A Primeira Pessoa na Ética e na Filosofia da Direito de Kant

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A Primeira Pessoa na Ética e na Filosofia do Direito de Kant
António Marques
Universidade Nova de Lisboa
Recentes e relevantes comentários da filosofia prática de Kant têm vindo a
focar explicita ou implicitamente temas relativamente pouco considerados
na história do comentário a essa parte da sua filosofia, mas de importância
crucial numa avaliação global da ética e da filosofia do direito em Kant.
Refiro-me a temas como o do solipsismo ou da incerteza ética, esta última
inerente à dedução e prova de uma legislação interna, núcleos da filosofia
prática kantiana. Mais à frente aprofundarei o que entendo neste contexto
por incerteza ética, começando desde já por esclarecer que não consiste em
colocar em dúvida o facto da lei moral, provada, nomeadamente na
segunda Crítica como o facto da razão, expressa na primeira pessoa, mas
sim em colocar em dúvida a possibilidade de saber se o outro age realmente
por respeito à lei moral. Antecipo igualmente que aceito a existência desse
tipo de incerteza, assim caracterizada, e que esta, longe de prejudicar o
sistema da racionalidade prática de Kant, afirma-se ao contrário como parte
integrante daquele.
Para exemplificar esta discussão começo por mencionar duas contribuições
muito recentes, as de Paul Guyer, “Proving Ourselves Free” e de Valério
Rohden, “Neue Überlegungen zu Kants Kritik an einem praktischen
Solipsismus”1. Apresentarei com brevidade os pontos de vista essenciais
destes autores, com o objectivo de circunscrever mais facilmente os
problemas que derivam da temática da incerteza ética e apresentar de forma
mais clara a solução que proponho.
Rohden argumenta contra a atribuição de solipsismo à ética kantiana por
parte de Wolfgang Kuhlmann e ainda contra a concepção defendida por
Höffe, cuja posição é contrária à de Kuhlmann. Para Höffe a filosofia
moral kantiana assenta, por assim dizer, em três grandes pilares: o da
discursividade (a razão é logos), o da democracia e o do Estado de direito.
Para este autor, eliminar-se-ia assim qualquer tentativa de ver na ética
kantiana uma filosofia assente nos indivíduos tomados em si isoladamente.
Deste modo Höffe pretende defender Kant da falsa interpretação solipsista,
já que a sua filosofia se constrói sobre os pilares discursivos e colectivos
mencionados e não sobre a consciência isolada dos indivíduos. Não existe
pois à partida qualquer elemento solipsista na filosofia moral kantiana.
1
Ambos os ensaios publicados em Recht und Frieden in der Philosophie Kants, Akten des X.
Internationalen Kant- Kongresses, Bd. 1 (Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 2008)
1
Já Kuhlman defende a tese contrária: a filosofia prática de Kant é dirigida
apenas ao indivíduo singular e não a uma comunidade plural. Desse modo é
a própria qualidade racional prática da filosofia kantiana que se acha em
risco, já que aquilo que a deveria qualificar precisamente como
racionalidade é o seu carácter colectivo. Kuhlmann designa a racionalidade
prática de Kant como razão monológica contra uma concepção de
comunidade comunicacional que se deve encontrar no cerne daquela
racionalidade.
Face a estas interpretações antagónicas, mas convergentes no ponto em que
ambas concebem a racionalidade prática como essencialmente discursiva e
originalmente dirigida a uma comunidade de sujeitos, Rohden propõe uma
nova interpretação da razão pura prática “como razão não-solipsista”, mas
em contraste com os autores referidos, e por meio de uma investigação do
sentido dos termos Selbstsuch e Selbstliebe, afasta o primeiro elemento a
favor do segundo, mostrando que o amor de si e o amor do próximo são
princípios de uma boa vontade e por isso o conceito de razão prática não
pode incluir qualquer elemento ou qualidade que se apresente (atendendo
ao significado da Selbstsuch) como uma indiferença pela sorte dos outros.
Rohden defende então, a meu ver justificadamente, que “na realidade Kant
constituiu completamente uma conexão entre ligação intersubjectiva e
razão pura a priori. Os seus conceitos de fim e de autonomia introduzem
uma conexão interna entre os conceitos de adequaao à lei e o de uma
comunidade, noutros termos, de uma pluralidade de seres racionais
coexistentes”2. Porém veremos que é precisamente o tipo de legalidade
necessária à coexistência de seres livres e racionais o ponto que mais
problemas suscita, mesmo para quem aceita como válida a prova da
existência de uma legislação interna.
No que respeita à interpretação de Paul Guyer, encontramos nesta uma
afirmação clara da existência de uma assimetria entre o facto de cada um
provar a si mesmo que é livre, em enunciados da primeira pessoa, e a
inexistência de prova autêntica da liberdade nos outros, de um ponto de
vista da segunda ou da terceira pessoas. Para compreender melhor a
posição de Guyer convém partir do problema da imputação, ou seja da
atribuição a outro da real autoria (e responsabilidade) deste ou daquele
acto, o que, na sua opinião, não é resolvido cabalmente por Kant, na
medida em que este concede existirem “graus de imputabilidade” e factores
naturais a que não é possível escapar na avaliação do grau de autonomia
com que cada um age. Segundo Guyer, “[A]quilo que as obras sobre
filosofia moral do Kant da maturidade sugerem é na verdade a posição
mais complexa, segundo a qual para o objectivo da tomada de decisão na
2
Valério Rohden, “Neue Überlegungen zu Kants Kritik an einem praktischen Solipsismus”, in: Recht
und Frieden in der Philosophie Kants, Akten des X. Internationalen Kant- Kongresses, Bd. 1 (Berlin/
New York: Walter de Gruyter, 2008), 273.
2
primeira pessoa e também para a auto-avaliação moral, temos com efeito
que provar a nós mesmos a realidade da nossa liberdade transcendental,
mas que para a avaliação e mesmo a punição de actos dos outros, nós não
podemos provar a sua liberdade transcendental e até mesmo que será para
nós preferível moralmente pensar a sua liberdade em termos empíricos e
por isso como algo que pode ser limitado e comprometido por condições
empíricas. Os escritos morais de Kant tendem pois a fornecer argumentos
pelos quais cada um de nós prova a si mesmo ou a si mesma ser livre de um
ponto de vista transcendental, mas não tenta fornecer argumentos pelos
quais possamos provar a cada um dos outros ser livre desse ponto de
vista”3.
Guyer prossegue na exploração dessa assimetria e argumenta que aceitando
tal assimetria, tal deverá ter consequências para o problema da
imputabilidade. Uma citação que faz das lições Vigilantius sobre Ética
parece decisiva a este respeito: “é impossível julgar-se a si mesmo ou aos
outros internamente, ou por um juíz instituído pela lei pública ou in statu
privato; pertence somente ad forum divinum, mas também cria para nós a
dúvida benevolente de adoptar uma perspectiva muito tolerante em relação
actos especificamente ilegais dos outros homens e julgá-los com
clemência”4 (Ak. 27, 704, cit. por Guyer, p. 136).
Não posso alongar-me mais nas considerações sobre estas duas relevantes
contribuições para o estatuto do sujeito ético e o problema da sociabilidade
e comunicabilidade na filosofia prática de Kant. Delas retiro o seguinte:
1- Concordo com ambos quanto ao primeiro objecto da filosofia prática ser
o indivíduo qua sujeito ético e não uma razão discursiva ou socialcomunitária.
2- Admito a existência de um elemento de incerteza ética em Kant e, nesse
sentido, não há na circunscrição da legislação interna, uma solução
evidente para o problema crucial da coexistência regulada de liberdades.
Embora nunca empregue os termos “incerteza ética”, no sentido em que
aqui os emprego, a exploração feita por Guyer da assimetria entre primeira
e terceira pessoas faz sentido e é importante para o esclarecimento dessa
problemática. No entanto dessa assimetria ele não retira um conceito
possível de coexistência de liberdades. Ou seja, se aceitamos a existência
3
Paul Guyer, “Proving Ourselves Free”, in: : Recht und Frieden in der Philosophie Kants, Akten des X.
Internationalen Kant- Kongresses, Bd. 1 (Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 2008), 121-2.
4
V-Mo/Mron, AA 27: 704, cit. por Guyer, p. 136. As citações de Kant são feitas com referência à edição
dos Gesammelte Schriften, ed. vols.1-22, Preussische Akademie der Wissenschaften, vol. 23 Deutsche
Akademie der Wissenshaften, Berlin, a partir do vol. 24, Akademie der Wissenschaften, Göttingen,
Berlin 1900 segs. A forma de citação e as siglas utilizadas seguem os critérios da Kant-Gesellschaft.
Utlizamos as traduções para a língua portuguesa de Valério Rohden, no caso da Crítica da Razão Prática
(São Paulo, Martins Fontes, 2003) e de José Lamego, no caso de A Metafísica dos Costumes (Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2005). Traduções de outras obras são minhas.
3
de uma assimetria intransponível, colocada naqueles termos, quais as
consequências para a formação de sociedades de seres livres e racionais?
3- Como referi atrás, o elemento de incerteza que reconheço na filosofia
prática de Kant não consiste em colocar-se em dúvida se os outros são
sujeitos de acções com qualidade ética, mas sim se é possível (na
perspectiva da terceira pessoa) conhecer fundadamente algo ou possuir um
critério de evidência sobre a natureza dessas acções, nomeadamente, se elas
têm origem no dever e, dessa forma, são geradas autonomamente. No
entanto, este é um problema que se coloca no plano epistemológico e não
no plano prático. Aliás, de um ponto de vista propriamente cognitivo ou
teórico, também não é possível ao próprio sujeito provar em si mesmo a
existência da lei moral. Ou seja, a dedução da lei moral não é a mesma da
que é praticada na primeira Crítica, a respeito das categorias do
entendimento. Mais à frente retomar-se-á este decisivo tópico.
4- O reconhecimento desse elemento de incerteza não coloca em perigo a
consistência interna do sistema da razão prática, pelo contrário é até
necessário, na medida em que é o seu reconhecimento que pressupõe a
necessidade de uma legalidade externa universal para a regulação da
coexistência de seres livres e racionais.
Este é um desenho ainda muito esquemático do nosso problema, mas no
que se segue é possível aprofundar e esclarecer alguns dos tópicos atrás
referidos.
Quando na Metafísica dos Costumes (1797) Kant insiste que a diferença
entre os domínios da ética e do direito assenta numa dualidade de
legislações, uma legislação interna e uma legislação externa,
correspondentes a cada um daqueles domínios, estava, a meu ver, não
apenas a propor uma separação incontornável entre ética e direito, mas
sobretudo a resolver um problema que lhe ficou da dedução da lei moral e
da correlata figura do sujeito moral auto-legislador. Esse problema é o da
coexistência regulada de liberdades, cuja existência qua autonomias,
individualmente consideradas, ficou provada nas gandes obra sobre ética, a
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão
Prática (1788). Estas pressupõem, na perspectiva da primeira pessoa, uma
indubitável legislação interna, mas como já sugeri, esta não permite por si
só a constitução dessa coexistência regulada.
É de sublinhar, desde já, que a dedução da liberdade positiva ou autonomia
requer um tipo de prova que não tem paralelo com a prova da validade dos
juízos sintéticos a priori teóricos. Como se verá melhor, por contraste com
as provas da razão teórica, o que se passa no domínio prático é antes de
mais a afirmação, na primeira pessoa, de uma vontade que
necessariamente, e em todas as ocasiões, actua “não simplesmente
submetida à lei, mas de tal modo submetida que deve ser considerada
4
legisladora”5. Esta afirmação pode ser vista como suficiente prova da lei
interna no domínio prático? Na segunda Crítica ela corresponde à
afirmação ou expressão do célebre factum da razão.
Um ponto decisivo acerca da argumentação de Kant na Crítica da Razão
Prática diz respeito ao esclarecimento do tipo de dedução das proposições
fundamentais da razão prática, isto é, nas suas próprias palavras, à
“justificação da sua validade objectiva e universal”6 . É possível encontrar
na segunda Crítica essa argumentação que visa a validade objectiva de
princípios, a exemplo do que foi feito na primeira Crítica? Não sendo
possível falar em dedução, pelo menos no sentido da razão teórica, de um
factum, “no qual a razão pura deveras se prova em nós praticamente, a
saber, a autonomia”7, a estratégia argumentativa de Kant passa por: em
primeiro lugar confrontar o tipo de prova do princípio moral em nós com a
dedução dos princípios a priori da razão teórica e, em segundo lugar,
deduzir a liberdade como autonomia através da equivalência do factum ao
próprio conceito de autonomia. Com efeito, nas suas palavras, a Analítica
“mostra ao mesmo tempo que este factum vincula-se indissoluvelmente à
consciência da liberdade da vontade, antes, é idêntico a ela”8. Neste ponto
é possível defender que, na segunda Crítica, Kant economiza na
demonstração da existência de uma lei moral relativamente à
Fundamentação. De facto, agora ele introduz na demonstração um factum
indubitável da razão e, nessa medida, a dedução adquire uma característica
singular: existe um facto cuja prova não é mediatizada por qualquer
estrutura. Pelo contrário, essa imediatez da prova é expressa
necessariamente na primeira pessoa sob a forma de proposições do tipo:
“eu devo agir assim”.
Henry Allison defende a existência de um turning point decisivo na
dedução da lei moral na segunda Crítica, por oposição à dedução na
Fundamentação. Tendo Kant abandonado “a tentativa de estabelecer a
natureza prática da razão pura na base de qualquer premissa não moral,
assim, em vez de começar com o conceito de agente racional e mover-se
deste para a pressuposição de liberdade e daí, mediante a Tese da
Reciprocidade, para a lei moral, Kant move-se naquela obra, directamente
da consciência da lei moral como ‘facto da razão’ para a natureza prática da
razão pura e a realidade da liberdade transcendental. A meu ver, não é tanto
a existência de um turning point na dedução da segunda Crítica que se
verifica (sobretudo não se percebe a que tipo de “premissa não moral” se
refere Allison), mas a plena afirmação por parte de Kant da imediatez da
prova do factum da razão cuja “aspecto” externo apenas é perceptível na
5
GMS, AA 04: 431. 19-21.
6
KpV, AA 05: 46. 21
KpV, AA 05: 42. 4-6
8
KpV, AA 05: 42. 8-10
7
5
expressão da primeira pessoa. Consideremos ainda com mais pormenor a
dedução kantiana.
No primeiro livro da segunda Crítica, na anotação dedicada à “dedução das
proposições fundamentais da razão prática pura”, Kant compara a tarefa de
dedução no domínio prático com o que se passa no domínio teórico e
assume que
Com a dedução, isto é, com a justificação da sua
validade objectiva e universal e com a
perspiciência da possibilidade de uma tal
proposição sintética a priori, não se pode esperar
avançar tão bem como se deu com as proposições
fundamentais do enendimento teórico puro. Pois
estas se referiam a objectos de experência
possível, a saber a fenómenos, e podia-se provar
que somente pelo facto de que estes fenómenos são
submetidos às categorias em conformidade com
aquelas leis, podem ser conhecidos como objectos
da experiência, por conseguinte que toda a
experiência tem de ser conforme a essas leis. Com
a dedução da lei moral não posso, porém tomar
um tal caminho. (KpV, AA 05: 46. 21-3)
Na verdade, seguindo a argumentação neste texto verifica-se que aquilo
que está em causa é mais do que tomar um outro caminho para um outro
tipo de dedução e percebe-se na seguinte passagem alguma dificuldade na
sua caracterização, o que afinal resulta da estratégia assumida de partir do
factum da lei moral para a liberdade, fazendo equivaler as duas coisas. A
seguinte passagem é uma chave para a compreensão da prova da liberdade
a partir do factum da razão prática:
“Logo a realidade objectiva da lei moral não pode ser
provada por nenhuma dedução, por nenhum esforço da razão
teórica, especulativa ou empiricamente apoiada, e, pois,
ainda que se quisesse renunciar à certeza apodíctica, (nem)
ser confirmada pela experiência e deste modo ser provada a
posteriori e, contudo, é por si mesma certa.
Mas algo diverso e inteiramente paradoxal substitui esta
inutilmente procurada dedução de uma imperscutável
faculdade que nenhuma experiência tinha de provar, mas que
a razão especulativa (….) tinha de admitir pelo menos como
possível, ou seja a dedução da liberdade, da qual a lei moral,
que não necessita ela mesma de nenhum fundamento que a
6
justifique, prova não apenas a possibilidade mas a
efectividade em entes que reconhecem essa lei como
obrigatória para eles” (KpV, AA 05: 47. 20-7).
Passagem crucial, na qual Kant insiste que não existe prova para o factum
da lei interna. Ela habita no sujeito, antes de qualquer argumentação
justificativa e impõe-se-nos como algo inescapável. Já se sublinhou que
essa interioridade moral não é objecto de descrição ou prova, mas sim
exprimível na primeira pessoa (em formas diferentes do imperativo
categórico do tipo, “devo agir deste modo e esta acção possui valor
universal”). Pensemos como a dedução dos princípios da razão teórica
fazia apelo à possibilidade dos objectos em geral, dados nas intuições a
priori do espaço e do tempo. Nesse caso, o ponto de vista da primeira
pessoa não é privilegiado: precisamente a representação de possíveis
objectos segundo a forma de esquemas espacio-temporais a priori
demonstra a validade objectiva de princípios sem os quais nenhuma
experiência seria possível. Nessa medida qualquer juízo sintético a priori
teórico não é exclusivamente do foro interno, já que a “matéria” espaciotemporal dos esquemas produzidos pela imaginação, que funcionam como
uma espécie de anagrama dos conceitos puuros, são por definição
representáveis por todos e cada um. Assim nenhuma assimetria lhe deve ser
associada. Apenas a legislação do foro interno é gerador de assimetria entre
primeira e terceira pessoas. É neste ponto que se encontra a ausência no
juízo moral de um verdadeiro esquematismo dos conceitos, o qual era um
elemento chave nos conhecimentos da razão teórica. Na verdade, de certa
forma o esquema “externaliza” o conceito, mesmo o conceito puro. Kant
procurou suprir esa ausência com um esquematismo por analogia que
designou de “típica” da razão prática, mas não é este o lugar para
desenvolver essa temática.
A validade desta prova, que assenta nas propriedades dos enunciados na
primeira pessoa, tem no entanto como consequência, como já foi
suficientemente referido, a formação de uma assimetria irreversível entre o
sujeito auto-legislador, que certifica pela sua própria acção a existência de
uma vontade livre, e os outros sujeitos, relativamente aos quais nunca
posso estar certo que actuem autonomamente. Uma dúvida, que não é
eliminável relativamente ao conhecimento do que se passa noutras mentes
no respeitante à respectiva liberdade interna não terá portanto solução no
quadro da filosofia ética de Kant, a qual assenta precisamente na acção
volitiva individual que, por definição, é sempre completamente interna.
Porém essa condição da filosofia prática não nos deve afligir, já que a
irredutível dúvida em relação ao que se passa nos outros não afecta a minha
inabalável certeza do que se passa (ou passou) em mim, in foro interno.
Além do mais, o princípio de acção por puro dever que começo por
7
exprimir da primeira pessoa é universalizável. A expressão “eu devo
cumprir este contrato conscientemente assumido, independentemente da
sua matéria”, adquire de imediato a forma “todos devem cumprir um
contrato assumido conscientemente, independentemente da sua matéria”.
Sem dúvida que cada sujeito pode formular uma máxima a que atribui
valor universal e coerção (p. ex. o contrato que conscientemente assumi,
devo cumpri-lo) e é razoável que os outros se submetam, eles também de
forma igualmente livre, a essa regra que estou certo ser universal. Também
é razoável supor que frequentemente, senão a maior parte das vezes, se
processa com êxito a comunicação entre sujeitos capazes de exprimir actos
de vontade determinantes de regras universais. No entanto a realidade da
comunicação de proposições éticas (tipicamente aquelas que exprimem um
dever fazer) não exclui e ultrapassa a situação de assimetria entre a minha
experiência, que eu exprimo numa determinada proposição e a experiência
dos outros, a que apenas me posso referir na terceira pessoa (tipicamente,
“ele fez isto assim e assim por dever”)
Desta forma devo reconhecer: 1. que a auto-coerção é completamente
interna, isto é não pode ser determinada por qualquer elemento, mesmo
que subjectivo 2. que é experimentada por cada indivíduo que a exprime na
primeira pessoa e 3. que apenas posso referir-me a essa mesma experiência
dos outros na perspectiva da terceira pessoa.
Segue-se então que esta assimetria coloca problemas, nomeadamente
quanto à efectiva autonomia presente nas acções do outro, assim como
relativamente à característica de imputabilidade9 dessas acções. No entanto
esta dificuldade na filosofia ética de Kant quanto ao que poderíamos
designar como assimetria constitutiva da racionalidade prática, não coloca
em perigo a coerência da sistemática que esse programa deve exibir,
atendendo tanto ao domínio ético, como ao do direito.
A partir daqui é possível aprofundar mais as principais linhas já enunciadas
e evidenciar a forma como a mencionada assimetria possui ela própria um
papel sistemático. Comecemos por dirigir a nossa atenção para o que é a
peça central da argumentação kantiana da segunda crítica, a saber a
identificação entre factum da razão e a “consciência da liberdade da
vontade” formulada na dedção da segunda Crítica. É na autodeterminação
da vontade pela regra interna que o agente racional se apercebe de si como
ser livre. Nessa determinação da vontade é a simples forma desta que é
visada e não o seu possível objecto. Não é difícil exemplificar esta
diferença entre forma e conteúdo da vontade e assim perceber como se trata
9
É no entanto importante realçar que o problema do juízo de imputabilidade (um juízo tipicamente na
segunda ou terceira pessoas), ao avaliar a qualidade de uma acção, em função da existência ou ausência
de liberdade do sujeito dessa acção, é diferente do problema da demonstração da existência nos outros de
uma lei interna. Por outras palavras, esse juízo não “espera” por saber se o outro agiu por dever ou
simplesmente de acordo com o dever ou ainda se apenas simulou a primeira hipótese. É também
interessante notar que, neste sentido, o juízo de imputabilidade, constantemente aplicado nos tribunais,
possui esencialmente uma natureza moral com consequências jurídicas directas.
8
de um critério simples, eficaz, para identificar o que podemos designar de
acção autónoma. A necessidade ou sentimento de obrigação em cumprir
uma promessa assumida sem constrangimentos físicos ou psicológicos, não
depende do tipo de promessa formulada, por isso da matéria em causa, por
muito louvável ou benéfica que se apresente aos olhos dos outros. A
violação de um compromisso, de um contrato ou promessa, sem atender
aos respectivos conteúdos, não deve ser permitida pura e simplesmente e,
ao tomar consciência dessa obrigação, o sujeito eleva o que é aspecto
simplesmente formal ao estatuto de lei objectiva (imperativo
categoricamente formulado). O conteúdo da promessa, por muito que
mereça a nossa simpatia e nos motive intensamente ao seu cumprimento,
não justifica, por si só, o sentimento de obrigação que experimentamos
perante a simples forma da vontade ou melhor da simples forma em que ela
se expressa. É o que Kant explica nos seguintes termos:
“Ora se dizeis a alguém que ele jamais deve prometer algo
enganosamente, então esta é uma regra que concerne
meramente à sua vontade; os objectivos que o homem possa
ter podem ser alcançados por ele ou não; o simples querer é
que deve ser determinado de modo completamente a priori
por aquela regra.” (KpV, AA 05: 21. 4-8)
Neste caso, é a vontade de um agente racional que se auto-determina pela
regra formulada por ela mesma, vontade, sem considerar a matéria
associada à regra (neste caso proibir-se a si mesma de violar a promessa
que ela própria quis e não esta ou aquela promessa em concreto que é
visada pela vontade). Esta determinação da vontade pela lei interna que é
prática e incondicionada é uma das faces de uma mesma moeda, em que a
outra face é a liberdade. “Portanto liberdade e lei prática incondicionada
referem-se reciprocamente”10. Este é um ponto crucial da filosofia ética
kantiana, ou seja aquele momento em que se estabelece uma reciprocidade
perfeita entre a determinação da vontade pela simples forma da regra e a
liberdade. Mas é tanto mais crucial quanto nos apercebemos que essa
reciprocidade somente pode ser consciencializada na perspectiva da
primeira pessoa. Doutra forma não seria possível a consciência
(experiência) da liberdade. Deve-se insistir neste ponto e será relevante
uma reflexão sobre o que pode ser aqui designado como pragmática da
primeira pessoa na ética de Kant, que aqui não é possível desenvolver.
Efectivamente cada um torna-se consciente da lei moral: “logo é a lei
moral, da qual nos tornamos imediatamente conscientes (tão logo
projectamos para nós máximas da vontade”11. O carácter imediato dessa
10
11
KpV, AA 05: 29. 22-23.
KpV, AA 05: 29. 32-33.
9
consciência apenas pode ter lugar num ser que projecte para si máximas da
vontade.
Voltaria agora ao tópico do que designei como incerteza ética em Kant, o
qual precisa ainda de maior esclarecimento. Desde a Fundamentação,
passando pela segunda Crítica até à Metafísia dos Costumes, Kant dedica
os seus maiores esforços, quer na argumentação teórica, quer na criação de
exemplos da concreta vida ética, ao reconhecimento dos actos cometidos
por dever relativamente aos actos em que, pelo menos, se mistura alguma
inclinação e por isso são contaminados de heteronomia. A intransponível
dificuldade em, nalguns casos, distinguir acções cometidas por dever de
acções efectuadas de acordo (ou em conformidade) com o dever dificulta
em grande medida a identificação das primeiras como exemplos de pureza
da razão prática e detendo o monopólio do valor moral. Para a boa
compreensão deste ponto central de discussão da ética de Kant recorremos
a duas passageens chave da Fundamentação, no início respectivamente das
primeira e segunda secções:
“Passarei por cima de todas acções que já são
reconhecidas como contrárias ao dever, mesmo que
elas possam ser úteis para este ou aquele fim; porque
nestes casos o problema de saber se poderiam ter sido
realizadas com origem no dever nunca se levanta, a
partir do momento que até entram em conflito com
aquele. Também ponho de lado acções que estão
realmente em conformidade com o dever, mas em
relação às quais os seres humanos não possuem de
imediato uma inclinação e que eles ainda executam
porque são impelidos a fazê-lo através de outras
inclinações. Na verdade, neste caso é fácil distinguir se
uma acção em conformidade com o dever é feita com
origem no dever ou a partir de um objectivo de
interesse pessoal. Por exemplo é certamente conforme
ao dever que o dono de uma loja não sobrecarregue um
cliente inexperiente e que, por ocasião de um bom
negócio ou transacção, um negociante prudente não
exagere os preços, mas que mantenha um preço fixo
para todos, de tal modo que uma criança possa
comprar-lhe coisas como as outras pessoas; mas isto
não chega de modo algum para acreditarmos que o
negociante actuou desta forma por dever e por
princípios básicos da honestidade; a sua vantagem
exigia que assim actuasse; não pode ser assumido aqui
que ele tenha, além disso, uma inclinação imediata
10
para com os seus clientes, como se fosse por amor
destes, de tal forma que não deu preferência a um em
detrimento de outro em matéria de preço. Assim a
acção não foi feita, nem por dever, nem por uma
inclinção imediata, mas meramente por objectivos de
interesse próprio (GMS, AA 04: 397.11-22)
[…] Praticar a beneficência quando se pode é um dever
e para além disso há muitas almas tão afinadas pela
simpatia que, sem qualquer outro motivo de vaidade ou
interesse próprio, encontram uma íntima satisfação em
espalhar alegria à sua volta e podem-se comprazer na
satisfação de outros, na medida em que é a sua própria
obra. Mas eu afirmo que, em tais casos, uma acção
deste tipo, pelo facto de ser conforme à razão é tão
louvável quanto possível, mas não possui uma
verdadeiro valor moral, encontrando-se no mesmo
plano das outras inclinações, por exemplo a inclinação
para a honraria […] (GMS, AA 04: 398. 7-15)
Nesta passagem sulinhe-se a existência de acções e perfis morais
pertencentes a uma categoria que se situa entre a prática do dever e a mera
conformidade ao dever, como é o caso do negociante. A existência de um
perfil moral como o daquele que pratica a beneficência introduz um espaço
estreito e subtil entre o dever e a conformidade a este, tornando muito mais
difícil o reconhecimento na perspectiva da segunda ou da terceira pessoa
que tal acção ou obra têm origem no puro dever e por isso possuem valor
moral. Aproximamo-nos rapidamente de uma posição que abre a porta à
incerteza quanto à qualidade ética da acção do outro.
Essa natureza estrutural da incerteza entra definitivamente na
argumentação de Kant na seguinte passagem chave da FMC:
“De facto é absolutamente impossível, por meio da
experiência, provar com completa certeza, um único
caso no qual a máxima de uma acção, de qualquer
forma em conformidade com o dever, se estabelecesse
simplesmente em bases morais e
sobre a
representação de seu dever. É verdade que algumas
vezes acontece que, com a mais fina auto-observação,
nós não encontramos nada para além do fundamento
moral do dever que podia ser suficientemente
poderoso para nos mover em direcção a esta boa
acção ou a este grande sacrifício; mas daí não se
pode inferir com certeza que nenhum impulso de amor
11
próprio, disfarçado sob a ideia imaginada desse
dever, não era afinal a causa determinante do
querer” (GMS, AA 04: 407.1-9)
A irredutibilidade da incerteza ética, fundada na assimetria entre interno e
externo ou entre perspectivas da primeira e da terceira pessoa, conforme as
considerações realizadas, tem significado e consequências de tipo
sistemático para a teoria da razão prática. Gostaria de propor uma avaliação
do que podem ser essas consequências.
Facto fundamental é o que a própria assimetria entre perspectivas obriga a
reconhecer: não é possível uma coerção exercida na minha interioridade
ética exercida por outro. Por outras palavras, nenhuma outra pessoa pode
obrigar-me a actuar por dever. Essa é talvez a consequência mais
perturbadora que afectará necessariamente a formação de uma coexistência
de liberdades segundo regras, ou seja a constituição de uma sociedade de
seres livres e racionais. Porém, dados os recursos sistemáticos da razão
prática, essa condição não deve ser compreendida como uma falha que
deve ser preenchida com um elemento ad hoc. Pelo contrário, se a ética
kantiana é uma ética da interioridade, da auto-coerção e da primeira pessoa,
ela deve perservar-se como tal no plano da sociabilidade. É por isso que a
própria sociabilidade só pode corresponder ao conceito de uma
coexistência de liberdades, cuja interioridade moral permanece intocável.
Dessa forma, o sistema da razão prática de algum modo completa-se
quando se gera uma lógica recíproca de coerções entre sujeitos. Antes (de
um ponto de vista lógico) dessa organização de coerção recíproca aquilo
que existe é o conjunto de sujeitos morais com a respectiva legislação
interna, intocável pelo outro e a que este não tem qualquer acesso no plano
da experiência.
Essa espécie de distância intransponível que a impossibilidade de uma
coerção externa sobre o meu interior ético confirma, é atestado de forma
clara na seguinte passagem da Metafísica dos Costumes:
“Um outro pode, na verdade, coagir-me a fazer algo
que não é um fim meu (mas apenas meio para o fim de
outrem), mas não pode coagir-me que eu o converta
num fim meu, e, bem entendido, eu não posso ter
nenhum fim sem fazer uso do meu. Isto seria uma
contradição em si mesma: um acto de liberdade, que
ao mesmo tempo, porém, não é livre. – Mas propor-se
a si próprio um fim, que é simultaneamente dever, não
é contradição alguma: porque, nesse caso, coajo-me a
mim próprio, o que é de todo, compatível com a
liberdade” (MS, AA 06: 381. 21-35).
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O que é mais notável nesta passagem é o sublinhar da total incapacidade
de um sujeito determinar, nomeadamente coagir, outro na sua interioridade
moral. Kant refere-se de facto a uma zona intocável, a da lei moral, a qual
se subtrai como nenhuma outra a determinações efectivas, à influência
externa. Daí que possa ser dito que A coage psicologicamente B, por
exemplo, e que essa coacção pode se pode traduzir das mais variadas
formas, mas não fará sentido dizer que A coage B de modo a que este
forme em si um dever ético. Há pois em cada um de nós, aquilo a que se
poderá chamar uma interioridade moral intocável, a qual não pode desligarse da existência da radical assimetria entre a consciência do factum da lei
de autonomia na primeira pessoa e a atribuição desse factum ao sujeito do
ponto da terceira pessoa.
Supunhamos que, sob um ponto de vista da terceira pessoa, eu tinha a
capacidade de verificar que o outro age por dever e não apenas conforme
ao dever, o que, como se viu, não é possível. Essa capacidade, que passaria
então a ser reconhecida por cada um a cada um, ou por cada a um a todos
os outros, anularia a assimetria entre sujeitos, já que deixaria de existir
diferença entre a a consciência na primeira pessoa do factum da lei de
autonomia e a atribuição desse factum ao sujeito do ponto de vista de uma
terceira pessoa. A consequência seria a constituição de uma comunidade
de sujeitos sem uma zona intocável de interioridade moral, ali onde a lei
moral, a sua consciencialização, sob a forma do dever, o sentimento de
respeito e o acto de linguagem na primeira pessoa (: “eu quero actuar assim
em todas as circunstâncias e independentemente da matéria factual em
causa”), seria conhecida pelos outros. Seria filosofiamente muito
interessante aprofundar as consequências de uma sociedade sem assimetria,
isto é, sem interioridades morais intocáveis. Por agora gostaria apenas de
me deter um pouco na qualificação dessa comunidade de sujeitos éticos
cuja sociabilidade obriga a coexistir:
A lei da coerção recíproca que está necessariamente
de acordo com a liberdade de cada um sob o
princípio da liberdade universal é, de certo modo, a
construção daquele conceito, quer dizer, algo como
a sua representação na pura intuição a priori, por
analogia com a possibilidade dos movimentos livres
dos corpos sob a lei da simetria daacção e da
reacção. Mas, tal como na matemática pura não se
podem inferir directamente do conceito as
propriedades do seu objecto, mas só podem
descobrir-se mediante a construção do conceito, não
é tanto o conceito de Direito o que possibilita a
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exposição deste, sendo-o, outrossim, a coerção
recíproca e igual, submetida a leis universais, em
conformidade com o conceito de Direito. (MS, AA
06: 232-233).
A analogia que Kant estabelece entre a coerção recíproca dos sujeitos no
espaço jurídico e a lei da igualdade da acção e da reacção dos corpos
(correspondente à terceira analogia da experiência da primeira Crítica) é
digamos esquematizada num procedimento, também ele análogo ao da
construção de um conceito matemático ou da geometria. Na primeira
Crítica, a prova do carácter sintético das proposições matemáticas consistia
na construção do conceito e sobre a matéria formal da sensibilidade (espaço
e tempo). Por exemplo, a proposição segundo a qual num triângulo um
ângulo é sempre inferior à soma dos outros dois ou a simples operação da
aritmética em que se obtém 12 a partir, p. ex., de 6+6. Assim também o
conceito de direito se presta a uma construção, na qual é possível exibir
uma relação simétrica perfeita entre forças (neste caso entre liberdades) que
se confrontam e devem coexistir num mesmo espaço vital. No entanto, esse
processo de construção do conceito ainda não preenche a sua essencial
característica, ou seja poder formular-se em proposições sintéticas a priori.
De facto simetria e reciprocidade ainda não chegam para preencher o
significado de uma legislação externa que o direito inevitavelmente é. A
perspectiva que sustenta a construção tem que ser inteiramente da terceira
pessoa, já que, como vimos, as proposições éticas da primeira pessoa
produzem necessariamente uma configuração assimétrica do espaço ético.
Ora o elemento externo que falta na construção do direito para assegurar a
simetria e a reciprocidade no espaço jurídico é a coerção. Por isso mesmo
Kant observa que não é tanto o conceito de direito que analiticamente
possibilidade saber o que este é, mas antes a coerção recíproca e igual,
submetida às leis da liberdade.
Se pudesse continuar a linha argumentativa que até agora desenvolvi,
tentaria mostrar que as várias deduções que Kant desenvolve na sua
filosofia do direito correspondem à definição de um sistema lógicotranscendental de coerção recíproca do ponto de vista externo da terceira
pessoa.
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