A Primeira Pessoa na Ética e na Filosofia do Direito de Kant António Marques Universidade Nova de Lisboa Recentes e relevantes comentários da filosofia prática de Kant têm vindo a focar explicita ou implicitamente temas relativamente pouco considerados na história do comentário a essa parte da sua filosofia, mas de importância crucial numa avaliação global da ética e da filosofia do direito em Kant. Refiro-me a temas como o do solipsismo ou da incerteza ética, esta última inerente à dedução e prova de uma legislação interna, núcleos da filosofia prática kantiana. Mais à frente aprofundarei o que entendo neste contexto por incerteza ética, começando desde já por esclarecer que não consiste em colocar em dúvida o facto da lei moral, provada, nomeadamente na segunda Crítica como o facto da razão, expressa na primeira pessoa, mas sim em colocar em dúvida a possibilidade de saber se o outro age realmente por respeito à lei moral. Antecipo igualmente que aceito a existência desse tipo de incerteza, assim caracterizada, e que esta, longe de prejudicar o sistema da racionalidade prática de Kant, afirma-se ao contrário como parte integrante daquele. Para exemplificar esta discussão começo por mencionar duas contribuições muito recentes, as de Paul Guyer, “Proving Ourselves Free” e de Valério Rohden, “Neue Überlegungen zu Kants Kritik an einem praktischen Solipsismus”1. Apresentarei com brevidade os pontos de vista essenciais destes autores, com o objectivo de circunscrever mais facilmente os problemas que derivam da temática da incerteza ética e apresentar de forma mais clara a solução que proponho. Rohden argumenta contra a atribuição de solipsismo à ética kantiana por parte de Wolfgang Kuhlmann e ainda contra a concepção defendida por Höffe, cuja posição é contrária à de Kuhlmann. Para Höffe a filosofia moral kantiana assenta, por assim dizer, em três grandes pilares: o da discursividade (a razão é logos), o da democracia e o do Estado de direito. Para este autor, eliminar-se-ia assim qualquer tentativa de ver na ética kantiana uma filosofia assente nos indivíduos tomados em si isoladamente. Deste modo Höffe pretende defender Kant da falsa interpretação solipsista, já que a sua filosofia se constrói sobre os pilares discursivos e colectivos mencionados e não sobre a consciência isolada dos indivíduos. Não existe pois à partida qualquer elemento solipsista na filosofia moral kantiana. 1 Ambos os ensaios publicados em Recht und Frieden in der Philosophie Kants, Akten des X. Internationalen Kant- Kongresses, Bd. 1 (Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 2008) 1 Já Kuhlman defende a tese contrária: a filosofia prática de Kant é dirigida apenas ao indivíduo singular e não a uma comunidade plural. Desse modo é a própria qualidade racional prática da filosofia kantiana que se acha em risco, já que aquilo que a deveria qualificar precisamente como racionalidade é o seu carácter colectivo. Kuhlmann designa a racionalidade prática de Kant como razão monológica contra uma concepção de comunidade comunicacional que se deve encontrar no cerne daquela racionalidade. Face a estas interpretações antagónicas, mas convergentes no ponto em que ambas concebem a racionalidade prática como essencialmente discursiva e originalmente dirigida a uma comunidade de sujeitos, Rohden propõe uma nova interpretação da razão pura prática “como razão não-solipsista”, mas em contraste com os autores referidos, e por meio de uma investigação do sentido dos termos Selbstsuch e Selbstliebe, afasta o primeiro elemento a favor do segundo, mostrando que o amor de si e o amor do próximo são princípios de uma boa vontade e por isso o conceito de razão prática não pode incluir qualquer elemento ou qualidade que se apresente (atendendo ao significado da Selbstsuch) como uma indiferença pela sorte dos outros. Rohden defende então, a meu ver justificadamente, que “na realidade Kant constituiu completamente uma conexão entre ligação intersubjectiva e razão pura a priori. Os seus conceitos de fim e de autonomia introduzem uma conexão interna entre os conceitos de adequaao à lei e o de uma comunidade, noutros termos, de uma pluralidade de seres racionais coexistentes”2. Porém veremos que é precisamente o tipo de legalidade necessária à coexistência de seres livres e racionais o ponto que mais problemas suscita, mesmo para quem aceita como válida a prova da existência de uma legislação interna. No que respeita à interpretação de Paul Guyer, encontramos nesta uma afirmação clara da existência de uma assimetria entre o facto de cada um provar a si mesmo que é livre, em enunciados da primeira pessoa, e a inexistência de prova autêntica da liberdade nos outros, de um ponto de vista da segunda ou da terceira pessoas. Para compreender melhor a posição de Guyer convém partir do problema da imputação, ou seja da atribuição a outro da real autoria (e responsabilidade) deste ou daquele acto, o que, na sua opinião, não é resolvido cabalmente por Kant, na medida em que este concede existirem “graus de imputabilidade” e factores naturais a que não é possível escapar na avaliação do grau de autonomia com que cada um age. Segundo Guyer, “[A]quilo que as obras sobre filosofia moral do Kant da maturidade sugerem é na verdade a posição mais complexa, segundo a qual para o objectivo da tomada de decisão na 2 Valério Rohden, “Neue Überlegungen zu Kants Kritik an einem praktischen Solipsismus”, in: Recht und Frieden in der Philosophie Kants, Akten des X. Internationalen Kant- Kongresses, Bd. 1 (Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 2008), 273. 2 primeira pessoa e também para a auto-avaliação moral, temos com efeito que provar a nós mesmos a realidade da nossa liberdade transcendental, mas que para a avaliação e mesmo a punição de actos dos outros, nós não podemos provar a sua liberdade transcendental e até mesmo que será para nós preferível moralmente pensar a sua liberdade em termos empíricos e por isso como algo que pode ser limitado e comprometido por condições empíricas. Os escritos morais de Kant tendem pois a fornecer argumentos pelos quais cada um de nós prova a si mesmo ou a si mesma ser livre de um ponto de vista transcendental, mas não tenta fornecer argumentos pelos quais possamos provar a cada um dos outros ser livre desse ponto de vista”3. Guyer prossegue na exploração dessa assimetria e argumenta que aceitando tal assimetria, tal deverá ter consequências para o problema da imputabilidade. Uma citação que faz das lições Vigilantius sobre Ética parece decisiva a este respeito: “é impossível julgar-se a si mesmo ou aos outros internamente, ou por um juíz instituído pela lei pública ou in statu privato; pertence somente ad forum divinum, mas também cria para nós a dúvida benevolente de adoptar uma perspectiva muito tolerante em relação actos especificamente ilegais dos outros homens e julgá-los com clemência”4 (Ak. 27, 704, cit. por Guyer, p. 136). Não posso alongar-me mais nas considerações sobre estas duas relevantes contribuições para o estatuto do sujeito ético e o problema da sociabilidade e comunicabilidade na filosofia prática de Kant. Delas retiro o seguinte: 1- Concordo com ambos quanto ao primeiro objecto da filosofia prática ser o indivíduo qua sujeito ético e não uma razão discursiva ou socialcomunitária. 2- Admito a existência de um elemento de incerteza ética em Kant e, nesse sentido, não há na circunscrição da legislação interna, uma solução evidente para o problema crucial da coexistência regulada de liberdades. Embora nunca empregue os termos “incerteza ética”, no sentido em que aqui os emprego, a exploração feita por Guyer da assimetria entre primeira e terceira pessoas faz sentido e é importante para o esclarecimento dessa problemática. No entanto dessa assimetria ele não retira um conceito possível de coexistência de liberdades. Ou seja, se aceitamos a existência 3 Paul Guyer, “Proving Ourselves Free”, in: : Recht und Frieden in der Philosophie Kants, Akten des X. Internationalen Kant- Kongresses, Bd. 1 (Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 2008), 121-2. 4 V-Mo/Mron, AA 27: 704, cit. por Guyer, p. 136. As citações de Kant são feitas com referência à edição dos Gesammelte Schriften, ed. vols.1-22, Preussische Akademie der Wissenschaften, vol. 23 Deutsche Akademie der Wissenshaften, Berlin, a partir do vol. 24, Akademie der Wissenschaften, Göttingen, Berlin 1900 segs. A forma de citação e as siglas utilizadas seguem os critérios da Kant-Gesellschaft. Utlizamos as traduções para a língua portuguesa de Valério Rohden, no caso da Crítica da Razão Prática (São Paulo, Martins Fontes, 2003) e de José Lamego, no caso de A Metafísica dos Costumes (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005). Traduções de outras obras são minhas. 3 de uma assimetria intransponível, colocada naqueles termos, quais as consequências para a formação de sociedades de seres livres e racionais? 3- Como referi atrás, o elemento de incerteza que reconheço na filosofia prática de Kant não consiste em colocar-se em dúvida se os outros são sujeitos de acções com qualidade ética, mas sim se é possível (na perspectiva da terceira pessoa) conhecer fundadamente algo ou possuir um critério de evidência sobre a natureza dessas acções, nomeadamente, se elas têm origem no dever e, dessa forma, são geradas autonomamente. No entanto, este é um problema que se coloca no plano epistemológico e não no plano prático. Aliás, de um ponto de vista propriamente cognitivo ou teórico, também não é possível ao próprio sujeito provar em si mesmo a existência da lei moral. Ou seja, a dedução da lei moral não é a mesma da que é praticada na primeira Crítica, a respeito das categorias do entendimento. Mais à frente retomar-se-á este decisivo tópico. 4- O reconhecimento desse elemento de incerteza não coloca em perigo a consistência interna do sistema da razão prática, pelo contrário é até necessário, na medida em que é o seu reconhecimento que pressupõe a necessidade de uma legalidade externa universal para a regulação da coexistência de seres livres e racionais. Este é um desenho ainda muito esquemático do nosso problema, mas no que se segue é possível aprofundar e esclarecer alguns dos tópicos atrás referidos. Quando na Metafísica dos Costumes (1797) Kant insiste que a diferença entre os domínios da ética e do direito assenta numa dualidade de legislações, uma legislação interna e uma legislação externa, correspondentes a cada um daqueles domínios, estava, a meu ver, não apenas a propor uma separação incontornável entre ética e direito, mas sobretudo a resolver um problema que lhe ficou da dedução da lei moral e da correlata figura do sujeito moral auto-legislador. Esse problema é o da coexistência regulada de liberdades, cuja existência qua autonomias, individualmente consideradas, ficou provada nas gandes obra sobre ética, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788). Estas pressupõem, na perspectiva da primeira pessoa, uma indubitável legislação interna, mas como já sugeri, esta não permite por si só a constitução dessa coexistência regulada. É de sublinhar, desde já, que a dedução da liberdade positiva ou autonomia requer um tipo de prova que não tem paralelo com a prova da validade dos juízos sintéticos a priori teóricos. Como se verá melhor, por contraste com as provas da razão teórica, o que se passa no domínio prático é antes de mais a afirmação, na primeira pessoa, de uma vontade que necessariamente, e em todas as ocasiões, actua “não simplesmente submetida à lei, mas de tal modo submetida que deve ser considerada 4 legisladora”5. Esta afirmação pode ser vista como suficiente prova da lei interna no domínio prático? Na segunda Crítica ela corresponde à afirmação ou expressão do célebre factum da razão. Um ponto decisivo acerca da argumentação de Kant na Crítica da Razão Prática diz respeito ao esclarecimento do tipo de dedução das proposições fundamentais da razão prática, isto é, nas suas próprias palavras, à “justificação da sua validade objectiva e universal”6 . É possível encontrar na segunda Crítica essa argumentação que visa a validade objectiva de princípios, a exemplo do que foi feito na primeira Crítica? Não sendo possível falar em dedução, pelo menos no sentido da razão teórica, de um factum, “no qual a razão pura deveras se prova em nós praticamente, a saber, a autonomia”7, a estratégia argumentativa de Kant passa por: em primeiro lugar confrontar o tipo de prova do princípio moral em nós com a dedução dos princípios a priori da razão teórica e, em segundo lugar, deduzir a liberdade como autonomia através da equivalência do factum ao próprio conceito de autonomia. Com efeito, nas suas palavras, a Analítica “mostra ao mesmo tempo que este factum vincula-se indissoluvelmente à consciência da liberdade da vontade, antes, é idêntico a ela”8. Neste ponto é possível defender que, na segunda Crítica, Kant economiza na demonstração da existência de uma lei moral relativamente à Fundamentação. De facto, agora ele introduz na demonstração um factum indubitável da razão e, nessa medida, a dedução adquire uma característica singular: existe um facto cuja prova não é mediatizada por qualquer estrutura. Pelo contrário, essa imediatez da prova é expressa necessariamente na primeira pessoa sob a forma de proposições do tipo: “eu devo agir assim”. Henry Allison defende a existência de um turning point decisivo na dedução da lei moral na segunda Crítica, por oposição à dedução na Fundamentação. Tendo Kant abandonado “a tentativa de estabelecer a natureza prática da razão pura na base de qualquer premissa não moral, assim, em vez de começar com o conceito de agente racional e mover-se deste para a pressuposição de liberdade e daí, mediante a Tese da Reciprocidade, para a lei moral, Kant move-se naquela obra, directamente da consciência da lei moral como ‘facto da razão’ para a natureza prática da razão pura e a realidade da liberdade transcendental. A meu ver, não é tanto a existência de um turning point na dedução da segunda Crítica que se verifica (sobretudo não se percebe a que tipo de “premissa não moral” se refere Allison), mas a plena afirmação por parte de Kant da imediatez da prova do factum da razão cuja “aspecto” externo apenas é perceptível na 5 GMS, AA 04: 431. 19-21. 6 KpV, AA 05: 46. 21 KpV, AA 05: 42. 4-6 8 KpV, AA 05: 42. 8-10 7 5 expressão da primeira pessoa. Consideremos ainda com mais pormenor a dedução kantiana. No primeiro livro da segunda Crítica, na anotação dedicada à “dedução das proposições fundamentais da razão prática pura”, Kant compara a tarefa de dedução no domínio prático com o que se passa no domínio teórico e assume que Com a dedução, isto é, com a justificação da sua validade objectiva e universal e com a perspiciência da possibilidade de uma tal proposição sintética a priori, não se pode esperar avançar tão bem como se deu com as proposições fundamentais do enendimento teórico puro. Pois estas se referiam a objectos de experência possível, a saber a fenómenos, e podia-se provar que somente pelo facto de que estes fenómenos são submetidos às categorias em conformidade com aquelas leis, podem ser conhecidos como objectos da experiência, por conseguinte que toda a experiência tem de ser conforme a essas leis. Com a dedução da lei moral não posso, porém tomar um tal caminho. (KpV, AA 05: 46. 21-3) Na verdade, seguindo a argumentação neste texto verifica-se que aquilo que está em causa é mais do que tomar um outro caminho para um outro tipo de dedução e percebe-se na seguinte passagem alguma dificuldade na sua caracterização, o que afinal resulta da estratégia assumida de partir do factum da lei moral para a liberdade, fazendo equivaler as duas coisas. A seguinte passagem é uma chave para a compreensão da prova da liberdade a partir do factum da razão prática: “Logo a realidade objectiva da lei moral não pode ser provada por nenhuma dedução, por nenhum esforço da razão teórica, especulativa ou empiricamente apoiada, e, pois, ainda que se quisesse renunciar à certeza apodíctica, (nem) ser confirmada pela experiência e deste modo ser provada a posteriori e, contudo, é por si mesma certa. Mas algo diverso e inteiramente paradoxal substitui esta inutilmente procurada dedução de uma imperscutável faculdade que nenhuma experiência tinha de provar, mas que a razão especulativa (….) tinha de admitir pelo menos como possível, ou seja a dedução da liberdade, da qual a lei moral, que não necessita ela mesma de nenhum fundamento que a 6 justifique, prova não apenas a possibilidade mas a efectividade em entes que reconhecem essa lei como obrigatória para eles” (KpV, AA 05: 47. 20-7). Passagem crucial, na qual Kant insiste que não existe prova para o factum da lei interna. Ela habita no sujeito, antes de qualquer argumentação justificativa e impõe-se-nos como algo inescapável. Já se sublinhou que essa interioridade moral não é objecto de descrição ou prova, mas sim exprimível na primeira pessoa (em formas diferentes do imperativo categórico do tipo, “devo agir deste modo e esta acção possui valor universal”). Pensemos como a dedução dos princípios da razão teórica fazia apelo à possibilidade dos objectos em geral, dados nas intuições a priori do espaço e do tempo. Nesse caso, o ponto de vista da primeira pessoa não é privilegiado: precisamente a representação de possíveis objectos segundo a forma de esquemas espacio-temporais a priori demonstra a validade objectiva de princípios sem os quais nenhuma experiência seria possível. Nessa medida qualquer juízo sintético a priori teórico não é exclusivamente do foro interno, já que a “matéria” espaciotemporal dos esquemas produzidos pela imaginação, que funcionam como uma espécie de anagrama dos conceitos puuros, são por definição representáveis por todos e cada um. Assim nenhuma assimetria lhe deve ser associada. Apenas a legislação do foro interno é gerador de assimetria entre primeira e terceira pessoas. É neste ponto que se encontra a ausência no juízo moral de um verdadeiro esquematismo dos conceitos, o qual era um elemento chave nos conhecimentos da razão teórica. Na verdade, de certa forma o esquema “externaliza” o conceito, mesmo o conceito puro. Kant procurou suprir esa ausência com um esquematismo por analogia que designou de “típica” da razão prática, mas não é este o lugar para desenvolver essa temática. A validade desta prova, que assenta nas propriedades dos enunciados na primeira pessoa, tem no entanto como consequência, como já foi suficientemente referido, a formação de uma assimetria irreversível entre o sujeito auto-legislador, que certifica pela sua própria acção a existência de uma vontade livre, e os outros sujeitos, relativamente aos quais nunca posso estar certo que actuem autonomamente. Uma dúvida, que não é eliminável relativamente ao conhecimento do que se passa noutras mentes no respeitante à respectiva liberdade interna não terá portanto solução no quadro da filosofia ética de Kant, a qual assenta precisamente na acção volitiva individual que, por definição, é sempre completamente interna. Porém essa condição da filosofia prática não nos deve afligir, já que a irredutível dúvida em relação ao que se passa nos outros não afecta a minha inabalável certeza do que se passa (ou passou) em mim, in foro interno. Além do mais, o princípio de acção por puro dever que começo por 7 exprimir da primeira pessoa é universalizável. A expressão “eu devo cumprir este contrato conscientemente assumido, independentemente da sua matéria”, adquire de imediato a forma “todos devem cumprir um contrato assumido conscientemente, independentemente da sua matéria”. Sem dúvida que cada sujeito pode formular uma máxima a que atribui valor universal e coerção (p. ex. o contrato que conscientemente assumi, devo cumpri-lo) e é razoável que os outros se submetam, eles também de forma igualmente livre, a essa regra que estou certo ser universal. Também é razoável supor que frequentemente, senão a maior parte das vezes, se processa com êxito a comunicação entre sujeitos capazes de exprimir actos de vontade determinantes de regras universais. No entanto a realidade da comunicação de proposições éticas (tipicamente aquelas que exprimem um dever fazer) não exclui e ultrapassa a situação de assimetria entre a minha experiência, que eu exprimo numa determinada proposição e a experiência dos outros, a que apenas me posso referir na terceira pessoa (tipicamente, “ele fez isto assim e assim por dever”) Desta forma devo reconhecer: 1. que a auto-coerção é completamente interna, isto é não pode ser determinada por qualquer elemento, mesmo que subjectivo 2. que é experimentada por cada indivíduo que a exprime na primeira pessoa e 3. que apenas posso referir-me a essa mesma experiência dos outros na perspectiva da terceira pessoa. Segue-se então que esta assimetria coloca problemas, nomeadamente quanto à efectiva autonomia presente nas acções do outro, assim como relativamente à característica de imputabilidade9 dessas acções. No entanto esta dificuldade na filosofia ética de Kant quanto ao que poderíamos designar como assimetria constitutiva da racionalidade prática, não coloca em perigo a coerência da sistemática que esse programa deve exibir, atendendo tanto ao domínio ético, como ao do direito. A partir daqui é possível aprofundar mais as principais linhas já enunciadas e evidenciar a forma como a mencionada assimetria possui ela própria um papel sistemático. Comecemos por dirigir a nossa atenção para o que é a peça central da argumentação kantiana da segunda crítica, a saber a identificação entre factum da razão e a “consciência da liberdade da vontade” formulada na dedção da segunda Crítica. É na autodeterminação da vontade pela regra interna que o agente racional se apercebe de si como ser livre. Nessa determinação da vontade é a simples forma desta que é visada e não o seu possível objecto. Não é difícil exemplificar esta diferença entre forma e conteúdo da vontade e assim perceber como se trata 9 É no entanto importante realçar que o problema do juízo de imputabilidade (um juízo tipicamente na segunda ou terceira pessoas), ao avaliar a qualidade de uma acção, em função da existência ou ausência de liberdade do sujeito dessa acção, é diferente do problema da demonstração da existência nos outros de uma lei interna. Por outras palavras, esse juízo não “espera” por saber se o outro agiu por dever ou simplesmente de acordo com o dever ou ainda se apenas simulou a primeira hipótese. É também interessante notar que, neste sentido, o juízo de imputabilidade, constantemente aplicado nos tribunais, possui esencialmente uma natureza moral com consequências jurídicas directas. 8 de um critério simples, eficaz, para identificar o que podemos designar de acção autónoma. A necessidade ou sentimento de obrigação em cumprir uma promessa assumida sem constrangimentos físicos ou psicológicos, não depende do tipo de promessa formulada, por isso da matéria em causa, por muito louvável ou benéfica que se apresente aos olhos dos outros. A violação de um compromisso, de um contrato ou promessa, sem atender aos respectivos conteúdos, não deve ser permitida pura e simplesmente e, ao tomar consciência dessa obrigação, o sujeito eleva o que é aspecto simplesmente formal ao estatuto de lei objectiva (imperativo categoricamente formulado). O conteúdo da promessa, por muito que mereça a nossa simpatia e nos motive intensamente ao seu cumprimento, não justifica, por si só, o sentimento de obrigação que experimentamos perante a simples forma da vontade ou melhor da simples forma em que ela se expressa. É o que Kant explica nos seguintes termos: “Ora se dizeis a alguém que ele jamais deve prometer algo enganosamente, então esta é uma regra que concerne meramente à sua vontade; os objectivos que o homem possa ter podem ser alcançados por ele ou não; o simples querer é que deve ser determinado de modo completamente a priori por aquela regra.” (KpV, AA 05: 21. 4-8) Neste caso, é a vontade de um agente racional que se auto-determina pela regra formulada por ela mesma, vontade, sem considerar a matéria associada à regra (neste caso proibir-se a si mesma de violar a promessa que ela própria quis e não esta ou aquela promessa em concreto que é visada pela vontade). Esta determinação da vontade pela lei interna que é prática e incondicionada é uma das faces de uma mesma moeda, em que a outra face é a liberdade. “Portanto liberdade e lei prática incondicionada referem-se reciprocamente”10. Este é um ponto crucial da filosofia ética kantiana, ou seja aquele momento em que se estabelece uma reciprocidade perfeita entre a determinação da vontade pela simples forma da regra e a liberdade. Mas é tanto mais crucial quanto nos apercebemos que essa reciprocidade somente pode ser consciencializada na perspectiva da primeira pessoa. Doutra forma não seria possível a consciência (experiência) da liberdade. Deve-se insistir neste ponto e será relevante uma reflexão sobre o que pode ser aqui designado como pragmática da primeira pessoa na ética de Kant, que aqui não é possível desenvolver. Efectivamente cada um torna-se consciente da lei moral: “logo é a lei moral, da qual nos tornamos imediatamente conscientes (tão logo projectamos para nós máximas da vontade”11. O carácter imediato dessa 10 11 KpV, AA 05: 29. 22-23. KpV, AA 05: 29. 32-33. 9 consciência apenas pode ter lugar num ser que projecte para si máximas da vontade. Voltaria agora ao tópico do que designei como incerteza ética em Kant, o qual precisa ainda de maior esclarecimento. Desde a Fundamentação, passando pela segunda Crítica até à Metafísia dos Costumes, Kant dedica os seus maiores esforços, quer na argumentação teórica, quer na criação de exemplos da concreta vida ética, ao reconhecimento dos actos cometidos por dever relativamente aos actos em que, pelo menos, se mistura alguma inclinação e por isso são contaminados de heteronomia. A intransponível dificuldade em, nalguns casos, distinguir acções cometidas por dever de acções efectuadas de acordo (ou em conformidade) com o dever dificulta em grande medida a identificação das primeiras como exemplos de pureza da razão prática e detendo o monopólio do valor moral. Para a boa compreensão deste ponto central de discussão da ética de Kant recorremos a duas passageens chave da Fundamentação, no início respectivamente das primeira e segunda secções: “Passarei por cima de todas acções que já são reconhecidas como contrárias ao dever, mesmo que elas possam ser úteis para este ou aquele fim; porque nestes casos o problema de saber se poderiam ter sido realizadas com origem no dever nunca se levanta, a partir do momento que até entram em conflito com aquele. Também ponho de lado acções que estão realmente em conformidade com o dever, mas em relação às quais os seres humanos não possuem de imediato uma inclinação e que eles ainda executam porque são impelidos a fazê-lo através de outras inclinações. Na verdade, neste caso é fácil distinguir se uma acção em conformidade com o dever é feita com origem no dever ou a partir de um objectivo de interesse pessoal. Por exemplo é certamente conforme ao dever que o dono de uma loja não sobrecarregue um cliente inexperiente e que, por ocasião de um bom negócio ou transacção, um negociante prudente não exagere os preços, mas que mantenha um preço fixo para todos, de tal modo que uma criança possa comprar-lhe coisas como as outras pessoas; mas isto não chega de modo algum para acreditarmos que o negociante actuou desta forma por dever e por princípios básicos da honestidade; a sua vantagem exigia que assim actuasse; não pode ser assumido aqui que ele tenha, além disso, uma inclinação imediata 10 para com os seus clientes, como se fosse por amor destes, de tal forma que não deu preferência a um em detrimento de outro em matéria de preço. Assim a acção não foi feita, nem por dever, nem por uma inclinção imediata, mas meramente por objectivos de interesse próprio (GMS, AA 04: 397.11-22) […] Praticar a beneficência quando se pode é um dever e para além disso há muitas almas tão afinadas pela simpatia que, sem qualquer outro motivo de vaidade ou interesse próprio, encontram uma íntima satisfação em espalhar alegria à sua volta e podem-se comprazer na satisfação de outros, na medida em que é a sua própria obra. Mas eu afirmo que, em tais casos, uma acção deste tipo, pelo facto de ser conforme à razão é tão louvável quanto possível, mas não possui uma verdadeiro valor moral, encontrando-se no mesmo plano das outras inclinações, por exemplo a inclinação para a honraria […] (GMS, AA 04: 398. 7-15) Nesta passagem sulinhe-se a existência de acções e perfis morais pertencentes a uma categoria que se situa entre a prática do dever e a mera conformidade ao dever, como é o caso do negociante. A existência de um perfil moral como o daquele que pratica a beneficência introduz um espaço estreito e subtil entre o dever e a conformidade a este, tornando muito mais difícil o reconhecimento na perspectiva da segunda ou da terceira pessoa que tal acção ou obra têm origem no puro dever e por isso possuem valor moral. Aproximamo-nos rapidamente de uma posição que abre a porta à incerteza quanto à qualidade ética da acção do outro. Essa natureza estrutural da incerteza entra definitivamente na argumentação de Kant na seguinte passagem chave da FMC: “De facto é absolutamente impossível, por meio da experiência, provar com completa certeza, um único caso no qual a máxima de uma acção, de qualquer forma em conformidade com o dever, se estabelecesse simplesmente em bases morais e sobre a representação de seu dever. É verdade que algumas vezes acontece que, com a mais fina auto-observação, nós não encontramos nada para além do fundamento moral do dever que podia ser suficientemente poderoso para nos mover em direcção a esta boa acção ou a este grande sacrifício; mas daí não se pode inferir com certeza que nenhum impulso de amor 11 próprio, disfarçado sob a ideia imaginada desse dever, não era afinal a causa determinante do querer” (GMS, AA 04: 407.1-9) A irredutibilidade da incerteza ética, fundada na assimetria entre interno e externo ou entre perspectivas da primeira e da terceira pessoa, conforme as considerações realizadas, tem significado e consequências de tipo sistemático para a teoria da razão prática. Gostaria de propor uma avaliação do que podem ser essas consequências. Facto fundamental é o que a própria assimetria entre perspectivas obriga a reconhecer: não é possível uma coerção exercida na minha interioridade ética exercida por outro. Por outras palavras, nenhuma outra pessoa pode obrigar-me a actuar por dever. Essa é talvez a consequência mais perturbadora que afectará necessariamente a formação de uma coexistência de liberdades segundo regras, ou seja a constituição de uma sociedade de seres livres e racionais. Porém, dados os recursos sistemáticos da razão prática, essa condição não deve ser compreendida como uma falha que deve ser preenchida com um elemento ad hoc. Pelo contrário, se a ética kantiana é uma ética da interioridade, da auto-coerção e da primeira pessoa, ela deve perservar-se como tal no plano da sociabilidade. É por isso que a própria sociabilidade só pode corresponder ao conceito de uma coexistência de liberdades, cuja interioridade moral permanece intocável. Dessa forma, o sistema da razão prática de algum modo completa-se quando se gera uma lógica recíproca de coerções entre sujeitos. Antes (de um ponto de vista lógico) dessa organização de coerção recíproca aquilo que existe é o conjunto de sujeitos morais com a respectiva legislação interna, intocável pelo outro e a que este não tem qualquer acesso no plano da experiência. Essa espécie de distância intransponível que a impossibilidade de uma coerção externa sobre o meu interior ético confirma, é atestado de forma clara na seguinte passagem da Metafísica dos Costumes: “Um outro pode, na verdade, coagir-me a fazer algo que não é um fim meu (mas apenas meio para o fim de outrem), mas não pode coagir-me que eu o converta num fim meu, e, bem entendido, eu não posso ter nenhum fim sem fazer uso do meu. Isto seria uma contradição em si mesma: um acto de liberdade, que ao mesmo tempo, porém, não é livre. – Mas propor-se a si próprio um fim, que é simultaneamente dever, não é contradição alguma: porque, nesse caso, coajo-me a mim próprio, o que é de todo, compatível com a liberdade” (MS, AA 06: 381. 21-35). 12 O que é mais notável nesta passagem é o sublinhar da total incapacidade de um sujeito determinar, nomeadamente coagir, outro na sua interioridade moral. Kant refere-se de facto a uma zona intocável, a da lei moral, a qual se subtrai como nenhuma outra a determinações efectivas, à influência externa. Daí que possa ser dito que A coage psicologicamente B, por exemplo, e que essa coacção pode se pode traduzir das mais variadas formas, mas não fará sentido dizer que A coage B de modo a que este forme em si um dever ético. Há pois em cada um de nós, aquilo a que se poderá chamar uma interioridade moral intocável, a qual não pode desligarse da existência da radical assimetria entre a consciência do factum da lei de autonomia na primeira pessoa e a atribuição desse factum ao sujeito do ponto da terceira pessoa. Supunhamos que, sob um ponto de vista da terceira pessoa, eu tinha a capacidade de verificar que o outro age por dever e não apenas conforme ao dever, o que, como se viu, não é possível. Essa capacidade, que passaria então a ser reconhecida por cada um a cada um, ou por cada a um a todos os outros, anularia a assimetria entre sujeitos, já que deixaria de existir diferença entre a a consciência na primeira pessoa do factum da lei de autonomia e a atribuição desse factum ao sujeito do ponto de vista de uma terceira pessoa. A consequência seria a constituição de uma comunidade de sujeitos sem uma zona intocável de interioridade moral, ali onde a lei moral, a sua consciencialização, sob a forma do dever, o sentimento de respeito e o acto de linguagem na primeira pessoa (: “eu quero actuar assim em todas as circunstâncias e independentemente da matéria factual em causa”), seria conhecida pelos outros. Seria filosofiamente muito interessante aprofundar as consequências de uma sociedade sem assimetria, isto é, sem interioridades morais intocáveis. Por agora gostaria apenas de me deter um pouco na qualificação dessa comunidade de sujeitos éticos cuja sociabilidade obriga a coexistir: A lei da coerção recíproca que está necessariamente de acordo com a liberdade de cada um sob o princípio da liberdade universal é, de certo modo, a construção daquele conceito, quer dizer, algo como a sua representação na pura intuição a priori, por analogia com a possibilidade dos movimentos livres dos corpos sob a lei da simetria daacção e da reacção. Mas, tal como na matemática pura não se podem inferir directamente do conceito as propriedades do seu objecto, mas só podem descobrir-se mediante a construção do conceito, não é tanto o conceito de Direito o que possibilita a 13 exposição deste, sendo-o, outrossim, a coerção recíproca e igual, submetida a leis universais, em conformidade com o conceito de Direito. (MS, AA 06: 232-233). A analogia que Kant estabelece entre a coerção recíproca dos sujeitos no espaço jurídico e a lei da igualdade da acção e da reacção dos corpos (correspondente à terceira analogia da experiência da primeira Crítica) é digamos esquematizada num procedimento, também ele análogo ao da construção de um conceito matemático ou da geometria. Na primeira Crítica, a prova do carácter sintético das proposições matemáticas consistia na construção do conceito e sobre a matéria formal da sensibilidade (espaço e tempo). Por exemplo, a proposição segundo a qual num triângulo um ângulo é sempre inferior à soma dos outros dois ou a simples operação da aritmética em que se obtém 12 a partir, p. ex., de 6+6. Assim também o conceito de direito se presta a uma construção, na qual é possível exibir uma relação simétrica perfeita entre forças (neste caso entre liberdades) que se confrontam e devem coexistir num mesmo espaço vital. No entanto, esse processo de construção do conceito ainda não preenche a sua essencial característica, ou seja poder formular-se em proposições sintéticas a priori. De facto simetria e reciprocidade ainda não chegam para preencher o significado de uma legislação externa que o direito inevitavelmente é. A perspectiva que sustenta a construção tem que ser inteiramente da terceira pessoa, já que, como vimos, as proposições éticas da primeira pessoa produzem necessariamente uma configuração assimétrica do espaço ético. Ora o elemento externo que falta na construção do direito para assegurar a simetria e a reciprocidade no espaço jurídico é a coerção. Por isso mesmo Kant observa que não é tanto o conceito de direito que analiticamente possibilidade saber o que este é, mas antes a coerção recíproca e igual, submetida às leis da liberdade. Se pudesse continuar a linha argumentativa que até agora desenvolvi, tentaria mostrar que as várias deduções que Kant desenvolve na sua filosofia do direito correspondem à definição de um sistema lógicotranscendental de coerção recíproca do ponto de vista externo da terceira pessoa. 14 15