RELAÇÕES INTERNACIONAIS ANARQUISTAS da 1ª Internacional à Revolução Russa Introdução Em época na qual a globalização do capitalismo mostra-se praticamente inquestionável, onde a força de uma única superpotência global cresce diariamente e explodem mundo afora reações a esta nova ordem mundial, os estudos de Relações Internacionais não podem ficar fechados às relações políticoeconômicas de Estados ou empresas. Nestes dias, se faz de fundamental importância o estudo das contestações, dos movimentos contrários que começam a aparecer cada vez com mais constância, questionando a nova ordem globalizante. Para compreendermos a contestação hoje podemos pensar em como mais de um século atrás as pessoas questionavam a ordem vigente, quais as propostas para um novo mundo e para outras Relações Internacionais. A partir deste foco, procuraremos analisar a atuação de integrantes do movimento anarquista internacional desde o cisma na Associação Internacional dos Trabalhadores até a Revolução Russa de 1917, procurando entender como entraram em organizações supra-nacionais, como a AIT, e como suas atividades pessoais colaboraram para estas relações. Durante praticamente meio século, os anarquistas foram a principal voz de contestação no mundo ocidental, questionando a sociedade industrial com suas hierarquias e violências encasteladas no Estado e nas Igrejas. Propunham uma sociedade sem Estado, baseada nas comunidades locais e com caráter claramente internacionalista. As Relações Internacionais por eles praticadas serão analisadas neste trabalho assim como as respostas que surgiram dentro destes Estados e como que isto gerou novas Relações Internacionais. Segundo Edgar Rodrigues, “Os anarquistas (...) procuraram conciliar ideais internacionalistas à idéia de um mundo sem fronteiras ou barreiras de raça – com uma insistência ferrenha na autonomia local e na espontaneidade pessoal.” 1. Outra questão que pode ser levantada é relativa à bibliografia localizada para a produção deste trabalho. É impossível contar quantas mais vasta é a bibliografia existente acerca do movimento comunista/marxista no período, o que reflete um claro interesse dos historiadores por este movimento em especial, tendo em vista que os anarquistas foram mais importantes do que os marxistas (ou comunistas autoritários) por décadas em todo o mundo. Outro fator que dificulta a pesquisa do movimento anarquista é a inconstância de seus grupos e associações, geralmente efêmeras e que vão sendo automaticamente substituídas por outros grupos e associações de vida igualmente curta. Por isso, faz-se necessário estudar muitas vezes a atuação de indivíduos-chave, que fundaram e participaram de inúmeras destas associações, conhecendo outras pessoas marcantes que passaram por diversos grupos, mas mantiveram o contato entre si. Segundo James Joll, “Quando uma revolução é bem-sucedida, os historiadores preocupam-se com descobrir suas raízes e desemaranhar as suas origens e desenvolvimento (...). As revoluções fracassadas são tratadas como becos sem saída na História”. Como concretizaram-se Revoluções Marxistas, e como este pensamento fez escola historiográfica, encontra-se muito mais bibliografia acerca deste movimento do que sobre o anarquismo. Trata-se de um embate sobre a “história dos vencidos” contra a “história dos vencedores”, mas desta vez no campo do movimento operário revolucionário internacional. 1 RODRIGUES, Edgar – Universo Ácrata, p. 07. 2 As idéias anarquistas: um perigo à sociedade burguesa e ao Estado O anarquismo está entre as teorias políticas menos compreendidas e mais perseguidas da história dos movimentos sociais mundiais. Se as críticas provenientes da direita dizem que o anarquismo é um “comunismo” (leia-se marxismo) “piorado”, levado às últimas conseqüências, e terrorista, a crítica vinda dos marxistas o classifica como “movimento pequeno-burguês” contra os “reais interesses da classe operária” e contra o “Estado operário”. Tanto a direita quanto a esquerda perseguiram os anarquistas. Seus simpatizantes foram seguidos, presos e assassinados. Mas, qual o motivo de tanto ódio e medo? Sem entrar nas peculiaridades de cada uma das linhas do pensamento anarquista (comunalismo, mutualismo, anarco-sindicalismo, etc), podemos afirmar que os fundamentos estão na defesa dos interesses da população local e do indivíduo acima de tudo. Para isto, torna-se necessária a extinção da propriedade privada – teoria imortalizada na frase “A propriedade é um roubo”, de Proudhon –, do Estado, das hierarquias, do capitalismo e da religião (na grande maioria dos casos). São estas as idéias que atemorizaram a direita e a esquerda marxista nos últimos cento e cinqüenta anos. Se por um lado estas propostas eliminam o sustentáculo da sociedade burguesa: o Estado, a propriedade privada, a hierarquia e o capitalismo; de outro questionam também a revolução proposta por Marx e Engels, baseada na ditadura do proletariado, na centralização dos meios de produção no Estado e em rígida hierarquia vinculada ao partido único. As Relações Internacionais propostas no anarquismo, portanto, vão contra o capitalismo, as empresas, os Estados e Exércitos, optando por novas relações, entre os indivíduos e as comunidades, onde a livre-associação e a ajuda mútua substituiriam os aparelhos coercitivos e exploradores. Sem jamais concretizarem uma revolução, os anarquistas fizeram suas Relações Internacionais mesmo assim, contactando uns aos outros, aplicando o conceito de ajuda mútua e lutando pela liberdade de todos os perseguidos. 3 O surgimento do movimento anarquista e a Internacional Socialista até o cisma de 1872 Pode-se afirmar que o movimento anarquista começou a ser esboçado com as idéias de Pierre-Joseph Proudhon na França. Seu pensamento ia contra o Estado, a Igreja e a propriedade privada. Para ele, o novo sistema a ser implementado após a queda do capitalismo seria o que ficou posteriormente conhecido como “mutualismo”, linha de pensamento que norteou o movimento anarquista até a chegada das idéias de Mikhail Bakunin e seu “coletivismo”. Bakunin, fundou e inventou inúmeros grupos e associações de anarquistas por toda a Europa, conhecendo Karl Marx quando passou por Londres. Nestes encontros, ambos chegaram a discutir a fundação de uma Internacional Socialista, mas o revolucionário russo não esteve presente no ato da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, conhecida por 1ª Internacional, em 1864. Tal organização funcionou até 1876, sendo refundada depois em 1889 como a 2ª Internacional. Pierre-Joseph Proudhon participa da AIT junto com Marx, e seus mutualistas tem grande força dentro do movimento, inclusive quando em 1868 Mikhail Bakunin entrou nela. Fundada por Marx e Proudhon, a AIT teve sua sede instalada em Londres, considerada a cidade mais segura para o movimento operário naquele momento, onde estava também um proletariado bastante grande e organizado. Marx, residente naquela cidade, começa rapidamente a centralizar o comando da Associação, o que era questionado somente nos famosos Congressos. O primeiro destes Congressos ocorreu em 1866 na cidade de Genebra, e apesar da maioria dos integrantes ser de mutualistas proudhonianos, os marxistas conseguem inserir nas resoluções o conceito de “Estado operário”, evidenciando o começo do racha teórico-ideológico que posteriormente polarizaria a Associação. O Congresso seguinte viria a acontecer em Lausanne em 1867, quando os mutualistas começam a perder força para os seguidores de Bakunin, fazendo com que as resoluções fossem contemporizadores com todos os grupos. 4 1868 foi o ano do Congresso de Bruxelas, e o pensamento coletivista de Bakunin dominou as resoluções, como a que exigia a propriedade pública de minas, transporte e terra. “O Congresso de Bruxelas estabeleceu uma economia socializada como a futura reivindicação do movimento da classe trabalhadora européia. Isto não determinou a questão vital, se esta socialização seria cumprida por meios autoritários ou libertários” 2. Segundo James Joll, “Aparentemente, Bakunin não percebeu por inteiro os problemas que iria enfrentar juntando-se à Internacional (...). A admiração deste por Marx era bastante grande. Marx, escreveu ele em 1880, era um homem ‘de grande inteligência, com um profundo saber (...)’. Marx, por sua vez, descreve Bakunin como ‘um homem destituído de todo conhecimento teórico’ “ 3. As diferenças ideológicas entre os seguidores de Proudhon e Bakunin e os de Marx foram crescendo cada vez mais, com o segundo grupo, capitaneado pelo próprio Karl Marx, começando a articular a tomada de poder dentro da organização: “a atitude de Marx para com a Internacional foi sempre uma atitude ambivalente. Acreditava na importância de uma organização internacional para a propagação das suas idéias e para o controle sobre os crescentes movimentos operários da Europa” 4. Bakunin foi a figura principal do Congresso de Basiléia em 1869 junto de seu movimento coletivista anti-autoritário. A partir deste momento, Marx e Engels perceberam que estavam perdendo força e influência nos Congressos da AIT, passando a criticar duramente o pensamento e a pessoa Bakunin. Segundo Joll, “Por todos os dois anos seguintes, tendo por pano de fundo a guerra francoprussiana e a Comuna de Paris, a disputa arrastou-se numa guerra de cartas, circulares e panfletos repelindo as mesas acusações e refutações” 5. A AIT envolveu-se então em um combate pessoal entre dois dos mais importantes pensadores do movimento revolucionário mundial, Karl Mark e Mikhail Bakunin. O primeiro, via aquela Associação como fundamental para a organização WOODCOCK, George – História das idéias e movimentos anarquistas, vol. 2 – pp. 12-13 JOLL, James – Anarquistas e anarquismo, p. 113 4 idem, ibidem, p. 114 5 idem, ibidem, p. 119 2 3 5 e doutrina do operariado sob sua ideologia, e por isso concluiu ser de fundamental importância retirar a pessoa e o pensamento de Bakunin da Associação. De 1869 a 1871, a disputa acirrou-se cada vez mais, ambos os lados reivindicaram as glórias da Comuna de Paris e finalmente Marx conseguiu o desfecho final ao reunir parte da Internacional em Londres em 1871 para tentar organizar o movimento em suas mãos após o drama parisiense. Ao fazer esta reunião, percebe, segundo James Joll, que Espanha, Itália e Suíça, além de boa parte da França e da Bélgica, seguiam Bakunin, ficando a outra parte destes dois últimos países, os ingleses e os alemães seguindo sua linha de pensamento. Então, “Imediatamente depois, Marx convocou um congresso da Internacional em Haia, suficientemente longe da Suíça, da Espanha e da Itália, para tornar difícil e caro aos partidários de Bakunin sua presença (...). Depois de discussões acrimoniosas, Guillaume e os seus amigos foram expulsos; e foi decidido transferir o Conselho Geral para os Estados Unidos. Marx alcançara a sua vitória sobre Bakunin, mas, de fato, pusera fim à Internacional” 6. Este primeiro período, portanto, foi marcado pela primeira grande tentativa de unificação dos proletários europeus em uma nova organização supra-nacional e que propôs, na maioria do período, a supressão dos Estados. Tal organização, porém, foi corroída internamente pelas disputas ideológicas acerca dos planos para o futuro revolucionário. Após o cisma de 1872, a 1ª Internacional continuará sendo de extrema importância para o movimento operário, e manterá seu caráter supra-nacional, mas não abrigará mais a totalidade dos revolucionários e sim apenas aqueles que seguiam a linha marxista. Os anarquistas tentarão em vão instalar uma Internacional Anarquista entre 1872 e 1881, sem grande êxito. A 1ª Internacional acabaria em 1876. Em 1889, com a fundação da 2ª Internacional, os anarquistas seguidores de Bakunin e, agora, de Kropotkin, tentarão conquistar espaço, mas mais uma vez enfrentarão a resistência marxista e acabarão sendo expulsos no Congresso de Londres de 1896. Desta data até 1914, funcionará então uma Internacional Anarquista cujo ápice será o Congresso de Amsterdã em 1907. 6 JOLL, James – Anarquistas e anarquismo, p. 122 6 Do cisma na AIT até a Revolução Russa: o anarquismo nas mentes e ações européias e americanas A Comuna de Paris, em 1871, foi uma experiência de fundamental importância para o futuro dos movimentos revolucionários. Naquele momento, anarquistas e marxistas puderam tentar colocar na prática suas teorias sobre economia, educação, cultura, política e força militar, o que permitiu muita discussão e revisão de conceitos. A selvageria da repressão pelas tropas prussianas na semana sangrenta que foi de 21 a 28 de março de 1871 acabou com a Comuna e abalou a organização proletária européia e mundial, mas fortificou o mito e a importância daquele movimento parisiense. Seu fim foi o começo de uma onde de comunas que varreu a Europa nos anos seguintes, dando força ao movimento anarquista na Itália, na Espanha, na Suíça e na França, sendo seu mito cultivado pelos marxistas também, até a Revolta de Kronstadt e a direção final da URSS rumo à ditadura. A Comuna não seguiu uma linha teórico-ideológica única, mas colocou as duas principais – marxista e anarquista – em questão, tendo em vista que não seguiu o modelo pregado por Marx de revolução na sociedade capitalista mais desenvolvida e com operariado consciente de sua condição de classe social, ou seja, Inglaterra ou Alemanha, e nem seguiu a idéia de Bakunin de que a revolução começaria pelos países menos desenvolvidos industrialmente, como por exemplo a Itália e a Rússia. A morte de Bakunin na Suíça em 1876 não abalou a força do movimento anarquista, tendo em vista que este já tinha considerável força em diversos países europeus e nos outros encontrava igualmente uma grande quantidade de adeptos. Neste período, o movimento já começava a ver o surgimento de outro grande pensador anarquista, russo assim como fora Bakunin: Piotr Kropotkin e sua teoria da ajuda mútua. Este segundo período do movimento anarquista, que vai desde o racha da AIT em 1872 até a Revolução Russa de 1917 é marcado fundamentalmente pelo surgimento de diversos grupos de ação anarquista, mas também pela ação 7 pessoal de indivíduos que dedicaram suas vidas – ou o pouco tempo livre que tinham nelas – a divulgar os ideais anarquistas, seja em atividades culturais como peças de teatro ou poesias, seja traduzindo textos clássicos, ou ainda participando de greves, agitações e conspirações. Se gradativamente a Europa foi fechando o cerco contra os anarquistas neste período, principalmente após as séries de atentados contra governantes, os EUA ainda mantinham-se receptivos a todos os tipos de imigrantes. Até 1901. Neste ano, o Presidente McKinley for assassinado por um suposto anarquista. A partir daí, a repressão ao movimento foi intensa e novas leis de imigração proibiram a entrada de anarquistas no país. Tanto Bakunin quanto Kropotkin passaram em viagens pelos EUA, proferiram palestras, fizeram contatos e escreveram sobre esta convivência. Bakunin ficou por dois meses naquele país, entre outubro e dezembro de 1861 e posicionou-se à favor do abolicionismo e do republicanismo, aprovou a liberdade política mas percebeu alguns pontos complicados daquela que era vista como a “terra prometida”: a banalidade material e o orgulho nacional, o que colaborou para seu entendimento de que o governo representativo e o sufrágio universal poderiam ser facilmente manipulados pela burguesia. Piotr Kropotkin realizou duas viagens aos EUA, a primeira em 1897 e a segunda em 1901. Admirou o federalismo, mas também fez severas críticas à democracia, ao capitalismo e aos abusos que o governo vinha cometendo. Um caso fundamental para a compreensão da força que o movimento anarquista começou a ter, do medo que gerava nos governantes e na burguesia e na forma como o movimento gerou suas próprias Relações Internacionais é o de Haymarket. Em 1886 houve uma explosão em Chicago que causou a morte e o ferimento de diversos policiais locais. A repressão que se seguiu levou à prisão quatro anarquistas e mais o suicídio de um quinto. No ano seguinte, os quatro imigrantes anarquistas foram condenados à pena de morte e se tornaram mártires, “As execuções de Haymarket estimularam o crescimento do anarquismo, tanto 8 entre imigrantes quanto entre os americanos, e houve um rápido crescimento do número de grupos anarquistas italianos após 1887” 7. A condenação à morte de quatro imigrantes anarquistas nos EUA gerou o crescimento dos grupos anarquistas na Itália, moções de repúdio de grupos, associações, organizações e indivíduos em todos os EUA, Brasil, Argentina e na Europa. Mesmo sem condições financeiras, os anarquistas criaram uma rede de contatos que atravessava fronteiras e transmitia informações sobre os movimentos em suas comunidades. Os russos passaram a acompanhar o que vinha acontecendo nos EUA, os americanos sabiam do desenrolar do movimento na Alemanha e lá havia contato com os anarquistas de Espanha, Itália e França, que conheciam anarquistas na Argentina e na Inglaterra, e estes conversavam com grupos na Austrália, que também tinham contato com os norte-americanos e o círculo se fechava. Se dentro da Europa, a organização dava-se entre os operários nas cidades, regiões e países, nos países que estavam recebendo as levas de imigrantes como EUA, Brasil, Argentina e Austrália, as associações aconteciam inicialmente dentro das próprias comunidades de imigrantes. Estas, passaram a ser acompanhadas de perto pela polícia secreta e foram focos irradiadores dos ideais de Proudhon, Bakunin e Kropotkin. Outra importantíssima comunidade, espalhada por todo o globo e que viu parte de seus membros aderirem entusiasticamente ao anarquismo foi a comunidade judaica, encabeçada pela figura mítica de Saul Yanovsky. Segundo Paul Avrich, “Enquanto continuaram a acompanhar os eventos na Rússia com apaixonado interesse, os anarquistas judeus entraram em outras causas. Em 1911, eles protestaram contra a execução de Denjiro Kotoku e seu grupo anarquista em Tóquio. Em 1912, ajudaram os grevistas da área têxtil de Lawrence, Massachusetts, e em 1913, de Paterson, Nova Jersey. Eles levantaram fundos para a Revolução Mexicana, e especialmente para o movimento liderado por Ricardo e Enrique Flores Magón no sul da Califórnia” 8. 7 8 AVRICH, Paul – Anarchist portraits, p. 165 idem, ibidem, p. 193 9 Alexander Berkman, exilado judeu russo nos EUA, nasceu em 1870 no povoado de Vilna. Aos onze anos, acompanhou de perto o assassinato do czar russo, simpatizando pelo lado dos assassinos. Aos dezessete anos, chega aos EUA onde se tornou um expoente no movimento anarquista, conhecendo Emma Goldman – outra importantíssima anarquista daquele país: “Com a morte de Johann Most em 1906 (...), Berkman, junto com Emma Goldman, se tornou a principal figura no movimento anarquista norte-americano. Marcando encontros, organizando eventos, editando periódicos, e agitando com empregados e desempregados, ele fez mais do que qualquer um, até Goldman, pela causa libertária” 9. Durante sua vida, tentou assassinar um diretor de empresa durante greve, foi preso, fez campanha contra a Primeira Guerra Mundial, o que levou o governo a deporta-lo à Rússia bolchevique. Lá chegando, concluiu que aquela revolução não tinha nada do que ele entendia por libertação da população e fugiu para a Alemanha e depois França, onde morreu. Ricardo Flores Magón, é mais um caso da mobilização internacionalista anarquista. Considerado o maior anarquista mexicano do século XX, Magón foi perseguido constantemente pelas autoridades mexicanas e norte-americanas, sendo considerado uma ameaça constante à ordem. Segundo Avrich, “ele passou os dezenove anos seguintes nos EUA, mais da metade na prisão. Ele foi preso no Missouri, na Califórnia, no Arizona, em Washington e no Kansas, onde veio a falecer na Penitenciária Leavenworth em 1922. Sua odisséia, como lembrou um amigo seu, o levava ‘direto para o Xadrez’. O que começou para Flores Magón como uma revolta contra [Porfírio] Díaz se tornou simultaneamente em uma revolta contra a política de repressão dos EUA. Caçado por policiais, detetives particulares, oficiais dos correios e da imigração, ele foi de cidade em cidade, sendo preso periodicamente e sempre sob a ameaça da deportação” 10. Durante todo este tempo em que esteve preso, recebia visitas e correspondência de 9 idem, ibidem, p. 203 idem, ibidem, p. 209 10 10 anarquistas de todo o mundo, tendo havido também campanhas por sua libertação. Charles Wilfred Mowbray, um inglês que refugiou-se nos EUA após ser expulso da 2ª Internacional em 1893, foi um dos principais elementos na articulação dos movimentos anarquistas na Europa e nos EUA, tendo contado direto com pessoas como Kropotkin, Malatesta e Yanovsky. Suas atividades nas mais diversas áreas e regiões foram fundamentais para a transmissão das informações e ações entre os grupos anarquistas dos dois lados do Atlântico. Quando eclodiu a Revolução Russa de Outubro de 1917, diversos anarquistas em todo o mundo dirigiram-se à Rússia para colaborar na construção da nova sociedade pensando que o movimento liderado pelos bolcheviques marxistas não poderia passar por cima da tradição anarquista de Bakunin e Kropotkin. Este último, inclusive, foi convidade a fazer parte do governo revolucionário. Ao chegar à Rússia e observar como as coisas estavam sendo encaminhadas, recusou o convite e alertou Lênin para o caminho ditatorial que aquele movimento estava tomando. Pouco depois, começaram as perseguições do governo bolchevique, lideradas por Lev Trotski contra o movimento anarquista naquele país. Milhares de militantes foram presos, assassinados ou obrigados a exilarem-se. Aqueles que estavam presos, decepcionados com a revolução socialista autoritária marxista encontraram uma moeda de troca com a incrível experiência de Nestor Makhno na Ucrânia. Após o tratado de paz de Brest-Litowsk entre o governo bolchevique e o governo alemão, que entregava a Ucrânia para aquele país, Makhno comandou a resistência da população local, conseguindo instalar aquela que foi a maior área sob regime anarquista de todos os tempos. Com o desenrolar da Guerra Civil Russa, o governo bolchevique pediu seu auxílio. Em troca, pediu a libertação dos colegas anarquistas das prisões políticas. Feito isto, colaborou para a vitória do Exército Vermelho, mas logo em seguida foi traído, seus soldados exterminados, e ele acabou refugiando-se na França. 11 Conclusão: as Relações Internacionais anarquistas e as respostas estatais Como já fora dito no item As idéias anarquistas: um perigo à sociedade e ao Estado, tanto os governos de direita quanto os de esquerda marxista perseguiram os indivíduos, grupos e o movimento anarquista, temendo por um movimento que pregava a mudança radical daquelas sociedades. Assim como os anarquistas montaram uma rede própria para realizar suas Relações Internacionais, seus contatos, suas trocas, ajudas mútuas e lutas por liberdade, os governos também começaram a trocar informações buscando aprimorar a repressão e coibir a entrada de indivíduos indesejados em seus territórios. O fenômeno imigratório foi de fundamental importância para a propagação dos ideais anarquistas. Tendo em vista que nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX os principais países a verem suas populações emigrarem foram a Itália, a Espanha e a Alemanha, não é de surpreender que nestes enormes contingentes populacionais viessem também anarquistas. Ao chegar à nova terra, estes indivíduos começaram gradativamente a formar grupos anarquistas, buscando formar redes de trocas e ajuda primeiro dentro das comunidades de imigrantes e depois expandindo este espectro. A formação destes grupos foi incentivada por organizações de todo o globo, que promoviam viagens de pensadores anarquistas, enviavam livros e periódicos para serem traduzidos e montavam uma rede de troca de informações. Um dos casos mais marcantes é o já citado Haymarket. Longe dos tradicionais centros anarquistas europeus, Chicago era em 1887 uma cidade em rápido crescimento, com intensa industrialização e imigração. O “caso Haymarket” primeiro mobilizou grupos anarquistas de todos os EUA para depois chegar ao resto do mundo. Após infrutíferos mas incontáveis pedidos para a não-execução, o dia 11 de novembro tornou-se uma data-símbolo para a resistência anarquista em todo o mundo: “as execuções de Haymarket em 1887 deixaram uma marca permanente no movimento brasileiro, o qual rapidamente passaria a ter seus 12 próprios mártires, o primeiro deles sendo Polinice Mattei, sentenciado à morte em 1898” 11. São incontáveis os casos de trocas de informações e bibliografia, mas um dos mais interessantes envolve a russa imigrante nos EUA, Emma Goldman, e o inglês imigrante na Austrália, John William Fleming. Cada um vivendo em um extremo do globo, ambos trocavam livros, periódicos e informações, montando uma rede internacional de ajuda mútua: “Fleming, em 1908, convidou Emma Goldman (...) para uma longa viagem pela Austrália. Um grande admirador de sua camarada americana, (...) correspondeu-se com ela por muitos anos e distribuiu seu jornal Mother Earth em seus encontros desde o lançamento em 1906” 12. Se os anarquistas mantinham contatos e trocavam informações, os governos faziam o mesmo. Este tipo de troca de informações permitiu aos EUA montar sua política de controle de imigração e gerou as constantes deportações, prisões e perseguições, sendo um caso exemplar o de Mollie Steimer. Russa, imigrou para os EUA aos 16 anos. Presa durante a histeria anti-comunista, foi enviada à URSS em 1921. De lá, foi deportada em 1923 para a Alemanha, onde chegou passando fome, sem dinheiro nem passaporte. Ela passaria os próximos vinte e cinco anos sem um documento internacional, quando somente em 1948 o governo mexicano lhe deu a cidadania daquele país. Vivendo sempre sob o risco da prisão ou da deportação, os anarquistas reforçaram ainda mais sua rede de ajuda como foi o caso de Alexander Berkman: “Sob a constante ameaça do governo francês, ele conseguiu uma precária forma de sobrevivência traduzindo, editando e ocasionalmente escrevendo para publicações americanas ou européias, um dinheiro que complementado pela ajuda proveniente de camaradas e amigos” precisava ser 13. A rede de repressão internacional forçava a constante criação de novos grupos anarquistas, tendo em vista que estes eram praticamente obrigados a uma vida cada vez mais curta. Mesmo o crescimento do movimento não era acompanhado da manutenção da maioria dos grupos: “[Bakunin] conquistava cada AVRICH, Paul – Anarchist portraits, p. 255 idem, ibidem, p. 265 13 idem, ibidem, p. 206 11 12 13 vez mais adeptos na Itália e novos grupos periódicos anarquistas surgiram em vários locais, organizados por jovens advogados e estudantes, como o estudante de medicina Errico Malatesta (...). Vários destes grupos não duraram muito tempo, mas novas seções anarquistas se formavam constantemente”14 . Esta constante repressão com o tempo desmobilizou algumas pessoas, que preferiram permanecer somente no campo das idéias e não da prática: “Como, durante os vinte anos seguintes, os revolucionários começaram a pensar em novos métodos de ação efetiva, na realidade a mentalidade revolucionária pareceu muitas vezes, em alguns lugares e circunstâncias, mais efetiva que a organização revolucionária”15 . Os EUA, defendidos por sua liberdade política e de expressão por Bakunin e Kropotkin, mudaram gradativamente sua política. Primeiro coibiram a imigração, depois perseguiram freneticamente Ricardo Flores Magón para depois proporcionar cenas clássicas do Medo Vermelho como prisões e deportações em julgamentos duvidosos. O governo que havia protegido Bakunin, afirmando que jamais deixaria de defender os revolucionários do mundo, tornou-se gradativamente a principal força da repressão aos movimentos contestatórios, ao comunismo marxista e ao anarquismo. 14 15 JOLL, James – Anarquistas e anarquismo, p. 126 JOLL, James – Anarquistas e anarquismo, pp. 130-1. 14 Bibliografia AVRICH, Paul – Anarchist portraits. Princeton, Princeton University Press, 1988. BAKUNIN, Mikhail – Deus e o Estado. São Paulo, Imaginário, 2000. JOLL, James – Anarquistas e anarquismo. Lisboa, Dom Quixote, 1977. MAKHNO, Nestor; SKIRDA, Alexandre & BERKMAN, Alexandre – Nestor Makhno e a Revolução Social na Ucrânia. São Paulo, Imaginário, 2001. RODRIGUES, Edgar – Universo ácrata. Insular, Florianópolis, 1999. WOODCOCK, George – História das idéias e movimentos anarquistas, Vol. 2 – O Movimento. Porto Alegre, LP&M, 2002. 15