ISSN 1982 - 0283 FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO Ano XXI Boletim 10 - Setembro 2011 SUMÁRIO Filosofia: ensino e educação Apresentação da série ................................................................................................. 3 Rosa Helena Mendonça Introdução ................................................................................................................ 4 Walter Omar Kohan Texto 1: Filosofia e educação Filosofia e educação: pensamento e experiência ........................................................ 13 Sílvio Gallo Texto 2: Filosofia e Infância............. ........................................................... ................ 20 Walter Omar Kohan Texto 3: Filosofia no Ensino Médio Filosofia no Ensino Médio: possibilidade de uma educação filosófica ........................ Ingrid Xavier 25 Filosofia: ensino e educação APRESENTAÇÃO DA SÉRIE A relação entre filosofia e educação – tal Ensino Médio, tendo em vista contribuir como abordada nos textos que compõem para o debate entre professores e gestores esta publicação e nos programas de TV da da Educação Básica. série Filosofia: ensino e educação – mostra-se uma relação complexa e polissêmica. A gênese dessa relação pode estar em Sócrates, ou nos pré-socráticos, mas pode também ser percebida como uma questão primordial As palavras extraídas de O abecedário de Gilles Deleuze1 são estimulantes no sentido de intensificar as práticas filosóficas na escola e em outros espaços sociais: do ser humano, na busca por entender sua Suponho que muita gente ache que a Fi- existência no mundo e por transmitir essa losofia é uma coisa muito abstrata e só experiência aos outros seres. para os “entendidos”. Tenho tão viva em mim a ideia de que a Filosofia não tem Com relação à filosofia no currículo escolar, nada a ver com “entendidos”, de que a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi- não é uma especialidade, ou o é, mas só no da disciplina em todas as séries do Ensi- na medida em que a pintura ou a músi- no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ca também o são, que procuro ver esta países, inclusive no Brasil, experiências de fi- questão de outra forma. losofia prática para crianças. Esperamos que elas possam servir de estíA série que o programa Salto para o Futu- mulo para a interação com os textos e os ro, da TV Escola, ora apresenta conta com programas da série Filosofia: ensino e educa- a consultoria de Walter Kohan (UERJ) e tem ção. como objetivo a discussão sobre filosofia e educação, filosofia e infância e filosofia no Rosa Helena Mendonça2 1 O abecedário de Gilles Deleuze. Realização Sodeperaga, França, 1995/1998. Disponível no catálogo da TV Escola (MEC). 2 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC). 3 Filosofia: ensino e educação INTRODUÇÃO Walter Omar Kohan A relação entre filosofia e educação é rica, sociedade exige passar por uma educação complexa, de longa história. Por um lado, na filosofia. desde seu nascimento – que pode ser situado nos denominados pré-socráticos, como A filosofia pode ser exercida como prática de Pitágoras ou Thales, ou em Sócrates – a filo- pensamento com pretensões educacionais sofia teve pretensões educacionais: os filó- ou como reflexão teórica sobre questões sofos fizeram “escolas de pensamento” ou educacionais. Essas duas alternativas dão lu- se ocuparam de transmitir seu pensamento. gar a dois campos de saber na contempora- O caso de Sócrates é singular porque, nele, neidade que, embora estejam muito relacio- a filosofia e a educação se confundem: sua nados, merecem ser diferenciados: o ensino vida foi ao mesmo tempo filosófica e edu- de filosofia e a filosofia da educação. cacional, tanto que morreu em nome da filosofia por uma acusação relacionada com A área de ensino de filosofia reconhece um sua atividade pedagógica: corromper aos jo- crescimento exponencial tanto no cam- vens. Com Platão, a filosofia passa a fazer da po acadêmico como fora dele, nos últimos educação não apenas uma prática mas tam- anos. De fato, existe um campo usualmen- bém um objeto de reflexão teórica. Assim, te chamado de filosofia prática que envolve um número significativo dos seus diálogos toda uma série de experiências com a filoso- parte de um mesmo problema: a educação fia, dentre as quais algumas das mais signifi- dos atenienses é deficitária e, dessa forma, cativas são: filosofia para crianças; filosofia o sentido desses textos é pensar a educação na terceira idade; filosofia no Ensino Médio; de outra maneira. Platão inspira-se em Só- café filosófico; filosofia clínica; filosofia e crates numa ideia particular: que a filosofia cinema; philodrama; bioética; filosofia nas educa ou que a transformação política da prisões; universidades populares de filoso- 1 Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista de Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador do CNPq e do Prociência (UERJ/FAPERJ). Doutor em Filosofia – Universidad Iberoamericana (México), com pós-doutorado na Universidade de Paris VIII (França). Consultor da série. 4 fia; Olimpíadas de Filosofia. Seria possível afirmações anteriores, na medida em que afirmar que atualmente existe, tanto no atravessam diversas maneiras de compreen- Brasil quanto em muitos outros países, uma der o que é a filosofia. explosão de práticas realizadas em nome da filosofia. Pensemos, por exemplo, na distinção entre a filosofia como exercício, prática ou expe- O objetivo deste programa é apresentar ex- riência e a filosofia como saber, conteúdo periências nesse campo, bem como elemen- ou teoria. É notório que todas as filosofias tos que permitam pensar seu alcance, senti- produzem filosofia, no sentido de promover do e possibilidades. saberes, na forma de perguntas ou respostas. Isso vale ainda para aqueles casos em UM POUCO DE HISTÓRIA que a filosofia está longe de ser um saber enciclopédico. Pensemos em contextos em Aliás, o que se faz em nome da filosofia? que a filosofia ainda não era enciclopédica; Muitas coisas. A pergunta “o que é a filoso- por exemplo, consideremos o caso de Sócra- fia?” é aberta, contestável e polêmica. De tes, com seu saber de ignorância; ou o de alguma forma, cada filósofo a responde de Diógenes, com suas práticas contestatórias; maneira diferente. Assim, as escolas ou tra- ou ainda a ‘douta ignorância’ de Nicolau de dições de pensamento inauguram um modo Cusa. Em todos esses casos, há uma filosofia de entender a filosofia e de afirmar uma que emerge de uma prática, o que significa prática filosófica que pode querer significar um modo de responder à pergunta “o que coisas muito diferentes. O que significaria, é a filosofia?”, que pode ser expresso tanto então, ensinar filosofia? num sentido discursivo quanto num modo de viver uma vida filosófica, que produz Uma primeira resposta poderia ser: “ensi- aquele saber consagrado na tradição da his- nar a pensar filosoficamente”. Mas o que tória da filosofia. seria “pensar filosoficamente”? Parecemos estar num círculo sem saída, uma vez que O caso de Sócrates é ilustrativo e também responder à pergunta sobre a especificidade interessante, porque ele, de certo modo, ins- do pensar filosófico exigiria alguns pressu- taurou uma tradição ainda presente entre postos sobre o que é a filosofia. Assim, não nós. É ainda mais significativo porque o que poderíamos responder o que significa ensi- Sócrates instaura é um modo de entender nar filosofia a não ser desde uma concepção o ensino de filosofia e a posição de quem de filosofia. Contudo, algumas distinções ocupa o lugar de ensinar (e de aprender). podem nos ajudar a estender o alcance das Sócrates é um exemplo de que exercer a fi- 5 losofia significa ensiná-la ou, dito em outras afirma diante de todos os outros não diz a palavras, o filósofo e o professor de filosofia verdade, já que Sócrates afirma se compor- se confundem. tar da mesma maneira – narra que fala o mesmo – em conversas pessoais e em pú- Com efeito, é extremamente forte a ima- blico. gem que Sócrates oferece na sua defesa, na Apologia de Sócrates, de Platão. Nesse texto, Atenção: Sócrates afirma que ele não foi temos as primeiras aparições da palavra fi- mestre de ninguém e, ao mesmo tempo, losofia e a primeira oportunidade em que a que ninguém pode dizer que aprendeu com filosofia se descreve a si mesma. Ela aparece ele algo diferente em público ou em priva- justamente acusada de ensinar de maneira do; ou seja, afirma que não foi mestre de tal que corromperia os jovens. É curioso: a ninguém, mas que muitos aprenderam com filosofia se apresenta publicamente, pela ele. Sócrates quer se diferenciar dos profis- primeira vez, acusada de ser uma pedagogia sionais do ensino, os que cobram por en- corrosiva: são os jovens espíritos da cidade sinar e afirmam ensinar um conhecimento que ela mal formaria. A política a acusa e a que os aprendizes não sabem. Sócrates, o filosofia deve se defender. A própria filosofia professor de filosofia, não ensina um co- está em risco: a pena pedida é a sua morte. nhecimento ou saber, mas os que andam A filosofia fracassa em se defender. Pelo me- com ele em seu caminho aprendem uma nos, Sócrates é condenado à morte. Talvez relação com o saber. esse “fracasso” não deva ser visto de tal forma e mostre os limites, tensões e conflitos Assim, Sócrates outorga uma especificidade entre filosofia e política. para o professor de filosofia: ele não transmite um saber, mas possibilita aprendiza- Ao se defender, Sócrates diz, literalmente, gens, através de uma palavra que interroga, “nunca fui mestre de ninguém” (Apologia de examina e confuta. O professor de filoso- Sócrates, 33a). Justifica esta negação com fia não ensina como aquele professor que três razões: a) não recebe dinheiro de quem transmite um saber que o aluno ignora; ao deseja escutá-lo, nem discrimina seus even- contrário, ele precisa não ensinar dessa for- tuais interlocutores por sua idade ou por ma para que outro possa aprender; ele não suas riquezas, como outros fazem; b) não transmite um saber, mas possibilita proble- prometeu nem jamais ensinou a ninguém matizar uma relação com o saber (e com a conhecimento algum (máthema, 33b); c) ignorância). A partir disso, abrem-se outras se alguém diz que aprendeu (matheîn, 33b) possibilidades para pensar e viver de outra dele em privado algo diferente daquilo que maneira. 6 Mesmo inútil como defesa, a intervenção de saber, mas uma inquietude, uma forma de Sócrates ajuda a pensar a relação entre edu- sensibilidade, a inquietude sobre si. Curio- cação e filosofia. O que Sócrates nega, ou so é que filosofia e educação nascem mui- pelo menos questiona com sua negativa a se to próximas: uma vida sem filosofia, sem considerar um mestre, é que seja necessário, exame, não merece ser vivida para Sócrates desejável ou ainda possível formar alguém (Apologia 38a). Mas o exame não se limita a pela mera transmissão dos conhecimentos si próprio e o que Sócrates continuamente que o mestre domina. Talvez o que Sócrates examina é que os outros devem se examinar esteja querendo dizer é que educar através a si mesmos; cuida de que os outros cuidem da filosofia não tenha a ver com transmitir de si, de modo que, para ele, a filosofia não conhecimentos mas, sim, com certa manei- tem sentido sem sua projeção educacional, ra de se olhar a si mesmo e aos outros. Em assim como uma educação sem o exame e outras palavras, o que se aprende com ele o cuidado filosóficos torna-se mera técnica, é certa sensibilidade, uma atenção, um cui- instrumento, igualmente sem interesse. dado, em primeiro lugar, com a próprio saber e o pensamento e, de uma maneira mais Através de toda sua história, a educação geral, consigo mesmo. Sócrates literalmente tem sido fonte de práticas e preocupações nunca transmitiu nenhum saber (“ninguém para os mais diversos filósofos. Grandes no- jamais aprendeu qualquer coisa de mim...”, mes como Kant, Hegel, Nietzsche, dentre diz no Teeteto 150d), a não ser uma certa outros, exerceram a docência e escreveram sensibilidade, uma relação com a ignorân- textos sobre educação. Muitos filósofos con- cia, com o próprio pensamento, com o mais temporâneos também. Por exemplo, J. Der- valioso de cada um. rida militou teórica e praticamente no campo do ensino de filosofia. Fundou um Grupo Dessa maneira, com Sócrates nasce uma de pesquisa e atuação na área de ensino de filosofia e uma educação. Sócrates não dá filosofia (GREPH) e fez diversas intervenções palestras, não cria nenhuma escola, não teóricas e práticas reunidas num extenso vo- monta qualquer instituição, não tem ne- lume: Du droit a la philosophie2. nhum conhecimento a transmitir. Seu ensinamento primeiro, fundador, é que não há o Derrida explorou as tensões ou antinomias que ensinar, a não ser que cada um deve dar constitutivas da posição da filosofia na insti- atenção ao que não costuma dar. A única tuição escolar. Uma antinomia é uma norma coisa que lhe interessa transmitir não é um contraditória, um mandato impossível de 2 DERRIDA, Jacques. Le droit a la philosophie. Paris: Galilée, 1990. 7 ser seguido, tendo em vista que comporta Embora à primeira vista possam parecer uma dupla exigência, sendo que a realização óbvios os benefícios da presença da filoso- de uma supõe a negação da outra. A tese de fia na escola, não há unanimidade a esse Derrida é de que o ensino institucionalizado respeito. Quando a filosofia é ameaçada de da filosofia é antinômico: ele padece de exi- ficar como optativa ou ficar de fora, ela bri- gências contraditórias. Elas são: a do méto- ga para estar dentro e, para isso, mais uma do; a do saber; a do universal; a da lógica; a vez precisa defender suas credenciais para da autonomia; a do trabalho com outros; a tal fim. Quando entra na instituição escolar, da unidade. Longe de essas antinomias gera- questiona-se sua presença e ela deve defen- rem ceticismo, elas são uma oportunidade der sua legitimidade. A questão não se res- para fortalecer o caráter filosófico de seu tringe apenas ao Brasil. Na América Latina ensino e da relação do professor de filoso- toda, são poucos os países – talvez o Uruguai fia com sua prática. Em outras palavras, o permaneça como espaço de maior resistên- ensino de filosofia só pode ser ele mesmo fi- cia a essa tendência – onde essa presença losófico e, nessa medida, sempre submetido permanece significativa e obrigatória. A à exigência de se problematizar a si próprio. questão é inicialmente política. Se olharmos para as ditaduras, elas nada querem com a A SITUAÇÃO NO BRASIL filosofia ou então mantêm seu nome na grade curricular, mas a colocam sob condições voltadas para fazer coisas nada filosóficas. No Brasil, assistimos a uma explosão de práticas filosóficas em diversos contextos e instituições. Por exemplo, já são mais de três décadas desenvolvendo-se experiências de filosofia com crianças em escolas públicas e privadas de todas as regiões do país. Em alguns municípios o projeto faz parte da grade curricular. Existem diversos projetos de formação de professores de Ensino Por sua vez, as democracias parecem mais sensíveis às pressões do mercado e também não têm sido muito propícias a introduzir a filosofia nos currículos. Nesse contexto, a situação atual do Ensino Médio no Brasil é excepcional, inclusive se olharmos para outras latitudes, tornando-se um dos sistemas educacionais do mundo com maior presença da filosofia. Fundamental. A recente aprovação de uma lei que dispõe a obrigatoriedade do ensino de filosofia nas três séries do Ensino Médio brasileiro deu uma atenção singular à presença da filosofia nesta etapa da Educação Básica. Depois da sanção da lei, a mídia tem divulgado novos e velhos argumentos contra o ensino obrigatório de filosofia. Boa parte desses argumentos costuma cair sobre os professores. Com frequência, pode-se ler 8 que não haveria professores suficientes de Entretanto, a pergunta pelo sentido da filo- filosofia, que eles não estariam preparados sofia na escola não é tão fácil de responder. para ensinar a disciplina como deveriam, Os sentidos da filosofia na escola podem ou que seriam doutrinadores. Geralmen- ser múltiplos: ensinar a pensar; transmitir te, identifica-se a doutrina que eles repas- valores; repassar uma tradição de história sariam com um marxismo que, a despeito de pensamento; formar para a cidadania, de sua escassa adesão internacional atual, etc. De certo modo, voltamos aqui à ques- continua a ser um fantasma preocupante tão inicial, na medida em que ela pressupõe para certos setores da intelectualidade na- uma maneira de entender a filosofia. Numa cional. Em todo o caso, por um lado, chama tradição que remonta a Sócrates, poder-se- a atenção que se exija da filosofia o que não ia afirmar que esse sentido diz respeito a se exige de outras áreas. Ou seja, argumen- transformar os modos dominantes de saber ta-se contra a formação dos professores de e pensar ou a relação que se tem com eles. O filosofia, como se a formação dos profes- sentido de tudo isso seria poder transformar sores de matemática, português e outras os modos de vida mais mecânicos e poder áreas fosse uma maravilha. Ou, então, não tornar-se “o que se é”. Se assim for, não é se percebem as outras formas atuais de claro que a filosofia, como transformação e doutrinar na escola, como a pressão por busca do que se é, possa ser aprendida (mui- um ensino técnico, profissional, exclusiva- to menos ensinada) num instituição como mente sensível às demandas do “mercado a escola, mas a atual conjuntura no Brasil de trabalho”. Por outro lado, parece tão possibilita um espaço onde temos a oportu- insignificante o número de professores de nidade de testá-lo. E nós que acreditamos filosofia que defendem que a filosofia deva na filosofia como potência para transformar servir a qualquer tipo de formação ideológica, e é tão grosseiro e histérico o ataque, que mal merece consideração. o que somos e o modo como vivemos, temos o compromisso de não deixar passar a oportunidade em vão. TEXTOS DA SÉRIE FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO3 A série tem como proposta pensar como a Filosofia, enquanto prática de pensamento, pode ser exercida com pretensões educacionais, ou como reflexão teórica sobre questões educacionais. Essas duas alternativas dão lugar a dois campos de saber na contemporaneidade que, embora 3 Estes textos são complementares à série Filosofia: ensino e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 12/09/2011 a 16/09/2011. 9 estejam muito relacionados, merecem ser diferenciados: o ensino de Filosofia e a Filosofia da educação. Nos programas da série, serão discutidas questões que envolvem a prática filosófica no mundo contemporâneo, a Filosofia na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio e a formação de professores de Filosofia, entre outros temas. TEXTO 1: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO Filosofia e Educação. O que é a filosofia. Filósofo e professor de filosofia. É possível ensinar filosofia ou ensinar a filosofar? Como aprender filosofia ou a filosofar? A prática filosófica no mundo contemporâneo: olimpíadas, café filosófico, filosofia nas prisões. TEXTO 2: FILOSOFIA E INFÂNCIA Filosofia para ou com crianças. Há uma idade para filosofar? Infância e filosofia. A formação dos professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Experiências com crianças. A voz da infância. TEXTO 3: FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO Filosofia no Ensino Médio. A formação do jovem. Filosofia e cidadania: relações perigosas. A formação do professor de filosofia. Filosofia e vestibular. Filosofia e outros saberes. Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4: Outros olhares sobre Filosofia e Educação e do PGM 5: Filosofia e Educação em debate. 10 REFERÊNCIAS KOHAN, Walter (org.). Ensino de filosofia. Perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica, Dentre as inúmeras publicações sobre ensi- 2002. no de filosofia, destacamos algumas e recomendamos consultar banco de dados biblio- KOHAN, Walter O. (org.) Filosofia: caminhos gráfico com mais de 2.500 títulos em: para seu ensino. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. www.filoeduc.org/base KOHAN, Walter O. Filosofia para crianças. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008. ARANTES, Paulo. A filosofia e seu ensino. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1996. KOHAN, Walter O.; LEAL, Bernardina: TEIXEIRA, Álvaro (orgs.). Filosofia na escola pública. CHILDHOOD & PHILOSOPHY. www.filoeduc.org/childphilo Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Série: “Filosofia e Escola”, volume V). CHITOLINA, Claudinei Luiz. A criança e a edu- LIPMAN, M. A filosofia vai à escola. Tradução cação filosófica. Maringá: Dental Press, 2003. de Maria Elice de B. Prestes e Lucia Maria Silva Kremer. São Paulo: Summus, 1990. 11 CUNHA, Auri (org.). Filosofia para a Criança: orientação pedagógica para a educação infan- LIPMAN, M.; SHARP, A. M.; OSCANYAN, F. A til e ensino fundamental. Campinas: Alínea, filosofia na sala de aula. Tradução de Ana Lu- 2008. íza Fernandes Falcone. São Paulo: Nova Alexandria, 1997. DANIEL, M. F. A filosofia e as crianças. São Paulo: Nova Alexandria, 2000. ENCONTRO COM MATTHEW LIPMAN. São Paulo: CBFC e ATTA Mídia e Educação, 1999. HENNING, Leoni Maria Padilla (org.). Apoio ao ensino de filosofia nas séries iniciais. Londrina, PA: UEL, 1999. JAPIASSU, H. Um desafio à filosofia: pensar-se nos dias de hoje. São Paulo: Letras & Letras, 1997. LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia. Fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002. OBIOLS, G. Uma introdução ao ensino de filosofia. Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 2002. OLIVEIRA, P. R. de. 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Páginas de Interesse UERJ: www.filoeduc.org/nefi - Olimpíada de Filosofia: www.olimpiadadefilosofia.org - International Council for Philosophical Inquiry with Children - ICPIC www.icpic.net 12 - Banco de Dados sobre ensino de filosofia: www.filoeduc.org/base - Fórum Sul de Filosofia: www.forumsulfilosofia.org - Nouvelles Pratiques Philosophiques: www.pratiquesphilo.free.fr - Institute for the Advancement of Philosophy for Children - IAPC www.montclair.edu/iapc TEXTO 1 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO Filosofia e Educação: Pensamento e Experiência Sílvio Gallo 1 Desde uma perspectiva da tradição, a filo- de segurança. Uma abertura ao risco, como sofia é colocada do lado do pensamento prática da liberdade, como busca do novo e (teoria) e a educação é colocada do lado da da criatividade. E, com isso, pensar uma fi- experiência (práxis). Ainda nesta perspecti- losofia e uma educação que sejam, ambas e va, quando falamos em relações da filoso- a um só tempo, pensamento e experiência. fia com a educação, em geral pensamos a Filosofia como pensamento e experiência; filosofia como um dos fundamentos da edu- educação como experiência e pensamento. cação, isto é, um pensamento que sirva de base para a práxis educativa; ou então pen- Somos testemunhas, neste tempo que nos samos a filosofia como uma reflexão sobre a foi dado viver, de uma nova guinada do educação, ou seja, um pensamento sobre a mundo rumo ao fundamentalismo. Os pro- ação pedagógica. Em um ou em outro caso, jetos libertários e criativos, que ganharam nega-se à educação a dimensão do pensa- voz e se fizeram práxis nos anos 1960, foram mento, assim como se nega à filosofia a primeiro cooptados pelo capitalismo, pas- dimensão da experiência. O pensamento é sando a ser eles mesmos parte do sistema, sempre a segurança do já pensado; a experi- para depois se tornarem sua alma mesma, ência é sempre a segurança de experimentar como se sempre tivessem feito parte dele. com redes de segurança; um experimentar o já posto; um experimentar sem, de fato, *** experimentar. Explico, ainda que brevemente: a potência Pretendo aqui exercitar uma experiência de de um pensamento e de uma práxis criati- pensamento. Uma experiência de pensar o vos, libertários, que buscava e produzia no- não pensado, de experimentar sem redes vos agenciamentos, que começou a se espa- 1 Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor associado (MS-5) da Universidade Estadual de Campinas. 13 lhar por todos os campos do pensamento e tem mais força o braço político das igrejas da vida, foi sendo aos poucos absorvida pelo fundamentalistas, com deputados e mesmo Estado. Aquilo que era como que uma “má- ocupantes de cargos no Executivo de muitas quina de guerra”2, produzido às margens do cidades. De forma geral, não é também com sistema, foi sendo incorporado por ele, ajus- fundamentalismo político que os “ociden- tado às suas regras. A criatividade passou a tais” respondem a uma visão de mundo islâ- ser norma na própria produção industrial. E mica, criticada justamente por sua rigidez3? aí precisamos questionar: que criatividade é esta, que se torna norma? Quando a potên- No âmbito da educação, cada vez mais pa- cia do pensamento é instrumentalizada pelo rece que também buscamos a segurança do marketing, pela indústria cultural e pela fundamentalismo. Queremos certezas para produção de forma geral, quando os fluxos educar; queremos fundamentos sólidos nos de desejo são uma vez mais capturados pela quais ancorar nossos projetos educativos. máquina de produção, ‘cadê’ o desejo? A Não queremos experiências, não queremos máquina de guerra torna-se máquina de Es- riscos. E tudo isso em nome de quê? Ora, em tado. Mais uma engrenagem; ou, para falar nome da segurança de nossas crianças, em com Pink Floyd, “mais um tijolo na parede”. nome da segurança de nosso mundo. Construímos nossas escolas como se fossem O fundamentalismo é manchete na mídia, ilhas de segurança, nas quais temos absolu- ao menos em sua vertente religiosa. Mas to controle sobre o processo de educação de não é apenas no islamismo que ele está pre- nossas crianças. Experiências em educação? sente: também nas religiões ocidentais, no Nem pensar. Fiquemos com a segurança e cristianismo, vemos leituras fundamentalis- os fundamentos sólidos daquilo que sabe- tas cada vez mais presentes. Não é com fun- mos dar certo. damentalismo cristão que os “ocidentais” respondem a cada novo atentado terroris- Impossível não lembrar aqui do belo filme ta? O fundamentalismo não está restrito ao de M. Night Shyamalan, The Village (2004). campo religioso. Também na política ele fin- O diretor hindo-americano mostra-nos uma ca suas raízes; ao menos no Brasil, cada vez vila rural na qual se vive, percebemos pelas 2 Gilles Deleuze e Félix Guattari trabalham com o conceito de “máquina de guerra” em Mille Plateaux – capitalisme et schizophrènie (Paris: Minuit, 1980). Máquina de guerra é o modo de operação dos povos nômades, que não têm instituída a máquina de Estado. Não devemos confundir máquina de guerra, portanto, com um exército institucionalizado, com o exercício da guerra por uma sociedade instituída como Estado, mas sim como uma forma de luta subversiva, corrosiva, que age contra o instituído. 3 Se olharmos com as lentes de Nietzsche, diremos que o fundamentalismo nada mais é do que a outra face do niilismo; quanto mais negamos, mais buscamos princípios sólidos nos quais confiar. 14 roupas, em algum momento do século de- tenho chamado de fundacionismo ou fun- zenove. Os costumes são rígidos e os mais damentalismo), admitimos que a educação velhos governam a vila com pulso firme, precisa de bases sólidas nas quais se apoie. de modo a garantir a manutenção de seus Tais bases são fornecidas pela filosofia, pela valores e de seus costumes. O que garante história, pela sociologia, pela psicologia, a coesão social da vila é o fato de ela ser por exemplo, as assim chamadas “ciências rodeada por florestas, habitadas por estra- da educação”. O que a educação traz para nhas e violentas criaturas. Os habitantes da estas ciências é um objeto: o fenômeno edu- vila só estão seguros se não ultrapassarem o cativo; cada ciência, por sua vez, contribui seu perímetro. A “cidade” – isto é, o mundo com suas ferramentas para a análise deste exterior – é vista como lugar de corrupção e objeto. Com base nesses conhecimentos ob- violência, que não deve ser visitada, pois isso jetivos, pode-se, enfim, construir métodos influenciaria negativamente os costumes da pedagógicos eficazes e seguros. vila. O filme de Shyamalan é uma clara crítica ao fundamentalismo norte-americano, A partir dos fundamentos da educação, po- que tem crescido após os atentados de 11 de demos definir nossos objetivos para com o setembro de 2001. Mas me parece também processo educativo, planejar as ações pe- uma bela metáfora para o crescimento do dagógicas, avaliar os resultados e fazer as fundamentalismo na educação, algo que correções de rota necessárias, com toda a deve nos deixar atentos. segurança. Podemos saber exatamente o que ensinar, para que ensinar, como ensinar, *** quando ensinar. E com isso garantir o aprendizado de cada criança. Quando relacionamos filosofia e educação na perspectiva do fundacionismo, paralisa- A ideia presente é a de que são os funda- mos o pensamento. Se colocamos a filoso- mentos, as bases que garantem o sucesso e fia no lado do pensamento e a educação no a potência da educação. No entanto, afirmo lado da experiência, afirmamos que o pen- que essa visão fundacionista, fundamenta- samento não é possível em educação, sem o lista, tira toda a potência da educação. Pois, recurso da filosofia. Isso significa tirar toda neste registro, a educação nada é sem tais a potência da educação. E significa também fundamentos. No caso específico da filoso- instrumentalizar a filosofia. fia, se a retiramos do rol dos fundamentos da educação, tiramos toda a potência de Se compreendemos a educação nesta di- pensamento, de reflexão sobre a educação. mensão metafísica (um equivalente ao que Pois só pensamos a educação pela filosofia; 15 a educação seria incapaz de pensar-se por si samento. Há uma promessa de segurança: a mesma. opinião nos oferece proteção contra o caos. A opinião promete nos manter afastados do No entanto, uma tal perspectiva também é caos, na segurança do pensamento correto, despotencializadora para a própria filosofia. na segurança de sempre saber que decisão Se esta é colocada como um dos fundamen- tomar. Mas a promessa da opinião é um can- tos daquela, importa o que já foi pensado, o to de sereia, afirmam os filósofos franceses, que já foi produzido, e não o que está ainda pois é impossível vencer o caos. Aquilo que por pensar, por produzir. Nesta dimensão a opinião oferece é uma falsa saída. É tam- fundacionista, a filosofia fica do lado do bém, ao seu modo, uma forma de não pen- pensamento, mas do já pensado; e a educa- samento, pois a falsa sensação de segurança ção do lado da experiência, mas da experiên- nos impede de arriscar e, fora do risco, não cia da segurança, do controle. há criatividade ou pensamento possíveis4. *** Experimentemos uma outra forma de pensar. Tenhamos a coragem de lançar-nos ao risco de enfrentar Tenhamos a coragem de lançar-nos ao risco de enfrentar um percurso sem saber qual nosso ponto de chegada. Segundo estes autores, há três potências do pensamento, que ousam mergulhar no caos, para nele encon- trar a criatividade, um percurso sem sa- retornando como ber qual nosso ponto vencedores, sem de chegada. Ensaiemos a ideia de uma pers- perder-se no não pensamento. Cada uma pectiva não fundacionista, não fundamenta- destas três potências age de modo próprio; lista de educação, mas também de filosofia. cada uma delas cria de forma diferente; e Apostemos numa filosofia que invista no cada uma delas tem um produto distinto. risco da diferença, em lugar de investir na Assim, sendo completamente distintas, elas segurança do mesmo. são complementares: cada uma nos oferece sua contribuição específica. Aprendemos com Deleuze e Guattari que vivemos sempre à beira do caos, que ameaça As três potências do pensamento são a Arte, nos tragar. Cair no caos é ceder ao não pen- a Ciência e a Filosofia. Em seu mergulho 4 Ver O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. 16 no caos, a Arte traça um plano de compo- destinadas à política, e ela era considerada sição e cria perceptos e afetos. A Ciência, como tekné, isto é, como uma forma de arte, por sua vez, traça um plano de referência e de prática. Na modernidade, com a emer- cria funções. Já a Filosofia traça um plano gência do método científico, também a edu- de imanência e cria conceitos. Pensar por cação foi contaminada com a “vontade de perceptos, pensar por funções, pensar por verdade”, e desejou constituir-se como ciên- conceitos: são as três modalidades do pen- cia, através das ciências da educação. samento criativo, produtivo, que não apenas repete o já pensado, que não cede aos Parece-me suficiente claro, portanto, que apelos da opinião. historicamente a educação tem transitado por entre as três áreas que Deleuze e Guatta- Arte, Ciência e Filosofia nada nos prometem, ri identificam como as potências do pensa- mas nos convidam a pensar, a experimentar, mento, mas ora identificando-se com uma, a buscar novos cami- ora nhos, novos aconte- com outra. A educa- cimentos. Estão em constante luta contra a opinião, que nos As três potências do pensamento são a Arte, a Ciência e a Filosofia. identificando-se ção já se compreendeu como uma espécie de arte; já tomou promete a segurança a filosofia como fun- do mesmo, do já pen- damento; já tomou sado, de uma suposta fuga do caos. as ciências como fundamentos. Mas em momento algum a educação considerou-se Como relacionar a educação com as três po- mestiça, na confluência destas três áreas. tências do pensamento? Se ousarmos sair da E, ao assumir-se ora uma coisa ora outra, a opinião do já pensado, de uma perspectiva educação valia-se de uma potência específi- fundacionista da educação, podemos fazer a ca, mas perdia as demais. Ora servia à edu- experiência de pensá-la como uma intersec- cação a potência do conceito; ora a potência ção destas três áreas. das funções; ora a potência dos perceptos e afetos. A educação já foi pensada exclusivamente no âmbito da filosofia. Na antiguidade, ela Se, no entanto, pensarmos a educação na era tomada como um capítulo da filosofia confluência das três potências do pensa- (aliás, como quase tudo o era). Em Platão mento, poderemos ter a educação como e em Aristóteles, por exemplo, as conside- conceito, como função e como afeto, ao rações sobre educação aparecem em obras mesmo tempo. 17 Não esteve sempre presente na educação a riência. Na mestiçagem, levamos à filosofia potência do afeto? Enquanto relação huma- a potência da experiência no pensamento, na, não se vale a educação das relações afe- na medida em que os desafios postos pela tivas? Em grande medida, não é a educação educação a fazem seguir em busca do ainda um processo de sedução, pelo conhecimen- não pensado, fazendo-a abrir-se ao risco do to, pelo mundo, pelas pessoas? caos, na necessidade de criar novos conceitos para pensar os problemas educacionais. Não esteve sempre presente, também, a po- E levamos à educação a potência do pensa- tência da função? Não procuramos sempre mento, fazendo-a sair da falsa segurança do compreender os processos, para, numa re- fundamentalismo para, uma vez mais, pen- lação de causa-efeito, produzir nas relações sar e repensar suas experiências, buscando pedagógicas os efeitos desejados? novas alternativas criativas. E não esteve sempre ali a potência do con- Este é o desafio que nos coloco, para nós ceito? Não vemos também na educação que trabalhamos em e com educação: na esse pensamento que ilumina os problemas busca de antídoto contra o fundamentalis- de uma forma completamente nova, insti- mo que invade nosso mundo: valermo-nos tuindo acontecimentos? das potências do pensamento, das potências de criação para, a cada dia, experimen- Educação mestiça, sem fundamentos, mas tar o novo. Experimentar a educação como em diálogo criativo com as artes, as ciên- acontecimento, que se produz no cotidiano cias, as filosofias, produzindo, nas relações de nossas salas de aula, e sobre o qual não pedagógicas, afetos e perceptos, ao modo temos nenhum controle, mas somos per- da arte; funções, ao modo da ciência; con- sonagens ativos na sua produção coletiva, ceitos, ao modo da filosofia. Na intersecção com nossas crianças, também personagens das três potências do pensamento, pode- centrais nesta produção. mos ver a educação como esta zona de indiscernibilidade, na qual as experiências são Finalizo lembrando de Nietzsche e das três constantes, as criações são constantes. metamorfoses do espírito. Afirma o filósofo alemão que o espírito torna-se camelo, o No âmbito desta mestiçagem, a educação animal que carrega todo o peso da tradição; está do lado da experiência (da práxis), mas no deserto, o camelo, torna-se leão, aquele também está do lado do pensamento (da que nega o peso do dever e afirma seu de- teoria). E a filosofia, por sua vez, está do sejo; mas o leão, por fim, torna-se criança, lado do pensamento, mas também da expe- que é inocência e esquecimento, apenas ela 18 capaz de dizer que sim, o sim necessário à do mundo dos adultos, é preciso um devir- criação5. criança, a chance de recomeçar, de brincar com o mundo e de criar. Para uma educação que se quer antídoto ao fundamentalismo, império do dever-ser, FILOSOFIA 19 ARTE CIÊNCIA EDUCAÇÃO 5 Ver Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998, p. 28-30. TEXTO 2 FILOSOFIA E INFÂNCIA Walter Omar Kohan 1 Infância quer dizer, etimologicamente, au- ra do começo e da afirmação (em Assim fa- sência de fala. Essa ausência foi entendida, lou Zaratustra, de F. Nietzsche); experiência tradicionalmente, como incapacidade de original e originária a ser recuperada (em A falar. A partir desse sentido etimológico, há criança, o brinquedo, a educação de W. Ben- duas formas principais de se compreender jamin); condição da experiência, da história a infância. A primeira, mais evidente, como e da linguagem (em Infância e história, de G. a etapa inicial da vida. Neste sentido, a vida Agamben); bloco, devir, figura da transfor- é entendida como processo em desenvolvi- mação minoritária (em Mil Platôs, de G. De- mento, e a infância como o primeiro tempo leuze e F. Guattari); uma dívida do humano cronológico de vida transcorrido. Basta ter com o inumano (em Memórias da infância, um número de anos que se está na infância. de J. F. Lyotard). Nesta lógica, crianças e adultos são termos relativos e opostos: toda criança para ser No campo da educação, podem ser perce- adulta precisa abandonar a infância e todo bidas duas tendências claramente diferen- adulto é adulto porque deixou de ser crian- ciadas a partir dessas duas possibilidades de ça, o que significa que já foi antes criança e pensar a infância. A primeira pensa a educa- também que já não é mais criança. Na se- ção como formação e a infância como obje- gunda forma de pensar a infância, ela não to dessa formação. Os antecedentes desta é uma etapa da vida, mas uma condição possibilidade na chamada tradição ociden- do humano que está presente (ou pode es- tal são tão antigos quanto os gregos (Pla- tar presente) em diversas idades. Enquanto tão, Aristóteles, etc.) e ela tem se mantido condição, a infância pode ser entendida de como a forma dominante de pensar a edu- diversas maneiras, por exemplo, como: figu- cação das crianças ao longo da história das 1 Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista de Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador do CNPq e do Prociência (UERJ/FAPERJ). Doutor em Filosofia – Universidad Iberoamericana (México), com pós-doutorado na Universidade de Paris VIII (França). Consultor da série. 20 ideias pedagógicas dessa mesma tradição. A (1942-2010) – de um movimento que se es- segunda parte da ideia de que a infância é tendeu por mais de cinquenta países de to- uma condição e, nesse sentido, ela é um es- dos os continentes para ajudar as crianças tado – pelo menos em potência – tanto dos a pensar de forma crítica, criativa e cuida- educandos quanto dos educadores. A infân- dosa sobre si mesmas e o mundo que as ro- cia, então, deixa de ser algo que uma boa deia. educação permitiria abandonar para passar a ser o que ela tenta alimentar, cuidar, Contudo, a proposta de Lipman é só uma atender. A infância deixa de ser o informe, possibilidade entre muitas: há diversas a possibilidade, e passa a ser o enigma da maneiras de pensar e fazer a filosofia com alteridade, a estrangeiridade de uma língua crianças. Em um sentido, a prática filosófi- que não fala a língua da condição adulta. ca pode ampliar-se se o conceito de infância diz respeito não apenas às crianças, mas a Entre os que promovem as práticas filosó- certa condição da experiência da subjeti- ficas na infância, Matthew Lipman criou o vidade, como sugerido anteriormente. Em programa filosofia para crianças, que já foi outro, a depender do que se entende por fi- traduzido e praticado no Brasil nos últimos losofia, podem ser propostas práticas muito trinta anos. Lipman morreu recentemente, diferentes. De fato, muitos recusam a ideia com 87 anos, nos Estados Unidos de Amé- de que se possa fazer filosofia com crianças rica. Fez um programa completo, chamado justamente a partir de concepções da filo- philosophy for children, incluindo novelas sofia muito fechadas e atreladas a imagens filosóficas para crianças e manuais para também debilitadas da infância. Em outro professores de educação básica, bem como sentido, se afirmarmos, com o filósofo fran- uma fundamentação teórica com numero- cês H. Bergson, que a filosofia é uma forma sos livros e artigos, dentre eles A filosofia vai de estender, aprofundar e intensificar a vi- à escola e O pensar na educação. Lipman con- são de uma pessoa, ou uma forma de apren- siderava que, incluindo a filosofia na forma- der a perceber e atender o mundo, as pes- ção das crianças, elas teriam uma educação soas e nós mesmos; ou, com outro filósofo mais consistente, significativa e democráti- francês, M. Merleau-Ponty, que “a filosofia ca. Não considerava a filosofia um conteú- é reaprender a ver o mundo”, então resulta do, mas uma forma de investigação coletiva evidente que qualquer ser humano de qual- que desenvolve o pensamento crítico, cria- quer idade está em condições de praticar a tivo e ético de seus participantes. Mais do filosofia e negar seu acesso é também negar que um programa ou uma teoria, Lipman um direito por viver uma vida mais signifi- é o iniciador – junto a Ann Margaret Sharp cativa e humana. 21 Atualmente, existem no mundo diversos objeto de investigação junto a professores, projetos trabalhando, a partir de diversos crianças e adultos. Afirmam-se algumas pressupostos, na educação filosófica da in- pautas de trabalho: em todas as aulas de fi- fância. Dentre eles, podemos apresentar losofia se compartilha um texto, que é pro- o projeto “Em Caxias a filosofia en-caixa?” blematizado e debatido. Sendo assim, “o que da Universidade do Estado do Rio de Janei- se constitui em um texto adequado para um ro (www.filoeduc.org/caxias). Os princípios debate filosófico?”, “o que significa ler?”, norteadores desse projeto são: a PROBLE- “qual é o sentido da leitura em uma aula de MATIZAÇÃO, como maneira de abrir os es- filosofia?” são perguntas que atravessam a paços onde habitualmente não há pergun- prática do projeto. Utilizam-se textos de filó- tas; a INVESTIGAÇÃO CRIATIVA, como modo sofos, literatura brasileira, filmes, letras de de compor e recompor o pensar e o sentir, músicas e outras formas textuais que propi- de re-configurá-los e fazê-los proliferar; o ciem a irrupção do filosófico. Periodicamen- DIÁLOGO PARTICIPATIVO, aberto e funda- te são planejadas as atividades de filosofia mentado na inter-relação com os outros; o segundo os projetos do(a)s professore(a)s. É TRABALHO COLABORATIVO, enquanto forma propiciada ao(à)s professore(a)s e crianças de se envolver nas práticas educacionais; a uma atitude ativa frente à filosofia, própria RESISTÊNCIA frente a toda imposição; o EN- de uma prática que não se transmite, mas RIQUECIMENTO da vida, para tornar mais que se exerce. COMPLEXO o mundo e explorar outras dimensões da existência; o EXERCÍCIO perma- A proposta de levar a filosofia à escola não nente sobre o próprio pensamento, sobre é considerada no projeto como o transporte as ideias com as quais nos lemos e lemos o para a escola de um conteúdo que poderia mundo; a IGUALDADE das inteligências dos ser considerado filosófico, mas como a pos- participantes como seres capazes de pensar sibilidade de abrir nela um espaço para o fi- sem distinção de idade, lugar institucional, losofar como verbo, para se entregar a esse cor de pele, opção sexual, etc.; a EXPERI- particular exercício de pensar. O filosofar é ÊNCIA, como modo de se abrir ao novo e visto aqui como uma experiência, como um se relacionar com o próprio pensamento; a trabalho sobre o sentido: sobre o sentido do DIFERENÇA, como afirmação da irredutível que somos e do que nos acontece. O que nos singularidade da vida. acontece nos afeta particularmente, afeta a relação que temos conosco e com o mundo. Este projeto não aplica qualquer programa em particular e também não propõe téc- Desde a perspectiva experiencial, a filosofia, nicas definidas. Os próprios métodos são ou melhor, o filosofar é inconciliável com 22 a ideia de um modelo, de uma forma pre- balho de convite ao outro do pensar como viamente determinada à qual haveria que atividade, como exercício? Sobre qual di- se ajustar. Se a experiência de pensar não mensão dessa tarefa concentrar nosso tra- é nem um conteúdo nem um mecanismo, balho? Como acompanhar alguém que está a ideia tradicional de “formar” como um disposto a embarcar nessa experiência? De “moldar” a outro para garantir essa expe- que maneira gerar confiança e oferecer os riência deve ser repensada. Não é possível elementos que o outro precisa para percor- formar a infância segundo a lógica da expe- rer seu próprio caminho? Como tornar essa riência do pensar. possibilidade aberta? Se não temos conteúdo e não temos método a transmitir, como A experiência não pode ser garantida. Não dar consistência a um espaço de “forma- só é intransferível e pessoal: também é im- ção”? previsível. Irrompe, se faz presente sem prévio aviso. Não há método que assegure seu Eis algumas notas para pensar essas pergun- acontecimento, não temos como garantir o tas difíceis: o trabalho em filosofia é um tra- que nos afetará e de que modo nos afetará e re-configurará ou não nosso senti- balho de e sobre a Filosofar é se surpreender com o mundo. do do mundo. atenção. Aprender é atender. Pensar é atender. Ensinar é atender. A atenção é uma forma de rela- A possibilidade de aprender, diz Deleuze (em ção com algo que demanda certo esforço e Proust e os signos), tem a ver com a possi- que parece criar um âmbito de intimidade; bilidade de tornar-se sensível à complexida- a atenção propicia uma particular forma de de do mundo, à sua essência complicada. sermos afetados pelo mundo. De modo que Pensamos quando nos deparamos com essa o que fazemos é estar atentos e propiciar a multiplicidade complicada que é o mundo. atenção, estar sensíveis e propiciar a sensi- Esse movimento se opõe àquele que se ocu- bilidade. Ali começa o pensamento, ao tor- pa de se ajustar a um padrão unívoco prede- nar-nos sensíveis ao movimento, à comple- terminado. Filosofar é se surpreender com xidade do mundo. Também é uma forma de o mundo. “dis-tensão”, de relaxamento da tensão que nos liga a interesses práticos e utilitários. Se o exercício de pensar não responde à No final, é um trabalho para des-aprender lógica da transmissão de um conteúdo, a hábitos incorporados como típicos ou natu- partir de qual perspectiva abordamos o tra- rais que inibem a experiência do pensar. 23 A filosofia não é útil ou instrumental. Ela cia significa convidar todos que habitam a não é “instrumento para” a democracia, a condição da infância a participar desse ca- formação de cidadãos críticos, criativos, minhar e desse enigma e estar dispostos a bem sucedidos, ou qualquer outra coisa. A ouvir o que as diversas infâncias nos podem utilidade e a instrumentalidade respondem ajudar a pensar. à lógica da produção, ao estabelecimento de médios e etapas para conseguir alcançar objetivos previamente traçados. Entrar nessa NOTA BIBLIOGRÁFICA lógica implica restringir nossa capacidade Filosofia para crianças é apresentada por M. de percepção, supõe reduzir nossa capaci- Lipman em dois livros traduzidos ao portu- dade de ser afetados pelo movimento desse guês: Philosophy Goes to School (A Filosofia mundo que está ali, ainda que não consiga- vai à Escola. São Paulo: Summus, 1990) e Phi- mos entendê-lo. Os interesses e funcionali- losophy in the classroom (A Filosofia na Sala de dades externos nos abrumam, abarro- tam nossa atenção, nos distraem, nos tornam desatentos. A filosofia tem sentido, abre os sentidos, Aula. São Paulo: Nova Os interesses e funcionalidades externos nos abrumam, abarrotam nossa atenção, nos distraem, nos tornam desatentos. Alexandria, 1994; em colaboração com Ann M. Sharp e F. Oscanyan). Sua fundamentação teórica mais forte está em Thinking in Education expande a sensibili- (Pensar na Educação. dade, a partir da qual Petrópolis, RJ: Vozes, ganha forças nosso pensamento. A filosofia 1995) que teve uma segunda edição recen- e a infância são formas de alteridade. O ca- te, com mudanças significativas (Cambridge minho da filosofia transitado pela infância University Press, 2004, 2. ed., ainda inédita é um caminho inacabado e inacabável no em português). Escrevi alguns livros sobre a pensamento. A filosofia e a infância ajudam matéria: dentre eles, Filosofia com crianças a manter o ritmo, a não se fixar exagera- (Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, 2ª ed.); In- damente nas comodidades encontradas, a fância. Entre educação e filosofia (Belo Hori- desconfiar das certezas fáceis, a valorizar as zonte: Autêntica, 2004); (Petrópolis: Vozes, incompletudes, a deixar-se surpreender pe- 2000). las sendas não transitadas. Filosofar é uma maneira de acompanhar desde dentro o enigma do pensamento. Filosofar na infân- 24 TEXTO 3 FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO Filosofia no Ensino Médio: possibilidade de uma educação filosófica Ingrid Xavier 1 O filósofo sempre se achou e teve de se achar em contradição com seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje2. Pelo menos desde Sócrates a filosofia mos- de física e outra de história, eis o lugar da trou-se ligada à educação. Por muito tem- filosofia, outrora praticada em campo aber- po, essa antiga aliança floresceu à margem to. De um lado, seu público alvo, alunos em da institucionalização e da escolarização e, plena adolescência, muitos dos quais aves- portanto, a salvo de programas, currículos, sos à escola, atenção flutuante em meio à livros didáticos e vestibulares. Antes de tudo febril agitação e, diante deles, o professor era o desejo que sustentava a relação entre com a ocupação de como e qual conteúdo um que se dispunha a ensinar e outro que ministrar e a preocupação de como instau- se propunha a aprender; tudo a ver quando rar um ambiente minimamente propício se trata de ensinar e aprender, mais ainda para filosofar. De outro, há que considerar quando o que se ensina e o que se aprende que a instituição educativa visa à formação traz em seu nome um afeto: a philía. e se sustenta essencialmente na repetição, Bem diferente é o cenário atual em que a filosofia entra na sala de aula no Ensino Médio pelas mãos da lei, sem que se saiba muito bem para que e como praticá-la – ainda que os documentos oficiais atrelem-na a uma cidadania pretendida. Dispersa entre várias disciplinas, espremida entre uma aula na medida em que seu trabalho consiste em apresentar e inserir os jovens na cultura já existente. Nada mais distante do filosofar que a mera repetição. Não é, pois, pequeno o desafio do professor de filosofia. Talvez para enfrentá-lo seja de ajuda ter sempre presente a philía. 1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora e Coordenadora Pedagógica do Colégio Pedro II e Coordenador do Estágio em Prática de Ensino no CPII da Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pelo PROPED- UERJ. 2 NIETZSCHE, F. Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 2000, p.118. 25 A lógica da educação pautada no ideal de alguém possa aprender a filosofar; e, por úl- formação tem por pressuposto teleológico timo, a filosofia não tem um objeto delimi- uma forma ideal prévia e normativa à qual o tado, o que parece colocar um ponto final aprendiz deve adequar-se. Um dever ser está desencorajador. na raiz do gesto de dar forma: ajustar cada um ao que deve ser. E, embora muitas vezes A educação é um espaço de incessantes con- digamos que educamos para a liberdade, de flitos. Transgredir a naturalização dos sabe- algum modo em nossos esforços para for- res e exercitar-se como máquina de guerra mar ressoa um já saber, de antemão, aonde frente ao aparelho de Estado são estratégias se quer chegar e nossas boas intenções for- a serem tentadas por aqueles que pensam mativas não se cansam de repetir e procla- ser interessante problematizar o lugar e o mar modelos preestabelecidos capazes de sentido do ensino de filosofia em direção a educar para um mundo melhor. uma educação filosófica. Ser professor de filosofia requer problemati- O fato de que haja diversas tentativas de jus- zar, na teoria e na prática, o ensinar e apren- tificar a filosofia na escola, nenhuma delas der filosofia, fazendo dialogar a teoria e a cabal, instaura um campo de problemas que prática na instituição escolar, onde a prin- se organiza em torno de pelo menos duas cípio nada parece possível. Através da pro- instâncias: a dificuldade de pôr em acordo blematização do impossível nasce também as diversas concepções do que seja isto, a a necessidade impostergável para cada um filosofia, bem como encontrar concordância que ocupa a posição de professor de filosofia quanto ao que seja ensiná-la e, principal- de se pensar desde um novo lugar, de per- mente, o sentido de fazê-lo: para que levar a correr outros caminhos no pensamento em filosofia à escola? nome da filosofia e de seu ensino. Trata-se, em certo modo, de colocar em questão os A filosofia, filha da cidade, nasceu enraizada discursos mais otimistas e pessimistas sobre no político, na discussão racional das ordens a posição da filosofia na escola. cósmica e humana, e em franco embate com a palavra poética transpassada pelo mito É mesmo desconcertante que a filosofia oriundo do campo do sagrado. Subjaz desde ocupe um lugar na escola, pois afinal pelo a origem da filosofia esta tensão entre a pala- menos três pontos a tornam de certo modo vra-poética produtora de efeitos e a palavra- estranha à escolarização: mais do que pro- verdade, que estreia a racionalidade consti- priamente um saber, ela é uma atitude; tuinte da filosofia. Esse estatuto ambíguo da tampouco há um método que garanta que filosofia mostra uma oposição essencial en- 26 tre dois modos de experimentar o logos. Por modo como nos pensamos no mundo; para um lado, o logos como instaurador de sen- forçar o pensamento a se pensar. tido, identificado com o pensar e assumido como phármakon, capaz de produzir efeitos; Se partilhamos o suposto de que uma das por outro, associado ao conhecer, uma com- possibilidades da filosofia é dar-se conta do preensão epistêmica do logos que se organi- nosso presente, então que hoje é este que, za como dispositiva para melhor conhecer o apoderado pela ciência da técnica, tem no real e pretender a verdade. É inegável a força mercantil a significação a priori capaz de in- que esta última compreensão de logos vem formar as redes simbólicas e conceituais da tendo para afirmar-se como o viés mais pró- convivência? Pensar este tempo que, empo- prio da filosofia. Contudo, no terreno da filo- derado como nunca para efetuar velozmen- sofia, a tensão inicial ressoa: produzir efeitos te destinações, avança desabalado e pouco desde o pensar ver- tempo se dá para sus conhecer. pensar as forças que Mais do que perguntar que filosofia ensinar nos inte- ressa problematizar para que filosofar Intempestiva, extemporânea, a filosofia afirma que o mundo poderia ser diferente. Sempre. o orientam, é uma das maneiras de expressar um possível sentido para filosofar na escola hoje. Talvez por isso, pela na escola. Não é de obstinação e vora- maneira alguma re- cidade do modo de cente a demanda de que a filosofia decla- vida dominante da chamada sociedade pós- re sua utilidade. O “para que”, comumente moderna para negar ou combater os modos seguido de serve, busca na resposta uma de vida verdadeiramente alternativos, esse utilidade, uma função. Mas a utilidade da sentido apareça como particularmente sig- filosofia não se confunde com as exigências nificativo quando a filosofia adentra o espa- de funcionalidade exigidas pelo pragmatis- ço de educação dos jovens. mo reinante, e à pergunta “o que se pode fazer com a filosofia?” cabe como resposta a A sociedade de consumo, ao tornar rotina a afirmação de que a filosofia pode fazer algo “novidade” de seus produtos, promove uma com aquele que pergunta, uma vez que se imobilidade de fundo agenciando a forma- deixe afetar por ela. Entendemos que uma ção de subjetividades adestradas às vitri- educação filosófica pode contribuir para nes do shopping. Diante disso, os sentidos pensar possibilidades de transformar o clássicos outorgados à filosofia, tais como 27 “ensinar a pensar”, “promover a cidadania”, paz de incentivar o rechaço aos imperativos “desenvolver o pensamento crítico” entre hodiernos que convocam incessantemente tantos outros que há tanto vêm sido reite- ao apetite consumista, à acomodação dissi- rados, talvez não sejam os mais significati- mulada em conforto, ao hedonismo disfar- vos ou pelo menos suficientes para promo- çado em carpe diem, ao ‘salve-se quem pu- ver uma educação filosófica comprometida der do cada um por si’ que vem solapando com a construção de subjetividades preocu- o interesse pela vida política. Filosofia como padas em inaugurar outros modos de vida. convocação à resistência. Resistir, contudo, não é somente rechaçar, não é a sim- Assim, pensar as possibilidades da filosofia ples negação passiva do que há – o que no no Ensino Médio pressupõe ocupar-se tam- caso aproximaria a resistência do niilismo –, bém dos mesmos incômodos que indicam mas resistir consiste, sobretudo, em afirmar hoje sentidos que a própria filosofia sinaliza possibilidades e sentidos que permitam in- para o filosofar. Intempestiva, extemporâ- ventar e experimentar coletivamente outras nea, a filosofia afirma que o mundo poderia ser diferente. Sempre. Nunca há um só mundo. formas de vida, ou- No pensar têm lugar também o imaginar, o sentir, o desejar. tros modelos de convivialidade passíveis de migrar do espaço construído A filosofia nasce de através de uma edu- certo inconformis- cação filosófica na mo com o mundo. escola para outros Com este mundo, com outros mundos, com espaços, tendo os jovens como seus inter- todos os mundos. É confrontando-se ao in- cessores. O que parece mais próprio e fe- cômodo com o presente que a filosofia pode cundo para a filosofia no Ensino Médio é encontrar um sentido que justifique sua sua potência de educar filosoficamente, sua prática e seu lugar na escola; para espantar força de impulsionar os jovens à desacomo- a besteira, para compartilhar junto com os dação; efeito que pode ser conquistado pela jovens o incômodo com a besteira e desa- resistência à platitude dos modos de vida, comodar e desinstalar os que dela se apro- muitas vezes empobrecidos e anódinos nos ximam. quais, contemporaneamente, sobrevivemos desencantados e incrédulos. Uma educação filosófica pode ser extremamente fértil no terreno da escola como ins- O conhecer está, de modo geral, comprome- tauradora de um espaço de resistência ca- tido com a razão e a lógica em seu empenho 28 de apropriação do real. No entanto, em si losofia na escola não tanto preocupada em mesma, a lógica não é o real, nem sequer ministrar conteúdos, mas a aspírar uma di- o possível, mas apenas um dos dispositivos mensão de educação filosófica capaz de res- capazes de articular o possível com o real soar na maneira de viver dos estudantes. E, de modo a estabelecer uma intersubjetivi- desde logo, é a partir da relação que o pro- dade objetiva. Mas o conhecer não esgota as fessor tem com a filosofia e com os filósofos possibilidades do pensar, o conhecimento é pelos quais se interessa que essa possibilida- tão somente uma das possibilidades do pen- de pode ser atualizada. Em especial, ao res- samento. No pensar têm lugar também o gatar o que Sócrates nos ensina na Apologia imaginar, o sentir, o desejar. Pensar permite “interrogar, examinar e confutar” a própria instituir possíveis, a imaginação a partir de vida. experiências singulares abre o pensamento aos possíveis. Sem pretender verdades, a A filosofia na escola, ou uma educação filosófica, pode ser um arte de pensar pode contribuir para a arte de viver concentrada no lema de Píndaro “vir a ser o que se é”. O pensamento não aparece quando queremos, mas sim quando as condições de seu aparecimento são provocadas. convite a criar um ambiente, instau- rar uma atmosfera, propiciar uma sensibilidade atenta para acontecer o pen- Cabe um esclareci- samento. Antes de mento: colocar em ocupar-nos do con- questão a primazia da razão no filosofar teúdo disciplinar – quais temas, textos ou está muito distante de defender qualquer problemas que iremos trazer para explorar espécie de “irracionalismo”, não se trata com os alunos – pensamos ser condição de de desconfiar da razão e a ela simplesmen- possibilidade para ensinar a filosofar com te opor o que estaria fora do pensamento, adolescentes a preocupação em construir mas abrir mais espaço para o pensamento uma atmosfera propícia ao desaprender. De- ampliando sua extensão, de modo que o saprender no sentido de desvestir alguns há- conceito de pensamento contenha a razão bitos, desconstruir alguns supostos, dar as e não esta aquele. costas às certezas. E isso passa necessariamente pelo afeto, uma educação filosófica Uma filosofia deve ser capaz de fazer com não é somente tarefa do pensamento, mas que se experimente viver de acordo com ela. talvez e, sobretudo, trabalho do sentimento. Isto é decisivo e convoca a praticar uma fi- O gosto por pensar juntos pode emergir na 29 instauração de um clima, uma ambiência de deriva, pois, de uma composição de forças espera atenta ao inesperado e ao aparente- afetivas, do desdobramento da philía que in- mente sem sentido: philía. veste a filosofia. A philía da filosofia é uma paixão, uma relação que não se sustenta nos O pensamento não aparece quando quere- vínculos parentais, pois a filosofia, afinal, é mos, mas sim quando as condições de seu uma relação baseada em um afeto e não um aparecimento são provocadas. Contudo, afeto baseado em uma relação. provocar não significa produzir, nem toda provocação tem uma resposta. Provocar es- Talvez seja possível desenvolver o senti- sas condições está ligado a criar uma atmos- do de philía em suas acepções como amor, fera que expulse o medo de errar, de ensaiar amizade e desejo e chamar também para a pensar em voz alta; e como é difícil desa- ela o cuidado, a confiança e a hospitalida- prender o hábito escolar de responder cor- de. Confiança não no sentido moral de uma retamente, dizer o certo, falar o oportuno. passividade ingênua acomodada, mas como resistência à desconfiança imperante. Cui- A criação desta “ambiência pática” parece dado como disposição interessada, preo- ser uma das condições para provocar o pen- cupação com o outro. Hospitalidade como samento, pois não pensamos espontanea- acolhimento do estrangeiro, do imprevisto. mente, como bate o coração; pensar é um Abertura para o que está fora, experiência esforço e decorre de um incômodo, é uma do puro dom. O estrangeiro, por certo, não reação operada por algo que nos força a pen- fala a língua do anfitrião e essa condição de sar. Não é um eu voluntário que produz o estrangeiridade está quase sempre presente pensamento, como o pâncreas produz insu- no ensino de filosofia: a língua do ensinante lina, mas forças involuntárias que obrigam é a língua da filosofia, língua desconhecida o pensamento a se pôr em marcha. Não é de pelos aprendizes convidados a habitar uma uma boa vontade que o pensamento depen- educação filosófica. de, mas das forças que atuam na sua instauração, do terreno em que está posta a vida Uma educação filosófica comprometida em que o pensamento acontece. Antes que com a vida de cada um e com o hoje comum um método ou um caminho há que oferecer a todos está em sintonia com o imperativo um terreno propício ao pensamento. O que pindárico antes anunciado: Vir a ser o que se constitui propriamente esse terreno para fi- é. Autoexigência de transformação, abertu- losofar na escola é a instauração de um pá- ra a novos devires. Vir a ser o que se é não thos, de uma correlação de forças cuja resul- indica a transição de um ser em potência tante intensiva seja a atenção. Esse páthos a um ser em ato. Também não se trata de 30 trazer à luz uma identidade oculta, um si educação filosófica encontremos essa força mesmo, pois não há um ser, um substrato para aprender e o aprender dessa força que substantivo subjacente ao devir. O que o dê outra intensidade a nossas vidas. lema sugere são ressignificações do que se é, deslocamentos, devires, reconfigurações, BIBLIOGRAFIA rearranjos de forças que não podem ser separadas das afecções e agenciamentos, DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio das sucessões e encontros que constituem de Janeiro: Graal, 1988. o instável e mutante efeito do que chamamos “eu”. Vir a ser como tarefa de criação DOTTI, Jorge. Sobre los tiempos que corren. In: contínua, invenção de si que depende de CERLETTI, Alejandro; KOHAN, Walter Omar. desaprender-se e esquecer constantemen- Filosofia no ensino médio. Brasília: UNB, 1999. te o que se é para inaugurar-se em outras configurações, desfigurando-se a cada vez FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Vol. IV. Pa- para efetivar-se em outra nova figura tam- ris: Gallimard, 1994. bém sempre transitória. Vir a ser o que se é abriga um lindo paradoxo: aquilo que somos GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever e que podemos vir a ser, aquilo que mais nos esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. fortalece como indivíduos é saber o quão pouco somos como indivíduos. É nos perdendo que nos encontramos. Deste modo, o movimento de ensinar filosofia com vistas a uma educação filosófica implica fazer do aprender próprio e alheio uma experiência de abertura e de encontro no pensamento. Encontros no pensamento em si e nos outros, relacionando-se com a filosofia de maneira vital e comprometida. Fazer do ensinar e aprender filosofia uma oportunidade para virmos a ser aqueles que aprendemos a ser. Quem sabe, então, numa HADOT, Pierre. La philosophie commme manière de vivre. Paris: Albin Michel, 2001. NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: Escritos sobre educação. São Paulo: Loyola, 2003. p. 138-222. __________Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 2000. KOHAN, Walter Omar. Sócrates: el enigma de enseñar. Buenos Aires: Biblos, 2009. 31 Presidência da República Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO Coordenação-geral da TV Escola Érico da Silveira Coordenação Pedagógica Maria Carolina Mello de Sousa Supervisão Pedagógica Rosa Helena Mendonça Acompanhamento Pedagógico Luís Paulo Borges Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej Fernanda Braga Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins Diagramação e Editoração Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil Gerência de Criação e Produção de Arte Consultor especialmente convidado Walter Omar Kohan E-mail: [email protected] Home page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro. CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ) Setembro 2011 32