à sanidade, à Cetose e lipidose hepática pós-parto reprodução e à expressão do potencial Durante o início da lactação, em razão de produção de leite. Este período é ca- do balanço energético negativo e da racterizado pela maioria dos pesquisado- elevada demanda por energia para prores entre as 3 semanas antes do parto dução de leite, o metabolismo da vaca é e as 3 primeiras semanas de lactação. alterado de forma a mobilizar as reserEstima-se que cerca de 75% da incidência vas de gordura. A intensidade de mode doenças das vacas leiteiras ocorram bilização das reservas de gordura pode neste curto período, o que inclui as do- ser medida por meio da análise do teor enças infecciosas (metrite e mastite clí- de ácidos graxos livres (AGL) circulantes nica), as desordens metabólicas (cetose, no sangue e do teor de corpos cetônicos lipidose hepática ou síndrome do fígado (BHBA: beta-hidroxibutirato). gordo, febre do leite) e outras (retenção A cetose ocorre principalmente em vade placenta, deslocamento de abomaso, cas com excesso de condição corporal laminite). Desta forma, conhecer as alte- no pré-parto (vacas gordas) e quando os rações metabólicas e hormonais, assim teores sanguíneos de BHBA > 1,2 mM. como os fatores de risco dessas doenças Estas vacas mobilizam intensamente as que ocorrem no período de transição é reservas corporais, apresentam redufundamental para a prevenção e para a ção do consumo de alimentos, perda de garantia de produção eficiente de leite peso, redução da produção de leite e aumento do risco de doenças. Além disso, durante a lactação. Durante o início da lactação, a vaca as vacas com excesso de mobilização de leiteira passa por intensas alterações gordura apresentam dificuldade de mehormonais e metabólicas, cujo objetivo tabolização de ácidos graxos no fígado, é disponibilizar nutrientes necessários o que leva a um acúmulo de gordura no para a síntese de grandes quantidades de fígado, que pode se manifestar como a leite. Para se ter uma ideia do aumento síndrome do fígado gordo. O risco de da demanda por nutrientes no início da ocorrência de cetose e da síndrome do lactação, uma vaca com produção de 50 fígado gordo é maior em vacas de alta kg de leite/dia, secreta pela glândula ma- produção e que estão com elevado esmária cerca de 2 kg de gordura, 1,6 kg de core de condição corporal. proteína, 2,5 kg de lactose, 65 g de cálcio e 50 g de fósforo, além da demanda de Sistema imune e mastite energia para a síntese do leite e manten- No início de uma nova infecção intramaça. Os mecanismos de controle da redis- mária (IIM), as células do sistema imune tribuição de nutrientes de outros tecidos presentes no leite, especialmente os neucorporais para a glândula mamária são trófilos, são a primeira linha de defesa da conhecidos como adaptações homeo- glândula mamária contra a invasão de miréticas. Os dados de pesquisas indicam crorganismos patogênicos e oportunisque quando estas mudanças metabólicas tas. A função básica dos neutrófilos, que ocorrem de forma mais rápida e em inten- representam cerca de 95% das células sidade maior do que os níveis fisiológicos somáticas do leite, é detectar os micror- UMA DICA! Recomenda-se o monitoramento da prevalência de mastite pelo uso do Califórnia Mastitis Teste (CMT), cuja utilização após 5 dias pós-parto apresenta boa sensibilidade e especificidade para detectar infecções intramamárias de origem do período pré-parto. ganismos invasores e eliminá-los, assim como produzir substâncias conhecidas como citocinas e interleucinas, que são importantes para a continuação da resposta imune. Após o início da IIM, os neutrófilos migram a partir do sangue com o objetivo de combater os microrganismos invasores. Em termos de metabolismo energético, os neutrófilos utilizam preferencialmente a glicose e a glutamina como substratos energéticos durante a resposta imune. Quando a infecção não é combatida de forma eficiente, ocorre a estimulação da resposta imune adquirida, a qual é composta pela ação de anticorpos, linfócitos e macrófagos. Ainda que a relação entre as alterações metabólicas no início da lactação e a resposta imune não tenham os mecanismos completamente elucidados pela pesquisa, pode-se destacar que neste período ocorre uma redução da capacidade de resposta imune da vaca. Por exemplo, vacas com cetose subclínica apresentam risco aumentado de ocorrência de mastite clínica e com sintomas mais graves do que vacas sadias. Os estudos indicam que elevados níveis de corpos cetônicos, como o BHBA, causam redução da função imune celular, da eficiência e da capacidade dos neutrófilos eliminarem os microrganismos após a fagocitose. Uma das possíveis explicações para o efeitos negativo da elevada concentração de corpos cetônicos sobre a função » 39 — maio 2014 QUALIDADE DO LEITE No período pós-parto, o diagnóstico da mastite clínica deve ser feito pelo uso do teste da caneca de fundo preto, de forma a diagnosticar precocemente os casos e iniciar o tratamento imediatamente das células do sistema imune é que estas células usam preferencialmente a glicose como fonte de energia para as funções celulares. Em vacas com cetose, os teores de glicose do sangue encontram-se reduzidos, o que compromete o metabolismo dos neutrófilos no sangue e na glândula mamária. De forma similar ao efeito negativo de altos teores de BHBA (indicativo de cetose), quando a vaca mobiliza excessivamente a gordura corporal, os elevados teores de AGL no sangue estão associados com aumento da ocorrência de doenças no peri-parto, entre as quais a mastite. Os mecanismos deste efeito negativo das altas concentrações de AGL não são bem elucidados, mas estima-se que ocorra redução da viabilidade celular. Prevenção da mastite e outras doenças no pós-parto O período de transição representa um enorme desafio metabólico para a vaca leiteira e a duração e intensidade do balanço energético negativo afeta negativamente o bem-estar e a saúde, o que, consequentemente, resulta em prejuízos aumentados. Desta forma, estratégias de manejo capazes de reduzir ou minimizar a intensidade de mobilização de reservas de gordura durante o pós-parto são eficazes para reduzir essas perdas. Durante o período de 3 semanas antes do parto, ocorre uma redução de aproximadamente 32% no consumo de matéria seca e pode chegar até a 80% de redução na semana pré-parto. Esta redução do consumo de matéria seca está diretamente relacionada com o aumento da mobilização de gordura e aumento dos teores de AGL no sangue. Desta forma, estratégias de manejo nutricional de forma a adaptar a vaca ao consumo de maiores quantidade de concentrado podem reduzir a intensidade de redução da ingestão de alimentos durante o período de transição. Além da ingestão de alimentos, o monito» 40 O risco de ocorrência de cetose e da síndrome do fígado gordo é maior em vacas de alta produção e que estão com elevado escore de condição corporal ramento da condição corporal das vacas no período seco é de fundamental importância, uma vez que vacas com excesso de condição corporal (escore ≥ 4, numa escala de 1 a 5) apresentam maior risco de redução do consumo e de excesso de mobilização de gordura durante o período pós-parto. A recomendação mais aceita é de as vacas devem parir com escore de condição corporal (ECC) de 3 a 3,5, o que indica boa quantidade de reservas corporais, sem contudo resultar em depressão do consumo de alimentos. Durante o período seco, as mudanças no ECC são difíceis de serem obtidas, o que indica que diminuição ou aumento do ECC devem ser feitos por meio de manipulação da dieta ou do manejo nutricional no período antes da secagem. No período pós-parto, o diagnóstico da mastite clínica deve ser feito pelo uso do teste da caneca de fundo preto, de forma a diagnosticar precocemente os casos e iniciar o tratamento imediatamente. Além disso, recomenda-se o monitoramento da prevalência de mastite pelo uso do Califórnia Mastitis Teste (CMT), cuja utilização após 5 dias pós-parto apresenta boa sensibilidade e especificidade para detectar infecções intramamárias de origem do período pré-parto. Algumas recomendações de manejo durante o período de transição: 1) Implantar um bom sistema de monito- ramento do consumo de alimentos: vacas com baixo consumo apresentam maior risco de mobilização excessiva de reservas corporais; 2) Reduzir os fatores estressantes durante o período de transição: buscar melhorar as condições de conforto térmico, reduzir a superlotação nas instalações de vacas secas e de vacas recém-paridas, para facilitar o consumo de alimentos. 3) O tratamento de vacas secas e o uso de selantes são duas medidas altamente eficazes para redução dos novos casos de mastite durante o período seco. Após a secagem, recomenda-se observação de ocorrência de aumento do volume de um quarto, o que pode indicar mastite clínica. 4) No início do período seco, recomendase fornecer dietas que permitam a manutenção do ECC. Por outro lado, nas 3 últimas semanas antes do parto, a dieta pode ser ajustada para menores níveis de consumo e para adaptação para maiores consumos de concentrado. Considerando a alta frequência de mastite clínica pós-parto, os produtores devem buscar medidas de manejo nutricional e de prevenção e monitoramento da mastite e de outras doenças comuns durante o início da lactação. Desta forma, os prejuízos causados podem ser reduzidos, o que permite aumentar a lucratividade e produção da vaca durante a lactação.