A POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA, A JUVENTUDE POBRE E O SERVIÇO SOCIAL: A CERTEZA DE UM FUTURO INCERTO Ionara dos Santos Fernandes 1 RESUMO Este trabalho tem por objetivo, provocar reflexões sobre as ações interventivas do Estado ou sua ‘ausência’ em relação à juventude pobre. Direcionando as problematizações para as contradições estatais a esse público que é refém de uma Política de Segurança Pública estratégica, violenta e punitiva, cerceadora de direitos e executora de um cenário cruel, onde o banho de sangue é legitimado e o é choro constante. E problematizar a atuação profissional do Assistente Social frente às questões aparentes, ou não, no cenário contemporâneo relacionado à Segurança Pública. Palavras-chave: Juventude. Pobreza. Estado. Segurança Pública. 1 Assistente Social da Rede Salesiana de Ação Social, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito – UFF, Graduanda em Direito – UCAM. INTRODUÇÃO O artigo aponta considerações importantes para iniciarmos um debate acerca das estratégias estatais de Segurança Pública, frente a toda contextualização do capitalismo sobre a égide do neoliberalismo no Brasil. Para tanto, vamos nos valer da prerrogativa do país é um Estado democrático de Direito, como dispõe no artigo 1º da Constituição Federal, dessa forma analisar as legislações que estão vigentes e que preconizam um rol de direitos fundamentais, e que atribuem aos adolescentes à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, que necessitam de proteção integral, mas que ao mesmo tempo, em diversas atuações são rotulados de infratores por praticarem fatos sociais qualificados como atividade ilícita, denominado ato infracional, e julgados por analogia ao Código Penal brasileiro, por exemplo. E problematizar se tal ordenamento jurídico tem como estratégia a autoafirmação das Políticas de Segurança Pública ou se prevalecem os fundamentos de cidadania e dignidade da pessoa humana, como prevê os incisos do ainda artigo 1º da Constituição federal, e a partir disso, relativizar com o contexto neoliberal. O corte do trabalho favorece a juventude por aspectos vinculados a origem dessa pesquisa em face do pesquisador que ocorreu desde sua experiência no Departamento de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro e posterior inserção em projeto social que atende criança e adolescente oriundos da rede pública de ensino e de favelas e espaços populares de Niterói, no Rio de Janeiro. Com isso, o trabalho torna-se fundamental e relevante diante da necessidade social de compreensão e intervenção nas relações sociais, inclusive servindo de base para a criação de Políticas Públicas consistente e principalmente de legislações que sejam resultado da realidade cotidiana dos sujeitos, como Kant Lima (1983) expressa que a realidade deve se adaptar ao Direito e não o contrário. Portanto, é com esse entendimento que elaboramos esse artigo, com o objetivo de refletir sobre essa relação interventiva do Estado sobre a juventude, compreendendo a trajetória sociohistórica de construção e execução das políticas e legislações problematizando sua aplicação na realidade, seus impactos, avanços e retrocessos no cotidiano das crianças e adolescentes. E, por conseguinte relacionar sua existência com o movimento de massificação dos instrumentos de aprisionamento que o sistema capitalista na égide do neoliberalismo vem conduzindo como forma de enfatizar a face penal do Estado em virtude do declínio das ações de proteção social. ESTADO E QUESTÃO SOCIAL O Estado burguês ao longo da história sofreu modificações estruturais para cumprir a função de mediador das relações sociais de produção e reprodução fundada na contradição entre o capital e o trabalho. Cabe ressaltar que o Estado, enquanto uma organização social é anterior ao modo de produção capitalista, contudo sua maior expressão se deu nesta conjuntura. Segundo Carnoy (1988), Marx, porém, não constrói uma teoria sobre o Estado, mas seu pensamento é compreendido a partir da crítica que ele faz ao seu antecessor, Hegel. A concepção de Estado moderno é diferente daquela apregoada pelos contratualistas no sentindo de não representar a vontade geral, Marx entende o Estado como a defesa dos interesses particulares, analisado a partir de um contexto histórico, onde a sociedade edifica o Estado e se transforma a partir da ideologia dominante de produção e reprodução das relações sociais. O Estado tem sua gênese nas relações sociais concretas e não é uma entidade em si, é um organismo que exerce uma função de garantia a propriedade privada, é um instrumento de dominação da classe burguesa no sistema capitalista. Coutinho, afirma que segundo Marx, o Estado assegura e reproduz a divisão da sociedade em classes. O estado assim, é um estado de classe: não é a incorporação da razão universal, mas sim uma entidade particular que, em nome de um suposto interesse geral, defende os interesses comuns de uma classe particular. (COUTINHO, 1996, p.19). Nessa conjuntura, a burguesia por ser detentora dos meios de produção e do controle da força de trabalho, dita a ideologia imposta pelo Estado, ou seja, a classe que domina economicamente é a mesma que domina ideologicamente, dessa forma o Estado expressa os seus interesses e criam normas conforme ela. Logo, Marx, desmascara a autonomia que Hegel atribui ao Estado, ou seja, afirmando que o Estado é um instrumento de dominação de uma classe. Carnoy (1988), entende, segundo Marx que: O Estado parece ter poder, mas esse poder reflete as relações na produção, na sociedade civil. O Estado é a expressão política da classe dominante sem ser originário de um complô de classe. Uma instituição socialmente necessária, exigida para cuidar de certas tarefas sociais necessárias para a sobrevivência da comunidade, torna-se ma instituição classe. (Ibidem, grifos do autor, 1988, p.71). O Estado é a expressão das relações sociais de produção existentes na sociedade capitalista, o Estado configura-se como um comitê para administrar os negócios coletivos da classe burguesa (COUTINHO, 1996), como Marx aborda em o Manifesto do Partido Comunista. O Estado vem garantir a propriedade privada, a burguesia e ainda legitima a exploração, dessa classe sobre o proletariado. Com o intuito de controlar a questão antagônica entre as classes, compreende ao Estado a função de criar leis e reprimir condutas atípicas as estabelecidas nas legislações por ele criada, no sentido de reprimir e controlar a partir do estabelecimento das regras para reafirmarem a ideologia burguesa. Conforme afirma o autor estudado, “a função primordial do Estado burguês: a legitimação do poder, da repressão, para reforçar a reprodução da estrutura e das relações de classes” (CARNOY, 1988. p. 73). Logo, compreende-se a sociedade civil como o cenário de toda a história e o Estado está a ela subordinado, ele nem sempre existiu, não está acima e fora da sociedade, nasceu da sociedade e é produto de certa fase do desenvolvimento econômico, ele nasce para conter e conservar os conflitos no limite da ordem. O pensador italiano, Antônio Gramsci, da continuidade a teoria marxista, porém na fase do capitalismo monopolista, no século XX. É evidente, que outros pensadores se dedicaram a compreender o Estado posterior a Marx e esses também compõe a tradição marxista, mas por questões metodológicas é pertinente o estudo sobre as concepções de Gramsci para melhor entendermos o objeto de estudo deste trabalho. Entre Marx e Gramsci há diferenças nas suas apreensões teóricas, mas estão longe de significar uma ruptura, haja vista que Gramsci continua fiel ao método de Marx, de análise concreta da realidade histórica e dinâmica a partir das novas determinações da sociedade. Gramsci desenvolveu sua teoria a partir da concepção de “hegemonia” burguesa na sociedade civil a partir de Marx e Engels. Conforme Carnoy, a hegemonia é a preponderância dos valores e normas da burguesia sobre a classe subalterna, conferindo ao Estado o papel de gerar um conceito de realidade única e imutável. Nas palavras de Carnoy, Gramsci defendia que: “o Estado era muito mais do que o aparelho repressivo da burguesia; o Estado incluía a hegemonia da burguesia na superestrutura.” (Ibidem, 1988, p. 93). A partir de Coutinho (1996), vamos compreender melhor o que Gramsci denomina de Estado ampliado. Desmembrando a superestrutura analisada por Marx, temos duas esferas, uma chamada de sociedade civil e outra de sociedade política. A sociedade política é entendida como um conjunto de aparelhos de cunho coercitivo, ligados ao uso da força através das forças armadas e das leis, como Marx relata em sua obra. A inovação está no conceito de sociedade civil, anteriormente trabalhado por Marx em consonância com Hegel sendo entendido como conjunto das relações econômicas e base material, Gramsci contraria esse conceito, entendendo a sociedade civil como um instrumento de consenso do Estado representado por organismos que expressam a ideologia dominante a partir do convencimento, do consenso, ela é composta por aparelhos privados de hegemonia, que são organismos que se aderem voluntariamente aos diversos atores que os compõem, como as igrejas, escolas, partidos político, mídia, ONG’s. A soma das duas esferas é compreendida como o Estado ampliado, que articuladas regulam e reproduzem as relações sociais no sistema capitalista, garantindo a dominação econômica e ideológica de uma classe sobre a outra. Logo, a esfera econômica produz a superestrutura devido à complexificação do Estado, concluindo sinteticamente que o "Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados" (GRAMSCI apud MONTAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 45). Observarmos que por mais que o Estado tenha a função de se relacionar com todas as categorias, seu compromisso está vinculado à classe dominante. Entretanto, esse mesmo Estado tem de se relacionar com todas as classes com o discurso de prover o bem da coletividade, mas que na verdade é o sustento da luta de classe em favorecimento da burguesa. Dessa forma, entendemos que o Estado é a expressão dialética de uma relação de dominação política, econômica e ideológica e um conjunto de instituições hegemônicas que regulam tal dominação. No Brasil atual, o duplo contexto de ações contraditórias do Estado ganha visibilidade pela configuração de um Estado com duas faces, uma de proteção e a outra de repressão, ou seja, um Estado Democrático de Direito e um Estado Penal. Construído em um cenário complexo, perpassado por lutas políticas, ideológicas e econômicas. Analisaremos a seguir, brevemente, a consolidação dessas duas faces a partir do contexto histórico e social, concomitante ao avanço das legislações brasileiras e o cenário internacional que perpassa a evidência do Estado Penal, como estratégia de resignificação do capitalismo em determinados espaços, para uma determinada classe social e com determinadas infrações penais. Como já disse Löic Wacquant (2003), importante sociólogo francês, que se propôs a investigar o processo de ascensão do Estado Penal nos Estados Unidos da América, o que vivenciamos hoje é: (...) uma escavação seletiva daquelas atividades da polícia, dos tribunais e especialmente da prisão que se encontram em mutação, especificamente voltadas pra a administração das categorias “problemáticas” que residem nas regiões inferiores do espaço social e urbano, e que, por isso mesmo, deixa de observar outras formas de infração e outras missões do aparato legal. (WACQUANT, 2003, p.19). Entende-se, resumidamente por Estado Penal, como a lógica coercitiva utilizada pelo Estado para afirmar a legitimidade e a legalidade das suas práticas em virtude das ações tipificadas como crime, para punir e, sobretudo, reprimir os direitos e liberdades de uma parcela de indivíduos da sociedade, em consonância com a ideologia da classe dominante sobre a égide do ideário neoliberal. E o Estado democrático de Direito, é uma organização política e social que é determinada e limitada por um conjunto de legislações. Todavia sua racionalidade está submetida a um conjunto de pessoas eleitas pelo voto direto que devem obediência às leis promulgadas, para governar em prol do bem comum. Isto é, a articulação entre a lei e a política em uma estrutura regulada pelas normas jurídicas com a finalidade de garantir os direitos fundamentais, sociais e coletivos em virtude do principio da dignidade humana. Behring e Boschetti (2009) tratam de alguns momentos históricos que são fundamentais a esse estudo, as autoras iniciam sua análise com a grande crise que o capital sofreu na segunda metade do século XIX e inicio do XX. Após a segunda guerra mundial, o mundo teve três décadas de grande expansão econômica e social, é o chamado Estado de bem-estar social, baseado na necessidade de regulação do Estado. Esse momento do Welfare State, ficou caracterizado pelo compromisso estatal e entre as classes sociais de expandir os benefícios sociais, gerando um sistema de bem estar social e crescimento econômico a partir da teoria de Keynes, com o pleno emprego e políticas sociais como modo de garantir parte da reprodução do trabalhador e de Ford com o modelo de produção em massa. Foi a gênese da proteção social baseada na educação, saúde e seguridade e da importante expansão das políticas sociais. As autoras afirmam que: Nesse sistema de proteção social, os direitos são universais, destinadas a todos os cidadãos incondicionalmente ou submetidos a condições de recursos, e o Estado deve garantir mínimos sociais a todos em condição de necessidade. O financiamento é proveniente dos impostos fiscais e a gestão é pública, estatal. (BEHRING E BOSCHETTI, 2009, p. 97). Behring e Boschetti (2009), afirmam que a recessão de 1974-1975, foi uma clássica crise de superprodução e esta, combinada com o agravamento do desemprego, com a alta de preços da matéria prima, a queda do comercio mundial entre outros fatores, favoreceram para o declínio do Estado de bem estar social. Essa crise, todavia, fora tratada com estratégias limitadas ao keynesianismo, o que resultou em um novo período de crise, 1976-1979. Com o esgotamento da regulação keynesiana do Estado e o rompimento do pacto entre as classes com o consequente declínio do Welfare State, observamos a ascensão do neoliberalismo, que as autoras entendem segundo Navarro por uma fase em que os: Neoliberais defendem como programática em que o Estado não deve intervir na regulação do comércio exterior nem na regulação de mercados financeiros, pois o livre movimento de capitais garantirá maior eficiência na redistribuição de recursos internacionais (BEHRING E BOSCHETTI, 2009, p. 126) O resultado da implantação do neoliberalismo tem sido a elevação dos juros, a baixa dos impostos sobre altos rendimentos, enfraquecimento dos movimentos sindicais e greves, corte nos gastos sociais e a ampliação do processo de privatização. Esse movimento de corte nos gastos sociais e a consequente redução nas políticas sociais é o ponto de partida para a reafirmação do Estado Penal, pois é necessário neste momento, na visão da classe dominante, uma estratégia política que dê conta da grande população pobre e desempregada que só faz aumentar. Este momento de reafirmação do Estado Penal trabalharemos mais a frente, agora vamos retornar ao contexto histórico para mencionar as particularidades históricas deste desenvolvimento no Brasil. Os anos de 1980 faz relação ao Brasil no que tange a importante conquista sócio-historica, a Constituição Federal de 1988, a chamada “constituição cidadã”, que prescreve um rol de direitos fundamentais e sociais aos cidadãos. É o marco para o chamado, Estado democrático de Direito, com o fim da ditadura e a redefinição das regras políticas. Os anos 1990 foram marcados pelo processo de contrarreforma do Estado. O governo de Fernando Henrique Cardoso, o FHC, trouxe ao país as mais variadas reformas todas orientadas para a reafirmação do mercado, dando inicio ao processo de privatização, Como alega Behring e Boschetti, no Brasil houve o “desmonte a destruição, numa espécie de reformatação do Estado brasileiro para a adaptação passiva à lógica do capital” (Ibidem, 2009, p. 150). Nesse contexto, temos no cenário social o chamado desmonte da seguridade com a precarização das políticas sociais, e a regulamentação do terceiro setor, retrocedendo as práticas de cunho filantrópico, mesmo com tipificação na Constituição de 1988, ordenando a Assistência Social como direito. No que tange as políticas sociais, temos nesse período a sua fragmentação e a desvinculação da sua formulação e execução. Ou seja, temos um panorama de padrões universalistas e redistributivos da proteção social, como trabalham Behring e Boschetti, onde “a tendência geral tem sido a de restrição e redução de direitos, sob o argumento da crise fiscal do Estado, transformando as políticas sociais em ações pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos mais perversos da crise.” (2009, p. 156) É nesse contexto que observamos a reafirmação do lado coercitivo do Estado, o Estado Penal frente a frente ao Estado de Direito. Uma vez que o Estado passa por uma reestruturação para implantação da agenda neoliberal voltada para o reestabelecimento do mercado, que estava tentando se recuperar de uma crise que aumentou o desemprego e que também como estratégia neoliberal para suster a economia, corta os gastos das políticas sociais. No conjunto atual, Mauriel (2006) compreende que há uma tendência de se reduzir a questão social à pobreza e com isso ao invés de políticas sociais (para enfrentar as expressões da questão social), são criadas as ações de combate à pobreza, pautadas pela transferência de renda com condicionalidades e outros incentivos aos empreendedores. Diante disso, a pobreza não é resultado da possível má distribuição de renda, mas sim da relação entre as classes que atingem a totalidade da vida do individuo, a partir da contradição entre o capital e o trabalho. Assim, a questão social, reduzida à ‘questão da pobreza’, pode ser um problema resolvido no plano da filantropia, ou ético-social, no qual o Estado não precisa ser, necessariamente, o agente executor exclusivo ou majoritário dos serviços coletivo de ‘proteção’, mas apenas um promotor ou incentivador da ‘sociedade civil (MAURIEL, 2006, p. 63). Essa desigualdade na apropriação do que é produzido socialmente, geram expressões que sofrem modificações ao longo do tempo. E a sua concretização no real só é perceptivel a partir dessas expressões materializadas no cenário social que produz e reproduz o capitalismo, onde o objetivo é acumular capital e não garantir condições de vida para toda a população. Na contemporaniedade, a partir dos anos 1970, observamos as alterações no cenário de produção e reprodução do trabalho instaurado no contexto de mundialização do capital, proviniente da nova fase do processo de acumulação capitalisa, a financeirização da economia. O Brasil então é um cenário de um país em pulsante desenvolvimento desigual, de economia emergente, onde a reprodução ampliada da riqueza cresce proporcionalmente ao aumento da população pobre. Nessa conjuntura, a questão social passa a ser direcionada em um processo violento de criminalização renovando a noção de classes perigosas. E portanto uma tendência a naturalização da questão social. Logo, o aumento da pobreza causado pela lógica financeira de acumulação, em conjunto com a redução dos empregos, o desmonte das políticas sociais, a acumulação flexível, entre outras questões. Atingem não só a economia e a política, mas afetam a reprodução das relações sociais. É traçado, portanto, uma mentalidade prática de reforço do individualismo e a naturalização das expressões da questão social, assim como a banalização da vida humana. JUVENTUDE, LEGISLAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA. Juventude e segurança publica já é um tema discutido amplamente no Brasil, seja por questões pertinentes aos atos infracionais, sistema socioeducativo, morte de jovens, pobres e negros, violência contra crianças e adolescentes, seja por superlotação do sistema carcerário, enfim, amplas são as discurssões sobre esses temas especificos. Por isso, a proposta deste trabalho ganhou contornos diferentes, o intuito, enquanto Assistente Social é dar voz e escuta ao sujeito que embora pequeno biologicamente, também está inserido no processo de sociabilidade contínua, salvo algumas especificidades. O ser humano, se produz e se reproduz quando encontra um objeto que lhe causa estranhamento, morte, drogas, armas, tiro, proubo, cadeia, nem sempre são apontadas, observadas e conversadas quando se é criança, porém, crianças, pobres oriundas de favelas e espaços populares, convivem com essa realidade muito precocemente, e como ser único, cada um observa, percebe e representa de sua forma. Atualmente, temos vivenciado a ênfase do Estado penal atrelada à participação da juventude nesse cenário cada vez mais cruel de segregação, violência, apreensões ilegais, aumento do auto de resistência a uma determinada parcela da população, os jovens, negros e pobres. Não há avanços, coincidências ou erros, há legitimidade na rotulação dessa população em detrimento da pseudo segurança da classe que é oposta a esses. A ampliação das legislações repressivas e punitivas, em conjunto com o papel da mídia de reafirmar a necessidade de controle da violência pautando-se no seu possível aumento e o direcionamento dos gastos estatais para a Política de Segurança Pública, após o corte na área social, resulta em processo que a Malaguti Batista (2012) denomina de adesão subjetiva à barbárie que é a “tarefa conjunta de forçar as classes pobres para fora da assistência social e empurra-la para o trabalho precário flexibilizando que passará por políticas de desqualificação e criminalização”. Legislações que dispõe sobre a infância e juventude tem perpetuado e legitimado a expansiva atuação penal do Estado, através, por exemplo, do Estatuto da Criança e do Adolescente que vem consolidar legalmente o caráter de controle da sociedade capitalista em relação a infância e juventude brasileira, com a finalidade de garantir a reprodução da ordem social posta. É evidente, que essa legislação também traça um rol de direitos a esse público, e redireciona o olhar da sociedade e do Estado para essa população, tendo em vista a necessidade de proteção, porém sinaliza a intenção de prosseguir na constante punição do jovem e com o SINASE preenche-se a lacuna legal, quanto à ausência de normatização a cerca da execução das medidas socioeducativas, prescreve direitos, ordenar a operacionalização desses espaços. E a normatização tende a favorecer a face penal do Estado, que tem se encarregado de criminalizar as relações sociais e utiliza da sua legitimidade para construir estratégias de aperfeiçoamento dos instrumentos de controle, e a gestão das políticas públicas sociais é uma de suas formas, enfatizando indiretamente a face repressiva do Estado, ampliando os espaços de aprisionamento e condicionando a prática profissional aos ditames neoliberais. A política de extermínio (Zaccone, 2015) é parte constitutiva, embora velada, da política de segurança pública, e os jovens pobres tem sido o ator principal, não para matar e sim para morrer. Por isso, se faz necessário o olhar e a escuta cada vez mais atentas as demandas diretas e indiretas desse público. Efetuar um atendimento social que lhes encaminhem apenas para a garantia ao direito à educação, saúde e habitação, por exemplo, não são capazes de perceber e promover a dignidade da pessoa humana. Quando uma criança burla a possibilidade do profissional de fazer uma visita domiciliar, por exemplo, não é porque ele sofre violência em casa, e sim, porque a violência é parte inerente ao seu local de moradia, perceba nas narrativas, a seguir: Sendo conduzida por um adolescente de 12 anos, na favela em que sua residência está situada ele diz: “Danilo2 morreu bem ali naquele poste, os quatro meninos daquele dia morreram aqui na escadaria. Mais a frente: ‘ Tia você lembra de Carlos? Acho que sim! Você está pisando no sangue dele bem agora’, e quando passamos por um local na favela que parecia ser um esgoto a céu aberto, ele diz: ‘Aqui, onde tem esse cheiro estranho, foi porque aconteceu um banho de sangue, muito gente morreu’. Eu pergunto: pela polícia, ele diz: Claro, tia!” (“Alves”, 12 anos, 2016) “Tia, minha mãe pediu para você não ir lá em casa hoje, porque teve operação lá no morro e ela está vendo o enterro do meu padrasto. O que houve com ele? A polícia matou ontem. Como ficou sabendo? Eu vi, ele levou um tiro, ai o policial ligou pra alguém e disse que tinha um vagabundo baleado, e ao desligar o telefone, deu mais dois tiros nele, um na barriga e outro na cabeça, ai ele morreu.” (“Carvalho”, 11 anos, 2015) Contra fatos, não há argumentos, cenas de dor, medo, vergonha e naturalização. A isso deixo uma reflexão do delegado de polícia, Orlando Zaccone: O poder de punir do Estado se configura assim como permanência do estado da natureza no próprio âmago do Estado de direito. Por isso, existe uma reciprocidade contínua entre o Estado de Direito e o Estado de polícia, pois o Estado de direito carrega a violência do Estado policial, que nunca cessa, pois se encontra presente no exercicio do próprio poder punitivo estatal, naturalizado atraves do tão propalado monopólio do uso legitimo da força, da violência, confomre o direito. No exercicio do poder soberano de vida e morte... (D’ELIA FILHO, 2015, 94) CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol, vai vendo. Mas o sistema limita nossa vida de tal forma, que tive que fazer minha escolha, sonhar ou sobreviver. RACIONAIS MC’S Podemos apontar, portanto, reflexões que se fazem necessárias a esse contexto do capitalismo neoliberal em crise, uma vez que, por si só o capitalismo é fundado em contradições, o neoliberalismo potencializa todas as máximas do capital e ainda num 2 Todos os nomes a seguir são fictícios. processo de intensa crise que o Brasil vem constituindo na contemporaneidade, não podemos encontrar um cenário distinto desse: jovens com seus direitos violados, negros encarcerados e pobres massacrados, resultado, o direito à vida negado, sim o resultado tem sido a morte, fim dos sonhos, fim das perspectivas, fim da vida. O Serviço Social tem uma série de reflexões sobre a conjuntura social, mas precisamos aprofundar em alguns pontos que tem sido predominantes apenas nas ciências sociais, jurídica e psicológica. A violência é expressão da questão social e as estratégias de Segurança Pública tem sido implementada com perversidade e legitimidade, mas, uma vez que o profissional de Serviço Social tem vinculo com a garantia de direitos, também precisamos atentar para essa “legitimidade ilegítima”, como bem sabemos, são atos estatais contraditórios e que os Assistentes Sociais não apreendem a necessidade de uma discursão profunda, para uma intervenção de qualidade. Vivenciamos uma espécie de proteção às avessas, onde os sujeitos só adquirem o acesso aos direitos preconizados legalmente quando ingressam em instituições governamentais, como é o caso dos adolescentes inseridos no Sistema Socioeducativo, uma estratégia do capital de manter sob controle não só as pessoas, mas as suas relações, condicionando indiretamente o sujeito a uma instituição para a garantia dos seus direitos. E quando há instituições que aprisionam o sujeito, a adesão desta ideologia dominante, é melhor justificada. Não só as unidades do sistema socioeducativo, mas as prisões, os abrigos e as demais instituições que de alguma forma direciona o sujeito ao enclausuramento, como as comunidades terapêuticas, que é o fenômeno que ampliou sua movimentação com o surgimento dos grandes eventos na cidade do Rio de Janeiro, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, com constantes encaminhamentos forçados da prefeitura á crianças e adolescentes usuárias de substâncias psicoativas, por exemplo. As estratégias contemporâneas da ordem vigente estão em torno de uma exploração esdrúxula do capital sobre o trabalho, que tem se reconfigurado numa sociedade do consumo que é a força motriz do capital, a lógica do mercado. Nessa conjuntura, o capital tem uma relação intima com o Direito Penal e a massificação dos institutos de controle. Afinal, com a disseminação do aumento da violência, o medo tem se generalizado pela sociedade, resultando no aumento do investimento na segurança privada, tanto residencial quanto comercial e institucional, com cercas elétricas, circuito de câmeras, vigilância patrimonial, escolta armada entre outros. Diante disso, encontra-se a necessidade de tipificar o maior número possível de ações do cotidiano como crime no Direito Penal é uma espécie de prerrogativa para a movimentação da economia de segurança, uma vez que quanto mais ações intituladas de crime, maiores serão as apreensões e também a sensação de insegurança da população que sentirá a necessidade através da mídia de investir em segurança privada gerando lucro para o capital. Portanto, o que temos assistido é a regulação da vida social expressa em um conjunto de leis e normas que tem criminalizado vários atos da vida cotidiana, que é o objeto de intervenção judicial, com a justificativa de “manter a paz e o controle social”, que, porém tem se traduzido na gestão policial da vida. Posto isso, observamos a lógica de aprisionamento seletivo neste sistema, que se sofistica à medida que se reinventa e se consolida o capitalismo e sua íntima relação com o Direito Penal, com mudanças de estratégias sutis, mas sempre visando a manutenção da punição institucional. Portanto, o cenário que temos vivenciado hoje é a intensa contradição entre uma face interventiva e outra, ou na minha visão, um complemento de uma intervenção sobre a outra, um estado penal, repressivo que necessita de um estado de direito para sua legitimação. É como uma moeda, duas faces em um único objeto, a face penal e o de direito expressos em um Estado, um lado sem o outro não faz sentindo na reprodução do sistema capitalista. Um cidadão protegido necessariamente é reprimido. Logo, a nossa atribuição, enquanto Assistentes Sociais, profissionais que intervém junto ao sistema de garantia de direitos e proteção à infância e juventude, é refletir coletivamente junto aos usuários, e na academia, sobre a realidade que nos é imposta. Afinal, ao Assistente Social foi atribuída uma das funções, que ouso afirma a mais importante da categoria, a função pedagógica (ABREU, 2002), que concerne nas práticas educativas quanto o contexto o qual está inserido. E a partir deste pensar possibilidades, lutas e direcionamentos conjuntos que anulem as estratégias de reprodução do capital. REFERÊNCIAS BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI Ivanete. Política social: fundamentos e história. 6º Ed. São Paulo. Cortez, 2009. CARNOY, Martin. 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