UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DE CONCEITOS EM AULAS DE CAMPO Tatiana Seniciato1 Osmar Cavassan2 1 Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência/UNESP/Bauru/ [email protected] 2 Departamento de Ciências Biológicas/UNESP/Bauru/ [email protected] Resumo A orientação deste estudo fundamenta-se nas pesquisas sobre a formação de conceitos e suas implicações nos processos de ensino e de aprendizagem em ciências. Para análise dos dados obtidos em uma aula de ciências desenvolvida em um ecossistema terrestre natural, utilizou-se como referencial as teorias associacionistas e organicistas (Pozo, 1998), evidenciando-se os aspectos quantitativos e qualitativos envolvidos na aprendizagem. Objetivou-se com a força explicativa destes pressupostos, auxiliar em uma compreensão fundamentada do postulado pelo senso comum que “os alunos aprendem melhor na prática”. Conclui-se que embora as teorias aqui utilizadas nos assegurem que os conceitos científicos são mais facilmente desenvolvidos, ou desenvolvidos de uma maneira considerada satisfatória, a partir de situações de ensino de ciências nas quais os fenômenos se apresentam de forma concreta e há uma maior quantidade de estímulos, elas não o fazem quando se trata de determinar ou identificar o processo mental que corresponderia à aprendizagem. Palavras-chave: Formação de conceitos científicos, aulas de campo. Abstract This paper is based on researches about concept development and its implications on teaching and learning processes in science. In order to analize data obtained in a science class developed in a natural terrestrial ecosystem, it has been used Pozo’s (1998) theoretical framework, by becoming evident the qualitative and quantitative aspects involved in learning. It aims to help with a wellfounded comprehension of the common sense that “students learn better in practical situations”. It follows that, although these presented theories assure that scientific concepts are easely developed, or developed in a proper manner, from teaching situations in which phenomena are given in a concrete way and there is a bigger amount of stimulus, they don´t work in terms of determing or identifying the mental process that would correspond to learning. Keywords: Scientific concepts development, field class. UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DE CONCEITOS EM AULAS DE CAMPO [...], no momento em que a criança toma conhecimento pela primeira vez do significado de uma nova palavra, o processo de desenvolvimento dos conceitos não termina, mas está apenas começando. L.S. Vigotski,. A construção do pensamento e da linguagem. 2001. p.250 A orientação deste estudo fundamenta-se nas pesquisas sobre a formação de conceitos e suas implicações nos processos de ensino e de aprendizagem em ciências. Em revisão das inúmeras teorias, em psicologia, sobre a formação de conceitos, podemos levantar algumas orientações de pesquisa que, conseqüentemente, postulam sobre como se dá a formação de um conceito. De um lado, podemos indicar algumas teorias como a clássica, a do protótipo, a dos exemplares, denominadas por Pozo (1998 ) como teorias associacionistas, pois em maior ou menor medida baseiam-se na concepção de que os conceitos são formados pela associação de atributos comuns aos diversos eventos e objetos da realidade em categorias arbitrárias, ou ainda pela não pertinência a dada categoria dos atributos de um evento. São baseadas em critérios de similaridade, que por sua vez são definidos culturalmente, ou também pré-definidos nos contextos de pesquisa. De outro lado, estão as teorias organicistas ou de reestruturação (Pozo, 1998 ) para as quais a formação de conceitos não está condicionada exclusivamente a uma organização dos fatos da realidade, mas também, e principalmente, ao imperativo biológico que determina a forma como o organismo assimila e atribui significado a esses fatos, ao longo de seu desenvolvimento. Enquadram-se nessas teorias, por exemplo, a epistemologia genética de Piaget, os estudos sobre o desenvolvimento de conceitos de Vigotski e o modelo de aprendizagem significativa proposto por Ausubel. Não obstante haja divergências na forma de entender o processo de formação dos conceitos, as teorias associacionistas e organicistas parecem entender conceito como a construção de uma representação mental através de códigos verbais, ou imagens simbólicas dos objetos e fenômenos. Um conceito é, de forma geral, uma elaboração psíquica, uma abstração capaz de categorizar, relacionar e reagrupar os diversos fenômenos e/ou pessoas, possibilitando a compreensão do mundo e a interação com ele. Porém, enquanto para os associacionistas a aprendizagem dos conceitos deriva da interação imediata entre o sujeito e os objetos reais, para os organicistas, a aprendizagem dos conceitos possui também um caráter relacional com outros conceitos e experiências. Deste modo, em termos de ensino de conceitos, o processo de formação tem maior relevância nas práticas pedagógicas que sua definição, o que equivale dizer, em tese, que a adoção de modelos de aprendizagem enquadrados em uma ou outra teoria, deveria orientar também o modelo de ensino que possibilita tal aprendizagem, considerando-se ensino e aprendizagem como processos comportamentais distintos, mas inter-relacionados (Kubo & Botomé, 2001). As propostas de educação atuais fundamentam-se nas teorias organicistas, também denominadas de orientação construtivista pelos pesquisadores da educação. Entre os construtivistas, há praticamente consenso que a aprendizagem deve se dar a partir da adoção de modelos de natureza organicista, para os quais o sujeito é o principal responsável pela atribuição de significados e pela conceituação dos fenômenos, valendo-se para isto de processos dedutivos e de resolução de problemas. Muito menos claro está, entretanto, quais são as estratégias de ensino que permitiriam um processo de aprendizagem desta ordem. A confusão se apresenta não só pela não adoção de estratégias coerentes, mas muito freqüentemente no equívoco em se empregarem estratégias que privilegiam a indução e, portanto, de natureza associacionista (representada pelo ensino dito tradicional), sob o pretexto ou a intenção de serem construtivistas. Contribui ainda para este panorama a dificuldade de compreensão do jogo semântico que se observa entre as muitas teorias organicistas, na tentativa de nomear o processo psíquico pelo qual a aprendizagem dos conceitos ocorre, quer pela evidente dificuldade em se descrever um processo mental, quer por barreiras histórico-culturais dos contextos de pesquisa. Como exemplo podemos citar a tomada de consciência em Piaget, a compreensão súbita em Wertheimer e a aprendizagem significativa em Ausubel, todas citadas em Pozzo (1998). O maior problema discutido pelos associacionistas em relação às teorias da reestruturação, entretanto, não é de ordem semântica, mas sim metodológica e dá margem às seguintes questões: o quanto de experiência é necessário para que ocorra a compreensão súbita ou a tomada de consciência? É possível indicar em qual momento do processo de formação de conceitos ocorre a aprendizagem? Esta identificação está condicionada ao emprego de medidas adequadas, ou será sempre fruto da conclusão do pesquisador? Uma alternativa para este problema seria, então, o reconhecimento que no processo de aprendizagem estão envolvidas mudanças quantitativas, mensuráveis, e mudanças qualitativas. Neste sentido, Pozo (1998) propõe uma trégua entre os dois grandes enfoques da aprendizagem: a associação e a reestruturação. Valendo-se de estudos como o de Carey (apud Pozo,1998) sobre reestruturação fraca e forte, argumenta que na formação de conceitos, não é raro observarmos uma série de associações de estímulos e, portanto, mudanças quantitativas (para Carey, reestruturações fracas), levar ao salto qualitativo que corresponderia à aprendizagem ou à reestruturação forte. À medida que caminha em sua argumentação, Pozo (1998) reforça outro aspecto da aprendizagem, particularmente muito caro às teorias de Vigotski (2001) sobre o desenvolvimento de conceitos, caracterizado pelo processo de instrução e, por conseqüência, relacionado aos significados culturais e à linguagem. Assim, indo ao encontro da conciliação entre associação e reestruturação, proposta por Pozo (1998) para os processos de formação de conceitos e para a aprendizagem, buscou-se analisar um contexto de ensino do qual fazem parte a formação de conceitos e a instrução. Sem a preocupação de apontar o exato momento em que a aprendizagem ocorre, o estudo busca descrever o que foi observado na ação verbal dos alunos (faixa etária de 12 a 14 anos) em duas aulas de ciências sobre ecologia, desenvolvidas em locais diferentes: a sala de aula na escola e um ambiente natural com fragmentos de ecossistemas terrestres brasileiros. Alguns pressupostos foram eleitos para a escolha dos ambientes: 1) em se tratando de ecologia, a quantidade de estímulos é muito maior em um ambiente natural comparada a uma aula teórica, constituindo um requisito importante para as teorias associacionistas; 2) a faixa etária considerada para análise corresponde à fase do desenvolvimento mental na qual, para organicistas como Piaget (1978) e Vigotski (2001), a experiência sensorial e concreta é fundamental para a compreensão da realidade e para os processos posteriores de abstração e conceituação. A força explicativa destes pressupostos pode, enfim, auxiliar em uma compreensão fundamentada do postulado pelo senso comum que “os alunos aprendem melhor na prática” . O CONHECIMENTO CIENTÍFICO NA PERSPECTIVA PIAGETIANA A teoria Piagetiana reconhece três formas distintas de conhecimento, quais sejam: os conhecimentos adquiridos pela experiência física (advindos da experiências com os objetos e suas relações); os conhecimentos estruturados por uma programação hereditária, como é o caso de certas estruturas perceptivas (visão das cores, reconhecimento das dimensões espaciais etc); e, por fim, os conhecimentos lógico-matemáticos, que se tornam independentes da experiência e que, se no início procedem dela, não parecem tirados dos objetos como tais, mas das coordenações gerais das ações exercidas pelo sujeito sobre os objetos (Piaget, 1996). Entretanto, as formas superiores de pensamento tendem a se utilizar de todos estes conhecimentos para interpretar e agir sobre a realidade, justamente por haver entre eles relações de gênese e estrutura. O conhecimento experimental é tão importante para o desenvolvimento do homem quanto o conhecimento lógico-matemático e, mesmo sendo de origem exógena, está indissociavelmente a ele ligado porque, embora o conhecimento lógico-matemático tenha sua origem nas coordenações gerais da ação, e não há ação, assim como não há funcionamento, sem objeto. Outra razão que aponta para a compreensão da relação entre o conhecimento experimental e o lógico-matemático é o fato de as representações necessárias entre as experiências físicas e a formação do pensamento não serem provenientes de um quadro hereditário, porque não há idéias inatas, mas sim de um quadro lógico-matemático que permite o estabelecimento de relações, correspondências e medidas com experiências anteriores ou conceitos formados nos estágios precedentes. Do mesmo modo, pode-se falar que a experiência perceptiva dos sentidos não consiste em puro registro ou na simples ‘leitura’ da experiência, à medida que levam a uma organização do espaço pelo estabelecimento de relações ativas e progressivas, relações estas que podem ser simples transportes visuais de um elemento para outro ou relações complexas de transposições, que são a origem das proporções, das relações de tamanho e também de referências individuais. As relações são instrumentos lógicos e o estabelecimento de relações é lógico e até mesmo lógico-matemático (proporções e coordenadas), de tal maneira que, mesmo no nível perceptivo, o conhecimento físico supõe este quadro necessário de natureza lógico-matemática. (Piaget, 1996) Com base nesses pressupostos, supõe-se que a educação deva possibilitar à criança um desenvolvimento amplo e ao mesmo tempo dinâmico, desde os estágios iniciais do desenvolvimento até o das operações formais. No caso específico do ensino de ciências, as metodologias empregadas devem considerar os esquemas de assimilação da criança, propor atividades desafiadoras e, sobretudo, motivadoras, que provoquem desequilíbrios e reequilibrações, promovendo a descoberta e a construção do conhecimento em todas as suas formas. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO NA PERSPECTIVA DE VIGOTSKI Uma consideração importante acerca da natureza do conhecimento científico que é comum às teorias de Vigotski e de Piaget é que ambos defendem o fundamental papel da interação com objetos e da experiência na construção dos conceitos científicos. ...;de igual maneira, a assimilação do sistema de conhecimentos científicos também não é possível senão através dessa relação mediata com o mundo dos objetos, senão através de outros conceitos anteriormente elaborados. (Vigotski,2001,p.269) Vigotski (2001) defende a tese que o desenvolvimento de conceitos espontâneos é diferente do desenvolvimento de conceitos científicos, uma vez que para os últimos são necessários a instrução, o processo de ensino e a intervenção do professor. Critica Piaget argumentando que para este que os conceitos espontâneos em nada contribuem para a formação dos científicos, pois as formas superiores de generalização originam-se de substituições após a instauração do conflito: “Assim, o desenvolvimento se reduz essencialmente à exclusão”, dirá Vigotski (2001, p.257). Há em sua teoria maior preocupação com o processo, justamente por atribuir importância imprescindível ao ensino no desenvolvimento dos conceitos científicos, admitindo que entre a aprendizagem e o desenvolvimento de conceitos científicos existem muitas relações complexas. Se por um lado, em termos de pesquisa, o grande desafio é descobrir quais são essas relações, por outro, em termos de ensino, é necessário estabelecer práticas que possibilitem tais relações. Enquanto que para Piaget a aprendizagem depende de estágio de desenvolvimento mental no qual se encontra a criança, para Vigotski a aprendizagem deve anteceder o desenvolvimento mental, ou seja, a criança deve ser estimulada e auxiliada a aprender de modo a sempre superar suas potencialidades orgânicas. Daí decorre o desenvolvimento mental. Em sua perspectiva, os conceitos científicos só podem ser desenvolvidos em um processo de instrução, assistidos pelo professor, de maneira que a vivência escolar e a aprendizagem das diversas disciplinas formais são imprescindíveis não só às funções conscientizadas e arbitrárias, típicas do conhecimento científico, mas também ao desenvolvimento sadio das crianças. Reconhece a inter-relação entre a formação dos conceitos espontâneos e a formação dos conceitos científicos, pois acredita que o desenvolvimento dos conceitos científicos deve necessariamente apoiar-se em um determinado nível de maturação de conceitos espontâneos, porque o desenvolvimento dos conhecimentos científicos só se torna possível depois que os conceitos espontâneos da criança atingiram um nível próprio do início da idade escolar. Da mesma forma, afirma que o surgimento dos conceitos científicos não pode deixar de influenciar o nível dos conceitos espontâneos anteriormente constituídos, pelo simples fato de que não estão contidos na consciência da criança, não estão separados uns dos outros por barreiras de qualquer tipo e não fluem por canais isolados, mas estão em processos de interação constante (Vigotski,2001). Para reforçar a idéia da importância da experiência e da instrução no desenvolvimento dos conceitos científicos, há a hipótese que sua determinação se dá pela definição verbal primária a qual, nas condições de um sistema organizado, provém do concreto, do fenômeno, ao passo que a tendência do desenvolvimento dos conceitos espontâneos se verifica fora do sistema, ascendendo para as generalizações. Como sistema organizado, Vigotski entende o processo educativo. É dentro deste processo que podem ser verificados, na mesma criança, aspectos fracos e fortes dos conceitos científicos e espontâneos. A fraqueza dos conceitos espontâneos se manifesta na incapacidade para a abstração, para uma operação arbitrária com esses conceitos, enquanto sua aplicação incorreta ganha validade. A debilidade do conceito científico é seu verbalismo, que se manifesta como o principal perigo no caminho do desenvolvimento desses conceitos, na insuficiente saturação de sua concretude (Vigotski,2001). O DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA O programa faz parte de uma pesquisa sobre a utilização dos ecossistemas terrestres naturais brasileiros como ambientes para as atividades de ensino de ciências (Seniciato, 2002). Em uma escola municipal de Bauru/SP, foram desenvolvidas aulas teóricas de ecologia para alunos de três 6ª séries do ensino fundamental. Os conceitos estudados foram: biogeografia, os ecossistemas terrestres brasileiros, as relações entre os seres vivos e os fatores bióticos e abióticos de um ecossistema. Uma semana depois das aulas teóricas, foram desenvolvidas aulas de campo sobre os mesmos assuntos estudados em sala de aula. As aulas de campos aconteceram no Jardim Botânico Municipal de Bauru, local onde uma trilha ecológica atravessa fragmentos naturais de dois ecossistemas terrestres brasileiros: mata estacional semidecidual e cerrado. Nas duas oportunidades, as aulas foram desenvolvidas pela autora da pesquisa e duas monitoras se juntaram ao alunos para anotarem as observações espontâneas e as perguntas. Todos registros foram transcritos para categorização e análise. Embora as aulas de campo tenham sido desenvolvidas fora da escola, o caráter educativo da atividade foi sempre ressaltado pela escola e pela pesquisadora. Os alunos foram esclarecidos que não se tratava de uma atividade lúdica. IDENTIFICANDO ESTÍMULOS E CONSTRUINDO CONHECIMENTO CIENTÍFICO: QUANTIDADE E QUALIDADE NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS Na análise dos dados obtidos dos registros durante as aulas, foram excluídos os registros repetidos para fins de inclusão nas categorias. As categorias criadas baseiam-se na teoria de Piaget sobre a natureza do conhecimento científico. Como não é objetivo deste estudo confrontar teorias, a partir das categorias criadas são discutidas as construções do conhecimento científico nas perspectivas de Piaget e de Vigotski, bem como os aspectos quantitativos peculiares ao associacionismo, referentes às relações emergentes citadas por Rose (1993). Como as observações dos alunos, muitas vezes, sugerem a construção de um novo conceito a partir de mais de uma dimensão do conhecimento (o que é amplamente defendido por Piaget, já que mesmo o conhecimento perceptivo leva a uma organização do espaço pelo estabelecimento de relações, e as relações são instrumentos lógicos) foram categorizadas deixando explícitas as formas de conhecimento nelas contidas. Quadro 1 – Formas de conhecimento expressas durante as aulas. Forma de conhecimento presente na observação 1)Perceptivo Durante a aula teórica 2)Perceptivo/lógicomatemático (estabelecimento de relações de proporções) 3)Experimental Ah! O morro é rocha! (sobre o solo litólico da Mata Atlântica) Na minha casa tem ipê rosa. A paneira é linda, fica tudo rosinha! 4)Experimental/lógicomatemático O filhote de anta parece uma zebra! A onça parece um puma. É puma? É leopardo? (sobre a foto da onça parda) É um tipo de galinha, só que mais alta? (sobre a siriema) As raízes são tipo um cordão Durante a aula de campo Que cheiro gostoso! Que fresquinho! Ai que frio! Nossa! Está esfriando! Aqui já está mais frio! Tá mais friozinho! Aqui é mais quente! Tá ficando calor! Aqui tá frio, lá fora tava calor! O chão da entrada é arenoso. Por que as trepadeira é importante? Esta mata é uma Mata Atlântica? Olha o tamanho do buraco das formigas! Aqui no cerrado as árvores são tortas! Esta casca protege a árvore. (observação de uma aluno ao tocar em um caule de Qualea sp) Por que esta árvore começa em um tronco e só depois se ramifica? Olha! A trepadeira segurou a folha! A copa das árvores não deixa o sol passar! As folhas das árvores são diferentes! (sobre as árvores do cerrado) Olha o pequi que nós vimos na aula! A epífita encontrada aqui é a mesma encontrada em casa? Essa árvore torta vai cair? O cerrado é totalmente diferente, as árvores são menores. As árvores são mais tortas e mais finas. (sobre o cerrado) umbilical. A água não pode ser polinizador porque ela não pega mel. Lógico-matemático É porque está perto do mar? Ou não? (respondendo à pergunta sobre as diferenças entre a Mata Atlântica e a Amazônia) Por que tem muitas espécies parecidas? (resposta à mesma pergunta) Aqui é diferente. É mais seco. (referência ao cerrado) A copaíba é reta e alta para procurar o sol. Parece que as folhas aqui têm um verde diferente! Por que a cor das samambaias é diferente? Tem marrom e tem verde. (referência às folhas mortas e vivas das samambaias) Esta semente parece um helicóptero! Por que as algas deixaram o mar? (ao observarem um líquen, depois da explicação da monitora) Mas se chove igual em Bauru, por que os solos são diferentes? Esta árvore caída foi cortada? Se tivesse árvore sem todo o lugar seria mais legal! Carvão é feito de árvore? Os animais que tem no zoológico podem sobreviver nesta mata? E a ema? Pelo quadro anterior, observa-se que o conhecimento perceptivo foi o único ao qual os alunos não se referiram durante as aulas teóricas, o que é compreensível, tendo em vista que a percepção decorre da ação dos sentidos dos alunos sobre o ambiente. No caso do ensino de ecologia nos ecossistemas terrestres naturais, a organização dos conhecimentos perceptivos em relações de proporção ou comparação (Aqui está mais quente!, Aqui está frio, lá fora estava quente!), ou seja, com a utilização também do conhecimento lógico-matemático, favoreceu o entendimento sobre as características abióticas dos diferentes ecossistemas. Em termos de conhecimento experimental, o quadro demonstra um dos grandes problemas em se ensinar ciências biológicas dentro de um contexto em que não estão presentes seu principal objeto de estudo: os seres vivos. Isto está evidente pela maior quantidade de formas de vida, estruturas e características dos seres vivos observadas pelos alunos durante a aula no Jardim Botânico. São nessas duas primeiras categorias que podemos reconhecer uma maior incidência de relações de emergência, simétricas e transitivas, das quais poderão surgir as relações de reflexividade e, portanto, a habilidade de identificar generalizadamente (Rose, 1993). Por não tenderem a generalizações de qualquer espécie, as observações dos alunos contidas na categoria do conhecimento experimental, sugerem a manifestação verbal de conceitos espontâneos os quais, segundo Vigotski (2001), são altamente validados pela experiência cotidiana dos alunos. Talvez a categoria que melhor demonstre as contribuições da aula de campo nos ecossistemas naturais para a aprendizagem dos conteúdos referentes à ecologia, seja a terceira (conhecimento experimental/lógico-matemático). Piaget (1996) expõe que, no terreno da experiência propriamente dita e, sobretudo, da experimentação dirigida (como foi o caso da aula de campo), é evidente que nenhuma constatação permanece em estado puro, no sentido em que o empirismo clássico admitiria que o objeto depõe no sujeito, ou sobre ele, uma simples impressão que constituiria uma cópia. Em outras palavras, o problema do conhecimento é escolher entre as duas concepções possíveis, a do conhecimento-cópia ou a do conhecimentoassimilação. Assim, o conhecimento experimental/lógico-matemático observado em aula teórica se aproxima mais do conhecimento-cópia pois, embora, esteja evidente a tentativa dos alunos em buscar uma representação pré-existente, utilizando-se de analogias ou mesmo procurando ordenar o novo conhecimento em grupos – e a ordenação e os agrupamentos são relações lógicas - é uma construção relativamente simples, comum inclusive a estágios anteriores do desenvolvimento, nos quais tem início a formação de pré-conceitos e não de conceitos propriamente ditos. Por exemplo, ao observar que a onça parece um puma, ou que a siriema é um tipo de galinha, o aluno procura ‘encaixar’ os animais apresentados no grupo daqueles que ele já conhece e que possuem características semelhantes; é um agrupamento por semelhança, provenientes de um raciocínio por imagens e de caráter lúdico, típico dos estágios préoperatórios (Piaget, 1990). Contrariamente, o conhecimento experimental/lógico-matemático observado durante a aula de campo possui características que se aproximam mais do conhecimento-assimilação. Desde que não é mais exclusivamente perceptível, a experiência física supõe essencialmente a intervenção de ações, porque o sujeito não pode conhecer os objetos a não ser agindo sobre eles. É o caso, por exemplo, das observações: ”A copaíba é reta e alta para procurar o sol.” e “Por que a cor das samambaias é diferente? Tem marrom e tem verde.” . Para chegar a tais constatações, o conhecimento experimental não se resumiu à observação imediata, mas também a uma dissociação dos fatores - o crescimento reto do tronco da copaíba e a cor diferente das samambaias - de forma a apreciar isoladamente seus efeitos e, dissociar os fatores, nada mais é do que modificar pela ação o fenômeno bruto e cercar seus elementos sob formas que só podem ter garantia de objetividade devido à artificialidade ativa. Segundo Piaget (1996), isto não tem nada de contraditório, porque a ação experimental é orientada na direção da descentração lógico-matemática, ao passo que o erro ou a ilusão subjetiva, que ela corrige, resultam de centrações sobre a experiência imediata. No ensino de ecologia, as metodologias tradicionais de ensino, que não recorrem às experimentações, parece estar implícito o princípio que a ação do sujeito é necessária somente para o entendimento das possíveis relações entre os fatores bióticos e abióticos que compõem um ecossistema, sendo dispensável a ação sobre os objetos de estudo dos ecossistemas, isto é, os próprios fatores bióticos e abióticos. Neste sentido, Vigotski acrescenta o imprescindível papel do professor na condução do processo experimental e do modo como auxiliará os alunos a desenvolverem os conceitos científicos. Não menos que a investigação teórica, a experiência pedagógica nos ensina que o ensino direto de conceitos sempre se mostra impossível e pedagogicamente estéril. O professor que envereda por esse caminho costuma não conseguir senão uma assimilação vazia de palavras, um verbalismo puro e simples que estimula e imita a existência dos respectivos conceitos na criança mas, na prática, esconde o vazio. (Vigotski,2001,p.247). Decorre disto que as abordagens utilizadas para o ensino de ecologia privilegiam as relações ecológicas (e, portanto, o conhecimento lógico-matemático) em detrimento do conhecimento sobre os seres vivos ou sobre determinado clima que constituem um ecossistema (o conhecimento experimental ou até mesmo o perceptivo), ignorando tratar-se de um esforço em direção ao que Vigotski chama de verbalismo puro. Em termos da teoria clássica, a maior quantidade de estímulos presente em uma aula de ecologia de campo, quando comparada às aulas teórica, proporciona o contato dos alunos com a diversidade de atributos que os auxiliará incluir tais atributos, ou não, em dada categoria (por exemplo, plantas que são típicas de mata atlântica e plantas que são típicas de cerrado). No contexto da aula de campo, algumas observações corroboram essa tese e até se adiantam ao permitir verificar que os próprios alunos utilizam-se das estruturas lógicomatemáticas para interpretar um fenômeno através da experiência, como mostram as coordenações de espaço e as relações de intensidade e proporção implícitas nas observações sobre as diferenças entre o ambiente de mata e o de cerrado: “O cerrado é totalmente diferente, as árvores são menores.”, “As árvores são mais tortas e mais finas.”, “Aqui é diferente. É mais seco.”. Neste sentido, Piaget (1996) reafirma que o conhecimento experimental é, sobretudo, assimilação. Convém ressaltar também que muitos alunos envolvidos na pesquisa provavelmente se encontravam ainda no estágio das operações concretas, no qual o raciocínio se dá muito mais facilmente por meio da ação do sujeito com a realidade e não por relações de abstração. É ainda em termos de estágios do desenvolvimento que se podem discutir as observações inseridas na categoria de conhecimento lógico-matemático. Assim como havia alunos no estágio das operações concretas, é provável que houvesse também aqueles que se encaixavam ao menos nos estágios iniciais das operações formais, estruturadas não a partir da realidade concreta, mas a partir de outras operações e relações definidas por Piaget (1978) como sendo o pensamento sobre o pensamento. É a formulação de hipóteses, por meio das relações de proporção, finalidade e predição de ações futuras, que confere a característica principal do conhecimento lógico-matemático. Entretanto, embora haja características de pensamento hipotético nas observações dos alunos durante a aula teórica e durante a aula de campo, nelas está guardada uma diferença fundamental. As hipóteses lançadas durante a aula teórica não foram provenientes do conhecimento experimental, o que acarretou em uma insegurança nas proposições, ou seja, não há premissa anterior que as suporte, como por exemplo: “É porque está perto do mar? Ou não?” ( respondendo à pergunta sobre as diferenças entre a Mata Atlântica e a Amazônia). O aluno supõe que a diferença aconteça pela proximidade da Mata Atlântica com o mar, mas não há elementos concretos que lhe assegure que a Mata Atlântica esteja de fato próxima ao mar, a não ser a própria denominação, relacionada ao Oceano Atlântico. Por outro lado, as hipóteses construídas durante a aula de campo, fundamentam-se no conhecimento experimental, na realidade concreta, de forma que o conceito ou o fenômeno responsáveis pela formulação da hipótese foram previamente assimilados pela experiência, como no exemplo: Por que as algas deixaram o mar? (ao observarem um líquen, depois da explicação da monitora). O aluno compreendeu que a forma de vida observada era a associação entre uma alga e um fungo e compreendeu também o fato de que aquela alga era perfeitamente tangível, ainda que espacialmente e fisicamente muito distante de um ambiente marinho. Ao elaborar tal pensamento, foi ainda capaz de supor que as algas, para estarem ali, em algum momento deixaram o mar. A hipótese subentendida na pergunta é, portanto, conseqüência de ordenações e coordenações de conceitos construídos anteriormente, advinda do pensamento lógicomatemático ou hipotético-dedutivo. Enfim, a matemática, longe de reduzir-se a uma linguagem, é o próprio instrumento de estruturação que coordena essas ações e as prolonga em seguida em teorias dedutivas e explicativas. Dizer que o conhecimento experimental é a assimilação do real às estruturas lógicomatemáticas é também afirmar, por isso mesmo, que a organização própria do sujeito e de todo o ser vivo é condição de trocas com o meio, das trocas cognoscitivas, tanto quanto das trocas materiais e energéticas. A este respeito, as formas conceituais e operatórias aparecem, ainda uma vez, como o prolongamento das formas ‘orgânicas’ (Piaget, 1996). Não obstante a análise das diferentes formas de conhecimento e dos diferentes estágios do desenvolvimento possa traduzir-se em uma falsa impressão de independência e estabilidade, ocorre justamente o contrário. Primeiramente, considerando-se os estágios do desenvolvimento, a teoria piagetiana é sempre enfática ao defender que a inteligência e a elaboração do pensamento estão condicionados a um certo funcionamento mental constante que assegura a passagem de qualquer estado para o seguinte, embora as estruturas típicas de cada estágio sejam variáveis. No contexto do ensino de ciências, isto equivale a dizer que respeitar as características do desenvolvimento mental dos jovens estudantes em fase das operações concretas, apoiando os processos de construção de conhecimentos em elementos reais, é garantir o bom desenvolvimento dos estágios posteriores das operações formais, para os quais evoluem as formas superiores do pensamento humano. É na categoria de conhecimento lógico-matemático que pode-se notar maior incidência de relações de emergência reflexivas, que corresponderiam à identificação generalizante própria da formação dos conceitos. O processo educativo, a inter-relação com outras disciplinas formais não abordadas no contexto (por exemplo, não foi falado, durante as aulas, sobre as condições pluviométricas de Bauru, mas mesmo assim o aluno relacionou este conhecimento com a nova informação que há solos diferentes em Bauru), contribuíram para o surgimento de elaborações superiores, expressas nas ações verbais dos alunos, independentemente de haver a observação da chuva ou do mar, no caso citado das algas. Esta é, para Vigotski (2001), a natureza principal dos conceitos científicos: A análise do conceito espontâneo da criança nos convence de que a criança tomou consciência do objeto em proporções bem maiores do que do próprio conceito; a análise do conceito científico nos convence de que, desde o início, a criança toma consciência do conceito bem melhor do que do objeto nele representado. (p.346) CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas idéias de Pozzo (1998), sobre a impossibilidade de se determinar o exato momento em que ocorre a aprendizagem de um conceito e, mais particularmente, de um conceito científico, os resultados obtidos no contexto deste estudo, bem como sua análise, permite-nos concluir que, caso pudéssemos afirmar que os alunos aprenderam, por exemplo, o conceito de cerrado, o mesmo não poderia ocorrer quanto à determinação do instante que tal aprendizagem ocorreu. O fato é que, embora as teorias aqui utilizadas nos assegurem que os conceitos científicos são mais facilmente desenvolvidos, ou desenvolvidos de uma maneira considerada satisfatória, a partir de situações de ensino de ciências nas quais os alunos possam ter acesso à concretude da realidade e dos fenômenos, para citar Vigotski (2001), haja a relação e a ação diretas dos alunos sobre os objetos, para citar Piaget (1996), ou ainda que proporcione uma maior quantidade de atributos e estímulos, para citar Rose (1993), elas não o fazem quando se trata de determinar ou identificar o processo mental que corresponderia à aprendizagem. Por fim, na perspectiva de educadores, fica implícita a sugestão de lançarmos o olhar ao processo e não tanto ao resultado, nos preocuparmos em proporcionar um bom começo e não tanto com a obtenção da qualidade final do produto, até mesmo porque, ao que parece, ainda temos limitações para identificá-la. REFERÊNCIAS PIAGET, J. 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