Subnotificação e Alta Incidência de Doenças

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“Subnotificação e Alta Incidência de Doenças Veiculadas por Alimentos e
de seus Fatores de Risco: causas e consequências no municípios de Ponta
Grossa – PR”
por
Marly Aparecida Ranthum
Orientador: William Waissmann
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas colaboraram direta ou indiretamente para a concretização deste trabalho.
Meus agradecimentos com muito carinho:
Primeiramente a Deus pela minha saúde e força para continuar;
À minha família, minha mãe e meus irmãos pelo apoio em todos os momentos;
Aos meus colegas e amigos do Laboratório Geral Dr. Alfredo Berger pela compreensão e
auxílio, especialmente Farmacêuticos Bioquímicos Wilson Becher e Marcio Pelissari;
Às minhas colegas e amigas do CEFET Unidade Ponta Grossa, Prof. Giovana A.M.
Pietrowski e Denise Milleo Almeida pela colaboração;
Aos colegas e amigos da 3ª Regional de Saúde de Ponta Grossa pelos materiais fornecidos e
pelo apoio;
Aos técnicos da Vigilância Sanitária e Epidemiológica do Instituto de Saúde de Ponta Grossa,
especialmente ao Médico Veterinário Carlos Coradassi e Enfermeira Filomena, pelo material
cedido e pela gentileza no atendimento; à Maria Gomes da COVEH pelo material enviado;
À Professora Doutora Célia Da Lozzo, Coordenadora do Mestrado na Universidade Estadual
de Ponta Grossa por todo seu esforço na concretização do curso e apoio a todos os
mestrandos;
Aos colegas do Mestrado pelos bons momentos e também pelos momentos difíceis que
passamos juntos, especialmente à Andria Calderari que se tornou uma grande amiga;
Um agradecimento muito especial ao Professor Natal Jataí de Camargo, Médico Veterinário
do CSA/SESA pela gentileza em ceder os dados sobre surtos de ETAs no Paraná, um trabalho
elaborado com dificuldade mas que teve um excelente resultado e foi de grande valia para a
elaboração desta dissertação.
Meu agradecimento mais carinhoso ao Professor Doutor William Waissmann, Orientador
deste trabalho, que em todos os momentos apoiou e auxiliou da melhor maneira possível,
apesar da distância, com presteza, gentileza e competência técnica, tornando possível a
concretização de uma idéia;
A todos os amigos que colaboraram com suporte emocional nos momentos difíceis.
QUE DEUS NOS ILUMINE PARA CONTINUARMOS A JORNADA MAIS FORTES,
COM MAIS SEGURANÇA E CONHECIMENTO TÉCNICO!
RESUMO
Atualmente no Brasil, apenas 5 a 10% dos casos de Enfermidades Transmitidas
por Alimentos (ETAs) chegam ao conhecimento e são registrados pelas autoridades sanitárias.
No município de Ponta Grossa - PR a situação segue o panorama nacional em função da
subnotificação dos casos de ETAs, ausência ou falhas na investigação dos surtos, falta de
estrutura e conhecimento específico dos técnicos da Vigilância Sanitária e Epidemiológica
para concluir a investigação dos surtos, falta de investimentos para melhorar as condições de
trabalho das Vigilâncias Sanitária e Epidemiológica, sem contar o crescente aumento das
ETAs causadas por patógenos não conhecidos, problema este que ocorre também nos países
desenvolvidos. Junte-se a isso, a presença de fatores de risco que aumentam a probabilidade
de ocorrência das ETAs. Para realizar este trabalho foram coletados dados de atendimento
ambulatorial e internações em um hospital do município de Ponta Grossa, dados de
internações hospitalares registrados pelo DATASUS sobre a ocorrência de diarréias e
gastroenterites nos anos de 1999 e 2000, entrevistas com técnicos das Vigilâncias Sanitária e
Epidemiológica, do Instituto de Saúde de Ponta Grossa e da 3a. Regional de Saúde sobre as
condições de funcionamento dos estabelecimentos que servem refeições em grande
quantidade. Foram utilizadas informações fornecidas pelo Centro de Saúde Ambiental (CSA)
da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná sobre a ocorrência de surtos no Estado e no
município de Ponta Grossa. Os resultados obtidos confirmam a maioria daqueles publicados
a respeito do assunto. Nos anos de 1999 e 2000 muitos casos de diarréia e gastroenterite
ocorreram e não constam nos registros da Vigilância Epidemiológica, inclusive as ocorrências
de surtos que não foram notificados às autoridades sanitárias. Também estão presentes no
município muitos fatores de risco que propiciam a disseminação de patógenos transmitidos
pelos alimentos. A conjunção de todos estes fatores nos levou a concluir que há necessidade
de maiores investimentos financeiros e capacitação técnica dos funcionários responsáveis
pelas Vigilâncias, além do desenvolvimento de um programa de Vigilância das ETAs com
base na informação epidemiológica, similar ao programa em funcionamento nos Estados
Unidos da América, denominado “FoodNet”, programa este que, adaptado a nossa realidade,
teria reflexos importantes na investigação e controle das ETAs no Brasil.
ABSTRACT
Currently, in Brazil, it is estimated that only about 10% of the total incidence of foodborne
diseases is reported to the health authorities. In Ponta Grossa, a medium size city in Paraná
state, the situation is not different from the national panorama. This happens in Ponta Grossa
due to the lack of cases notification, no investigation of the outbreaks or even fails when they
are investigated, weakness in the infrastructure of the Surveillance System, which has
technicians with low specific knowledge in its staff, besides it has not received investment to
improve the work conditions. There are also other factors like the increasing of the food-borne
diseases caused by unknown pathogens and the risk factors that enlarge the probability of
outbreaks occurrence. This work is based on data collected from ambulatory attendance and
internments in a hospital in Ponta Grossa, data from hospital internments recorded by
DATASUS about the occurrence of diarrhea and gastroenteritis in 1999 and 2000. Data
gathered from interviews with Vigilância Sanitária e Epidemológica do Instituto de Saúde de
Ponta Grossa and with 3º Regional de Saúde, about the working conditions in the companies
that serve great amount of meals. This work is also based on data provided by Centro de
Saúde Ambiental (CSA) of Secretaria de Estado da Saúde do Paraná about the outbreak
occurrence in Paraná State and in Ponta Grossa. The data collected reaffirm what has been
published about this subject. During the years of 1999 and 2000 occurred a great number of
cases of diarrhea and gastroenteritis and they were not recorded in the Surveillance Systems,
as well as outbreaks occurrence that were not related to the health authorities. There is also in
the city the presence of many risk factors that allow the pathogens dissemination transmitted
by food. The conjunction of all these factors leaded us to the conclusion that is necessary
greater financial investments and technical qualification of the workers responsible for the
Surveillance, and it is also necessary the development of a food-borne diseases monitoring
program based on the epidemiology information. This program could be similar to the
“Foodnet”, which was adopted by United States of America.
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................... 3
ABSTRACT .............................................................................................................................. 4
LISTA DE TABELAS ..............................................................................................................7
LISTA DE FIGURAS............................................................................................................... 9
1.
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA...........................................................................10
2. HIPÓTESE, OBJETIVOS E METODOLOGIA: ...........................................................17
2.1. HIPÓTESE .................................................................................................................... 17
2.2. OBJETIVOS.................................................................................................................. 17
2.2.1.GERAL..................................................................................................................... 17
2.2.2.ESPECÍFICOS ........................................................................................................17
2.3. METODOLOGIA.......................................................................................................... 18
3.1. DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS...................................................................................20
3.2. AGENTE INFECCIOSO............................................................................................... 20
3.3. INFECÇÃO ................................................................................................................... 20
3.4. CONTAMINAÇÃO ......................................................................................................20
3.5. SURTO OU SURTO EPIDÊMICO ..............................................................................20
3.6. DIARRÉIA .................................................................................................................... 21
3.7. ENTEROCOLITES AGUDAS .....................................................................................22
3.8. ENFERMIDADES TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS (ETAS) .......................... 23
3.9. SURTO DE ENFERMIDADES TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS .................... 24
3.10. RISCO ......................................................................................................................... 24
3.11. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA..............................................................................24
4. RESUMO HISTÓRICO: AS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS ..................................... 26
4.1. NA ANTIGÜIDADE.....................................................................................................26
4.2. A IDADE MÉDIA.........................................................................................................29
4.3. RENASCIMENTO........................................................................................................ 30
4.4. O SÉCULO XVIII .........................................................................................................33
4.5. O SÉCULO XIX............................................................................................................35
4.6. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE AS DTAS / ETAS ................................. 43
5. PANORAMA MUNDIAL DAS DOENÇAS TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS
(DTAS) OU ENFERMIDADES TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS (ETAS) ...........46
5.1. INTRODUÇÃO............................................................................................................. 46
5.2. ESTIMATIVA MUNDIAL DAS DTAS / ETAS .......................................................... 47
5.3. SITUAÇÃO ATUAL DAS DTAS / ETAS NO CONTINENTE EUROPEU................ 50
5.4. SITUAÇÃO NO CONTINENTE AFRICANO ............................................................53
5.5. CONTINENTE ASIÁTICO ..........................................................................................54
5.6. OCEANIA ..................................................................................................................... 57
5.7. AMÉRICA DO NORTE................................................................................................57
5.8. AMÉRICA CENTRAL E AMÉRICA DO SUL ...........................................................61
6. RESULTADOS E DISCUSSÃO ....................................................................................... 65
6.1. UM SURTO DE ENFERMIDADE TRANSMITIDA POR ALIMENTOS (ETA)
OCORRIDO NO MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA ....................................................... 65
6.2. SITUAÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS PRODUTORES DE ALIMENTOS NO
MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA-PR. ............................................................................72
6.3. NÚMERO DE ATENDIMENTOS AMBULATORIAS, INTERNAÇÕES E SURTOS
DE ETAS NO MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA-PR. ..................................................... 80
6.4. AGENTES ETIOLÓGICOS CAUSADORES DE ETAS PRESENTES NO
MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA-PR. ............................................................................82
6.5. INFORMAÇÕES SOBRE SURTOS DE ETAS NO ESTADO DO PARANÁ E NO
BRASIL:............................................................................................................................... 84
6.6. O CUSTO DAS ETAS: .................................................................................................93
7. CONCLUSÃO..................................................................................................................... 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................97
LISTA DE TABELAS
TABELA 1: NÚMERO DE SURTOS DE DTAS / ETAS OCORRIDOS EM ALGUNS PAÍSES EUROPEUS
NO PERÍODO DE 1990 A 1997. ............................................................................................ 50
TABELA 2: PORCENTAGEM DE AGENTES ETIOLÓGICOS DE ORIGEM BACTERIANA,
IDENTIFICADOS, ENVOLVIDOS EM SURTOS DE DTAS / ETAS EM PAÍSES EUROPEUS, NO
PERÍODO DE 1990 – 1993................................................................................................... 51
TABELA 3: OCORRÊNCIA DE ALGUMAS DTAS / ETAS NO CONTINENTE AFRICANO, DE ACORDO
COM CLASSIFICAÇÃO DA ESTIMATIVA DA OCORRÊNCIA DE DTAS, DE ORIGEM BACTERIANA.
.......................................................................................................................................... 54
TABELA 4: SURTOS DE DTAS / ETAS, SEGUNDO AGENTE ETIOLÓGICO, NO JAPÃO E
REPÚBLICA DA CORÉIA, NO PERÍODO DE 1971 A 1990....................................................... 55
TABELA 5: SURTOS DE DTAS / ETAS, SEGUNDO LOCAL DE OCORRÊNCIA, NO JAPÃO E
REPÚBLICA DA CORÉIA, NO PERÍODO DE 1971 A 1990....................................................... 55
TABELA 6: SURTOS DE DTAS / ETAS, SEGUNDO ALIMENTOS ENVOLVIDOS, NO JAPÃO E
REPÚBLICA DA CORÉIA, NO PERÍODO DE 1971 A 1990....................................................... 56
TABELA 7: SURTOS DE DTAS / ETAS OCORRIDOS NA AUSTRÁLIA, NO PERÍODO DE 1980-1995,
SEGUNDO AGENTE ETIOLÓGICO DE ORIGEM BACTERIANA .................................................. 57
TABELA 8: DTAS / ETAS RELATADAS E ESTIMADAS NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA,
CAUSADAS POR PATÓGENOS CONHECIDOS, DE ORIGEM BACTERIANA, A PARTIR DE 1996. . 60
TABELA 9: NÚMERO DE SURTOS, DE CASOS E OUTRAS INFORMAÇÕES RELATIVAS A DTAS /
ETAS EM 8 PAÍSES DA AMÉRICA CENTRAL E AMÉRICA DO SUL. ....................................... 63
TABELA 10: NÚMERO DE ESTABELECIMENTOS QUE MANIPULAM ALIMENTOS NO MUNICÍPIO DE
PONTA GROSSA, EM 2002..................................................................................................72
TABELA 11 - MORBIDADE HOSPITALAR DO SUS – INTERNAÇÕES POR FAIXA ETÁRIA,
SEGUNDO LISTA MORBIDADE CID-10 (ALGUMAS DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS)
NO MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA – PR EM 1999. ............................................................. 81
TABELA 12: MORBIDADE HOSPITALAR DO SUS – INTERNAÇÕES POR FAIXA ETÁRIA, SEGUNDO
LISTA MORBIDADE CID-10 (ALGUMAS DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS) NO
MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA – PR, EM 2000. ................................................................. 81
TABELA 13: RESULTADO DA PESQUISA DE SALMONELLA SP. EM CARCAÇAS DE FRANGOS E
PERUS ORIUNDAS DE ABATEDOURO DA REGIÃO DE PONTA GROSSA-PR, REALIZADAS NO
PERÍODO DE MAIO DE 2000 A MAIO DE 2001: .....................................................................83
TABELA 14: DISTRIBUIÇÃO DE OCORRÊNCIA DE SURTOS POR ETAS NOTIFICADOS E NÚMERO
DE DOENTES ACOMETIDAS POR REGIÃO. BRASIL, 1999 E 2000 ......................................... 86
TABELA 15: NÚMERO DE PESSOAS (NÚMEROS MÉDIOS) ENVOLVIDAS EM SURTOS DE ETAS
NOTIFICADOS NO ESTADO DO PARANÁ ENTRE 1978 - 2000 ............................................... 87
TABELA 16: RELAÇÃO ENTRE AGENTES ETIOLÓGICOS E GRUPOS DE ALIMENTOS
INCRIMINADOS EM 1.126 SURTOS DE ETAS NOTIFICADOS, NO ESTADO DO PARANÁ ENTRE
1978 – 1999. ..................................................................................................................... 88
TABELA 17: ALIMENTOS INCRIMINADOS EM SURTOS NOTIFICADOS DE ETA, BRASIL, 19992000 .................................................................................................................................. 89
TABELA 18: AGENTES ETIOLÓGICOS INCRIMINADOS EM SURTOS DE ETA, BRASIL, 1999-2000
.......................................................................................................................................... 89
TABELA 19: LOCAIS DE OCORRÊNCIA DE SURTOS DE ETAS NOTIFICADOS NO ESTADO DO
PARANÁ ENTRE 1978 – 2000. ........................................................................................... 90
TABELA 20: DISTRIBUIÇÃO DE SURTOS DE ETAS POR LOCAL DE OCORRÊNCIA, BRASIL 19992000 .................................................................................................................................. 91
TABELA 21: FATORES CONTRIBUINTES ASSOCIADOS PARA A OCORRÊNCIA DE SURTOS DE ETAS
NOTIFICADOS NO PARANÁ ENTRE 1978 – 2000.................................................................. 92
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: INTER-RELAÇÃO DE FATORES QUE CONTRIBUEM PARA A
INEFICÁCIA DO CONTROLE DAS ETAS. .................................................................49
FIGURA 2: ESQUEMA PARA INVESTIGAÇÃO DE SURTOS DE ETA NO BRASIL..... 71
10
1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
Os alimentos são essenciais à vida. Eles têm o objetivo de fornecer ao organismo
combustível, através da oxidação lenta, e material de construção e reparo dos tecidos, além de
regular as funções orgânicas. Convém distinguir alimentação e nutrição. A alimentação é o
fornecimento ao organismo de todas as substâncias necessárias para seu crescimento,
manutenção e reprodução. A nutrição ocorre na intimidade do organismo, constituindo-se na
transformação, assimilação, aproveitamento ou rejeição dos alimentos ingeridos (Riedel,
1992).
Desde 1900, nosso entendimento acerca da importância dos microrganismos em
alimentos tem aumentado muito, tanto no aspecto desejável, ou seja, nos processos de
produção, como no aspecto indesejável, quer seja, na deterioração e na produção de doenças
(Ray, 1996).
No mundo contemporâneo, as doenças transmitidas por alimentos constituem um
dos problemas sanitários mais amplamente difundidos no planeta, apesar de todo o
conhecimento científico de nossos dias. Os estudos existentes parecem comprovar que os
contaminantes biológicos são, na atualidade, a principal causa dessas doenças (Adam & Moss,
1997)
Durante a produção, processamento, embalagem, transporte, preparação,
conservação e consumo, qualquer alimento pode ser exposto à contaminação por substâncias
tóxicas ou por microrganismos infecciosos e/ou toxigênicos. Falhas no processamento e/ou
conservação podem permitir a sobrevivência e proliferação de microrganismos patogênicos e
seus produtos tóxicos. O consumo de tais alimentos pode causar doenças, conhecidas, através
do termo geral: “Doença transmitida por alimento” (DTA) ou “Enfermidade transmitida por
alimento” (ETA) , que podem resultar em morte, incapacidade de retorno ao trabalho ou para
cuidar da casa e da família. Durante a recuperação, as atividades do indivíduo afetado podem
estar muito limitadas. Portadores assintomáticos podem, ainda, inadvertidamente, contaminar
os alimentos ou outras pessoas. Adicionalmente, somente há pouco tempo foi reconhecido
que algumas doenças diarréicas podem causar seqüelas aparentemente não relacionadas a
elas, como artrite, problemas cardíacos, alergias alimentares e outros. Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), 1984, episódios reiterados de ETAs podem iniciar ou intensificar a
desnutrição (Giova, 1997).
11
Convém salientar que os alimentos de origem animal estão mais associados às
ETAs do que alimentos de origem vegetal e que um número cada vez maior de tecnologias
efetivas vêm sendo desenvolvidas com a finalidade de garantir a segurança alimentar para os
consumidores (Ray, 1996).
Grandes perdas econômicas relativas aos alimentos ocorrem por deterioração
ocasionada pelo desenvolvimento microbiano no tempo decorrido entre a colheita ou captura
até o consumo, bem como, pelos gastos com as ETAs. O custo real da deterioração é de difícil
quantificação, mas é considerável e de modos diversos adicionado ao custo do produto final.
O custo real dos gastos com ETAs também raramente é quantificado em razão da
subnotificação e da não notificação dos casos, exceto na ocorrência de surtos extensos e/ou
graves, quando as circunstâncias e conseqüências são amplamente estudadas (Giova, 1997).
Somente nos últimos anos têm sido feitas sérias tentativas para determinar com
alguma exatidão o custo real das ETAs. Muitas publicações concordam que tais custos são
muito altos, traduzidos em centenas de libras (na Inglaterra), quando não há necessidade de
internação hospitalar e, até milhares de libras, quando há necessidade de atendimento
hospitalar, sobretudo em caso de recuperação prolongada. As conseqüências econômicas para
a empresa ou estabelecimento envolvidos em surtos de ETAs, são, via de regra, catastróficas
(Giova, 1997).
Do ponto de vista da Saúde Pública, a população deve ter ao seu alcance
alimentos de boa qualidade, dentro dos padrões normalizados, não apenas em valores
nutricionais, mas, também, em boas condições higiênico-sanitárias, livres de agentes
microbianos ou químicos nocivos que possam, de alguma forma, afetar a saúde do
consumidor (Correia & Roncada, 1997).
Inúmeras publicações científicas, nestes últimos anos, têm relatado o aumento dos
casos de enfermidades transmitidas por alimentos em nível mundial, resultando em altos
índices de morbidade, aumento da mortalidade e perdas econômicas consideráveis (CDC,
2000).
Uma combinação de fatores, tais como: mudanças na produção, distribuição e
consumo de alimentos, aliadas a alterações no estilo de vida dos consumidores (como o
aumento, por exemplo, da utilização de restaurantes e produtos industrializados prontos para o
consumo), afetaram o modo de preparo e armazenamento dos alimentos, determinando, por
sua vez, infecções por inúmeros agentes patogênicos (Nervino & Hirooca, 1997).
12
Esses patógenos apresentam características em comum, pois praticamente todos
têm como reservatório algumas espécies de animais de produção (bovinos, suínos e aves, por
exemplo) inclusive animais sadios, possibilitando a transmissão de doenças através dos
produtos de origem animal contaminados (Tauxe,1997).
Esses agentes podem se espalhar rapidamente pelo planeta. Por exemplo, Yersínia
enterocolítica apareceu, simultaneamente, em muitos lugares do mundo na década de 1970;
Salmonella sorotipo enteritidis apareceu na década de 1980 em vários lugares do mundo,
inclusive nos Estados Unidos da América, e Salmonella tiphimurinum DT 104 está
aparecendo na América do Norte, Europa e provavelmente em muitos outros lugares (Tauxe,
1997).
Fatores como a explosão demográfica ocorrida no século XX, as precárias
condições higiênico-sanitárias, que prevalecem ainda em muitos locais, o uso indiscriminado
de agrotóxicos nas plantações [que continua sendo a principal estratégia no campo para o
combate e prevenção de pragas agrícolas, sendo que o Brasil aparece como quarto mercado
mundial em valores absolutos e o oitavo no mundo em uso por área cultivada (Caldas e
Souza, 2000)]: de antibióticos e hormônios em animais e aditivos em alimentos
industrializados agravam o quadro de morbi-mortalidade por doenças de veiculação alimentar
que se encontram amplamente distribuídas por todo o planeta (Nervino & Hirooca, 1997).
A produção e distribuição de alimentos pelas empresas multinacionais e a
progressiva abertura do mercado têm permitido a prosperidade do comércio internacional de
produtos alimentícios. Em 1994, essas indústrias movimentaram cerca de 26 bilhões de
dólares, em média, 300% acima do que movimentavam há vinte anos. E o negócio continua
crescendo rapidamente. A globalização no comércio de alimentos, como já mencionado,
embora possa oferecer muitos benefícios e oportunidades, também apresenta novos riscos
para a transmissão de doenças de veiculação alimentar (Kaferstein et al., 1999).
Dados coletados pelos serviços de vigilância epidemiológica em alguns países
industrializados também confirmam que as ETAs constituem um dos problemas de saúde de
maior incidência e vem crescendo ano a ano nas últimas três décadas. Parte desse aumento
pode ser atribuído à melhoria no sistema de coleta de informações e no diagnóstico das ETAs,
aumento da publicidade sobre o cuidado com os alimentos e preocupação com a segurança
alimentar da população em geral. Entretanto, o aumento não pode ser explicado apenas pela
melhoria no sistema de vigilância nos países desenvolvidos. O crescimento na incidência das
13
ETAs tem sido observado em diferentes países, inclusive naqueles onde o sistema de
vigilância ainda é incipiente (Kaferstein et al., 1999).
Nos EUA, o CDC, no seu relatório preliminar sobre incidência de surtos de ETA
no ano de 2000, apontou que 76 milhões de pessoas contraem a doença, definindo surto de
origem alimentar como “ocorrência de dois ou mais casos da doença associados a um único
alimento”. Também foi relatado que a cada ano, ocorrem 325 mil hospitalizações, 5.200
óbitos por doenças de origem alimentar com custos estimados em mais de um bilhão de
dólares (CDC, 2000).
Entre 1983 e 1987, nos Estados Unidos da América (EUA), o agente etiológico
causador de surtos não era identificado em 62% dos casos; entre 1988 e 1992, os agentes
permaneciam desconhecidos em 59% das investigações. Quando o agente era identificado, as
bactérias patogênicas eram responsáveis por 79% dos surtos, sendo que, as Salmonellas
causaram 69% dos surtos de origem bacteriana. Os fatores mais comumente relacionados a
esses surtos foram: temperatura de conservação, cozimentos inadequados e a falta de higiene
dos manipuladores no preparo dos alimentos. Em 1.996, o sistema de vigilância sobre doenças
veiculadas por alimentos e água incorporou, ao relatório anual do CDC, todos os surtos de
doenças entéricas atribuídas a microrganismos e produtos químicos, sistema esse que
melhorou o nível de conhecimento sobre os métodos de prevenção das ETAs (Collins, 1999).
Mesmo assim, e apesar de existirem ativos sistemas de vigilância epidemiológica
nos países tidos como desenvolvidos, reconhece-se que os dados não retratam a totalidade dos
surtos ocorridos. No Brasil, onde tal sistema é incipiente, os relatos são muito escassos
(Jakabi & Buzzo, 1999).
A estimativa anual de casos sobre gastroenterite na América Latina, África e Ásia,
com exceção da China, é de um bilhão de eventos em crianças com idades inferiores a 5 anos,
resultando em mais de 5 milhões de mortes, sendo a maioria causada pelo consumo de
alimentos contaminados (Nervino & Hirooca, 1997).
Segundo Davi Heymann (citado por Paneta, 2001), diretor para doenças
transmissíveis da Organização Mundial de Saúde, seis doenças infecciosas fazem 13 milhões
de vítimas a cada ano em todo o mundo, contribuindo com cerca de 25% dos óbitos do
planeta: AIDS, malária, tuberculose, pneumonia, sarampo e diarréia. As causas dessa
situação, ainda de acordo com Heymann, residem na globalização, uma vez que as doenças
viajam rapidamente com os passageiros, alimentos e animais e, também, no fato de que as
14
drogas utilizadas para combater essas doenças têm uma distribuição ainda muito precária nos
países em desenvolvimento.
Relatório apresentado pelo LACEN-PR, no ano de 1995, mostra que, no período
entre 1988 e 1992, ocorreram 5.218 óbitos por doenças infecciosas intestinais, equivalentes a
uma média de 1.044 óbitos por ano no Estado do Paraná. Apesar desse percentual estar aquém
da realidade, acredita-se que muitos desses óbitos possam estar relacionados a alimentos
contaminados (Motarjemi et al., 1994).
Ainda, segundo esse relatório, as internações hospitalares por ETAs, no período
de 1990 a 1994, representaram uma média de 4,3% do total no Estado do Paraná; somente no
ano de 1994 foram 1.846 internações por ETAs. Neste caso, também acredita-se que os dados
apresentados não refletem a verdadeira extensão do problema, uma vez que, na maioria das
vezes, do diagnóstico constam, apenas, expressões como: “Infecções intestinais mal
definidas” (LACEN, 1994).
A Conferência Pan-Americana da Saúde, autoridade máxima da Organização PanAmericana da Saúde (OPAS), determina a direção a ser seguida na área da Saúde. Segundo
suas orientações estratégicas e programáticas para a Repartição Sanitária Pan-Americana
1999-2002, apesar dos progressos alcançados, as doenças diarréicas, as infecções respiratórias
agudas e a desnutrição continuam sendo as principais causas de morte na população menor de
5 anos, na maioria dos países com renda média e baixa da América Latina. Algumas doenças
de veiculação alimentar, embora sejam conhecidas, são consideradas emergentes porque estão
ocorrendo com maior freqüência, tendo ocasionado surtos epidêmicos em muitos países nos
últimos 10 anos. Bactérias do gênero Salmonella continuam sendo uma das principais causas
de surtos, sobretudo nos países de renda mais baixa, não podendo ser esquecida a epidemia
de cólera que provocou mais de 1,3 milhões de casos, dos quais 11.500 foram fatais.
Apareceram novas doenças transmissíveis e reapareceram outras julgadas bem controladas,
enquanto aumentava a resistência de certos microrganismos infecciosos aos antibióticos
(OPAS, 1998).
Para interromper a cadeia de transmissão das doenças de veiculação alimentar, as
ações da Vigilância Epidemiológica e Vigilância Sanitária são de fundamental importância
sendo que, deve haver um eficiente sistema de vigilância sanitária e inspeção animal e
fitossanitária realizadas pelos Órgãos competentes (Ministérios e Secretarias Estaduais e
Municipais de Saúde e Agricultura e Abastecimento), de modo a reduzirem-se os riscos e
15
fazendo com que se implemente um sistema de notificação eficaz, com capacidade para
informar com rapidez os casos de doença (Jakabi & Buzzo, 1999).
Trabalhos publicados em revistas especializadas têm apontado três fatores
importantes no controle de surtos epidêmicos de ETAs: um sistema adequado de notificação,
a análise das ETAs e a existência de laboratório de referência identificando o(s) agente(s)
patogênico(s) causador(es) do surto. A estimativa de casos não notificados no Brasil situa-se,
em torno de 90 a 95%, o que impossibilita o desenvolvimento de adequadas medidas
profiláticas direcionadas ao controle desse quadro de morbi-mortalidade por ETA (Jakabi &
Buzzo, 1999).
No Estado do Paraná, foi implantado, no ano de 2000, o programa
“Monitorização das diarréias agudas” (MDDA), com o objetivo de rastrear possíveis surtos de
cólera em virtude daquele ocorrido no município de Paranaguá, no ano de 1996. Dentro deste
plano, todos os hospitais e Unidades de Saúde do município de Ponta Grossa deveriam
notificar à Vigilância Epidemiológica local os casos de diarréia atendidos, mas somente um
hospital, algumas unidades de saúde e o Pronto Socorro Municipal repassam mensalmente as
informações. Entretanto, tal informação não parece estar sendo atualmente aplicada em
programas específicos. Por exemplo, o programa poderia ser eficaz se fossem utilizados e
inter-relacionados, para identificação de possíveis surtos de ETAs, dados confiáveis gerados
pelas equipes médicas hospitalares, do órgão regional de proteção ambiental e do Serviço de
Inspeção do Paraná (SIP), educação populacional e as ações das vigilâncias sanitária e
epidemiológica.
Como visto, podemos observar que está havendo uma preocupação, em nível
mundial, por parte das autoridades sanitárias, em relação às enfermidades de veiculação
alimentar, ocasionado pelo aumento do número de casos diagnosticados em todo o planeta.
Porém, a presença dos riscos, a ineficácia dos sistemas de vigilância sanitária e
epidemiológica e a subnotificação são fatores que contribuem para a ausência de controle das
ETAs.
Possivelmente presentes em todo o território nacional, esses fatores são os
determinantes da relevância desse trabalho que pretende demonstrar sua presença e
conseqüências potenciais, no município de Ponta Grossa, Paraná. Associadamente, pretendese, também, fornecer subsídios ao serviço municipal de Vigilância Epidemiológica, visando
otimizar o mapeamento das ETAs em Ponta Grossa, objetivando o adequado controle de
16
surtos, bem como ao serviço de Vigilância Sanitária, na identificação dos riscos existentes no
município para a ocorrência de ETAs.
17
2. HIPÓTESE, OBJETIVOS E METODOLOGIA:
2.1. HIPÓTESE
A incidência de casos de enfermidades transmitidas por alimentos no município de
Ponta Grossa é maior do que aquela registrada nos órgãos oficiais, devido à conjunção entre a
existência de fatores de risco, a eficácia limitada dos serviços de vigilância sanitária e
epidemiológica e a subnotificação dos casos.
2.2. OBJETIVOS
2.2.1.GERAL
Caracterizar a existência de fatores de risco para enfermidades transmitidas por
alimentos, a eficácia limitada dos serviços de Vigilância Sanitária e Epidemiológica nas ações
vinculadas a estas doenças e a subnotificação de casos, no período 1999-2000, no município
de Ponta Grossa - PR.
2.2.2.ESPECÍFICOS
a- Realizar análise crítica da investigação de um surto de ETA ocorrido entre
funcionários de uma indústria madeireira, cujas refeições são preparadas por uma empresa
terceirizada.
b- Tipificar alguns dos agentes etiológicos, número de surtos e indivíduos expostos
e acometidos, além dos locais envolvidos em surtos de ETA no município de Ponta Grossa,
no período 1999-2000, utilizando os dados fornecidos pela SESA/ISEP e comparar estes
dados com os do Estado do Paraná e do Brasil.
c- Comparar o número de atendimentos de emergência de ETAs no Hospital da
Santa Casa de Misericórdia do Município de Ponta Grossa - PR , e aqueles registrados como
tal na Vigilância Epidemiológica da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa, nos anos de 1999
– 2000.
d – Comparar o número de atendimentos relativos às internações hospitalares por
ETAs no Município de Ponta Grossa, Paraná, registrados no SUS, com aqueles relativos ao
número de casos registrados no Serviço de Vigilância Epidemiológica do mesmo município.
18
2.3. METODOLOGIA
O início do trabalho foi a análise crítica de um surto de ETA ocorrido na data de
02/10/2001, entre os funcionários de uma indústria madeireira, que receberam refeições
servidas por uma empresa terceirizada. Nessa ocasião pudemos acompanhar a investigação do
surto realizado pelo serviço municipal de Vigilância Epidemiológica e Sanitária de Ponta
Grossa, através da técnica de observação participante. Também foi realizada entrevista do tipo
focalizada com técnicos das Vigilâncias Sanitária e Epidemiológica do município de Ponta
Grossa com intuito de verificar as condições e elaboração de registros relativos à
investigação, e medidas tomadas com relação à empresa que forneceu as refeições. Foi
verificado também se a equipe definiu o (s) alimento (s) suspeito (s) e o agente patogênico
que causou a doença.
NOTA: Algumas das observações e críticas constantes nesta dissertação vêm da experiência
que tivemos ao longo de dez anos de trabalho na Vigilância Sanitária da 3a. Regional de
Saúde de Ponta Grossa – PR.
O objetivo desta análise foi avaliar em um caso específico, a possível existência
do risco de ETA, a limitação dos sistemas de Vigilância Sanitária e Epidemiológica do
município de Ponta Grossa na investigação de surtos, inclusive quanto à subnotificação de
casos de ETA na região.
A tipificação dos agentes etiológicos, o número de surtos e indivíduos expostos e
acometidos envolvidos nos episódios de ETAs no município de Ponta Grossa, foram
estudados a partir da análise dos dados disponíveis, correspondentes aos anos de 1999 e 2000,
no Centro de Saúde Ambiental, do Instituto de Saúde do Paraná, da Secretaria de Saúde do
Estado do Paraná.
Para cumprir os objetivos de comparar os casos registrados como ETA na Santa
Casa e os registros destes na VIEPI, assim como aqueles do SUS com os registros da VIEPI,
foi realizada análise documental e, apenas, o demonstrativo, quando foi o caso, de diferenças
quantitativas existentes de modo absoluto e percentual. Tendo em vista o objeto do estudo,
não coube a avaliação de significância estatística nestas diferenças já que qualquer dado
diferente da igualdade entre os registros permitiria a obtenção dos objetivos expressos. A
técnica empregada para a coleta dos dados foi análise documental dos arquivos da Santa Casa,
19
dos dados de morbidade hospitalar do SUS, registrados no DATASUS para os anos de 1999 e
2000 e aqueles da VIEPI.
Finalmente através de entrevista focalizada com os técnicos e análise das fichas
de inspeção do Serviço Municipal de Vigilância Sanitária verificamos a qualidade dos
estabelecimentos que manipulam alimentos no município de Ponta Grossa, em termos de
condições de higiene, conservação dos alimentos, manutenção dos alimentos em temperatura
correta, situação da área física dos estabelecimentos, utilização de metodologias para garantia
da segurança alimentar (como implementação do sistema HACCP) e outros constantes da
legislação vigente, estabelecendo assim possíveis riscos para a ocorrência de surtos de ETAs.
20
3. CONCEITOS APLICÁVEIS À DISSERTAÇÃO
Para efeito desse trabalho, foram considerados os seguintes conceitos:
3.1. DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS
São as doenças causadas por agentes específicos (ou seus produtos metabólicos),
que resultam da transferência do agente (ou de seus produtos), de forma direta ou indireta, de
um reservatório para um hospedeiro suscetível. As doenças transmissíveis correspondem às
denominadas doenças infecciosas e parasitárias. Embora na literatura médica inglesa se utilize
a expressão doença infecciosa para aquelas causadas por microrganismos (vírus, bactérias,
fungos e protozoários) e helmintos, alguns autores, no Brasil, limitam-na às doenças causadas
por microrganismos (vírus, bactérias, fungos), atribuindo o nome de doença parasitária
exclusivamente àquelas causadas por protozoários e helmintos (Baldy, 1991).
3.2. AGENTE INFECCIOSO
Denomina-se Agente Infeccioso todo organismo, microscópico ou identificável a
vista desarmada, capaz de causar uma infecção (Baldy, 1991).
3.3. INFECÇÃO
Dá-se o nome de Infecção à penetração e/ou desenvolvimento dos agentes
infecciosos no organismo dos hospedeiros. Nas infecções veiculadas pelas fezes, usualmente
em água ou alimentos contaminados, diz-se que a transmissão ocorre pela via fecal-oral
(Baldy, 1991).
3.4. CONTAMINAÇÃO
Contaminação é o termo empregado para indicar a presença de microrganismos
ou de seus produtos tóxicos na água, em alimentos, no solo, em objetos ou, transitoriamente,
na superfície do corpo (mãos, cabelos, etc.), sem a ocorrência de colonização ou infecção.
Roupas e objetos de uso pessoal de doentes, freqüentemente contaminados, recebem o nome
de fômites (Baldy, 1991).
3.5. SURTO OU SURTO EPIDÊMICO
Surto é a denominação usual para a epidemia que se limita a um número
relativamente pequeno de casos e que se encontra restrita ao espaço, em maior ou menor grau.
Os surtos estão geralmente circunscritos a bairros, escolas, hospitais, quartéis ou restaurantes.
Epidemia é a denominação da ocorrência de uma doença em grande número de pessoas ao
21
mesmo tempo. Em sentido restrito, pode ser considerada uma alteração espacial e
cronologicamente delimitada, ao estado de saúde-doença de uma população, caracterizada por
uma elevação progressivamente crescente, inesperada e descontrolada dos coeficientes de
incidência de determinada doença, ultrapassando e reiterando valores acima do limiar
epidêmico preestabelecido (Baldy, 1991; Rouquayrol, 1993).
3.6. DIARRÉIA
Como sinal clínico, a diarréia pode ser descrita, de modo simplista, como
aumento na freqüência, fluidez ou volume das evacuações intestinais, freqüentemente
acompanhada por sintomas como dor abdominal de grau variado e a sintomatologia retal que
se traduz pelo tenesmo. Limitando o fenômeno diarréico somente às modificações de
consistência, volume e fluidez, deve ser obrigatoriamente relacionado ao número de
evacuações diárias que varia de indivíduo para indivíduo. Tanto na criança quanto no
indivíduo adulto, o hábito regular pode ser diário, como pode se dar de duas a três vezes ao
dia, ou fazer-se em dias alternados. Desde que o padrão individual seja modificado, sobretudo
em função das três variáveis mencionadas (aumento do número de evacuações, fluidez ou
volume), caracteriza-se, então, a diarréia (Dani & Castro, 1981).
Waldman et al (1997) definiram caso de diarréia como “a ocorrência de três ou
mais evacuações líquidas em 24 horas, com ou sem sangue, pus ou muco. O reaparecimento
dos sintomas após sete dias ou mais, foi considerado como novo episódio” (Waldman et al,
1997).
No estudo das diarréias é importante a verificação do modo de início, que pode
ser súbito ou insidioso; as diarréias agudas, em geral, começam abruptamente, são
autolimitadas, com duração inferior a duas semanas e são causadas, geralmente, por bactérias,
protozoários ou helmintos (Borba Jr. et a.l., 1983).
Arbitrariamente se define diarréia aguda, aquela que tem menos de 15 dias de
duração. Em geral seu início é súbito e explosivo, ao contrário das diarréias crônicas que
surgem de forma insidiosa (Borba Jr. et al., 1983).
Caso decorram de uma forma inicial aguda, as diarréias crônicas podem ser
definidas como aquelas que ultrapassarem a um período de 15 dias. Tal quadro representaria
cronicidade em função do avanço da enfermidade além do tempo previsto. No entanto, esse
conceito de diarréia crônica geralmente não é válido porque variantes podem ser admitidas,
22
principalmente em crianças, como: erro inato (intolerâncias primárias a mono e dissacarídeos,
ou microbiota anômala), falta de aleitamento materno ou convivência em ambientes altamente
contaminados, fatores estes que podem determinar diarréias persistentes a partir do primeiro
dia de vida. Imunodeficiências primárias ou secundárias podem também propiciar surtos
isolados de diarréias recidivantes, conforme as oscilações que ocorram no sistema
imunológico (Dani & Castro, 1981).
Há ocorrência de febre nas diarréias causadas por agentes infecciosos que atuam
por invasão da mucosa ou produção de toxinas (Borba Jr. et al., 1983).
O aspecto das fezes oferece importantes informações. Líquidas e volumosas,
caracterizam as diarréias toxigênicas; contendo muco, pus e sangue, configuram disenteria e
rotulam as diarréias infecciosas invasivas, geralmente acompanhadas por destruição de
tecidos, como acontece nas doenças inflamatórias intestinais (Borba Jr. et al., 1983).
As bactérias enteropatogênicas produzem diarréia pela sua capacidade de invadir
a mucosa intestinal ou de produzir enterotoxinas, ou ambas (Sleisenger & Fordtran, 1981).
3.7. ENTEROCOLITES AGUDAS
As enterocolites agudas de origem bacteriana e virótica são doenças inflamatórias
dos intestinos que se manifestam clinicamente como uma diarréia aguda e são, em cerca de
80% dos casos, autolimitadas. Enquanto nos países desenvolvidos os vírus são responsáveis
pela maior taxa de diarréia infecciosa, nos países pobres, as bactérias patogênicas têm sido
identificadas em 40 a 50% dos processos diarréicos agudos e as viroses têm uma incidência
entre 10 a 20%. Dentre as bactérias comprovadamente enteropatogênicas, as mais importantes
em relação à incidência, são: Escherichia coli, Shigella, Salmonmella e Vibrio cholerae.
Também são consideradas importantes: Campylobacter jejuni, Yersínia enterocolítica e
Bacillus cereus. O Staphylococcus aureus pode causar diarréia aguda, através da ação de sua
toxina (Dani & Castro, 1981).
Existem pelo menos dois mecanismos bem estabelecidos, pelos quais diferentes
bactérias podem causar diarréia:
SECREÇÃO INTESTINAL: Mecanismo pelo qual são responsáveis as
toxinas termolábeis produzidas por algumas linhagens de Escherichia coli e
Vibrio cholerae. Neste caso há uma intensa secreção de água e eletrólitos na
luz intestinal. Nas diarréias toxigênicas não há substrato anatomo-patológico,
23
isto é, a mucosa intestinal permanece íntegra, havendo uma aderência da
bactéria às microvilosidades do intestino delgado, fator necessário para a
elaboração das enterotoxinas (Dani & Castro, 1981).
INVASÃO DA MUCOSA: A exemplo da Shigella, algumas linhagens podem
invadir a mucosa colônica, formando ulcerações e conseqüente processo
inflamatório. Nestes casos, o quadro disentérico é o mais típico (Dani &
Castro, 1981).
3.8. ENFERMIDADES TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS (ETAs)
Em 1980, Bryan utilizou o termo Doenças de origem alimentar (“foodborne
diseases”) para designar as síndromes causadas pela ingestão de alimentos onde estariam
presentes agentes tóxicos ou infecciosos, ou seja, as intoxicações ou infecções,
respectivamente. O mesmo autor cita que as intoxicações seriam causadas pela ingestão de
qualquer substância tóxica, encontrada em tecido animal ou vegetal ou toxinas elaboradas por
microrganismos. As infecções seriam de origem bacteriana e esses microrganismos
alcançariam o trato intestinal elaborando enterotoxinas, produzindo as toxinfecções. As
infecções também seriam causadas por microrganismos que invadem a mucosa intestinal,
onde se multiplicam podendo atingir outros órgãos (Gonçalves, 1998).
Satin, em 1999, utiliza a designação toxinfecção alimentar, como um termo
geral, aplicado a todas as gastroenterites de origem alimentar e refere-se à irritação e
inflamação do trato digestivo. A gastroenterite é resultado da ingestão de alimentos que
contêm cargas virulentas de microrganismos patogênicos ou de suas toxinas (Schuller, 2000).
A RDC 12 de 02 de janeiro de 2001, Resolução da Diretoria Colegiada da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, que estabelece os padrões
microbiológicos sanitários para alimentos destinados ao consumo humano, define Doença
Transmitida por Alimento, como sendo, aquela “causada pela ingestão de um alimento
contaminado por um agente infeccioso específico, ou pela toxina por ele produzida, por meio
da transmissão desse agente ou de seu produto tóxico” (ANVISA, 2001)
Franco & Landgraf (1996), definem duas grandes categorias de doenças de
origem alimentar, causadas por microrganismos: As intoxicações alimentares, causadas pela
ingestão de alimentos contendo toxinas microbianas pré-elaboradas nestes alimentos. Estas
toxinas são produzidas durante a intensa proliferação dos microrganismos patogênicos,
24
presentes no alimento. Neste grupo, enquadram-se Clostridium botulinum, Staphylococcus
aureus, Bacillus cereus e fungos produtores de micotoxinas. As infecções alimentares são
causadas pela ingestão de alimentos contendo células viáveis de microrganismos patogênicos.
Estes microrganismos aderem à mucosa do intestino humano e proliferam, colonizando. Em
seguida, pode haver a invasão da mucosa e penetração nos tecidos, ou ainda, a produção de
toxinas que alteram o funcionamento das células do trato intestinal. Entre as bactérias
invasivas, destacam-se: Salmonella, Escherichia coli enteroinvasiva, Yersínia enterocolítica,
entre outras. Entre as toxigênicas, incluem-se Vibrio cholerae, Escherichia coli
enterotoxigênica, Campylobacter jejuni, Clostridium perfringens entre outras (Franco &
Landgraf, 1996).
3.9. SURTO DE ENFERMIDADES TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS
O Center for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos da
América, define surto de doença de origem alimentar, como a ocorrência de dois ou mais
casos de doença associados a um único alimento (Franco & Landgraf, 1996).
3.10. RISCO
É a probabilidade estimada da ocorrência de um dano ou perigo à saúde. Risco
não se determina e sim se avalia ou estima. A ocorrência de um ou vários danos, no caso de
enfermidades transmitidas por alimentos, está na dependência de situações que permitam a
contaminação, a sobrevivência e/ou a multiplicação de microrganismos e varia de acordo com
determinadas condições (Silva Jr., 1995).
3.11. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA
Incidência em Epidemiologia refere-se ao número de casos novos de doença em
uma determinada população e a Prevalência aos casos existentes da doença, também em uma
determinada população. Para conhecer a incidência, especifica-se a duração do tempo de
observação de surgimento de casos novos (exemplo: incidência de casos de sarampo no
Estado do Paraná durante o ano). A prevalência de um evento, por sua vez, informa o número
de casos existentes (exemplo: casos de tuberculose no Brasil, nos dias de hoje). A incidência
reflete a dinâmica com que os casos aparecem no grupo, já a prevalência é estática (Pereira,
2001).
Julgamos importante e conveniente a colocação dos conceitos acima, para um
melhor entendimento acerca do assunto desta dissertação e também porque, no decorrer da
25
pesquisa, nos deparamos com
diferentes definições para cada um dos itens
supramencionados. É necessário que haja uma padronização de termos para que possamos
comparar os dados obtidos em diferentes regiões do país e também seria importante uma
padronização em nível internacional como primeiro passo para um estudo aprofundado dos
dados obtidos nos diversos países.
26
4. RESUMO HISTÓRICO: AS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS
4.1. NA ANTIGÜIDADE
A vida em comunidade sempre esteve relacionada com os grandes problemas de
saúde enfrentados pelos homens, ao longo de sua história. A preocupação com o controle das
doenças transmissíveis, a melhoria do ambiente físico, a higiene das habitações, a provisão de
água e alimentos inócuos, a assistência médica e o alívio da incapacidade física e do
desamparo, evidenciam esse fato (Rosen, 1994).
A doença tem sido sempre, motivo de aflição para o ser humano, pois a
enfermidade é inerente à vida, mas o homem tem trabalhado para enfrentar essa realidade da
melhor maneira. Estudos da paleopatologia demonstram não apenas a antiguidade da doença,
mas sua ocorrência de modo similar: infecção, inflamação, distúrbios do desenvolvimento e
do metabolismo, traumatismos e tumores. Entretanto, há diferenças na ocorrência das
enfermidades, conforme o tempo e o espaço geográfico em que elas aparecem (Rosen, 1994).
Desde a antigüidade, os alimentos têm sido relacionados com a transmissão de
doenças. Em numerosas fontes escritas, como no Antigo Testamento, documentos de
Confúcio, do Hinduismo e do Islamismo, podemos encontrar referências às normas que
regulam a higiene dos alimentos. Estas primeiras escritas possuem um conceito muito vago
quanto às causas biológicas das doenças transmitidas por alimentos e algumas das normas
nelas contidas provavelmente tenham tido uma ligeira influência em sua incidência (Adams &
Moss, 1997).
O livro do Levíticus registra que Moisés elaborou leis para proteger seu povo
contra as doenças infecciosas. As mãos deveriam ser lavadas após o sacrifício de animais e
antes das refeições. Leis foram estabelecidas para o consumo de animais comestíveis de todos
os tipos. Animais proibidos incluíam os suínos, hoje conhecidos como freqüentes excretores
de bactérias do gênero Salmonella, assim como reservatórios de parasitas, como a Taenia
solium. Dos habitantes da água, apenas aqueles com barbatanas e escamas podiam servir de
alimento. Dentre as aves, há uma extensa lista de proibições, sobretudo aquelas carnívoras,
incluindo urubus, águias, garças e gaivotas (Hobbs, 1998).
Porém, a maior parte das descrições de intoxicações alimentares registradas na
história antiga parece, de acordo com Hobbs (1998), estar geralmente associadas a toxinas
27
químicas, a maioria delas ofertada com o intuito de provocar a morte naqueles que as
ingerissem.
Os primeiros relatos nítidos sobre as doenças comunicáveis (não necessariamente
de origem alimentar) ocorreram nos escritos da Grécia Clássica. Tucídides descreve uma
epidemia em Atenas, no segundo ano da guerra do Peloponeso. A peste descrita por Tucídides
ocorreu no ano de 430 a.C., logo após a invasão da cidade de Atenas pelos espartanos.
Notícias que circulavam davam conta de que a doença já havia acometido outros lugares, mas
em Atenas a doença foi muito grave e ocorreu de forma mais violenta, matando milhares de
Atenienses. Apesar de Tucídides não ter especulado a causa da epidemia, descreveu com
grande cuidado seus sintomas:
“Se alguém já estava doente antes, sua enfermidade se transformava na
peste. Os outros, sem nenhum sinal de aviso, em plena saúde, eram tomados
inicialmente por um forte calor na cabeça, vermelhidão e inflamação dos olhos. As
partes internas, como a garganta e a língua, ficavam sanguinolentas e emitiam um
hálito fétido e repugnante. Esses sintomas eram seguidos por espirros e rouquidão,
e logo depois a doença descia ao peito, manifestando-se por uma tosse violenta.
Depois fixava-se na boca e no estômago, revolvendo-o; e seguiam-se descargas de
bílis de todos os tipos catalogados pelos médicos, acompanhados por sofrimento
atroz. (...) os órgãos internos queimavam tanto que os enfermos não suportavam o
contato das roupas e tecidos, mesmo os mais finos; desnudavam-se completamente e
queriam jogar-se na água fria. E muitos de fato o faziam, jogando-se nos poços,
oprimidos por uma sede insaciável; mas não faz diferença se bebiam muito ou
pouco.” (Martins, 1997, Rosen, 1994).
Curiosamente, a maioria das doenças transmissíveis, não aparece no Corpo
Hipocrático, mas a transmissibilidade das doenças é reconhecida há muitos séculos, muito
antes de se conhecer as suas causas (Rosen, 1994).
Na teoria hipocrática, as epidemais eram causadas por alguma influência, em geral
climática, que atingia ao mesmo tempo grande faixa da população. Não havia menção ao
contágio, em contraste com a visão popular, que admitia a transmissão das doenças de uma
pessoa para outra. Essa teoria fica evidente, quando Tucídides relata que, temendo o contágio
da terrível peste, os próprios parentes abandonavam as pessoas doentes. A peste descrita por
Tucídides desapareceu como havia surgido: sem que se soubesse sua causa ou como curá-la.
Explicavam-na apenas através de determinantes sobrenaturais, pois a distinção entre natureza
e sobrenatureza era bem demarcada. Mais tarde, os Atenienses ergueram um altar com a
28
estátua de bronze da deusa Hygeia, a quem foi atribuída a salvação da cidade (Martins,
1997).
De modo prático, o conhecimento grego voltava-se às questões da natureza e do
homem, sendo os primeiros filósofos, naturalistas em sua essência, como Pitágoras (580-490
a.C), que inaugurou importante escola Greco-itálica. Desde então, houve grande mudança no
conceito de doença, permitindo explicações lógicas (não necessariamente adequadas ao
conhecimento atual), a partir da relação de agentes naturais e não mais baseada em elementos
sobrenaturais (Waissmann, 2000).
A crença na harmonia entre homem e natureza se evidencia no livro “Ares, Águas
e Lugares”, onde Hipócrates, seu autor, reconhecia a presença contínua de certas doenças na
população que foram chamadas “endêmicas”. Chamou de “epidêmicas” aquelas doenças que
nem sempre estavam presentes, mas que, por vezes, aumentavam em demasia. Os oito
parágrafos introdutórios dessa obra apresentam e resumem os fatores essenciais, responsáveis
pela endemicidade local: clima, solo, água, modo de vida e nutrição (Rosen, 1994).
É necessário recordar o sentido primitivo da palavra epidemia. Epidemia era um
termo inicialmente utilizado para indicar residência temporária, em determinada cidade, de
uma pessoa que não era daquele local. Ao contrário, a palavra endemia referia-se à residência
permanente de alguém nativo daquele local. Essas palavras não diziam respeito à doenças e
não tinham conotação de algo que passasse de uma pessoa a outra (Martins, 1997).
Ao conquistar o mundo mediterrâneo, Roma assumiu o legado da cultura grega e,
com ela, a prática da Medicina e suas idéias sanitárias, moldando-as segundo seus próprios
interesses. Merecem destaque, as observações dos romanos acerca da relação atribuída aos
pântanos e à transmissão das doenças, especialmente a malária. No século I a.C., Marco
Terêncio Varro, alertava a respeito da construção de habitações em lugares encharcados, “(...)
porque ali se dá a geração de diminutas criaturas, que os olhos não podem ver e entram no corpo através
da boca e do nariz e causam sérias doenças” (Rosen, 1994).
Todos os cuidados com a água, asseio pessoal e limpeza da cidade, certamente
contribuíram para preservar os romanos das doenças transmissíveis. Não se pode afirmar,
entretanto, se o povo romano estava consciente dos benefícios que tais medidas traziam para a
saúde, ou se eram guiados por considerações estéticas em termos de beleza, limpeza, odores
agradáveis, etc. (Martins, 1997).
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A era romana contribuiu, ao tempo do Imperador Marco Aurélio, com a realização
de censos periódicos, através do registro compulsório de nascimentos e óbitos que mais tarde
viria a ser conhecido como “estatísticas vitais” (Almeida, 1999).
Ao tempo de Nero, os “aediles”, supervisionavam a limpeza das ruas,
controlavam a higiene dos alimentos, realizavam inspeções nos mercados e proibiam a venda
de gêneros deteriorados (Rosen, 1994).
4.2. A IDADE MÉDIA
A Idade Média corresponde a um período de tempo de cerca de mil anos, entre a
queda do Império Romano Ocidental (476 d.C) até a tomada de Constantinopla pelos turcos,
em 1453, fato histórico que marca a queda do Império Romano Oriental. (Waissmann, 2000).
É de suma importância assinalar a imensa diversidade em termos de tempo e
espaço, incluída no termo “medieval”, pois a Idade Média revelou uma heterogenicidade
maior do que outras eras. (Rosen, 1994, Waissmann, 2000).
Nem tudo o que hoje se considera medieval, caracterizou todo o período, ou
ocorreu em toda a Europa. “Geralmente tratado como período de trevas, de retorno à
barbárie e declínio da razão, o medievo não corresponde de forma alguma, a uma
estagnação do conhecimento médico e sanitário, que se desenvolveu de modo diferenciado,
conforme o local e a época considerado” (Waissmann, 2000).
Nas comunidades medievais do Ocidente, um dos grandes desafios, era garantir a
pureza da água para beber e cozinhar. Para prover as populações de água potável, foram
construídas ao longo das cidades, poços e fontes e criados regulamentos para evitar a poluição
dessas fontes de distribuição de água. Tais regulamentos se tornaram a base de um código
sanitário. A limpeza das ruas e o destino do lixo também eram muito problemáticos. Além do
que, muitos habitantes herdaram os costumes do campo e criavam animais como porcos,
gansos e patos, contribuindo para o aumento da sujeira nas ruas (Rosen, 1994).
Diante da situação precária, um grande número de regulamentos e editos foi
criado para tentar resolver o problema do acúmulo de imundícies nas ruas das cidades. Houve
inclusive a criação de matadouros municipais, cuja referência está contida em um documento
de Augsburgo de 1276 (Rosen, 1994).
Um marco importante dessa época é o rigor normativo, em algumas cidades,
relacionado à inspeção de alimentos. Muitas cidades européias regulamentaram o comércio de
30
alimentos. Em 1276, Augsburgo ordenou a venda de carne suspeita em uma bancada especial;
na Basiléia, no início do século XIII, vendia-se restos de peixe em bancadas onde se
comercializava alimentos de qualidade inferior, procedimento esse, adotado apenas para os
estrangeiros; em Zurique, 1319, ordenava-se aos peixeiros que descartassem, ao anoitecer, o
peixe morto que não tivesse sido negociado; os florentinos proibiam a venda, às segundasfeiras, da carne que tinha sido exposta no sábado anterior ( Rosen, 1994).
4.3. RENASCIMENTO
Ao final da Idade Média, iniciou-se um movimento em busca de um novo
humanismo, de um retorno aos autores clássicos greco-romanos, redução na crença de
poderes mágicos e religiosos, com importantes mudanças estéticas, filosóficas e conceituais
que se propagaram a todos os ramos do conhecimento, movimento esse que teve início na
Itália e se difundiu por toda a Europa. Foi o início do Renascimento, trazendo importantes
transformações para a humanidade (Waissmann, 2000).
Foram necessárias as pragas devastadoras da Idade Média para que se começasse
a pensar que algo “sólido” poderia ser a causa das doenças e que, de alguma forma, poderia
ser transmitido de uma pessoa a outra (Gordon, 1996).
Em 1546, um médico jovial e poeta de Verona, Hieronymus Fracastorius (14831553), em sua obra, “De Contagione”, postulou a idéia de que o “contagium” era devido a
agentes vivos (“seminaria” ou sementes invisíveis), criando assim, a doutrina do “contagium
vivum” (Bier, 1994).
Fracastorius asseverou que as epidemias às margens do Lago Garda progrediam
por meio de tais sementes e propagavam-se rapidamente, levadas pela respiração ou pelo ar,
ou por beber no mesmo copo, ou dormir com a mesma mulher ou ainda, através de objetos
infectados aos quais ele denominou “fomites” (Gordon, 1994).
Fracastorius também distinguiu claramente, três formas de contágio: direto, ou
seja, de pessoa a pessoa; por agentes intermediários ou “fomites”; e à distância, como por
exemplo, através do ar, ( “contagium per contactum, per fomitem et distans”) (Bier, 1994).
Discussões e observações acerca das causas das doenças contagiosas, não faltaram
nesse período. Em 1557, Girolamo Cardano, médico e filósofo italiano, além de realizar a
primeira descrição clara sobre o tifo exantemático, sugeriu que as “sementes das doenças,
eram pequenos animais capazes de se reproduzir. Em 1658, Athanasius Kircher, jesuíta
31
alemão, pela primeira vez, atribuiu a peste a diminutos organismos vivos e, apesar de seu
estudo incipiente e contraditório, atraiu atenções em toda a Europa e desencadeou a “caça”
aos organismos microscópicos causadores das doenças (Rosen, 1994.)
Mas, durante os dois séculos que se seguiram, a doutrina sobre a existência de
seres invisíveis causadores de doenças, foi discutida apenas enquanto especulação teórica, e
até o século XVIII não se levou a sério a idéia que organismos vivos infinitamente pequenos,
pudessem ser a causa do contágio (Bier, 1994).
Durante o século XVII, em acordo com o desenvolvimento geral da ciência,
assistiu-se à descoberta de um dos mais importantes instrumentos da história da ciência
médica: o microscópio. Para desvendar o mundo do infinitamente grande e do infinitamente
pequeno, instrumentos mais precisos foram desenvolvidos. Atribui-se a Galileu Galilei (15641642), as primeiras experiências na observação de seres muito pequenos, utilizando o
microscópio. Ele adaptou seu telescópio e examinou órgãos de insetos, relatando que esses
eram cobertos de pelos e possuíam articulações angulares. No Saggiatore, Galileu fala a
respeito desse instrumento ao qual foi dado o nome de microscópio pelo naturalista Faber,
membro da Accademia dei Lincei . Essa descoberta reduziu as especulações filosóficas a fatos
concretos, controlados e demonstrados experimentalmente (Castiglioni, 1947).
Geralmente é aceito pela história que o primeiro microscópio foi desenvolvido por
Zacharias Jansen, fabricante de óculos em Mildelburg (Holanda), por volta de 1590. O
microscópio composto de Robert Hooke (1635-1703), meio século mais tarde, é muito mais
conhecido. Mas, nenhum deles se comparou, em termos de poder resolvente, ao instrumento
de lentes simples, biconvexas, construído por Leeuwenhoek, uma das mais importantes
figuras da história da Microbiologia. Proprietário de um armazém, zelador da prefeitura e
provador de vinhos, na cidade de Delft, na Holanda, Leeuwenhoek (1632-1723), utilizava
lentes de aumento para a inspeção de fibras e tecelagens em roupas. Seu “hobby” era polir
lentes de vidro e montá-las entre finas placas de prata ou bronze. Ele utilizava seu
microscópio rudimentar para observar águas estagnadas, saliva, fezes, etc... Ficava
entusiasmado ao ver, nesses materiais, uma grande quantidade de seres diminutos se movendo
de um lado para outro e que não podiam ser vistos a olho nu. Denominou esses pequeninos
seres “animáculos”, pois acreditava se tratar de pequenos animais vivos. Leeuwenhoek
descreveu detalhadamente suas observações e desenhos em mais de 300 cartas, onde chamava
a atenção do mundo para a existência de formas de vida microscópicas, iniciando assim, o
estudo da Microbiologia (Castiglioni, 1947; Pelczar, 1996).
32
Em 9 de outubro de 1676, Leeuwenhoek escreveu à Real Sociedade de Londres:
“No ano de 1675, descobri na água da chuva que tinha ficado alguns dias
num pote de barro, vitrificado por dentro. Isto me levou a olhar esta água com grande
atenção, especialmente aqueles animaizinhos, que me pareciam dez mil vezes menores
do que os (...) que podem ser percebidos na água a olho nu” (Pelczar, 1996 ).
O destaque que Leeuwenhoek mereceu na história científica não foi tanto devido a
sua habilidade em construir o microscópio, embora essencial, mas à extraordinária acuidade
de suas observações e descrições que realizou acerca dos diminutos seres vivos. Seu maior
mérito repousa em sua descoberta do mundo microbiano, cuja existência, em toda sua
variedade e profusão, ele revelou à humanidade (Stanier, 1969).
Mesmo com esta valiosa descoberta, os estudiosos da época, não conceberam a
ligação entre as minúsculas criaturas descritas por Leeuwenhoek e a causação das doenças
(Rosen, 1994).
Apesar do avançar do conhecimento, as epidemias do século XVII foram graves e
devastadoras, dentre as quais descreve-se as cuidadosas observações de Morton sobre a
epidemia de disenteria (Castiglioni, 1947).
Progressos significativos aconteceram ao final do século XVII, com relação à
legislação social e Sanitária. Já em 1.656, quando a peste irrompeu em Roma, Monsenhor
Gastaldi, comissário papal especial da saúde, adotou medidas relativas à Saúde Pública: foram
colocados guardas sanitários nas portas da cidade e nas fronteiras; pedia-se atestados de saúde
a todos os viajantes; limpava-se as ruas e os esgotos; os aquedutos eram inspecionados
regularmente; havia lugares destinados à desinfecção das roupas; estavam proibidos os
ajuntamentos populares. A obra de Gastaldi De avertenda et profliganda peste (1684) contém
245 decretos sanitários surgidos durante a campanha contra a peste, constituindo importante
documento histórico. Porém, as medidas legais criadas pelas autoridades pouco fizeram para
melhorar o quadro desolador das epidemias, que permaneceu quase o mesmo até a metade do
século XVIII (Castiglioni, 1947).
33
4.4. O SÉCULO XVIII
O século XVIII representa uma era da história da humanidade e, sobretudo, da
medicina, de evolução do pensamento e teorias que ainda hoje nos influencia. Houve uma
evolução de fatos e idéias em suas mais amplas e complexas manifestações. As grandes
cidades bem como as corporações estavam se tornando mais ricas e poderosas e a burguesia
mais cônscia de sua importância ( Castiglione, 1947).
O Iluminismo se tornou um movimento internacional, liderado pela França. A
esse tempo, o movimento cultural europeu foi responsável pelas novas idéias políticas,
sociais, econômicas e religiosas. Para o Iluminismo a aceitação da supremacia da razão era
essencial para o progresso da sociedade (Rose, 1994; Waissmann, 2000).
“No campo político, apesar das importantes diferenças, as idéias de Locke
(1632-1704), Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755) e Rousseau (1712-1778)
defendiam a necessidade do combate ao absolutismo dos reis e dos privilégios da
nobreza e do clero, clamavam por liberdades individuais e de expressão, do direito à
vida e à propriedade privada ( esta última combatida por Rousseau).” (Waissmann,
2000).
Os progressos dessa época estabeleceram de modo definitivo que ninguém
poderia explicar o organismo humano, na saúde e na doença, sem os profundos
conhecimentos de anatomia, fisiologia e dos complexos fenômenos da física e da química
(Castiglioni, 1947).
Relativo à vida nas grandes urbes, o início do século XVIII, ainda é marcado por
cidades insalubres, sujas e impregnadas de odores fétidos. O saneamento urbano era pobre,
ruas e vielas viviam sujas e lançava-se pelas portas e janelas das residências e casas de
comércio, água de esgoto e todo tipo de refugos. Os animais eram abatidos em locais
públicos. Os versos de Swift retratam cenas da cidade:
“De todas as partes as sarjetas inchadas afluem,
E enquanto avançam, ostentam seus troféus.
Imundícies de todas as cores e odores parecem contar,
34
Pelo aspecto e pelo cheiro, de que rua velejaram.
Refugos das tendas dos açougueiros, bosta, tripas e sangue,
Cãezinhos afogados, arenques fedidos, todos encharcados na sujeira,
Gatos mortos e folhas de nabo, rolam corrente abaixo” (Rosen, 1994).
O retrato das condições higiênicas deste período é suficiente para explicar a
difusão das doenças infecciosas, fenômeno que se acentuou com a imigração do camponês
para as grandes cidades e com o crescimento dos centros urbanos, coincidindo com os
primórdios da era da industrialização (Castiglioni, 1947).
Os médicos sempre tiveram que se interessar vivamente pelas doenças
contagiosas mas, somente a partir do século XVIII, se fizeram descrições sistemáticas e
precisas acerca do controle das doenças. Na segunda metade do século, a higiene assumiu um
caráter de ciência independente, surgindo, na mesma época, o conceito idealístico e político
de que o povo tinha direito a melhores condições sanitárias e econômicas e que cabia ao
Estado prover essas condições (Rosen, 1994). Richard Mead, clínico e higienista inglês,
comentou: “Se a imundície é uma grande fonte de infecção, a limpeza é a maior
prevenção.” (Castiglioni, 1947).
As diversas epidemias não se manifestaram com a mesma intensidade dos séculos
anteriores e podemos observar, no estudo clínico e nos resultados sociais das epidemias, um
pensar lógico que levou a conclusões mais claras e precisas. A definição das síndromes
clínicas, ao final do século, permitiram um diagnóstico diferencial mais apurado das doenças
endêmicas (Castiglioni, 1947).
No século XVIII as pestes ainda rondavam a Europa, fazendo milhares de vítimas.
A febre tifóide ou tifo abdominal foi o elemento mais importante da epidemia descrita por
Roederer (1726-1763) e Wagler (1732-1778). Em conjunto, eles descreveram, na obra De
morbio mucoso, essa doença. Atribuíram sua disseminação à contaminação das águas de mina
e supuseram estar relacionada à disenteria e à malária. As lesões intestinais provocadas pela
febre tifóide foram observadas por Morgagni, mas foi reconhecida como entidade clínica
definida só no século seguinte, pela escola francesa de Louis (Castiglioni, 1947).
Quanto à natureza e à difusão das doenças infecciosas, o mundo científico
continuava a sustentar teorias nas mesmas linhas dos séculos anteriores. Explicavam as
epidemias através do contágio direto, defeito da constituição corporal e condições climáticas e
35
terrestres. Concepções contagionistas e não contagionistas se alternavam no favor do público.
As febres produzidas pelos pântanos foram estudadas por Giovanni Maria Lancisi (16541720), importante médico em Roma que atendia pessoalmente o papa. Em 1717, publicou o
livro Os eflúvios nocivos dos pântanos e seus remédios. Nessa obra, descreveu os “miasmas”
como certas influências emanadas dos pântanos e segundo sua teoria, no calor do verão, a
fermentação e putrefação de animais e plantas, causaria uma exalação ou eflúvio, produtores
de doenças. Segundo Lancisi, essa influência seria geral e não específica, ou seja, existiria um
único tipo de miasma capaz de produzir diferentes doenças, dependendo das circunstâncias e
das pessoas atingidas por ele. No caso específico da malária, Lancisi supôs causada por
pequenos animais que penetravam no corpo e circulavam pelo sangue, motivo pelo qual, essa
doença se mostrava diferente das demais febres dos pântanos ( Rosen, 1994 ; Martins, 1997).
Como forma de evitar as enfermidades dos pântanos, Lancisi propôs eliminá-los, secando-os e
plantando árvores que absorvessem o excesso de água. Tais medidas mostraram excelentes
resultados, fortalecendo e levando à divulgação de suas idéias (Martins, 1997).
Vale indicar o significado da palavra miasma, que se tornou muito popular a partir
do século XVIII. Lancisi usou essa terminologia para designar algo que contamina ou infecta
o ar e que provém da morte (Martins, 1997).
Porém, a teoria dos miasmas é um interessante caso de uma concepção menos
acurada do que a concepção microbiana que a sucedeu, porém, de extrema utilidade para a
humanidade. Ela impulsionou a criação de medidas sanitárias importantes nos séculos XVIII e
XIX que trouxeram grande melhoria em termos de Saúde Pública (Martins, 1997).
Apesar da precariedade das condições higiênicas, o século XVIII deixou
registrado um avanço em termos de legislação sanitária que progrediu em direção ao século
XIX, no sentido da compreensão do problema e do papel do Estado na proteção da Saúde
Pública (Castiglioni, 1947).
4.5. O SÉCULO XIX
O processo de industrialização, no início de século XIX, seguiu um curso rápido e
progressista. Países industrializados como Inglaterra, França e Bélgica introduziram novas
tecnologias e as velhas indústrias se transformaram. Concomitantemente, países menos
industrializados, como os estados germânicos e os Estados Unidos, na passagem do século, já
disputavam a liderança com seus rivais mais antigos (Rosen, 1994).
36
A revolução industrial transformou a sociedade européia, no início do século XIX
e depois o mundo. A Inglaterra liderou a primeira revolução do capitalismo industrial, pelo
fato de estar suficientemente capitalizada para levar à produção as novas descobertas, contar
com mão de obra barata, fruto da expulsão dos camponeses de suas terras e da falência de
pequenos proprietários rurais (Waissmann, 2000).
Não obstante a todo o progresso dessa era, as doenças infecciosas e o saneamento
continuavam a preocupar intensamente os sanitaristas. Durante o século XIX, quatro invasões
de cólera asiático, resultantes de uma pandemia mundial, devastaram a Europa e a América.
Nos Estados Unidos a epidemia de febre amarela era mais temida que a de cólera. Enquanto o
aparecimento das epidemias de febre amarela e de cólera causavam pânico e preocupação por
parte das autoridades, outras velhas doenças infecciosas estiveram presentes na população que
pagava pesado tributo em vida. Varíola, tifo exantemático, febre tifóide, difteria e escarlatina
ainda causavam milhares de óbitos em todo o continente europeu (Rosen, 1994).
Era em meio às comunidades em condições mais precárias que as epidemias
aconteciam. Doenças intestinais como cólera, febre tifóide e disenteria que hoje sabemos, são
transmitidas pela água , alimentos e utensílios contaminados e outras como difteria,
escarlatina e sarampo que em geral se transmitem de pessoa a pessoa, invadiam as
comunidades urbanas que viviam em locais que facilitavam a difusão e os surtos dessas
doenças (Rosen, 1994).
Em meio a esse turbilhão de conhecimentos e mudanças, inegavelmente, podemos
considerar o alvorecer da bacteriologia como a grande revolução do pensamento médico,
sobretudo no terreno das doenças infecciosas. O período histórico aqui considerado marca um
enorme desenvolvimento do conceito microbiológico em todos os campos da medicina,
esclarecendo a etiologia das doenças infecciosas e abrindo caminho para o controle das
epidemias que durante muitos séculos assolaram a humanidade. Ao lado de predomínio do
materialismo vemos espalhar-se na medicina o conceito de que é no infinitamente pequeno
que se deve procurar a solução de muitos problemas, até então inexplicados ou erroneamente
explicados (Castiglioni, 1947).
Em 1840 apareceu, em Berlim, um pequeno volume intitulado Pathologische
Untersuchungen. Seu autor, Jacob Henle, então com 31 anos, era professor de anatomia em
Zurique. Essa obra, em sua primeira seção, relativa a “miasmas e contágio e doenças
miasmático-contagiosas”, é considerada um marco na história da Bacteriologia e das doenças
comunicáveis. Mediante argumentos lógicos e convincentes, Henle formulou uma teoria onde
37
considerava os diminutos organismos vivos a causa das doenças contagiosas e infecciosas.
Segundo Rosen (1994), as conclusões de Henle podem ser assim resumidas: “ Nos casos de
doenças infecciosas, a matéria mórbida aumenta, aparentemente, desde o momento em que
entra no corpo; assim, deve ser de natureza orgânica, pois só organismos vivos possuem essa
faculdade; a quantidade de material mórbido, além disso, é desproporcional a seus efeitos; e
como um período de incubação precede, em regra, a manifestação, isso também apóia a idéia
de uma natureza viva” (Rosen, 1994).
Na opinião dos contemporâneos de Henle, ele estava lutando em defesa de uma
teoria ultrapassada, mas foi nessa mesma época que a teoria microbiana das doenças começou
a renascer. O aclaramento das causas e a possível prevenção, controle e cura das enfermidades
infecciosas mortais, com a qual as pessoas estavam familiarizadas, impressionou a
imaginação popular à medida que foi aparecendo. A transição, desde a etiologia microbiana
específica das fermentações até os fenômenos relacionados com as doenças infecciosas,
aconteceu muito mais rápido do que se podia prever (Burrows, 1963 ; Rosen, 1994).
Os mais importantes progressos no campo da ótica, que conduziram à construção
de microscópios compostos, iniciou-se por volta de 1820. Essas realizações eram seguidas, de
perto, pela exploração, que viera a tona, do mundo microbiano, resultando, ao final do século
XIX, em conhecimento muito detalhado acerca dos diversos grupos de microrganismos e de
sua morfologia e fisiologia. A esse tempo, também, estudos conduziram o homem ao
conhecimento do papel que os microrganismos desempenham nas transformações da matéria
e na produção de doenças (Stanier, 1969).
Após Leeuwenhoek haver descortinado aos olhos humanos o mundo das criaturas
microscópicas, começaram os cientistas a indagar sobre a origem dessas formas de vida. Duas
correntes de pensamentos surgiram: a primeira, formada por um grupo que defendia que esses
pequenos organismos se originavam de produtos animais e vegetais em decomposição, como
carnes, leite e plantas. Em outras palavras, os microrganismos seriam a conseqüência e não a
causa das alterações ocorridas nesses produtos. Era a teoria da Abiogênese, ou geração
espontânea. A segunda corrente asseverava que os “animáculos” se originavam a partir de
outros pré-existentes, semelhantes às formas de vida superiores. Essa teoria foi chamada
Biogênese (Pelczar, 1996).
A Microbiologia enquanto ciência não poderia evoluir até que fosse refutado o
falso conceito da geração espontânea. Foram necessários muitos experimentos esclarecedores,
38
que hoje parecem simples, e mais de uma centena de anos para se resolver a controvérsia.
(Stanier, 1969; Pelczar, 1996).
À medida que se ampliava o conhecimento dos organismos vivos, tornava-se, aos
poucos, evidente que a geração espontânea de plantas e animais não ocorria. Em 1665, um
médico italiano, Francesco Redi demonstrou que os vermes que se desenvolviam na carne em
putrefação constituíam estágio larval das moscas e não apareceriam se a carne fosse protegida
em recipiente vedado, impedindo desse modo que as moscas depositassem seus ovos sobre
ela. Mesmo assim, manteve-se o questionamento sobre a questão (Stanier, 1969). No século
XVIII, Lazzaro Spallanzani (1729-1799) demonstrou que um “fluido putrescível”, como
caldo de carne, permaneceria límpido por tempo indeterminado após fervido e devidamente
selado. De fato, essa experiência foi confirmada no início do século XIX por Nicholas Appert,
confeiteiro parisiense, que desenvolveu a arte de preservar alimentos enlatando-os e
submetendo-os à fervura. Além disso, Theodor Schwann, em 1837, demonstrou
brilhantemente que era possível obter resultados semelhantes, mesmo quando se permitia a
entrada de ar no frasco em resfriamento, desde que esse ar passasse previamente por um tubo
aquecido. Os mais céticos poderiam alegar, que a ausência de decomposição ocorria muito
mais devido à ausência de ar do que à exclusão de agentes vivos contaminantes transportados
pela poeira. Schroeder e von Dusch, solucionaram o problema, introduzindo o uso de tampões
de algodão para impedir o acesso de contaminantes ao meio de cultura. Essa prática é adotada
até os nossos dias pelos microbiologistas. Porém a controvérsia continuou pois alguns
investigadores não conseguiram confirmar a alegada estabilidade das infusões orgânicas
estéreis e isentas de poeira (Davis, 1979).
Em meio a todas essas discussões, entra em cena Louis Pasteur (1822-1895). Ele
nasceu em Dole (Jura), filho de um curtidor de couro e soldado de Napoleão. Devemos a
Pasteur, além da descoberta da assimetria molecular, importantes descobertas acerca dos
mecanismos das fermentações, da deterioração dos vinhos, das leveduras da cerveja, a doença
do bicho-da-seda, a cólera nos galináceos, as vacinas, especialmente contra a raiva e a
derrocada definitiva da teoria da geração espontânea. A Pasteur devemos também a utilização
do processo de “pasteurização”, processo assim chamado em sua homenagem, que consiste
em aquecer os produtos líquidos a temperatura entre 55 a 60OC para destruir a carga
microbiana presente, largamente utilizada nas indústrias de laticínios, vinhos e cervejas
(Garrisson, 1929).
39
Pasteur descobriu também o caráter anaeróbio dos microrganismos da
fermentação butírica, introduzindo as terminologias “aeróbio e anaeróbio”. Ele afastou
definitivamente o fantasma da geração espontânea através da demonstração de que uma
infusão fervida permanecia límpida num frasco com “pescoço de cisne”, não selado, aberto ao
ar por um tubo horizontal sinuoso, onde as partículas de poeira se depositariam quando o ar
penetrasse no frasco de resfriamento. Demonstrou também que no ambiente relativamente
isento de poeira de um porão sem movimento ou do topo de uma montanha, frascos selados
poderiam ser abertos e fechados logo a seguir, com grande probabilidade de escapar à
contaminação. As experiências de Pasteur tornaram-se sensação pública na época (Garrisson,
1929).
A despeito do grande sucesso de Pasteur, seus oponentes questionavam a respeito
de experiências posteriores semelhantes, mas as infusões não permaneciam límpidas como as
que Pasteur empregava. O fato principal consistia no emprego de infusões de feno enquanto
Pasteur utilizava infusões de açúcar ou de extrato de leveduras. Os experimentos decisivos
foram realizados pelo físico britânico John Tyndall, que se envolveu com o problema pelo seu
interesse nos efeitos ópticos da poeira atmosférica. Após ter trazido um fardo de feno ao seu
laboratório, não pode mais obter soluções estéreis naquela sala, através da fervura. Tyndall
concluiu que o feno havia contaminado seu laboratório com um tipo inacreditável de
organismo vivo: aquele que podia sobreviver à fervura. No mesmo ano (1877), Ferdinand
Cohn demonstrou que as formas resistentes eram endósporos pequenos e refringentes,
demonstrando também, que esses endósporos, constituíam fases no ciclo vital de um bacilo do
feno, o Bacillus subtillis. Para resolver o problema da destruição desses organismos foi
necessário aumentar a temperatura, utilizando vapor d’água sob pressão. A partir daí, a
autoclave passou a ser um instrumento indispensável em laboratórios de Bacteriologia (Davis,
1979).
No decorrer de seus estudos sobre fermentações, Pasteur que sempre voltara sua
mente às aplicações práticas de seu estudo científico, dedicou especial atenção ao problema
da deterioração da cerveja e do vinho. Demonstrou que esse problema era devido ao
crescimento de microrganismos indesejáveis, e utilizou o termo “doenças” para definir tais
alterações. Na verdade Pasteur já estava considerando a possibilidade de os microrganismos
atuarem como agentes produtores de doenças infecciosas em organismos superiores e, a essa
altura da evolução científica, já existia um grande número de evidências, fundamentando essa
hipótese (Stanier, 1969).
40
Na década de 1870, as investigações de Pasteur e de outros tinham levado à
dedução parcial da relação existente entre microrganismos e doenças. A solução final viria,
pois, com o desenvolvimento das técnicas de isolamento e do manuseio dos organismos
microscópicos. Havia muita confusão acerca do conhecimento dos microrganismos. Alguns
investigadores sustentavam a hipótese de que uma espécie de organismo podia se converter
em outra. No final de abril de 1876, os estudos experimentais de Casimir Davaine haviam
mostrado ser provável que o antraz se devesse a organismos em forma de bastão, encontrados
no sangue, por ele chamados bacteredia. A palavra portuguesa bactéria, deriva do latim
científico bacterium e esta do grego bacterion, diminutivo de bactron, que significa diminuto
bastão (Rosen, 1994).
Com essa investigação sobre o antraz, introduzia-se definitivamente a idade de
ouro da Bacteriologia médica, tendo, como figura importante, um médico alemão, Robert
Koch (1843-1910). Koch não possuía laboratório e seus experimentos eram conduzidos em
sua própria casa, usando equipamento improvisado, muito primitivo e animais experimentais
de pequeno porte. Mostrou que camundongos podiam ser infectados com materiais
procedentes de um animal doméstico doente e transmitiu a doença através de uma série de
vinte camundongos por inoculação sucessiva. Os estudos de Koch receberam violenta
oposição de Paul Bert, mas foram totalmente confirmados por Pasteur. Em 1877, Koch
publicou sua metodologia de fixar e secar as preparações contendo bactérias, em lâminas de
cristal, e corando-as com corantes, as anilinas de Weigert, de observar os flagelos bacterianos
e de fotografar os diminutos organismos para sua identificação e comparação (Garrison, 1929;
Davis, 1979; Rosen, 1994).
Em 1881, Koch produziu um importante trabalho, sobre o método de obter
culturas puras de microrganismos, utilizando gelatina líquida com uma infusão de caldo de
carne, vazando essa mistura em placas de vidro, que formavam um sólido coágulo. Quando
Koch apresentou esse trabalho no Congresso Médico Internacional em Londres, comentam
que Pasteur exclamou: “Este é um grande progresso”! Com os métodos desenvolvidos por
Robert Koch, tornou-se possível estudar com precisão os agentes de várias doenças
infecciosas. Em poucos anos, sobretudo entre 1877-1897, foram reveladas as causas
biológicas de numerosas doenças humanas e animais. Com a entrada da década de 1880,
anunciou-se a idade de ouro dessas descobertas e, numa rápida sucessão, demonstrou-se a
existência de agentes causadores de várias doenças. Mas, à proporção que esse conhecimento
vinha a lume, outras questões importantes estavam sem explicação acerca do mecanismo de
41
ação microbiana. Como se produzia a infecção bacteriana? Como preveni-la? Como tratar
suas conseqüências? (Rosen, 1994).
De 1877 em diante, a Bacteriologia francesa, dirigida por Pasteur e seus
colaboradores, adiantou-se em responder essas questões. Estudos de laboratório
demonstraram a resistência à infecção, a possibilidade de se alterar a virulência dos
microrganismos e, seguindo o raciocínio utilizado na vacinação realizada por Edward Jenner
(1749-1823), em 1796, que teve a idéia de inocular indivíduos sadios com matéria variólica
de uma pessoa que tivesse contraído a doença naturalmente, com objetivo de produzir
imunidade, Pasteur concebeu a idéia de prevenir doenças infecciosas por meio de vacinas
preparadas com cepas atenuadas de microrganismos. Conseguiu bons resultados, em trabalhos
com o cólera em galináceos, erisipelas em suínos e raiva. Tais pesquisas levariam futuramente
ao desenvolvimento da Imunologia, representando um forte impacto no tocante à prevenção
das doenças infecciosas no início do século XX (Rosen, 1994).
Outro nome de destaque que contribuiu para explicar o princípio da infecção
específica, defendendo que esta é devida a microrganismos específicos, foi John Snow (18131858), que praticava medicina em Londres como anestesista, mas o reconhecimento de seu
trabalho deve-se aos esforços empreendidos na área da Epidemiologia. Em sua obra, “Sobre a
maneira de transmissão da cólera” (1849), Snow
traçou um desenho de investigação,
atribuindo à água, a forma de transmissão da cólera, chegando muito próximo das descobertas
microbiológicas, confirmadas por Pasteur, vinte anos mais tarde (Rosen, 1994).
Em 1855, Snow publicou uma segunda edição de sua obra, ampliando o trabalho
de 1849, na qual enunciou suas teorias definitivas sobre a etiologia e expansão da cólera. Os
aspectos clínicos da doença o levaram a postular que o “veneno” da cólera entra no canal
alimentar pela boca; esse veneno seria um ser vivo específico, oriundo das excreções do
paciente contaminado; a moléstia se transmite de pessoa a pessoa, através das mãos sujas, ou
através de água e alimentos contaminados; que a falta ou insuficiência de esgotamentos
sanitários, permitia que os perigosos excrementos do paciente doente de cólera, se
infiltrassem no solo poluindo poços e outras fontes de suprimento de água, demonstrando
assim a possível presença do agente causador da infecção na água, não conseguindo porém,
identificar esse agente infeccioso. Na época, suas concepções não foram imediatamente
aceitas, até que, em 1883, Robert Koch isolou e cultivou o Vibrio cholerae, comprovando
finalmente, toda a teoria de John Snow (Rosen, 1994).
42
William Budd (1811-1880), contemporâneo e conterrâneo de Snow, chegou a
conclusões similares sobre a cólera, publicando, também em 1849, um panfleto – “O Cólera
Maligno: sua Maneira de Propagação e Prevenção”. Budd aplicou a mesma teoria à febre
tifóide, que estudou por mais de trinta anos. Em 1861 o príncipe Albert, da Inglaterra, morreu
de febre tifóide. Em 1873, todos os estudos de Budd foram reunidos em um volume,
intitulado “Febre Tifóide, sua Natureza, Modo de Difusão e Prevenção”, aconselhando a
desinfecção das excreções de pacientes com febre tifóide, porém, sendo médico do interior,
seus conceitos não chegaram a ter grande influência sobre as práticas sanitárias da época
(Rosen, 1994).
Na última década do século XIX, algumas das questões sobre as doenças
contagiosas haviam sido respondidas através da demonstração da existência de organismos
causais e maneiras de se prevenir a propagação de tais doenças. Muitas perguntas estavam
ainda sem respostas. Por exemplo: Por que em algumas doenças como febre tifóide e cólera,
novos casos aconteciam em pessoas que sequer tiveram contato direto com indivíduos
doentes? Por que em outros casos pessoas continuavam sadias, mesmo expostas aos doentes?
Para obter essas respostas, ficava clara a necessidade de mais conhecimentos que explicassem
as origens e as maneiras de ser da infecção. Muitas dessas dúvidas foram esclarecidas através
da teoria microbiana da doença (Rosen, 1994).
Em razão da epidemia de cólera em 1892 e 1893, compreendeu-se pela primeira
vez, o significado do portador humano. Em 1893, William Hallock Park (1863-1939), Alfred
L. Beebe, na cidade de Nova York, estabeleceram definitivamente, o conceito de portador e a
importância do exame bacteriológico de rotina no diagnóstico da difteria. Ele então concluiu
que: “os membros de um lar em que existem casos de difteria devem ser considerados como
fonte de perigo, a não ser quando culturas, feitas com material colhido em suas gargantas,
mostrem a ausência dos bacilos da difteria”. Estava assim firmada, a última parcela
importante do conhecimento acerca do processo de transmissão de uma doença contagiosa,
sob o ponto de vista biológico, no interior de uma comunidade (Rosen, 1994).
43
4.6. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE AS DTAS / ETAS
Até essa época as chamadas intoxicações alimentares eram atribuídas ao consumo
de alimentos deteriorados em virtude da presença da ptomaina, um alcalóide formado durante
a decomposição de tecidos putrefeitos. Acreditava-se que a intoxicação alimentar estava
relacionada à podridão (Hobbs, 1998).
Ao final do século XIX, os perigos de infecção através do leite foram
reconhecidos, e em cidades como Londres, iniciou-se o tratamento térmico através da
pasteurização. Bactérias causadoras de intoxicações alimentares foram primeiramente
descritas por Gaertner em 1888. Elas foram isoladas do organismo de um homem que havia
morrido durante um surto de gastroenterite que atingiu 59 pessoas na Alemanha. Bactérias
similares foram encontradas na carne servida para as vítimas e também na carcaça do animal.
Posteriormente, entre os anos de 1909 e 1923, essa bactéria foi denominada Salmonella, em
homenagem ao Doutor E. Salmon, que isolou pela primeira vez a bactéria em suínos, no ano
de 1885 (Hobbs, 1998).
Ao mesmo tempo, a teoria da intoxicação alimentar por ptomaina foi refutada por
voluntários que consumiram a substância extraída de alimentos deteriorados, sem
apresentarem sinais de doenças. Sob a influência de Savage, da Grã-Bretânia, e Jordan, dos
Estados Unidos, as intoxicações alimentares foram associadas a contaminações bacterianas
específicas. Em 1896, van Ermengem, na Bélgica, descreveu a bactéria Clostridium
botulinum. A partir de 1914, o Staphylococcus foi associado com uma violenta forma de
intoxicação alimentar. Certas espécies que cresciam em alimentos cozidos produziam uma
toxina que não alterava nem a aparência, nem o sabor dos alimentos, provocando em pouco
tempo (por vezes menos de uma hora) quadros de vômitos e náuseas intensos. De 1945 a
1953, o bacilo esporulado anaeróbio, Clostridium perfringens, foi reconhecido como agente
de intoxicação alimentar, cujo principal sintoma é a diarréia (Hobbs, 1998).
Ao longo de todo o período aqui apresentado, observou-se um processo lento no
avanço do conhecimento. A partir de idéias vagas acerca do contágio, formulou-se ao final do
século XIX, uma compreensão aprofundada do processo de transmissão das doenças: as
doenças transmissíveis, em seus aspectos biológicos, são causadas por seres vivos
microscópicos, que se reproduzem no organismo do indivíduo doente, podendo depois, serem
transferidos a outras pessoas, pelo ar, alimentos, contato físico, dejetos que se espalham pelo
44
solo ou pela água, por objetos e via animais e insetos, conhecidos como vetores (Martins,
1997).
William Taylor, de Penrith, Inglaterra, havia sido, em 1857, o primeiro a
considerar o leite um meio de transmissão da febre tifóide. No entanto, somente em 1881, foi
reconhecido o perigo da difusão de doenças epidêmicas através do leite. Naquele ano, Ernest
Hart, apontou no Congresso Médico Internacional, em Londres, 50 epidemias de febre tifóide,
15 de escarlatina e 4 de difteria, atribuídas ao leite. Em 1909, o Serviço de Saúde Pública dos
Estados Unidos pôs em circulação seu famoso boletim 56, em que se relatavam, entre 1880 e
1907, 500 surtos de doenças transmitidos pelo leite. Em 1901, Park, do Laboratório
Bacteriológico da cidade de Nova York, mostrou a contaminação por bactérias do leite
entregue para o consumo, no verão, com até mais de cinco milhões de organismos por
centímetro cúbico (Rosen, 1994).
Em 1902, Park e o eminente pediatra Emmert Holt concentraram seus estudos
sobre diarréia infantil (cholera infantum) e sua relação com o leite. Os resultados, publicados
em 1903, mostraram que, no calor, a natureza do leite servido aos lactentes influenciava os
níveis de doença e mortalidade, revelava-se também o efeito da contaminação bacteriana,
quando não se aquecia o leite antes de servir. Ainda, em 1902, o Departamento de Saúde de
Nova York designou inspetores para visitar as fazendas leiteiras que abasteciam a cidade; os
inspetores deveriam investigar as condições de produção do leite e trabalhar com empenho no
sentido de educar os fazendeiros quanto à obtenção de um leite saudável. As companhias
ferroviárias foram alertadas para necessidade de refrigeração apropriada nos vagões que
transportavam o leite. O Departamento de Saúde também começou a supervisionar com rigor
a distribuição e venda do leite dentro da cidade. O que ainda não estava em questão, era o
problema do portador sadio como fonte de surto. Em agosto de 1909, houve um aumento
súbito no número de casos de febre tifóide na cidade de Nova York. Um determinado
suprimento de leite revelou-se o elemento comum em centenas de casos; era um leiteiro,
portador crônico da doença. Em conseqüência desse e de outros surtos, em 1910, o Comitê de
Saúde da cidade de Nova York passou a exigir a pasteurização de todo leite destinado aos
bebês, e em 1912 adotou um sistema de graus e de padrões para o produto vendido na cidade.
A virtual eliminação das mortes por diarréia no verão indicou o quanto as crianças se
beneficiaram com essas medidas; em 1923 mal restava um vestígio do aumento na
mortalidade infantil em época de temperaturas altas (Rosen, 1994).
45
A história relatada neste capítulo referiu-se mais às doenças transmissíveis em
geral do que às ETAS em particular devido à escassez de informações a respeito do assunto.
A história dos métodos de abordagem das ETAS, até onde me foi possível detectar, ainda está
para ser contada, em especial nacionalmente e também internacionalmente. Abordar esta
história, de um modo abrangente seria, por si, tarefa de uma dissertação.
46
5. PANORAMA MUNDIAL DAS DOENÇAS TRANSMITIDAS POR
ALIMENTOS (DTAs) OU ENFERMIDADES TRANSMITIDAS POR
ALIMENTOS (ETAs)
5.1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a World Health Organization (WHO), ou Organização
Mundial da Saúde (OMS), vem observando a disseminação natural das doenças transmitidas
por alimentos (DTAs / ETAs) e seu impacto sobre as comunidades. A incidência anual de
diarréias situa-se em torno de 1,5 bilhões de episódios, em crianças menores de 5 anos, com
mais de 3 milhões resultando em mortes, o que indica a magnitude do problema. Uma
significativa proporção desses casos de diarréia são devidos às DTAs / ETAs. Em 1992, a
Conferência Internacional de Nutrição, realizada pela “Food and Agriculture Organization”
(FAO), órgão da Organização Mundial de Saúde, reconheceu que mais de 100 milhões de
pessoas em todo mundo sofrem com doenças comunicáveis e não comunicáveis causadas pela
ingestão de alimentos contaminados (WHO, 1997).
As DTAs / ETAs continuam sendo um dos maiores problemas de Saúde Pública
do planeta. Atualmente, países industrializados vêm experimentando um aumento
significativo de casos de DTAs / ETAs. Nesses países, pesquisas mostram uma incidência
anual de 5 a 10% da população total sendo atingidas pelas doenças de origem alimentar, a
grande maioria delas causadas por bactérias. Além disso, patógenos resistentes a antibióticos,
como Salmonella thyphimurium, Listeria monocytogenes e Escherichia coli O157:H7 vêm
emergindo e representando uma séria ameaça à Saúde Pública. Recentemente, infecções por
Escherichia coli O157, atingiram centenas de indivíduos na Austrália, no Japão, na Escócia e
nos Estados Unidos da América, acarretando alto número de óbitos, predominantemente entre
crianças, idosos e pessoas suscetíveis (WHO, 1997).
A popularidade da alimentação coletiva aumentou gradativamente ao longo dos
anos, especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, quando os alimentos eram escassos e
tinham que ser compartilhados. A maioria dos estabelecimentos não estava dimensionado
para abastecimento em larga escala, a mão-de-obra não era qualificada e os equipamentos não
eram suficientes e adequados. Tais fatores parecem ter contribuído para o aumento da
incidência de DTAs / ETAs, fato que vem se estendendo até os dias atuais, com os problemas
já citados. Na Inglaterra, os primeiros refeitórios serviam, na sua grande maioria, pratos
quentes preparados recentemente; geralmente havia grandes câmaras frias nos porões. Com o
47
passar dos anos e com a evolução da tecnologia, refeições prontas e alimentos pré-cozidos
tornaram-se cada vez mais populares e os alimentos “de conveniência” hoje têm grande
consumo.
A importação de alimentos incluindo carnes, produtos à base de ovos e rações
desidratadas para o consumo animal, cresceu muito em quase todos os países nos anos pósguerra. Investigações indicaram que havia o perigo de muitos desses produtos importados
estarem contaminados com patógenos intestinais, particularmente Salmonella. Indústrias
rurais vêm se desenvolvendo e, embora representem aumento de produção e lucratividade
econômica, podem implicar em riscos de infecções inerentes às criações, com conseqüente
disseminação dos patógenos para a população humana (Hobbs & Roberts, 1998).
5.2. ESTIMATIVA MUNDIAL DAS DTAs / ETAs
Doenças transmitidas por alimentos constituem-se as de maior incidência no
mundo contemporâneo e têm implicações na saúde e no desenvolvimento das comunidades.
Em função da ausência de sistemas de vigilância ou debilidade dos programas de controle das
DTAs / ETAs, informações existentes não representam a magnitude do problema. Estima-se
que os dados existentes acerca da incidência das DTAs / ETAs, representam apenas 10% da
incidência real nos países com sistema de informações confiável e menos de 1% da incidência
real nos países onde o sistema de informações é incipiente. Pesquisas comprovam que, em
alguns países, o número de DTAs / ETAs tem uma freqüência 300 a 350 vezes maior do que a
indicada nos relatos oficiais (Mortajemi & Kaferstein, 1997).
Com exceção da Cólera, doença de notificação obrigatória em todo o mundo, as
demais enfermidades de origem alimentar não têm obrigatoriedade de notificação na maioria
dos países. Tentativas de fornecer um quadro das DTAs / ETAs em nível mundial são
geralmente prejudicados em virtude das diferenças entre os sistemas de vigilância dos vários
países, quando o sistema existe. Além disso, a forma de apresentação dos dados não é feita de
maneira uniforme, por exemplo, um país notifica Shigelose e Amebíase separadamente, outro
engloba as duas doenças sob o termo disenteria, em outros, ainda, várias DTAs / ETAs são
agrupadas sob a designação de intoxicações alimentares. Embora a expressão intoxicação
alimentar tenha diferentes significados conforme o país, com freqüência é utilizado para
representar diferentes grupos de DTAs / ETAs (Mortajemi & Kaferstein, 1997).
48
Em vários países, a infraestrutura dos sistemas de vigilância é deficiente ou
inexistente; recursos para investigação das DTAs / ETAs são escassos; com freqüência os
pacientes não procuram o serviço médico por falta de recursos financeiros, o que é mais
comum de ocorrer quando os sintomas se tornam graves e persistentes. Como resultado, a
maioria dos casos permanece desconhecido pelas autoridades sanitárias. O problema se
agrava nos países em desenvolvimento, que não possuem recursos para implantar laboratórios
de referência para isolamento e identificação dos patógenos responsáveis, permanecendo
desconhecido o agente etiológico das DTAs / ETAs. Nos países industrializados, houve uma
queda, nos últimos anos, dos investimentos em Saúde Pública, bem como em atenção médica
e laboratórios de apoio para o serviço de vigilância. As investigações também são
prejudicadas por outros fatores: muitos casos de DTAs / ETAs ocorrem no domicílio, em
serviços de alimentação de pequeno porte ou em função de alimentos comercializados na rua
por vendedores ambulantes. Esses casos raramente chegam ao conhecimento das autoridades
sanitárias, não sendo, assim, possível identificar o problema. Quando ocorre um surto em
grandes proporções e a informação chega até o serviço de vigilância, em geral o
estabelecimento que serviu os alimentos descarta as sobras e não há como realizar a análise
laboratorial para identificação do patógeno causador do surto. Como conseqüência, as DTAs /
ETAs são evidenciadas apenas circunstancialmente e a investigação do surto deixa de ser
concluída de maneira eficiente (Mortajemi & Kaferstein,1997).
49
A escassez de informações da real magnitude das conseqüências para a saúde e
para a economia implica em baixos investimentos, por parte das autoridades, no adequado
controle e programas de prevenção das DTAs / ETAs (Mortajemi & Kaferstein, 1997).
Esse fato é esquematicamente mostrado na figura 1.
FIGURA 1: INTER-RELAÇÃO DE FATORES QUE CONTRIBUEM PARA A
INEFICÁCIA DO CONTROLE DAS ETAS.
Escassez de Informações
Negligência na investigação
Falta
de
percepção
e na vigilância das ETAs
significado das ETAs no
impacto à Saúde Pública
Ausência de prioridade e escassez
de
recursos
designados
controle das ETAs
FONTE: Adaptado de Mortajemi & Kaferstein, 1997.
ao
do
50
5.3. SITUAÇÃO ATUAL DAS DTAs / ETAs NO CONTINENTE EUROPEU
Desde 1980, muitos países europeus vêm participando do sistema de informação
sobre DTAs / ETAs, coordenado pela FAO/OMS, com a colaboração do Centro de Pesquisa e
Treinamento em Higiene Alimentar de Berlim (Alemanha). Em 1996, 46 países na região
européia da OMS participavam do programa, com diferentes graus de comprometimento. As
informações foram padronizadas, na medida do possível, para que se pudesse realizar uma
comparação, pois cada país tinha um sistema diferente de informação (Todd, 1997).
As tabelas que se seguem mostram o número de surtos ocorridos nos períodos de
1990 a 1993 em alguns países da Europa (tabela 1) e a percentagem relativa de agentes
envolvidos em surtos no continente europeu para o mesmo período (tabela 2). Pode-se
observar, na tabela 1, uma grande diferença entre o número de surtos notificados em cada um
dos países do Continente Europeu. Tal ocorrência se deve provavelmente às diferenças entre
os sistemas de coleta de dados e do sistema de investigação dos episódios de ETAs em cada
país.
TABELA 1: Número de surtos de DTAs / ETAs ocorridos em alguns países europeus no
período de 1990 a 1997.
PAÍS EUROPEU
Albânia
Alemanha
Bélgica
Bulgária
Dinamarca
Escócia
Espanha
Finlândia
França
Holanda
Hungria
Inglaterra e País de Gales
Portugal
Romênia
Suécia
FONTE: Adaptado de Todd, 1997.
.
PERÍODO
1990 –1991
1990 –1992
1997
1990 –1992
1990 –1992
1990 –1992
1990 –1992
1990 –1992
1990 –1992
1990 –1991
1990 –1992
1992 –1993
1990 –1991
1990 –1992
1990 –1992
NÚMERO DE SURTOS
3
319
124
67
69
486
1.723
55
1.666
59
648
403
29
125
60
51
TABELA 2: Porcentagem de agentes etiológicos de origem bacteriana, identificados,
envolvidos em surtos de DTAs / ETAs em países europeus, no período de 1990 – 1993.
% DE AGENTES ETIOLÓGICOS
PAÍS
Bacillus
cereus
Campylobacter
sp.
Albânia
Bulgária
Dinamarca
6
França
Finlândia
13
2
Alemanha
1
Hungria
3
1
Holanda
25
Portugal
Romênia
1
Espanha
1
<1
Suécia
3
Inglaterra e
País
de
2
2
Gales
Escócia
<1
11
FONTE: Adaptado de Todd, 1997.
Clostridium.
botulinum
3
7
7
3
1
3
Clostridium
perfringens
Salmonella
sp.
Shigella
sp.
Staphylo.
aureus
Outras
1
1
1
2
27
2
<1
<1
2
17
100
66
38
85
29
88
73
17
34
57
84
51
2
<1
5
6
14
7
16
2
9
10
59
24
6
12
17
68
<1
2
1
85
1
12
5
33
2
3
17
1
13
2
7
Em fevereiro de 2002, em Budapeste (Hungria), realizou-se a Primeira
Conferência Pan-Européia sobre Qualidade e Segurança Alimentar, promovida pela
FAO/OMS. Especialistas de mais de 40 países europeus, incluindo associações de produtores
e consumidores, discutiram durante três dias estratégias para melhorar a qualidade e a
segurança dos alimentos, em razão do crescente aumento dos casos de DTAs / ETAs, no
continente, na década passada. A FAO e a OMS publicaram declaração conjunta sobre o
aumento dessas doenças, em particular, as de origem microbiológicas como salmoneloses e
campilobacterioses e também casos de contaminações químicas por dioxinas, chumbo e
cádmio (WHO, 2002).
Segundo declaração do Diretor Geral Assistente da FAO, Hartwing de Haen,
“Embora os alimentos nunca estivessem tão seguros na Europa quanto nos dias de hoje,
nós não devemos ter complacência. Sistemas de monitoramento mais acurados estão
revelando mais e mais casos de DTAs/ETAs. O número de pessoas sofrendo com
enfermidades de origem alimentar ou mesmo de óbitos mantém-se muito altos.” (versão da
autora) (WHO, 2002).
52
Declarou ainda o Dr. de Haen que “o consumidor tem que ter certeza da segurança
do alimento em todos os países da Europa. Alimento seguro “desde a fazenda até a mesa”
precisa ter garantida sua segurança através de toda uma região. Para diminuir custos e
prevenir contaminações, a segurança alimentar deve começar com boas práticas na
agricultura” (versão da autora) (WHO, 2002).
Segundo a FAO/OMS, Salmonella ainda é o gênero de bactéria mais
freqüentemente apontado como agente etiológico das DTAs / ETAs. Surtos ocorrem em
países do leste e oeste europeu, nos domicílios, nos grandes “buffets”, nos restaurantes,
cafeterias, escolas e hospitais. Ao mesmo tempo, Campylobacter vem sendo freqüentemente
isolado em muitos casos de gastroenterites em países como Dinamarca, Finlândia, Irlanda,
Holanda, Noruega, Suécia, Suíça e Reino Unido (OMS, 2002).
O Diretor Executivo da WHO, Dr. David Nabarro, declarou: “Problemas com a
segurança alimentar têm se agravado desde a última década por falta de colaboração das
diferentes autoridades em nível nacional. A WHO em conjunto com a FAO e seus membros
estão trabalhando arduamente para desenvolver novas estratégias preventivas baseadas em
evidências que reduzam o risco de doença”. Este trabalho engloba toda a cadeia de produção
alimentar. Nós promovemos um diálogo com os consumidores. Nós encorajamos a
colaboração interdisciplinar em todos os níveis, desde a fazenda até a mesa. Diferentes
autoridades em nível nacional e diferentes organizações internacionais terão que trabalhar
juntas e coordenar seus esforços neste trabalho” (WHO, 2002).
Ainda, segundo o Dr. Nabarro: “Atualmente FAO e OMS estão realizando uma
avaliação de riscos microbiológicos. A primeira será realizada em nível internacional. A
combinação alimento-patógeno vem sendo identificada através de consultas a diversos
especialistas no assunto, sendo que merecem atenção imediata, Listeria em alimentos prontos
para consumo, Campylobacter em aves domésticas, Vibrio em peixes e frutos do mar e
Salmonella em ovos e aves domésticas. Estas avaliações de risco vão fornecer subsídios para
as nações adaptarem-se à situação e tratar os patógenos com maior eficiência” (WHO, 2002).
A FAO/OMS apontam as vantagens de se investir na segurança e qualidade dos
alimentos: menor incidência de DTAs / ETAs, menos gastos em Saúde Pública, diminuição
das barreiras para o comércio internacional, menos perdas na produção e maior
competitividade (WHO, 2002).
53
5.4. SITUAÇÃO NO CONTINENTE AFRICANO
Em poucos países do continente africano existe um serviço regular de vigilância
das DTAs / ETAs, embora se tenha conhecimento da importância das doenças diarréicas,
como alguns estudos têm demonstrado. Em comunidades urbanas muito pobres, é comum a
prática de se estocar refeições preparadas, em temperatura ambiente, por mais de 24 horas.
Isto acontece, em parte, por falta de combustível e, também, porque as mulheres preparam
refeições somente uma vez ao dia, pelo fato de trabalharem em locais distantes de suas casas.
Infelizmente, não são realizadas análises para identificar os patógenos causadores de DTAs /
ETAs, mas as observações indicam que enfermidades transmitidas por alimentos e água se
disseminam facilmente pelas comunidades, causando altas taxas de morbidade. Surtos de
cólera continuam ocorrendo na África desde a sétima pandemia em 1970. A doença tem
causado altos índices de morbidade e mortalidade em refugiados nos campos da Somália,
Etiópia e Sudão (WHO, 1997).
Ocasionalmente, surtos de DTAs / ETAs são documentados em países africanos.
Em 1991 foi descrito o maior surto de botulismo, com 18 mortes, ocasionadas pela ingestão
de um prato típico, faseikh, preparado à base de peixe com vísceras. Em 1994, 3 crianças
morreram e 6 outras tiveram diarréia severa, causada por Escherichia coli O157:H7, depois de
ingerir hamburgueres produzidos no Egito. Depois desse episódio, foram realizadas análises
para isolamento de Escherichia coli O157:H7 em 175 amostras de alimentos. O patógeno foi
detectado em 6% de amostras de leite não pasteurizado, em 6% das amostras de carne fresca
comercializada no varejo, em 4% das amostras de ossos de frango e em 4% das amostras de
carne de cordeiro (WHO, 1997).
Deve-se ressaltar a dificuldade para encontrar dados referentes ao número de surtos
ocorridos no Continente Africano e Oceania. Tal fato provavelmente se deve ao precário
sistema de notificação de surtos de ETAs nestes países, similar ao que acontece nos países da
América Central e América do Sul, inclusive no Brasil. Uma estimativa de ocorrência, para o
ano de 1997, pode ser observada na tabela 3.
54
TABELA 3: Ocorrência de algumas DTAs / ETAs no continente Africano, de acordo
com classificação da estimativa da ocorrência de DTAs, de origem bacteriana.
DOENÇA / PATÓGENO
ESTIMATIVA DE OCORRÊNCIA
Gastroenterite por Bacillus cereus
Botulismo
Brucelose *
Gastroenterite por Campylobacter
Cólera *
Enterite por Clostridium perfringens
Gastroenterites por Escherichia coli
Listeriose
Febre tifóide e paratifóide
Salmonelose
Shigelose
Intoxicação por Staphylococcus aureus
FONTE: Adaptado de Motarjemi & Kaferstein, 1997
+++
+
+ / ++
+++
+ / ++
+++
+++
+
++
+++
+++
+++
* varia de acordo com a região pesquisada.
Classificação das DTAs / ETAs 4 grupos:
( - ) não ocorre
( + ) ocorre ocasionalmente (1 caso/100.000 habitantes por ano)
( ++ ) ocorre freqüentemente ( 1 a 100 casos/100.000 habitantes por ano)
( +++) ocorre com muita freqüência ( mais de 100 casos/100.000 habitantes por ano)
5.5. CONTINENTE ASIÁTICO
Com exceção de alguns países como o Japão, o sistema de vigilância das DTAs /
ETAs é bastante limitado, bem como as informações e os estudos acerca dos agentes
específicos causadores dessas doenças. Através de estudos realizados em pacientes do maior
hospital de Hong Kong, parece que a distribuição dos patógenos entéricos na população é
semelhante àquela que ocorre no Japão, exceto a proporção de Shigella, que é maior, e a de
Vibrio, que é menor. Nesse estudo, os patógenos de origem bacteriana apareceram nas
seguintes proporções: Salmonella (52,5%); Campylobacter (16,6%); Shigella (11,3%); Vibrio
(5,3%); Escherichia coli (4,4%) (Tsang & Yung, 1991).
55
Pesquisas realizadas por Lee et al., comparando a ocorrência de surtos de DTAs /
ETAs no Japão e na República da Coréia, no período de 1971 a 1990, mostraram as
diferenças entre os dois países. A taxa de morbidade foi de 3,0/100.000 habitantes na
República da Coréia, com 2,48%, de óbitos, e de 29,2/100.000 habitantes no Japão, com
0,07% de óbitos. As tabelas 4, 5 e 6 apresentam alguns dos resultados dessa pesquisa (Lee et
al., 1996).
TABELA 4: Surtos de DTAs / ETAs, segundo agente etiológico, no Japão e República da
Coréia, no período de 1971 a 1990.
PAÍS
AGENTE ETIOLÓGICO
REPÚBLICA DA COREIA
Salmonella
23,1%
Staphylococcus aureus
14,9%
Clostridium sp.
0,5%
Vibrio sp.
37,6%
Escherichia coli
6,8%
Outras
17,1%
Fonte: Adaptado de Lee et al., 1996
JAPÃO
14,8%
24,8%
0,2%
47,3%
3,5%
9,6%
TABELA 5: Surtos de DTAs / ETAs, segundo local de ocorrência, no Japão e República
da Coréia, no período de 1971 a 1990.
LOCAL DE OCORRÊNCIA DO
SURTO
Domicílio
Restaurante
Hotel
Local de Trabalho
Escola
Outros
Desconhecidos
FONTE: Adaptado de Lee et al., 1996
PAÍS
REPÚBLICA DA COREIA
48,8%
10,6%
5,3%
19,1%
2,5%
11,9%
1,3%
JAPÃO
17,2%
32,7%
11,5%
0,3%
0,4%
0,16%
0,15%
56
TABELA 6: Surtos de DTAs / ETAs, segundo alimentos envolvidos, no Japão e
República da Coréia, no período de 1971 a 1990.
PAÍS
ALIMENTO ENVOLVIDO
Peixe e frutos do mar
Produtos de origem animal
Cereais, legumes e champignons
Produtos de confeitaria
Alimentos múltiplos
Outros
Desconhecidos
FONTE: Adaptado de Lee et al., 1996
REPÚBLICA DA COREIA
31,8%
25,0%
17,5%
2,9%
18,3%
1,9%
2,6%
JAPÃO
21,7%
3,6%
14,6%
1,2%
9,6%
1,0%
48,3%
Pan et al. examinaram as enfermidades transmitidas por alimentos na província de
Taiwan (China), no período de 1987 a 1993. Neste período, o número de surtos de DTAs /
ETAs informados subiu de 57 para 93. Em 1994, o número foi de 102 surtos e 4.276 doentes.
Os agentes etiológicos envolvidos foram: Vibrio parahaemolyticus (em 42 casos);
Staphylococcus aureus (em 15 casos); Bacillus cereus ( em 11 casos); Salmonella sp. (em 6
casos). Os surtos por Vibrio parahaemolyticus ocorreram nos meses mais quentes, ou seja, de
abril a outubro. Neste trabalho, também foi demonstrado que as características dos surtos
ocorridos em Taiwan se assemelham aos casos que ocorreram no Japão e na República da
Coréia (Pan et al., 1996).
No Vietnã, no período de 1984 a 1988, foi estimado que 30 a 57% dos estudantes
universitários que moravam em albergues sofreram de diarréia, em função das más condições
de higiene no preparo e estocagem dos alimentos. Alimentos vendidos nas ruas de Hanói,
entre 1990-91, quando analisados , continham Escherichia coli e Clostridium perfringens.
Mais de 5.714 episódios de DTAs / ETAs documentadas entre 1983-88, foram causadas por
Salmonella, Escherichia coli e Staphylococcus aureus, sendo que 156 desses casos foram
fatais (Xoang, 1992).
A incidência de DTAs / ETAs na Malásia era de 9,62/100.000 habitantes, em
1981, e os agentes etiológicos que apareceram com maior freqüência foram: Staphylococcus
aureus, Vibrio parahaemolyticus e Salmonella sp. (Rampal, 1983).
Em Singapura, as principais bactérias isoladas em 7.344 pacientes com diarréia
foram:
Salmonella
(10,1%);
Campylobacter
(1,2%);
Shigella
parahaemolyticus (0,8%) e Vibrio cholerae (0,2%) (Lim & Tay, 1992).
(1,1%);
Vibrio
57
5.6. OCEANIA
Um estudo realizado por Cherar et al., nos anos de 1980 a 1995, na Austrália,
indicou os principais agentes bacterianos responsáveis pelas DTAs / ETAs. Estes dados
mostram semelhanças com o que ocorre em outros países industrializados. A bactéria do
gênero Salmonella aparece como agente predominante, não obstante a baixa incidência de
Salmonella enteritidis. A infecção por Vibrio parahaemolyticus ocorre com maior freqüência
do que na América do Norte ou Europa, provavelmente em função da grande parcela da
população australiana que vive próxima ao mar e se alimenta de peixes regularmente (Crerar
et al., 1996).
A tabela 7 mostra os principais agentes etiológicos de origem bacteriana
envolvidos em surtos de DTAs / ETAs na Austrália, no período de 1980-1995.
TABELA 7: Surtos de DTAs / ETAs ocorridos na Austrália, no período de 1980-1995,
segundo agente etiológico de origem bacteriana
AGENTE ETIOLÓGICO
NÚMERO DE
NÚMERO DE
NÚMERO DE
SURTOS
CASOS
ÓBITOS
Salmonella
27
1.323
1
Clostridium perfringens
14
280
0
Staphylococcus aureus
9
99
1
Campylobacter sp.
5
106
0
Bacillus cereus
5
27
0
Vibrio parahaemolyticus
4
181
2
Listeria monocytogenes
2
13
0
Escherichia coli O111
1
23
1
Clostridium botulinum
1
1
0
Desconhecido
42
1.514
0
TOTAL
68
3.567
5
FONTE: Adaptado de National Salmonellosis Survillance Scheme, Comunicable Diseases
Intelligence Reports, Canberra, Austrália, 1995.
5.7. AMÉRICA DO NORTE
No Canadá, as informações relativas às enfermidades entéricas mostram que está
aumentando a incidência de Campylobacter, diminuindo a incidência de Salmonella e
Escherichia coli O157:H7 atingiu um pico depois de ser reconhecida como patógeno, em
1982 e, desde então, as taxas de DTAs / ETAs causadas por essa bactéria, estão decrescendo.
Nos Estados Unidos, as taxas de salmoneloses e shigeloses aumentaram no período de 1992 a
58
1995. Dados disponíveis sobre enfermidades entéricas causadas por Escherichia coli
O157:H7 aparecem somente a partir de 1994, com 1.420 casos notificados nesse ano e 2.139
notificados em 1995. Publicações recentes mostram que esse patógeno tem uma taxa de
morbidade aproximada de 0,5/100.000 habitantes, nos Estados Unidos, e 4,0/100.000
habitantes, no Canadá (WHO, 1997).
Nos Estados Unidos os casos de salmoneloses alcançaram um patamar
aproximado de 40.000 por ano, enquanto que, no Canadá, o número foi de 9.000 por ano, na
última década. Salmonella enteritidis tornou-se o patógeno transmitido via alimentos de maior
incidência nos últimos 15 anos (Todd, 1996).
Doenças causadas por Escherichia coli O157:H7 e outras linhagens de
Escherichia coli enterohemorrágicas (VTEC), envolvidas em surtos em ambos os países,
tiveram como principal via de transmissão carne moída, além de vegetais, leite e suco de
maçã. Infelizmente, há uma defasagem de informações acerca dos patógenos causadores de
surtos de DTAs / ETAs, devido à falta de integração entre os laboratórios que procediam o
isolamento e identificação desses patógenos e os sistemas de vigilância sobre as DTAs /
ETAs, tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá (Bean, 1996).
Contudo, em virtude da crescente preocupação dos órgãos de Saúde Pública, nos
Estados Unidos, foram criados “locais sentinela” para monitorar os casos de doenças
entéricas. O Canadá também melhorou o sistema de vigilância existente sobre as DTAs /
ETAs (WHO, 1997).
Estabelecida em 1996, nos Estados Unidos da América, a “FoodNet” é um
sistema integrado de vigilância que conta com a colaboração do Centro de Controle e
Prevenção de Doenças (CDC), do Departamento de Agricultura Norte-americano (USDA), do
“Food and Drug Administration” (FDA) e de alguns departamentos estaduais de saúde. A
“FoodNet” mantém vigilância ativa para sete bactérias e dois parasitas, causadores de DTAs /
ETAs, em uma população definida, que engloba 20,5 milhões de americanos. Pesquisas
adicionais conduzidas dentro da “FoodNet,” nos distritos selecionados, fornecem informações
sobre a freqüência dos casos de diarréia na população em geral, a proporção de pessoas com
diarréia em tratamento e a freqüência de coproculturas solicitadas pelos médicos e realizadas
pelos laboratórios, relativas aos patógenos selecionados, causadores de DTAs / ETAs. As
bactérias sob vigilância ativa da “FoodNet” são: Campylobacter, Escherichia coli O157:H7,
Listeria, Salmonella, Shigella, Vibrio e Yersínia. Os parasitas são: Cryptosporidium e
Cyclospora (CDC, 1999).
59
O Sistema Nacional de doenças notificáveis e o Sistema de Informação da Rede
de Laboratórios de Saúde Pública coletam dados através do Sistema Nacional de Vigilância
passiva para uma ampla cadeia de doenças relatadas pelos médicos e laboratórios,
colaborando com a “FoodNet”. O Sistema de Vigilância dos Estados da Costa do Golfo,
coletam dados de infecções por Vibrios em locais pré-determinados e o Sistema de Vigilância
de surtos de DTAs / ETAs recebem os dados de todos os estados sobre casos
reconhecidamente de surtos de DTAs / ETAs (definidos como dois ou mais casos de doença
semelhante resultante da ingestão de um mesmo alimento) (CDC, 1999).
Para melhor quantificar o impacto das DTAs / ETAs sobre a saúde da população
nos Estados Unidos da América, pesquisadores do CDC compilaram e analisaram
informações de múltiplos sistemas de vigilância e de outras fontes. Estimou-se que
aproximadamente 76 milhões de pessoas sofram DTAs / ETAs anualmente, com 325.000
hospitalizações e 5.000 óbitos a cada ano. Estimativas mostraram 14 milhões de doentes,
60.000 hospitalizações e 1.800 óbitos, causados por patógenos conhecidos. Três patógenos,
Salmonella, Listeria e Toxoplasma, foram responsáveis por 1.500 óbitos a cada ano.
Patógenos desconhecidos contabilizaram cerca de 62 milhões de casos com 265.000
hospitalizações e 3.200 óbitos. Apesar disto, DTAs / ETAs aparecem em maior número de
casos, mas com menor número de óbitos, do que o previsto nas estimativas (Mead et al.,
1999).
Contudo, na atualidade, devido às mudanças no abastecimento de alimentos,
identificação de novas DTAs / ETAs e a disponibilidade de novos dados dos sistemas de
vigilância, esses números acima citados tornaram-se obsoletos. Atualmente, são necessárias
estimativas mais acuradas para direcionar esforços relativos à prevenção e avaliação da
efetividade dos regulamentos empregados para garantir a segurança alimentar (Mead et al.,
1999).
Manter um sistema efetivo de vigilância sobre as DTAs / ETAs é relativamente
complicado, tendo em vista uma série de fatores desfavoráveis. O primeiro é a subnotificação.
Embora DTAs / ETAs possam ser severas ou fatais, os casos mais leves ou menos freqüentes
não são detectados através da vigilância rotineira. O segundo é o fato de que, muitos
patógenos transmitidos por alimentos, são também disseminados pela água ou diretamente de
pessoa a pessoa, obscurecendo a cadeia de transmissão das DTAs / ETAs. O descarte do (s)
alimento (s) suspeito (s) que deveria ser analisado para a pesquisa do patógeno causador da
doença, constitui um fator complicador na correta investigação de um surto. Finalmente,
60
algumas enfermidades transmitidas por alimentos ainda não estão bem esclarecidas e assim
não podem ser diagnosticadas. Muitos patógenos que hoje causam grande preocupação não
eram reconhecidos há 20 anos atrás, como por exemplo, Campylobacter, Escherichia coli
O157:H7, Listeria monocytogenes, dificultando uma estatística mais precisa sobre as DTAs /
ETAs (Mead et al., 1999).
A tabela 8 mostra uma estimativa de casos de ETAs, número de surtos e tipo de
vigilância que forneceu a informação. Para todos os patógenos, o número de surtos e casos
informados foram calculados pela média anual de todos os casos relatados ao CDC no período
de 1983 a 1992, cujos dados encontram-se disponíveis e publicados. Essa média de casos foi
ajustada à população total dos Estados Unidos em 1997.
TABELA 8: DTAs / ETAs relatadas e estimadas nos Estados Unidos da América,
causadas por patógenos conhecidos, de origem bacteriana, a partir de 1996.
AGENTE
ETIOLÓGICO
TOTAL DE CASOS
ESTIMADOS
Bacillus cereus
27.360
Clostridium botulinum
58
Campylobacter spp.
2.453.926
Clostridium perfringens
248.520
Escherichia coli O157:H7
73.480
Escherichia coli, outras
195.580
Listeria monocytogenes
2.518
Salmonella typhi
824
Salmonella spp.
1.412.498
Shigella
448.240
Staphylococcus aureus
185.060
Vibrio cholerae
54
Vibrio vulnificus
94
Outros Vibrios
7.880
Yersinia enterocolítica
96.368
TOTAL
5.152.460
FONTE: Adaptado de Mead et al., 1999.
CASOS RELATADOS SEGUNDO O
TIPO DE VIGILÂNCIA
ATIVA
PASSIVA
SURTOS
00
720
72
00
29
00
64.577
37.496
146
00
6.540
654
3.674
2.725
500
1.837
4.180
209
1.259
373
00
00
412
00
37.171
37.842
3.640
22.412
17.324
1.476
00
4.870
487
00
27
00
00
47
00
393
112
00
2.536
00
00
133.859
112.697
7.184
Independente do sistema de vigilância, muitos casos de ETAs não são notificados
por muitas razões: as pessoas doentes não procuram atendimento médico, o serviço de saúde
não coleta amostras do paciente para análise, o laboratório que realiza a análise não executa
os testes necessários para identificar o patógeno e o resultado do exame não é comunicado ao
Serviço de Saúde Pública. Portanto, para calcular o número total de doenças causadas por
patógenos específicos, é necessário contabilizar os casos não notificados, por exemplo, a
61
diferença entre os casos informados e o número de casos que realmente ocorreram na
comunidade. Para Salmonella, um patógeno que tipicamente não provoca diarréia com
sangue, o grau de casos não informados é estimado, por exemplo, em mais de 38 vezes o
número conhecido, segundo Voetsch (manuscrito ainda não publicado). Para Escherichia coli
O157:H7, bactéria que provoca diarréia sanguinolenta, o grau de episódios não notificados é
20 vezes maior. Pelo fato de informação similar não estar disponível para outros patógenos,
foi utilizado um fator 38 para patógenos que causam diarréia sem sangue (Salmonella,
Campylobacter) e fator 20 para patógenos que provocam diarréia sanguinolenta (Escherichia
coli O157:H7, Shigella). Para patógenos que tipicamente causam doenças severas
(Clostridium botulinum, Listeria monocytogenes), utilizou-se arbitrariamente multiplicar por
2, um fator muito abaixo, supondo-se que, na grande maioria dos casos, procura-se cuidado
médico. Em locais onde existem os dois tipos de vigilância, ativa e passiva, foram utilizados
os números fornecidos pelo sistema de vigilância ativa, quando da estimativa do número dos
casos ocorridos (CDC, 1999).
No período de 1996-97, a população pesquisada pela “FoodNet” apresentou uma
taxa de 1,4 episódios de diarréia por pessoa/ano. A taxa de doenças diarréicas, definindo
diarréia como 3 evacuações num período de 24 horas, perdurando por um dia ou interferindo
nas atividades normais, foi de 0,75 episódios por pessoa/ano (CDC, 1999).
Critérios estabelecidos pela “FoodNet”, para a população pesquisada indicam que
a taxa de hospitalizações foi 7,2 hospitalizações/1000 pessoas/ano, devido à doenças
diarréicas, sendo, 3,5 hospitalizações/pessoa/ano, (equivalente a 936.726), devido à
Gastroenterites agudas.
De 1996 a 1999, a incidência de infecções por três agentes microbianos
conhecidos, sob vigilância pelo sistema “Foodnet”, e confirmadas laboratorialmente, sofreram
declínio substancial em cinco estados norte-americanos. Neste período, a incidência de
Campylobacter caiu 26% em todos os estados, a de Shigella caiu 44% e a de Escherichia coli
O157:H7 caiu 22%.. A incidência de Listeria, Vibrios infecciosos e Yersinia permaneceu
inalterada durante esse período de 4 anos (CDC, 2000).
5.8. AMÉRICA CENTRAL E AMÉRICA DO SUL
Todos os países da América Central, América do Sul e Caribe possuem algum
tipo de sistema para notificação de doenças. As doenças diarréicas aparecem como uma das
62
maiores causas de morte entre crianças menores de um ano. Citamos como exemplo a
Nicarágua, onde o número de óbitos é de 967/100.000 crianças abaixo de um ano, contra
0,5/100.000 crianças no Canadá. Crianças menores de 5 anos, na Nicarágua, sofrem de 4 a 7
episódios de diarréia por ano. As causas dessas doenças, em geral, não são conhecidas, mas
disenteria amebiana, triquinose, giardiase, shigelose, brucelose, febre tifóide, Escherichia coli
e hepatite infecciosa estão registradas na América Latina e Caribe e há fortes indícios da
ligação dessas doenças com o consumo de alimentos contaminados (OPAS, 1996).
Em 1991, uma epidemia de cólera, inicialmente registrada no Peru, onde
ocorreram cerca de 600.000 casos, alastrou-se rapidamente por diversos países, entre os quais,
Brasil, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Guatemala, México, Bolívia, Equador e Colômbia,
causando 1.229 óbitos, entre os 112.611 casos notificados (OPAS, 1995).
O número total de casos de cólera e óbitos, entre 1991 e 1994, foi de 1.061.188 e
9.989, respectivamente. A principal fonte da doença, provavelmente, foi alimentos
contaminados. Em 1991, Vibrio cholerae 01 foi encontrado no Peru em água, efluentes de
esgotos, peixes, moluscos e plâncton, com contagem de 105 UFC / 100 mL (Tamplin &
Parodi, 1991).
A doença se alastrou, em parte, devido ao consumo de alimentos vendidos nas
ruas e bebidas contendo gelo, preparado com água contaminada (Ries et al., 1992).
No México, Escherichia coli enterotoxigênica
constitui importante agente
causador de diarréias entre crianças com idade abaixo de 5 anos. Salmonella também ocorre
com freqüência. Em Cuba, Staphylococcus aureus é o agente etiológico que ocorre com maior
freqüência, sendo responsável por 22,6% de todos os surtos ocorridos no país, seguido de
Clostridium perfringens, Escherichia coli (sorotipo não identificado), Salmomella e Bacillus
cereus. O número de surtos causados por microrganismos aumentou no período de 1985 a
1988. Carne bovina, suína, de aves, peixes e moluscos são
os alimento que estiveram
implicados em surtos de DTAs / ETAs. Doces recheados com nata foram a principal fonte de
contaminação por Staphylococcus aureus. Em outros oito países, surtos de DTAs / ETAs
foram registrados, mas com poucas informações disponíveis sobre o agente etiológico
responsável ou alimentos implicados (OPAS, 1997).
Na Argentina, Salmonella enteritidis e Escherichia coli O157:H7 foram
responsáveis por DTAs / ETAs. Entre 1986 e 1990, 35 surtos de Salmonella enteritidis
afetaram 3.500 pessoas, através de aves insuficientemente cozidas e ovos usados no preparo
63
de maionese. Entretanto, na Venezuela, Colômbia e Brasil, Staphylococcus aureus foi o
agente responsável pela maioria de casos de surtos de DTAs / ETAs (Eiguer et al., 1990).
A tabela 9 mostra o número de surtos de DTAs / ETAs registrados em 9 países da
América Central e América do Sul:
TABELA 9: Número de surtos, de casos e outras informações relativas a DTAs / ETAs
em 8 países da América Central e América do Sul.
Brasil
1985-1989
No DE
SURTOS
42 – 90 / ano
Colômbia
1983-1988
Não informado
5.281 – 8.668
República
Dominicana
1989-1990
45
196
El Salvador
1989
Não informado
509
Guatemala
1987-1989
9
32
México
Venezuela
1981-1990
1989
1990
363
23
14
14.412
293
400
Argentina
1986-1990
35
3.500
PAÍS
PERÍODO
No DE CASOS
5.627 – 9.758
OUTRAS
INFORMAÇÕES
3,0 a 5,7% dos casos
necessitaram
hospitalização
20 hospitalizações
Somente
Salmonella
enteritidis
FONTE: Adaptado de OPAS, 1997.
NOTA: Entende-se como de difícil compararação os dados obtidos nos diversos países, em
virtude das diferenças entre os sistemas de notificação, investigação e relatos dos surtos de
ETAs em cada um deles.
Programas de inocuidade de alimentos nas Américas, receberam mais atenção,
como resultado da reunião do grupo especial da Comissão Pan-Americana de Inocuidade de
Alimentos (COPAIA), realizada em julho de 2001. O encontro foi promovido pelo Instituto
Pan-Americano de Proteção de Alimentos e Zoonoses (INPPAZ) da Organização PanAmericana de Saúde (OPAS) e contou com a participação de representantes da Argentina,
Brasil, Estados Unidos da América, México, Peru, Canadá, Suriname e Uruguai. O propósito
fundamental da COPAIA é contribuir para melhorar a qualidade dos alimentos em toda a
cadeia produtiva, por meio do desenvolvimento de políticas voltadas para programas
64
específicos com a finalidade de garantir a segurança alimentar e promover a integração entre
produtores e consumidores. Para atingir estes objetivos, foi formada uma comissão de alto
nível político, integrada por Ministros da Saúde e Agricultura, representantes dos produtores e
representantes dos consumidores dos países das Américas (OPAS, 2001).
65
6. RESULTADOS E DISCUSSÃO
6.1. UM SURTO DE ENFERMIDADE TRANSMITIDA POR ALIMENTOS (ETA)
OCORRIDO NO MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA
Na data de 03/10/2001 ocorreu um surto de ETA entre os funcionários de uma
indústria madeireira sediada no distrito industrial de Ponta Grossa – PR, ocasionado por
alimento(s) servido(s) durante o jantar do dia 02/10/2001 na referida empresa. As refeições
são preparadas por um restaurante terceirizado, que serve a indústria desde a sua instalação no
município no ano de 2000.
No dia seguinte, 03/10/01, vários funcionários da indústria, apresentaram
sintomas da doença com forte diarréia, sendo que alguns apresentaram os sintomas algumas
horas após o jantar.
Na data de 04/10/2001, um funcionário da empresa telefonou para o serviço de
Vigilância Epidemiológica da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa (VIEPI), informando o
surto ocorrido e solicitando providências. Imediatamente, duas técnicas da equipe foram até o
local para proceder a investigação e obtiveram as seguintes informações:
Vários funcionários tiveram diarréia violenta, algumas horas após o jantar e os sintomas
persistiam até o momento da investigação;
Que os alimentos servidos foram: frango empanado, chuchu cozido com carne bovina
moída, farofa, arroz, feijão, salada de alface e tomate, repolho refogado, couve-flor e
pepino;
Foram entrevistados 21 funcionários que apresentaram os sintomas da ETA;
Todos fizeram a refeição do dia 02/10/01 entre 19h:30min e 20:00h;
Um ônibus da indústria, no dia 03/10/01, havia levado cerca de 25 funcionários para
serem atendidos no Pronto Socorro Municipal. Apenas um funcionário ficou em
observação até a manhã seguinte sendo os demais atendidos, medicados e liberados em
seguida;
Dos funcionários atendidos no Pronto Socorro Municipal, apenas aquele caso que ficou
em observação foi notificado ao Serviço de VIEPI, e registrado como ETA, sendo os
demais anotados nas fichas de atendimento apenas como gastroenterite (GET), sem
constar a causa;
Não foi solicitado exame de coprocultura de nenhum dos pacientes atendidos;
66
Não havia nenhuma sobra dos alimentos servidos para ser enviada ao LACEN-PR a fim
de proceder análise microbiológica;
Na data de 04/10/01, perto das 14:00h, estavámos na Prefeitura Municipal de
Ponta Grossa para coletar informações quanto ao registro de surtos para esta dissertação,
quando fomos informados do que estava ocorrendo. Neste momento a enfermeira da VIEPI
me informou que a equipe da Vigilância Sanitária (VISA) estava se dirigindo até a empresa
fornecedora das refeições para proceder a inspeção. Solicitei ao médico veterinário
responsável para que pudesse acompanhar a visita.
Ao chegarmos à empresa fomos recebidos pela proprietária que autorizou a
inspeção. Quando indagada a respeito do surto, relatou não acreditar que o caso apresentasse
gravidade, inclusive insinuando que alguns funcionários teriam pego “carona” no ônibus que
os conduziu até o Pronto Socorro apenas para fugir do trabalho.
Visitamos todas as dependências do restaurante que funciona dentro de um clube
social da cidade. Constatamos que a área física era bastante precária, não apresentando fluxo
adequado ao número de refeições preparadas diariamente, mais de 500, além de atender com
exclusividade o clube em todas as solenidades de jantares, festas de aniversário e outras,
também sendo responsável pelo funcionamento do bar, com preparo de salgados e petiscos.
Além da precariedade da área física, o número de cozinheiros é insuficiente e não têm
treinamento para a função. Os frezers estavam abarrotados de carnes, sem controle de
temperatura, apresentando muita sujidade e ferrugem. Próximo à área de manipulação, fica a
lavanderia, junto aos armários onde são guardados pratos e talheres, tudo em estado precário e
com muita sujidade. Todas as dependências estavam em estado crítico devido à falta de
higienização.
Após meia hora de inspeção, o técnico da VISA solicitou verbalmente à
proprietária uma planta baixa com as devidas reformas no local, sendo que ela deveria
apresentar a citada planta em no máximo 15 dias. Nada mais foi feito ou observado e
deixamos o local.
Retornando à VIEPI, recebi a informação da equipe técnica, que não havia mais
nada a fazer referente ao surto, pois não havia dados suficientes para se chegar a alguma
conclusão.
Quatro meses depois do surto, a proprietária do restaurante enviou a planta baixa
do local, com as devidas reformas, que está sendo analisada pelo engenheiro da VISA
municipal.
67
Consta na Lei 13331 de 23 de novembro de 2001 do Estado do Paraná, na Seção
XXI, em seu artigo 367: “A SESA/ISEP coordenará as ações de vigilância epidemiológica de
doenças transmitidas e/ou veiculadas por alimentos, através do sistema estadual de
notificação, investigação e controle de agravos”. Parágrafo Único: “Os serviços de vigilância
sanitária e epidemiológica municipais deverão notificar de imediato e obrigatoriamente, a
SESA/ISEP, os agravos por doenças transmitidas e/ou veiculadas por alimentos”
(SESA/ISEP, 2001).
A identificação de um surto de ETA deve ser realizada através de inquérito
epidemiológico, conduzido entre os indivíduos que tenham ou não consumido o(s)
alimento(s) suspeito(s), apresentando ou não os sintomas característicos da doença. Também
devem ser realizados exames laboratoriais em amostras de material fecal dos doentes e em
amostras dos alimentos suspeitos. Deve-se considerar que nem todos os indivíduos que
consumem o mesmo alimento contendo um agente patogênico, apresentam a mesma
sintomatologia. O período de incubação, a gravidade e a duração da doença podem ser
diferentes, dependendo da idade, estado nutricional, sensibilidade do indivíduo e da
quantidade de alimento ingerido (Franco & Landgraf, 1996).
Para Nervino & Hirooka, a notificação das ETAs é uma ação importante para
melhorar a qualidade higiênico-sanitária na produção dos alimentos. O mapeamento das
ETAs fornece subsídios para o desenvolvimento de medidas políticas, legislativas, priorização
de pesquisa e avaliação de programas que visem o controle dos surtos epidêmicos (Nervino &
Hirooka, 1997).
Os sistemas de notificação têm evoluído e modernizado, no entanto, os surtos
epidêmicos produzidos por alimentos contaminados são subnotificados em quase todos os
países, suspeitando-se que em alguns países a subnotificação atinge um índice de até 90%
(Nervino & Hirooka, 1997).
É importante salientar que a notificação de surtos de ETAs em nosso país é
incipiente (Jakabi et al, 1999).
Os surtos e incidências de infecções e intoxicações de origem alimentar requerem
investigações cuidadosas quanto à história dos alimentos veículos, com estudos ambientais
das áreas de produção e preparo, da maneira mais detalhada possível. Os locais onde
ocorreram as doenças e as áreas de disseminação podem incluir fazendas que produziram os
alimentos, revendedores, estabelecimentos comerciais, indústrias, fornecedores de refeições
coletivas, restaurantes comerciais, cantinas e cozinhas domésticas. As condições de transporte
68
dos animais vivos e dos gêneros alimentícios também podem aumentar a disseminação de
patógenos (Hobbs & Roberts, 1998).
As provas das causas de um surto dependem do isolamento e identificação do
agente causal, nas fezes do maior número de pacientes possível e no alimento veículo. As
fezes dos manipuladores dos alimentos também devem ser examinadas. Também as mãos,
nariz e garganta destes manipuladores devem ser submetidas a “swab”, se necessário, pois o
Staphylococcus aureus pode ter contaminado os alimentos cozidos dando início a uma
intoxicação através de sua toxina. Da mesma forma, trabalhadores podem se contaminar com
alimentos que tocam e passam a excretar organismos como Salmonella, por exemplo,
encontrada em aves e ovos. Quanto mais rápido possível as notificações dos surtos chegarem
às autoridades, mais cedo as primeiras amostras podem ser coletadas e examinadas e as
investigações retrospectivas iniciadas (Hobbs & Roberts, 1998).
Na Inglaterra e País de Gales, entre os anos de 1970 e 1982 foram registrados
1.500 surtos de ETAs, sendo que estes representam apenas 20% dos surtos que realmente
aconteceram. Os números são baixos porque faltaram dados epidemiológicos para a conclusão
dos demais surtos e muitos casos não chegaram ao conhecimento das autoridades sanitárias.
No Estado do Paraná, foram notificados 2000 surtos de ETAS entre os anos de 1978 e 2000,
refletindo cerca de 10% do que realmente aconteceu, segundo o médico veterinário Natal Jataí
de Camargo, da SESA – Pr (Hobbs & Roberts, 1998 ; SESA, 2002).
No Reino Unido, as investigações de surtos e o controle epidemiológico são de
responsabilidade do Serviço Nacional de Saúde (NHS) e das autoridades locais. A
investigação das ETAs, na Inglaterra e no País de Gales é facilitada por um sistema de
notificações obrigatórias previstas nas leis do NHS e da Saúde Pública. Os casos suspeitos e
os em ocorrência devem ser comunicados às autoridades sanitárias locais através de laudos
médicos. Os surtos e outros acontecimentos importantes envolvendo alimentos necessitam ser
comunicados ao Departamento de Saúde (DH), aos oficiais do Centro de Serviços
Laboratoriais de Saúde Pública (PHLS), no País de Gales, Centro de Vigilância de Doenças
Transmissíveis (CDSC) e, na Escócia, à Unidade de Doenças Transmissíveis. Os memorandos
referentes às ETAs (188/Méd. HMSO, 1982), publicados pelo DHSS, oferecem os
procedimentos legais para as investigações e controles, tanto na Inglaterra, como no País de
Gales. Surtos em qualquer localidade são imediatamente comunicados às autoridades. O
Serviço Médico de Saúde Ambiental (MOHE) e o Centro de Controle de Doenças
Transmissíveis (CCDC), comunicam ao PHLS, CDS ou às unidades de CDS. Em certos
69
casos, é responsabilidade dos gerentes de estabelecimentos que manipulam alimentos,
comunicar ao MOHE ou aos serviços apropriados a ocorrência de surtos. A velocidade da
comunicação é de vital importância, principalmente quando os alimentos suspeitos são
distribuídos em nível nacional ou internacional (Hobbs & Roberts, 1998).
Profissionais de muitas áreas participam das investigações de surtos de ETAs,
incluindo aqueles ligados aos órgãos de saúde ambiental, epidemiologistas, especialistas em
saúde comunitária e saúde portuária, cientistas da área de alimentos, juntamente com clínicos,
veterinários, microbiologistas e as pessoas intimamente envolvidas com a produção de
alimentos, como os cozinheiros e manipuladores, fabricantes de alimentos e refeições e
trabalhadores das fazendas. Estudos detalhados de casos registrados em pacientes hospitalares
são valiosos e as conversas com estes pacientes a respeito de seus hábitos de compra e hábitos
de alimentação podem revelar fatos importantes para a investigação (Hobbs & Roberts, 1998).
Nos Estados Unidos a vigilância de doenças de maior importância em Saúde
Pública, vem se desenvolvendo há muitos anos. O sistema legal de vigilância é de
responsabilidade dos escritórios estaduais de epidemiologia que compartilham dados com o
CDC. O sistema de vigilância depende inicialmente do médico para notificar as doenças
específicas e as condições em que elas de desenvolveram, sendo essas notificações
encaminhadas aos departamentos de saúde em nível local, que encaminham para os
departamentos estaduais e estes para os departamentos federais. Outra estratégia
implementada a partir de 1996 é o de vigilância ativa em populações específicas que
permanecem sob sentinela, em cinco locais determinados. Recursos adicionais foram
possibilitados pelo contato direto com laboratórios que informam regularmente infecções
bacterianas de origem alimentar. Também são observados, a população, os médicos e
laboratórios para medir a proporção de incidência de diarréia que não são diagnosticadas ou
não foram informadas, podendo desta forma ser estimada a incidência real de casos de
diarréia. Esta vigilância, conhecida como “FoodNet”, é um sistema através do qual as
investigações são mais detalhadas, incluindo estudo de caso-controle e casos esporádicos das
ETAs mais comuns (Tauxe, 1999).
O CDC possui um guia para uma investigação dos surtos de ETAS. Neste guia, é
solicitado o preenchimento das seguintes informações:
Local de exposição;
Data em que o primeiro paciente apresentou os sintomas da doença e data em que ocorreu
a primeira e última exposição ao(s) alimento(s) suspeito(s);
70
Número de expostos sob a jurisdição do investigador;
Porcentagem aproximada do total de casos por faixa etária;
Estimativa da porcentagem de casos entre homens e mulheres;
Métodos de investigação;
Alimento(s) implicado(s);
Agente etiológico responsável pelo surto, utilizando os critérios referidos pelo MMWR
1996 / Volume 45 / ss-5 / Appendix B, fornecendo o maior número de detalhes sobre o
microrganismo ou a toxina;
Fatores que contribuíram para a ocorrência do surto: fatores de contaminação, proliferação
e sobrevivência do agente etiológico;
Agência que informou o surto;
Período de incubação;
Duração da enfermidade aguda entre os pacientes que já se recuperaram;
Cálculo da taxa de ataque;
Identificação dos ingredientes utilizados para o preparo do(s) alimentos(s) suspeito(s);
Onde o alimento foi preparado?
Onde o alimento foi consumido?
Outras informações disponíveis;
Descrição de aspectos considerados relevantes durante a investigação do surto que não
constam deste guia (CDC, 1999).
No Brasil, a investigação de surtos de ETAs deve seguir o protocolo do Ministério
da Saúde, esquematizado na figura 2, segundo Silva Jr.(1995).
No município de Ponta Grossa, conforme pudemos observar em vários dados
coletados, as investigações de surtos de ETAs não são realizadas conforme preconizado pelos
órgãos competentes nacionais e internacionais. Existem muitos pontos a serem melhorados,
desde as entrevistas com as pessoas que foram vítimas dos surtos, até a coleta de materiais
para análise laboratorial, tanto de alimentos quanto de material para coprocultura. A figura 2
mostra um esquema sobre a investigação de surtos no Brasil. O roteiro para tal investigação
está detalhado no Manual para investigação de surtos de enfermidades transmitidas por
alimentos da SESA/ISEP.
71
FIGURA 2: ESQUEMA PARA INVESTIGAÇÃO DE SURTOS DE ETA NO BRASIL.
Adaptado de Silva Jr., 1995.
PROCEDIMENTOS PARA DIAGNÓSTICO DOS SURTOS DE ENFERMIDADES
TRANSMITIDAS POR ALIMENTOS
DIAGNÓSTICO DOS SURTOS DE ETAs
Diagnóstico dos fatores
que levaram ao surto
Técnica de
preparação
utilizada
para cada
alimento
Armazenamento
(tempo e
temperatura de
refrigeração)
Distribuição
tempo e
temperatura
(“pass through” e
balcão térmico)
Condições
ambientais
(análise
microbiológica de
utensílios e
equipamentos)
Diagnóstico do agente etiológico
Coleta de amostras
(análise microbiológica)
Quadro clínico
(freqüência de
sintomas)
Período de incubação e
duração da doença
Cardápio
(alimentos
envolvidos)
Índice de
ataque
(para cada
alimento)
Coprocultura
Surto de
infecções
intestinais
(portadores)
72
6.2. SITUAÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS PRODUTORES DE ALIMENTOS NO
MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA-PR.
Para coletar os dados referentes à situação dos estabelecimentos que produzem
alimentos no município de Ponta Grossa, foi realizada entrevista com o Médico Veterinário,
responsável pela Vigilância Sanitária de Alimentos do Instituto de Saúde de Ponta Grossa, na
data de 03/05/2002.
O Serviço de Vigilância Sanitária de Alimentos (VISA) no município de Ponta
Grossa está municipalizado desde o ano de 1991. Até então, o serviço era de responsabilidade
da Secretaria de Estado da Saúde, 3a. Regional de Saúde de Ponta Grossa.
Hoje o município conta com uma equipe de 07 técnicos de nível médio, sob a
supervisão de um médico veterinário em apenas 4 horas diárias, pois o mesmo também é
responsável pela Divisão de Zoonoses da Secretaria Municipal de Saúde de Ponta Grossa.
Raramente estes técnicos participam de cursos de atualização para as funções desempenhadas,
pois não dispoem de tempo, fora do expediente de trabalho para tal, o que dificulta a melhoria
do nível das inspeções. Possui apenas um veículo “Kombi” que não é exclusivo do serviço,
sendo destinado também ao transporte de pessoas doentes. Conta com um computador, mas
não existem dados informatizados, nem mesmo cadastro dos estabelecimentos.
O número de estabelecimentos que manipulam alimentos, instalados no município
de Ponta Grossa consta na tabela 10, porém não é exato, segundo a equipe técnica da VISA.
TABELA 10: Número de estabelecimentos que manipulam alimentos no município de
Ponta Grossa, em 2002.
ESTABELECIMENTOS
Fábricas de produtos de origem animal
QUANTIDADE
43
Lanchonetes
Aproximadamente 200
Panificadoras
Aproximadamente 140
Restaurantes
Aproximadamente 140
Vendedores Ambulantes
Aproximadamente 137
TOTAL APROXIMADO
660
FONTE: Instituto de Saúde de Ponta Grossa, 2002.
73
Segundo o médico veterinário responsável pelo serviço de VISA de alimentos, no
município de Ponta Grossa, a meta estabelecida é de 1,5 inspeções por ano em cada um dos
estabelecimentos, mas são realizadas aproximadamente 0,7 inspeções anualmente.
Quando da autuação desses estabelecimentos, alguns não têm o processo
concluído, por dificuldades de retorno dos técnicos para proceder a vistoria, com finalidade de
verificar o cumprimento dos itens em desacordo com a legislação vigente.
O entrevistado ressalta a baixa remuneração dos técnicos da VISA, a falta de um
plano de cargos de salários e a falta de gratificação por atividade específica como motivos de
descontentamento da equipe. Informa também que a ingerência política diminuiu
consideravelmente na gestão atual, mas ainda falta planejamento de atividades e
aplicabilidade deste planejamento. Há também falta de recursos, principalmente veículo
exclusivo destinado às inspeções dos estabelecimentos que produzem alimentos no município
de Ponta Grossa e programas de informatização para melhorar o controle e acompanhamento
dos trabalhos realizados.
Desde os primórdios da organização social, observamos a edição de leis
destinadas a proteger as populações contra a adulteração e fraudes de alimentos, bem como
reduzir o risco de contrair doenças que possam ser transmitidas pelos alimentos. Para
implementar e fazer cumprir tais legislações, é reconhecido o poder de polícia do Estado,
responsável pela manutenção da salubridade pública. No Brasil, a implementação da
legislação de proteção à saúde, relacionada à segurança alimentar, é designada pela expressão
“vigilância sanitária de alimentos” (Dallari et al, 2000).
Um estudo realizado por Dallari et al. (2000), na Vigilância Sanitária de
Alimentos, no município de São Paulo - SP, revelou um quadro muito semelhante ao que foi
por nós observado no setor de Vigilância Sanitária de Alimentos no município de Ponta
Grossa – PR: A pesquisa revelou a falta de critérios técnicos para a organização dos serviços,
assim como, falta de planejamento e metodologia para as ações de vistoria; não há
monitoramento dos locais de maior risco à saúde pública, visto que, não há técnicos em
número suficiente e veículo à disposição quando necessário, além de se trabalhar as vistorias
baseadas em denúncias da população; o fato de não haver cadastro informatizado dos
estabelecimentos, dificulta um acompanhamento por parte dos técnicos; os dados obtidos
através dos laudos de inspeção sanitária não são utilizados para o planejamento e avaliação do
serviço, desprezando-se a fundamentação epidemiológica das ações, instaurando-se a cultura
da informação burocrática; o setor pratica ações isoladas dos demais setores de vigilância à
74
saúde, agindo de forma individualizada e portanto, com menor eficácia na prevenção do risco
do consumo de alimentos, agindo de forma contrária com o que prescreve o Sistema Único de
Saúde – SUS (Lei 8.080 de 19/09/90, art.6o., parágrafo 1o. e art. 7O., VIII) (Dallari et al,
2000).
Valente (2001) comenta em seu trabalho, a respeito da ausência de programas e
projetos dirigidos à atividade da Vigilância Sanitária que apresentem objetivos claros,
concebidos em consonância com as políticas de saúde, em resposta às necessidades da
população. Destaca também as dificuldades técnicas dos municípios em aplicar os
instrumentos legais em função da falta de recursos financeiros para contratação e treinamento
de pessoal, manutenção do quadro de funcionários já capacitados que muitas vezes são
deslocados de suas funções, aquisição de materiais apropriados para as inspeções, desde
veículos até termômetros, medidores de pH, máquinas fotográficas, computadores e
adequação da área física do setor de Vigilância Sanitária, que em Ponta Grossa é precário,
tanto em dimensões, quanto em comodidade aos funcionários. Nos últimos anos, forma
implementadas mudanças como a implantação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), que introduziu grandes mudanças no sistema de fiscalização sanitária no país,
principalmente às relacionadas à gestão financeira e administrativa, proporcionando
autonomia e maior eficiência ao órgão. Por outro lado, tais mudanças não ocorreram nas
outras esferas do Governo, explicando talvez algumas das grandes dificuldades enfrentadas
pela Vigilância Sanitária dos municípios brasileiros. Além de todos os problemas já
mencionados, relativos ao número e capacitação insuficiente de técnicos, áreas físicas
precárias e falta de veículos e equipamentos, também as informações relacionadas aos
serviços executados pela Vigilância Sanitária, na maioria das vezes, não estão disponíveis, de
modo rápido e claro para a sociedade e órgãos interessados, sobretudo em pesquisas,
problema que poderá ser solucionado, com a implantação de um Sistema Informatizado, que
garanta o acesso imediato às informações necessárias. As ações de Educação Sanitária, ainda
são inexpressivas embora de relevante importância na multiplicação do conhecimento,
principalmente àquelas pessoas diretamente ligadas à manipulação dos alimentos (Valente,
2001).
75
Segundo o Médico Veterinário da VISA de Ponta Grossa, os principais problemas
apresentados pelos estabelecimentos que produzem alimentos, são relativos: a) aos
trrabalhadores do setor de alimentos; b) áreas físicas inadequadas dos estabelecimentos; c)
inadequação das práticas de produção; d) outros fatores, como o transporte de alimentos.
Tais observações, relativas à Ponta Grossa, são apresentadas a seguir, com a devida discussão
sobre os aspectos abordados:
a) Problemas diretamente relacionados aos trabalhadores: Em geral o número de
funcionários na área de manipulação de alimentos é reduzido, dificultando a execução
adequada do trabalho, provocando contaminações cruzadas e outros problemas. O baixo nível
de formação técnica dos manipuladores ocasiona uma série de problemas durante a
manipulação. Há também problemas de gerenciamento, visto que, a maioria dos responsáveis
também não possui formação específica para manipular alimentos com segurança;
b) Áreas físicas inadequadas: A maioria dos estabelecimentos não possui área física
adequada, pois não foram construídos com a finalidade de produzir alimentos. Sofreram
adaptações, quase sempre sem consulta prévia à VISA estando, portanto inadequados às
funções de produção de alimentos. Normalmente o fluxo é inadequado propiciando
contaminação cruzada por não possuírem barreiras entre área limpa e suja.
Também a rede de frio apresenta-se insuficiente na maioria dos casos e muitas estão em
estado precário de conservação, não havendo segurança quanto à temperatura necessária para
conservação dos alimentos perecíveis. Em praticamente todos os estabelecimentos não ocorre
controle das temperaturas da rede de frio;
c) Inadequação das práticas de produção: Nenhum dos estabelecimentos constantes
na tabela 10 apresenta metodologia implantada para boas práticas de manipulação, como
sistema HACCPP, sendo que a maioria dos proprietários e manipuladores desconhece tais
metodologias.
Também não possuem responsável técnico habilitado para o exercício das funções
de manipulação de alimentos e apresentam erros na conservação dos alimentos em função de
falhas na rede de frio e falta de conhecimentos por parte dos manipuladores.
Em geral, o tempo entre o preparo e o consumo dos alimentos, sobretudo em
restaurantes e lanchonetes, é muito longo, acima de 2 horas, sendo que os mesmos
permanecem em temperaturas que propiciam o desenvolvimento de microrganismos
patogênicos.
76
A falta de identificação de produtos fracionados é outro problema apontado pela
equipe da VISA. É comum a utilização de produtos sem inspeção sanitária para produção de
alimentos, principalmente carnes, leite e derivados e ovos.
d) Outros problemas: A área de transporte de refeições é outro problema apontado
pela equipe da VISA. Muitas indústrias em Ponta Grossa não possuem restaurantes próprios e
terceirizam o serviço para estabelecimentos que, em geral, se localizam no centro da cidade,
distante do Distrito Industrial. Esse transporte é feito em carros comuns, sem os devidos
cuidados no que diz respeito à correta conservação dos alimentos, criando assim condições
favoráveis à multiplicação de microrganismos patogênicos nestes alimentos.
O técnico entrevistado informou que cerca de 7 restaurantes, atualmente, no
município de Ponta Grossa funcionam em condições precárias, apresentando risco para a
população e dentre estes estabelecimentos, alguns são de grande porte, servindo um grande
número de refeições diariamente.
Importante ressaltar o crescente número de empresas que servem alimentos
preparados em outros locais que não em seu próprio refeitório. No município de Ponta
Grossa, algumas empresas produzem alimentos que serão servidos, por exemplo, em
refeitórios industriais, geralmente mais de 2 horas após o preparo.
Por certo não é por carência normativa ou mesmo da existência de conhecimento
técnico-científico que vários destes problemas são encontrados. A Lei 13331/2001, Seção
XXII, artigo 369, inciso XIX, letra “d”, por exemplo, preconiza para estabelecimentos que
produzem alimentos: “Os manipuladores deverão receber treinamento continuado, dentro do
que preconiza as Boas Práticas de Fabricação, conforme estabelecido neste regulamento”, e
no artigo 375, “Compete aos proprietários das empresas ou seus responsáveis, garantir a
capacitação e aperfeiçoamento em boas práticas, para o controle dos padrões e identidade e
qualidade dos produtos, aos trabalhadores do estabelecimento, inclusive os manipuladores
de alimentos” (SESA/ISEP, 2001).
Considerando que a maioria das pessoas envolvidas com a manipulação de
alimentos nas indústrias e cozinhas em geral, carecem de conhecimentos relativos aos
cuidados higiênico-sanitários que devem ser seguidos durante e após a elaboração do produto,
não se pode ignorar a possível presença de portadores assintomáticos de diversos patógenos,
entre eles Campylobacter spp entre esses indivíduos. As práticas inadequadas de higiene e
processamento por pessoas sem a devida qualificação podem provocar contaminação cruzada
de alimentos, que constitui um risco potencial à saúde pública. Um estudo elaborado por
77
Tosin & Machado (1995), sobre a ocorrência de Campylobacter spp entre manipuladores em
cozinhas hospitalares no município de Florianópolis – SC, mostrou que não há
obrigatoriedade de realização rotineira de exames clínico-laboratoriais para os funcionários
das cozinhas, sejam institucionais, sejam hospitalares. Também não há oferta de palestras ou
cursos sobre noções de higiene pessoal ou princípios técnicos e normas de segurança que
devem ser observadas durante e após o processamento dos alimentos. Pelo menos 50% dos
locais pesquisados não afastam seus funcionários de suas atividades mesmo apresentando
quadro clínico de diarréia. Esses fatos evidenciam a falta de conscientização das pessoas
responsáveis por estabelecimentos de manipulação de alimentos, considerando o alto risco
dessa atividade (Tosin & Machado, 1995).
Uma forma de contaminação freqüente por Salmonella é através de manipuladores
infectados por essa bactéria, geralmente portadores assintomáticos. A importância dos
manipuladores de alimentos portadores de Salmonella typhi e Salmonella paratyphi na
transmissão da febre tifóide e paratifóide é incontestável e o portador, por apresentar um risco
real à população que depende de seus serviços, deve ser afastado do local de trabalho até que
a eliminação dos microrganismos seja comprovada através de três coproculturas negativas
(Felipe et al., 1999).
Manipuladores avaliados por Almeida et al (1995), raramente lavavam as mãos
quando entravam na cozinha ou durante a preparação dos alimentos. A única pia disponível na
área de serviço, não tinha água quente nem papel toalha para secagem das mãos, embora
apresentasse sabão líquido em recipiente preso à parede. Também foi observado que as carnes
que apresentavam contagens microbianas mais altas, haviam sido fatiadas por mãos que
também apresentavam contagens mais elevadas. Como muitos manipuladores investigados
apresentaram Staphylococcus aureus e/ou Clostridium perfringens e não era prática comum a
lavagem das mãos por parte dos mesmos, verificou-se a necessidade de introduzir métodos
adequados de higienização das mãos, para prevenir a transmissão de microrganismos
patogênicos aos alimentos (Almeida et al., 1995).
Outro exemplo da existência de norma a ser cumprida é o que diz respeito aos
espaços físicos de empresas de alimentos. Na Seção XXII da Lei Estadual 13331/2001
(Estado do Paraná), artigo 369, estão descritos os itens que devem apresentar uma empresa
produtora de alimentos: Inciso IV “Espaço suficiente para realizar os trabalhos de
manipulação e fluxo adequado de produção; Inciso XVII “Refrigeradores, congeladores e
78
câmaras frigoríficas devem ser adequados ao ramo de atividade, ao tipo de alimento, à
capacidade de produção, limpos e higienizados constantemente, dotados de termômetro de
fácil leitura” (SESA/ISEP, 2001).
Uma empresa produtora de alimentos deve apresentar área física compatível,
previamente planejada, seguindo uma linha de produção, mais racional possível. Suas
unidades operacionais deverão obedecer a um fluxo coerente, evitando o cruzamento e
retrocessos que comprometam a produção dos alimentos. Devem, para tanto, apresentar no
mínimo, as seguintes áreas: área para recepção de mercadorias; área para inspeção, pesagem e
higienização dos alimentos recebidos; área para armazenamento à temperatura ambiente; área
para armazenagem a frio (refrigeradores com temperatura controlada, até 4OC e umidade
relativa de 60 a 70%, em número suficiente para atender às necessidades de
acondicionamento dos alimentos), área para pré-preparo dos alimentos, subdividida em área
para preparo de carnes e peixes, área para preparo de verduras e frutas e área para preparo de
massas e sobremesas; área para cocção, área para expedição das preparações, área para
higienização de utensílios, área para o refeitório ou sala de refeições, área para instalações
sanitárias e vestiários, destinada aos funcionários, sanitários destinados ao público, área para
coleta de resíduos (Silva Jr., 1995).
Problema comum em nosso meio diz respeito aos equipamentos dos
estabelecimentos produtores de alimentos. Pesquisas realizadas demonstraram o enorme
sucateamento das máquinas em operação no Brasil. De maneira geral, os equipamentos
apresentam mais de 10 anos de uso descuidado e sofrem durante esse tempo, pequenas ou
grandes reformas. Não possuem dispositivo de segurança. A capacidade é inadequada à
produção. Cardoso (2001), pode observar esses fatos em um estudo realizado em
panificadoras do Distrito Federal. Relatou em seu artigo, que as bacias para acondicionar as
massas de pães eram de ferro fundido desgastado, soltando lascas, os cilindros velhos e em
condições precárias de higiene e os fornos sem as mínimas condições de uso, alguns com
adaptações para uso de gás, colocando em risco a vida dos funcionários. Esse sucateamento é
grave e reflete na produção, como falta de bons padrões de qualidade nas massas fermentadas,
falta de uniformidade nos produtos assados e falta de higiene dos produtos finais expostos à
venda, representando grande risco aos consumidores. Nesse estudo foi demonstrado que 64%
das panificadoras estudadas, foram classificadas como “ruim” e 1% como péssimas; 5,3%
como “regular” e apenas 2% como “boa e excelente” (Cardoso, 2001).
79
No que diz respeito às práticas de fabricação e ao transporte de alimentos, a
comum inadequação encontrada é também explicitada em norma e há conhecimento técnico
que respalde a redução de risco a eles associado. Cita-se, como exemplo, a Lei Estadual
13331/2001 (Estado do Paraná) preconiza em seu artigo 373: “Sempre que a legislação
específica exigir, os estabelecimentos que produzam, transformam, industrializam e
manipulam alimentos deverão ter um Responsável Técnico”; no artigo 374: “Todos os
estabelecimentos relacionados à área de alimentos deverão elaborar e implantar as boas
práticas de fabricação, de acordo com as normas vigentes” (SESA/ISEP,2001).
Silva Jr. (1995) mostra, ainda, que o transporte de alimentos prontos (como é o
caso do evento que observamos) é crítico e deve obedecer às normas técnicas para garantir
sua qualidade nutricional e higiênico-sanitária. Os principais pontos a serem observados são:
princípio rígidos de higiene, tempo e temperatura, que não deve exceder a uma hora após o
preparo em temperatura próxima ou abaixo de 60OC, devendo nessa situação, o transporte ser
refrigerado, com monitoramento constante da temperatura que deve estar abaixo de 4OC. Para
o transporte de marmitas, deve ser utilizado veículo apropriado para alimentos, havendo
separação entre alimentos quentes que devem ser mantidos acima de 65OC e alimentos
refrigerados. As embalagens devem estar bem vedadas e o veículo cuidadosamente
higienizado, para evitar contaminação ambiental (Silva Jr., 1995).
80
6.3. NÚMERO DE ATENDIMENTOS AMBULATORIAS, INTERNAÇÕES E
SURTOS DE ETAs NO MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA-PR.
No município de Ponta Grossa, ao consultarmos os arquivos do Hospital Santa Casa
de Misericórdia, coletamos os seguintes dados: no ano de 1999, ocorreram 77 atendimentos
em nível ambulatorial e 50 internações (das 50 internações, 05 casos tiveram coprocultura
positiva para Salmonella sp) de casos registrados como “Diarréia e Gastroenterite de origem
infecciosa presumida”, sendo que, destes, em 5 casos de atendimento ambulatorial e 9 casos
de internação consta no prontuário dos pacientes “Intoxicação de origem alimentar”, mas
nenhum desses casos está registrado no serviço de Vigilância Epidemiológica do Instituto de
Saúde de Ponta Grossa. Já para o ano de 2000, foram registrados 64 atendimentos
ambulatoriais e 42 internamentos por “Diarréia e Gastroenterite de origem infecciosa
presumida” no mesmo hospital.
No DATASUS, para o ano de 1999 (DATASUS, 2002; Prontuários Hospital Santa
Casa de Misericórdia de Ponta Grossa, 2000), estão registrados 179 (tabela 11) internações
por “algumas doenças infecciosas e parasitárias” (incluindo Cólera, Febre tifóide e
paratifóide, Shiguelose, Amebíase, Diarréia e gastroenterite de origem infecciosa presumida e
outras doenças infecciosas intestinais), em todos os hospitais do município, num valor total
pago de R$ 23.944,02. Observamos, também, que o número de casos de gastroenterite é
maior nos meses de verão (janeiro, fevereiro, novembro e dezembro). No ano de 2000,
registrou o DATASUS, 184 (tabela 12) internações (todos os hospitais do município), com
valor pago de R$ 31.978,51 (DATASUS, 2002 ; Prontuários Hospital Santa Casa de
Misericórdia de Ponta Grossa, 2002).
No ano de 2000, estão registradas, no SINAN, 5 ocorrências de surtos por
“Intoxicação Alimentar não específica”, em Ponta Grossa. Interessante observar que estes
casos não estão arquivados na 3a. Regional de Saúde ou no serviço de Vigilância
Epidemiológica do Instituto de Saúde de Ponta Grossa, embora estes órgãos tenham sido a
fonte de informação para o SINAN (SINAN, 2002).
81
TABELA 11 - Morbidade Hospitalar do SUS – Internações por faixa etária, segundo
Lista Morbidade CID-10 (algumas doenças infecciosas e parasitárias) no município de
Ponta Grossa – PR em 1999.
Lista
Morbidade
CID-10
80
10 a 15 a 20 a 30 a 40 a 50 a 60 a 70 a
anos
Menor 1 a 4 5 a 9
TOTAL
14 19 29 39 49 59 69 79
e
1 ano anos anos
anos anos anos anos anos anos anos anos
mais
Diarréia e
gastroenterite
1
2
origem infec.
presumida
Outras
doenças
4
2
infecciosas
intestinais
TOTAL
5
4
FONTE: DATASUS, 2002.
0
0
2
5
2
3
8
3
5
2
33
1
2
13
28
24
15
16
14
15
12
146
1
2
15
33
26
18
24
17
20
14
179
TABELA 12: Morbidade Hospitalar do SUS – Internações por faixa etária, segundo
Lista Morbidade CID-10 (algumas doenças infecciosas e parasitárias) no município de
Ponta Grossa – PR, em 2000.
Lista
Morbidade
CID-10
80
10 a 15 a 20 a 30 a 40 a 50 a 60 a 70 a
anos
Menor 1 a 4 5 a 9
TOTAL
14 19 29 39 49 59 69 79
e
1 ano anos anos
anos anos anos anos anos anos anos anos
mais
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
Cólera
Febre tifóide
0
0
e paratifóide
Diarréia e
gastroenterite
0
1
origem infecc
presumida
Outras
doenças
1
2
infecciosas
intestinais
TOTAL
1
3
FONTE: DATASUS, 2002.
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
1
0
1
4
4
4
4
4
5
4
2
33
1
3
14
25
21
23
14
14
17
14
149
1
4
18
29
25
28
18
20
21
16
184
Da mesma forma, a subnotificação dos surtos de ETAs no Brasil e no Estado do
Paraná pode ser evidenciada através dos dados referentes às internações registradas pelo SUS.
82
No ano de 1999, foram registrados no país, 353 surtos de “Intoxicação alimentar”, mas
quando consultamos os dados sobre internações no DATASUS podemos observar que, sob a
designação “algumas doenças infecciosas e parasitárias” (incluindo Cólera, Febre tifóide e
paratifóide, Shiguelose, Amebíase, Diarréia e gastroenterite origem infecciosa presumida e
Outras doenças infecciosas intestinais) ocorreram 573.688 internações num valor total pago
de R$ 89.589.711,51. Situação semelhante acontece no ano de 2000, quando ocorreram 545
surtos por ETAs e 539.123 internações , com gastos para o SUS de R$ 103.727.919,63. Nos
Estados Unidos da América, entre 1996 e 2000, ocorreram 7.184 hospitalizações por
enfermidades transmitidas por alimentos, e, estima-se que anualmente ocorrem 325.000
hospitalizações por essas doenças (DATASUS, 2002; MS / FUNASA / CENEPI / COVEH
2002; CDC, 2000).
No Estado do Paraná, no ano de 1999 foram notificados 192 surtos de ETAs , com
apenas 2 hospitalizações. Nos registros de DATASUS foram 19.801 internações sob a
designação “algumas doenças infecciosas e parasitárias” (incluindo Cólera, Febre tifóide e
paratifóide, Shiguelose, Amebíase, Diarréia e gastroenterite origem infecciosa presumida e
Outras doenças infecciosas intestinais), com valor pago de R$ 3.215.882,56. No ano de 2000
há 219 surtos notificados à Secretaria de Estado da Saúde, com 5 hospitalizações . Nos dados
do DATASUS constam 20.699 internações, e valor pago de R$ 4.098.412,51, relativos ao
mesmo quadro de morbidade acima mencionado. Entre os anos de 1978 – 2000 ocorreram no
Estado do Paraná, 232 hospitalizações por ETA o que nos leva a acreditar que o número de
casos relatados ao Serviço de Vigilância Epidemiológica do Paraná está muito aquém
daqueles que realmente ocorreram (DATASUS, 2002 ; SESA, 2002).
6.4. AGENTES ETIOLÓGICOS CAUSADORES DE ETAs PRESENTES
MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA-PR.
NO
No período de maio do ano de 2000 até maio de 2001, a equipe de Professoras de
Microbiologia, da qual fazemos parte, realizou no Laboratório de Microbiologia do Centro
Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET), Unidade de Ponta Grossa, análises
microbiológicas para controle de qualidade de aves abatidas em um frigorífico da Região de
Ponta Gossa-PR. Foram analisadas 373 carcaças de frangos e perus, pela metodologia
tradicional recomendada pelo International Commission on Microbiological Specifications
83
for Foods (ICMSF) para pesquisa de Salmonella sp. Das 373 carcaças analisadas, 78 (21%)
tiveram resultado positivo para Salmonella sp.Estes resultados constam na tabela 13.
TABELA 13: Resultado da pesquisa de Salmonella sp. em carcaças de frangos e perus
oriundas de abatedouro da região de Ponta Grossa-PR, realizadas no período de maio
de 2000 a maio de 2001:
MÊS
ANO
NÚMERO DE ANÁLISES
REALIZADAS
Maio
2000
20
Junho
2000
58
Julho
2000
31
Agosto
2000
07
Setembro
2000
12
Outubro
2000
15
Novembro
2000
26
Dezembro
2000
27
Janeiro
2001
53
Fevereiro
2001
18
Março
2001
23
Abril
2001
48
Maio
2001
35
TOTAL
373
FONTE: CEFET Paraná, Unidade Ponta Grossa, 2001.
RESULTADOS POSITIVOS
PARA Salmonella sp.
06
23
07
01
02
04
08
00
11
05
05
04
02
78
Um dos pontos importantes na investigação de um surto de ETA é a determinação
do alimento implicado para implementar ações no sentido de interromper a cadeia de
transmissão da doença (Kaferstein et al.,1999).
Os dados deste frigorífico de Ponta Grossa, submetido à inspeção federal, além de
seguirem a tendência muncial já que bactérias do gênero Salmonella são responsáveis por
uma alta porcentagem de surtos, sobretudo quando o alimento implicado é de origem animal,
em geral ovos (Jakabi et al.,1999), aponta que o número de carcaças de aves contaminadas, de
outra origem, em especial as oriundas de ambientes inadequados, possa ser ainda maior.
Na Bélgica, no ano de 1997, 113 surtos notificados foram causados por bactérias
do gênero Salmonella, principalmente Salmonella enteritidis, sendo que, 16 deles ocorreram
pela ingestão de ovos contaminados, 15 por outros produtos de origem animal (carnes
bovinas, aves domésticas e leite) e nos demais surtos de salmonelose, não foi identificada a
fonte (Van Loock et al., 1997).
84
Na Alemanha, no período de 1996-1999, foram notificados 856 casos de
salmonelose, que ocorreram pela ingestão de alimentos contaminados (Petersen et al., 2000).
Nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) são estimados mais de 1.500.000
casos de salmonelose por ano. O número de surtos notificados nos EUA aumentou de 477 em
1993 para 653 em 1997. Durante este período um grande número de surtos causados por carne
moída contaminada com Escherichia coli O157:H7 e produtos frescos contaminados com
Salmonella sp. foram notificados. Salmonella sp. Foi responsável por 357 (55%) dos 655
surtos de origem bacteriana, com 10 óbitos registrados, sendo a grande maioria relacionados a
ovos crus. Destacam os autores que esse número de surtos notificados no período entre 199397 representa uma pequena proporção do que realmente ocorreu, principalmente pela
subnotificação (Olsen et al., 2000).
Na Inglaterra, no período entre 1970-1982, foram notificados 1.500 surtos de
ETAs por salmonelose, representando cerca de 20% do total de surtos ocorridos naquele
período. Como ocorre freqüentemente, carnes bovina e de aves estão implicados na maioria
dos surtos. Ao final dos anos 80, ovos de galinha tanto ingeridos crus como incorporados em
pratos não cozidos (preparações mistas) figuram como veículos de infecções por Salmonella
(Hobbs & Roberts, 1998).
Alimentos crus de origem animal são as maiores fontes de Salmonella,
principalmente os ovos. Manipuladores de alimentos portadores de Salmonella typhi e S.
paratyphi representam um fator de risco na transmissão da febre tifóide e paratifóide (Felipe,
1991).
6.5. INFORMAÇÕES SOBRE SURTOS DE ETAs NO ESTADO DO PARANÁ E NO
BRASIL:
Os dados que se seguem mostram informações sobre o número de surtos de ETAs
no Estado do Paraná e no Brasil, os agentes etiológicos, os alimentos implicados, os locais
onde ocorreram e os fatores que contribuíram na ocorrência destes surtos.
A tabela 15 mostra a distribuição de surtos de ETAs no Estado do Paraná, no final
da década de 1970, década de 80 e 90, fechando no ano de 2000. Essa série histórica,
elaborada pelo Médico Veterinário Natal Jataí de Camargo, da Secretaria de Estado da Saúde
do Paraná (SESA/ISEP), demonstra um aumento considerável no número de surtos de ETAs
notificados que pode ser explicado por vários fatores: até o ano de 1978, a SESA não possuía
técnicos na área de Vigilância Sanitária de Alimentos, sendo que este serviço era apenas
85
burocrático para liberação da Licença Sanitária dos estabelecimentos que produziam
alimentos; não havia uma sistematização na investigação dos surtos de ETAs, e a maioria dos
surtos não era notificado; o número de estabelecimentos que serviam alimentos era menor e o
número de pessoas que se utilizavam desse serviço, também era bem menor.Além de todos
esses fatores, essas estatísticas sobre surtos de ETAs mostram que realmente houve um
aumento do número de casos, conforme relatado por Hobbs & Roberts (1998).
NOTA: Examinando os dados da Tabela 14, observamos o elevado número de surtos
notificados na região Sul. Em 1999, foram registrados 144 surtos no Estado do Paraná e 150
surtos no Estado do Rio Grande do Sul e, no ano de 2000, 63 surtos no Paraná e 220 no Rio
Grande do Sul, sendo que o total de surtos registrados no Brasil, no ano de 1999, foi 353, e no
ano de 2000, 545. Provavelmente estes dois estados realizam um trabalho de investigação
melhor que os demais estados brasileiros. Outro fato interessante é a divergência de
informações. Quando consultamos a tabela 15, encontramos um registro de 192 surtos de
ETAs, ocorridos em 1999, no Estado do Paraná, notificados à SESA/ISEP. Na COVEH do
Ministério da Saúde no mesmo ano, consta um número de 144 surtos. O mesmo fato acontece
no ano de 2000. Na SESA/ISEP estão registrados 219 surtos (tabela 15) e na COVEH estão
registrados apenas 63 surtos. Esta divergência demonstra uma falha no compilamento dos
dados, que provavelmente advêm de fontes diversas, comprovando a fragilidade do sistema de
informação sobre surtos de ETAs em nosso país.
86
TABELA 14: Distribuição de ocorrência de surtos por ETAs notificados e número de
doentes acometidas por Região. Brasil, 1999 e 2000
ANO
1999
2000
Total
surtos
Nº pessoas
Acometidas
Total
surtos
Nº pessoas
Acometidas
NORTE
1
27
3
27
NORDESTE
6
869
34
602
SUDESTE
29
912
123
3297
SUL
294
2342
344
4309
CENTRO-OESTE
23
414
41
1378
353
4564
545
9613
REGIÃO
TOTAL
FONTE: MS/FUNASA/CENEPI/COVEH
No Estado do Paraná, entre 1978 – 2000 foram registrados 2000 surtos de ETAs
(tabela 15), sendo que os alimentos preparados à base de produtos de origem animal e vegetal,
denominados “preparações mistas”, foram responsáveis por 44,1% do total de surtos neste
período, seguidos pelos produtos de origem animal (carnes e derivados) com 24,7% de
ocorrência e leite e produtos lácteos com 12,0% do total de surtos (tabela 16). No Brasil, a
situação é similar, porém a forma de expressar os dados difere quando não se considera a
maionese uma preparação mista, conforme foi considerado pela Secretaria de Saúde do
Paraná. Os números estão contidos na tabela 17. Quanto aos agentes etiológicos causadores
dos surtos de ETAs, no Brasil a bactéria do gênero Salmonella apareceu em primeiro lugar
(tabela 18) e no Estado do Paraná, a bactéria Staphylococcus aureus, foi a responsável pela
maioria dos surtos de ETAs (tabela 16).
87
TABELA 15: Número de pessoas (Números Médios) envolvidas em surtos de ETAs
notificados no Estado do Paraná entre 1978 - 2000
NÚMERO DE PESSOAS ENVOLVIDAS
ANOS
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
MÉDIA
GERAL
Nº de
SURTOS
DOENTES
Expostos
Entrevistados
Inquiridos
Estimados
Hospitalizados
1
1
2
9
12
29
40
60
69
61
54
78
89
80
113
171
200
156
164
200
192
219
540
77
263
524
264
324
164
94
129
150
192
149
69
85
75
43
29
61
47
31
17
45
208
69
133
258
146
168
94
48
69
77
102
49
25
46
32
17
13
22
10
12
7
11
171
57
102
149
64
89
48
30
36
40
58
41
16
24
17
13
11
17
8
9
6
10
444
63
202
304
116
171
82
58
68
77
108
127
44
51
48
32
25
39
25
23
15
40
128
3
20
8
11
8
2
2
2
2
2
6
3
1
2
4
4
8
4
5
2
5
2000
71
30
20
47
4
FONTE: SESA/ISEP/CSA, 2002.
88
TABELA 16: Relação entre Agentes Etiológicos e grupos de alimentos incriminados em
1.126 surtos de ETAs notificados, no Estado do Paraná entre 1978 – 1999.
Químicos
Toxina vegetal
Outros
V. cholerae
Shigella spp.
E. coli
B. cereus
AGENTES
C.. perfringens
Salmonella spp.
S. aureus
ALIMENTOS
TOTAL
Nº
%
PREPARAÇÕES MISTAS
183 273
12
10
16
1
-
1
..
1
497
44,1
CARNE/DERIVADOS
108
47
89
5
20
7
-
2
..
-
278
24,7
LEITE/DERIVADOS
116
7
-
-
11
-
-
1
..
-
135
12,0
CEREAIS
6
2
1
36
-
-
-
-
..
1
46
4,1
FRUTOS DO MAR
-
-
-
-
-
-
3
-
..
-
3
0,3
DIVERSOS
37
21
12
16
11
1
-
9
..
17
124
11,0
PLANTAS TÓXICAS
..
..
..
..
..
..
..
..
43
..
43
3,8
TOTAL
450 350
114
67
58
9
3
13
43
19
1126
100,0
PORCENTAGEM (%)
40,0 31,1 10,1
6,0
5,2
0,8
0,3
1,2
3,8
1,7
100,0
..
FONTE: SESA/ISEP/CSA, 2002
NOTAS: "Preparações mistas" incluem matérias primas de origem animal e vegetal (ex.
maionese, panqueca, bolo, farofa).
"Diversos" incluem alimentos pertencentes a outros grupos (ex. tubérculos, refrescos,outros).
O total de cada coluna representa 100% isoladamente.
(a) - Confirmados - laboratorialmente.
(b) - Suspeitos - epidemiológicamente.
(c) - Indeterminados - não foi possivel estabelecer o alimento nem laboratorialmente e nem
epidemiológicamente.
(d) - Sinal convencional utilizado: .. Não se aplica dado numérico.
89
TABELA 17: Alimentos incriminados em surtos notificados de ETA, Brasil, 1999-2000
1999
2000
ALIMENTO
Maionese
NO
45
%
11,7
NO
130
%
20,9
Preparações Mistas
28
7,3
127
20,5
Carne Vermelha
29
6,3
34
5,5
Frango
18
4,7
27
4,3
Laticínios
21
5,5
20
3,2
Embutidos
12
3,1
6
1,0
Outros
64
18,0
88
14,2
Ignorado
166
43,3
189
30,4
383
100,0
621
100,0
TOTAL
FONTE: MS / FUNASA / CENEPI / COVEH
No Brasil (tabela 18), o agente etiológico de maior incidência em casos de ETAs,
foi a Salmonella sp., seguindo a tendência mundial, como foi discutido no item 6.4 deste
trabalho.
TABELA 18: Agentes Etiológicos Incriminados em surtos de ETA, Brasil, 1999-2000
1999
AGENTE
Salmonella spp
Staphylococcus aureus
Salmonella enteritidis
Clostridium perfringens
Bacillus cereus
Escherichia coli*
Outros
Ignorado
Total
2000
Número
%
Número
%
85
48
7
6
4
4
24
186
364
23,3
13,1
1,9
1,6
1,0
1,0
6,6
51,0
100,0
139
50
13
9
11
15
87
241
565
24,6
8,8
2,3
1,6
1,9
2,7
15,4
42,7
100,0
FONTE: MS/FUNASA/CENEPI/COVEH
* Não há informação em todos os casos se foi cepa patogênica
90
O alto índice de surtos por Staphylococcus aureus, notificados no Paraná no
período de 1978 a 2000, demonstra a facilidade da contaminação dos alimentos por essa
bactéria, provenientes das mãos, fossas nasais e cabelos dos manipuladores, aliado à falhas na
conservação dos alimentos, que são mantidos em temperaturas inadequadas (na faixa entre
100C e 600C), por mais de 2 horas, permitindo a proliferação da bactéria e a produção da
toxina estafilocócica (Hobbs & Roberts, 1998).
No Brasil e no Estado do Paraná, a maioria dos surtos ocorreu no domicílio, pois
nos municípios menores, as pessoas ainda se alimentam em casa. Quando se trata dos
municípios de grande porte, o número de surtos ocorridos em restaurantes aumenta, pois
grande parte da população atualmente se alimenta em restaurantes ou em refeitórios
industriais. Estes dados podem ser observados nas tabelas19 e 20:
TABELA 19: Locais de ocorrência de surtos de ETAs notificados no Estado do Paraná
entre 1978 – 2000.
LOCAIS DE
OCORRÊNCIA
Domicílio
1978-1980 1981-1990 1991-2000 TOTAL
0
178
832
1010
Refeitório comercial
1
79
240
320
Refeitório industrial
1
81
100
182
Escola
0
19
103
122
Festa comunitária
0
0
86
86
Outros
0
57
223
280
TOTAL
2
414
1584
2000
FONTE: SESA/ISEP/CSA, 2002
91
TABELA 20: Distribuição de surtos de ETAs por local de ocorrência, Brasil 1999-2000
LOCAL
DE OCORRÊNCIA
1999
2000
Nº surtos
%
Nº surtos
%
Residência
155
43,9
210
38,5
Restaurante
19
5,4
62
11,4
Ignorado
92
26,1
94
17,2
Creche
5
1,4
30
5,5
Escola
8
2,3
26
4,8
Outros
74
21,0
123
22,6
Total
353
100,0
545
100,0
FONTE: MS/FUNASA/CENEPI/COVEH
Dos 655 surtos de origem bacteriana, notificados nos Estados Unidos, no período
de 1993 a 1997, 47 ocorreram no domicílio, 93 em restaurantes, 12 em escolas, 03 no local de
trabalho, 06 em festas de igrejas, 30 em locais desconhecidos e os demais em outros locais
(Olsen et al., 2000).
Na Inglaterra, no período entre 1970-1982, dos 1.500 surtos de ETAs notificados,
58% ocorreram a partir de alimentos preparados em restaurantes, hotéis, clubes, hospitais,
instituições, escolas e cantinas. Apenas 15% foram associados com o preparo dos alimentos
em residências. Embora 60% dos incidentes de ETAs tenham ocorrido nas residências, apenas
uma pequena proporção foi incluída no estudo devido à inconsistência dos dados
epidemiológicos que não permitiram uma conclusão mais acurada. As situações onde os
alimentos foram preparados em quantidade para um grande número de pessoas são as causas
mais prováveis de ocorrência da maioria dos surtos (Hobbs & Roberts, 1998).
No Estado do Paraná, segundo a SESA, os manipuladores infectados foram
responsáveis pela disseminação de agentes etiológicos em 55% dos 2000 surtos notificados
entre 1978 – 2000; as contaminações cruzadas, apareceram em 34,6% deste total de surtos. A
tabela 20 nos fornece estas informações (SESA, 2002).
92
TABELA 21: Fatores contribuintes associados para a ocorrência de surtos de ETAs
notificados no Paraná entre 1978 – 2000.
PORCENTAGEM (%)
FATORES CONTRIBUINTES
Matéria prima contaminada antes do preparo
81,7
Manipuladores contaminados ou infectados (origem bacteriana)
55
Equipamentos contaminados (origem bacteriana)
34,6
Contaminação cruzada (origem bacteriana)
34,6
Alimentos contendo substâncias tóxicas naturais
22,4
Contaminação química
1,4
O
Processamento inadequado pelo calor (temperatura < 60 C)
41,2
O
Reaquecimento inadequado (temperatura < 70 C)
11,3
O
Conservação inadequada pelo frio (temperatura > 10 C)
79,2
Tempo muito longo entre preparo e consumo (alimentos mantidos
entre 10 e 60OC por mais de 2 horas)
FONTE: Adaptado de SESA/ISEP/CSA, 2002.
83,5
NOTA: A soma dos percentuais excede 100% porque vários fatores contribuíram para a
ocorrência de um mesmo surto.
Nos EUA os pesquisadores acreditam que muitos fatores contribuíram para a
ocorrência de surtos de ETAs. No período de 1993-1997, os fatores mais comumente
atribuídos à ocorrência de surtos foram: práticas inadequadas de manipulação durante o
preparo; conservação dos alimentos processados em temperaturas inadequadas por um longo
período de tempo; práticas inadequadas de cocção dos alimentos e matérias primas oriundas
de fontes não seguras (provavelmente sem inspeção) (Olsen et al., 2000).
Na Inglaterra, no estudo realizado no período de 1970-1982, a maioria dos surtos
de ETAs foram relacionados aos seguintes fatores: preparo dos alimentos com antecedência
de meio dia ou mais; estocagem de alimentos processados à temperatura ambiente; técnicas
inadequadas
de
resfriamento;
reaquecimento
inadequado;
cozimento
insuficiente;
contaminação cruzada entre alimentos crus e cozidos. Embora o estudo tenha sido realizado
há cerca de 20 anos, não há evidências de que a situação tenha se modificado. Os dois
primeiros fatores estão envolvidos em surtos associados com os principais agentes bacterianos
envolvidos em surtos de ETAs. Em surtos causados por Salmonella, o cozimento insuficiente,
93
o resfriamento inadequado e o uso de alimentos processados contaminados são os fatores mais
comumente relatados, bem como o consumo de alimentos crus, como ovos. Contaminação
cruzada foi a falha básica, que apesar de ser um fator importante, tende a ser omitido nos
relatos de surtos em geral. Nos surtos devido ao Clostridium perfringens, múltiplos fatores
foram registrados como resfriamento ou reaquecimento inadequados. Os manipuladores de
alimentos e os alimentos enlatados e processados contaminados foram os principais fatores
ligados às intoxicações estafilocócicas (Hobbs & Roberts, 1998).
6.6. O CUSTO DAS ETAS:
Nos Estados Unidos da América, para estimar custos das ETAs, foram
considerados 5 grupos de indivíduos que contraíram a doença. Aqueles que não consultam o
médico, aqueles que consultam o médico, aqueles que foram hospitalizados, aqueles que
desenvolveram complicações tardias e aqueles que foram a óbito prematuramente em função
dessa doença. Os casos de complicações tardias podem se desenvolver a partir de ETAs
causadas por Escherichia coli O157:H7, toxoplasmose e listeriose. Para cada grupo foram
calculados custos com cuidados médicos, serviços hospitalares, medicamentos. Pessoas que
contraem ETA, geralmente se ausentam do trabalho por 1 a 2 dias e alguns desenvolvem
complicações e não podem mais retornar ao trabalho e outros vão a óbito em idade produtiva,
ocasionando importante queda na produtividade, refletindo negativamente na economia do
país. Após muitos estudos, concluiu-se que em média o gasto com ETAs nos Estados Unidos,
fica em torno de 19,7 a 34,9 bilhões de dólares (Buzby & Roberts, 1996).
No Brasil não há estudos sobre o impacto das ETAs na economia do país, mas
podemos ter uma noção quando encontramos valores acima de R$ 100.000,00 pagos pelo
SUS para internações por doenças de veiculação alimentar e hídrica como febre tifóide,
cólera, gastroenterites, etc.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização para a Alimentação e
Agricultura (FAO) estabeleceram um comitê conjunto com a finalidade de estudar e propor
padrões de segurança alimentar, conhecido por Codex Alimentarius . Esse comitê enumera as
seguintes razões para estabelecer um código de procedimentos de higiene para
estabelecimentos que produzam alimentos, sobretudo aqueles destinados à alimentação
coletiva:
94
Existência de dados epidemiológicos mostrando que muitos surtos de ETAs são causados
por alimentos consumidos nos estabelecimentos que os servem;
Perigo que cerca as operações de fornecimento de alimentos em larga escala,
especialmente no que se refere à armazenagem e manipulação;
O grande número de pessoas que podem estar envolvidas em um surto
Altos custos para o Estado, para o indivíduo e para a família acarretados pelos surtos de
ETA (Dallari et al, 2000)
95
7. CONCLUSÃO
A partir das estatísticas sobre surtos de ETAs em nível mundial, podemos concluir
que, ao invés de diminuir, o número de ETAs vem aumentando ano após ano, a despeito de
todo conhecimento científico alcançado no século XX. Melhorias nos métodos de preparo dos
alimentos e a educação dos responsáveis pelo fornecimento dos alimentos, particularmente no
fornecimento de grandes quantidades, reduziria a incidência das ETAs. Para que isso ocorra é
essencial que se conheça não apenas os alimentos responsáveis pela doença, os agentes
etiológicos, os locais onde os acidentes ocorreram e onde os alimentos foram preparados,
mas, também, os fatores que contribuíram para a ocorrência dos surtos.
Através deste trabalho pretendemos ter demonstrado que há subnotificação e
vários fatores de risco para a eclosão de ETAS no município de Ponta Grossa. Pudemos,
também, demonstrar o panorama das ETAs no Brasil e no mundo, e concluir que a situação
no município de Ponta Grossa – PR deve se assemelhar a de várias outras regiões do país.
Deficiências técnicas e estruturais nas áreas de Vigilância Sanitária e Epidemiológica limitam
a eficácia no sentido de diagnosticar, mapear e aplicar medidas profiláticas para um efetivo
controle das ETAs, o que ocoorre, guardadas as proporções, mesmo nos EUA, onde os dados
de epidemiológica costumam ter maior fidediginidade do que no Brasil. Utilizar o programa
de Monitorização das Diarréias Agudas, já implantado, em tese, no município de Ponta
Grossa, poderia ser uma medida inical para acompanhar os casos isolados ou surtos de ETAs.
A implementação de projetos de capacitação dos técnicos das Vigilâncias Sanitária e
Epidemiológica e de todos os envolvidos com a manipulação dos alimentos seria o primeiro
passo. Investimentos financeiros são necessários para melhorar as ações de fiscalização e
aplicação das normas técnicas vigentes. Implantação de um projeto de avaliação continuada
das ações educativas e de fiscalização também são importantes para o controle das ETAS,
assim como a criação de mecanismos para agilizar a notificação dos casos de doenças
transmitidas pelos alimentos será vital para o bom desenvolvimento das ações conforme foi
amplamente citado ao longo desta dissertação.
Medidas de controle para doenças transmissíveis, quando bem elaboradas e bem
aplicadas, apresentam resultados satisfatórios.
Enquanto opinião pessoal, temos a ressaltar que talvez o maior problema seja a
falta de comprometimento e interesse de muitas pessoas envolvidas em todo esse processo e
96
em todos os níveis, o que acaba criando entraves desnecessários para a realização final do
trabalho.
97
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