1 ABERTURA FINANCEIRA, VULNERABILIDADE EXTERNA E CRESCIMENTO DA ECONOMIA BRASILEIRA Elizeu Serra de Araújo* RESUMO O texto examina a relação entre o processo de abertura financeira no Brasil nos anos 1990 e o aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Argumenta que tal aumento indica o aprofundamento da dependência externa da economia, limitando estruturalmente o seu crescimento. Palavras-chave: abertura financeira; vulnerabilidade externa; crescimento econômico. ABSTRACT This text examines the relationship between the process of financial openness in Brazil in the nineties and the increase of external vulnerability of the Brazilian economy. It argues that this increase shows a deepening external dependency of this economy, structurally limiting its growth. Keywords: financial openness; external vulnerability; economic growth. 1 INTRODUÇÃO Os anos 1990 foram marcados, no Brasil e em boa parte dos países da periferia capitalista, pela implementação de um conjunto de reformas estruturais de caráter liberalizante. No caso da América Latina, essas reformas, como é amplamente sabido, foram consolidadas no Consenso de Washington, expressando a posição dos organismos multilaterais, que consideravam sua adoção (ou continuidade) como requisito indispensável para que os países endividados da região fizessem jus à cooperação financeira externa. Entre essas reformas, a abertura financeira foi uma das mais importantes, por suas implicações no tocante à situação das contas externas dos países que a implementassem e, por essa via, ao seu crescimento econômico. A abertura financeira se traduz na eliminação das barreiras aos movimentos de capitais, ou seja, na liberalização da conta de capital do balanço de pagamentos, compreendendo tanto a aquisição de ativos como a assunção de passivos externos (internos) por residentes (não-residentes) (CARNEIRO, 2002). São vários os argumentos utilizados a favor da liberalização financeira: (i) promoveria uma alocação mais eficiente de recursos no plano internacional, ao permitir a * Professor do departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão, Mestre em desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 2 canalização da poupança externa para países com insuficiência de capital; (ii) aumentaria a possibilidade de minimização dos riscos por parte dos investidores, em virtude da diversificação da posse de ativos que ela permite; (iii) aumentaria a eficiência dos sistemas financeiros domésticos, implicando a redução do custo do crédito; (iv) reduziria a possibilidade de adoção de políticas macroeconômicas distorcedoras dos sinais de mercado (PAINCEIRA; CARCANHOLO, 2002).1 Diversos trabalhos acerca do processo de abertura financeira no Brasil têm mostrado que o mesmo não evidenciou os benefícios prometidos. Este trabalho se ocupa de uma das principais implicações desse processo: o aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira, argumentando que tal aumento resulta numa limitação estrutural ao seu crescimento. 2 ABERTURA FINANCEIRA: principais características O processo de liberalização financeira no Brasil teve início no governo Collor (1990-1992), aprofundando-se nos dois governos Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002). Mudanças significativas foram adotadas, nos anos 1990, no marco regulatório referente aos fluxos de entrada e de saída de capitais, cujo sentido geral foi o de aumentar a abertura da conta de capital. As mais importantes dessas mudanças são sintetizadas a seguir. a) Definiu-se um marco regulatório para os investimentos estrangeiros de portfólio, compreendendo: i) entrada de investidores estrangeiros no mercado acionário doméstico (segmentos primário e secundário), através do Anexo IV (1991) à Resolução 1.289/87, do CMN; ii) aquisição por nãoresidentes de cotas de fundos de investimento, com várias modalidades de aplicação: renda fixa, privatização, empresas emergentes, investimento imobiliário; iii) utilização da conta de não-residentes (a chamada CC-5)2 para internalização de investimentos de portfólio, sem quaisquer restrições quanto ao tipo de aplicação (FREITAS; PRATES, 2001, p. 87); b) Efetuou-se expressiva modificação na regulação do investimento direto externo (IDE) no país, incluindo a abertura de novos setores 1 Sínteses dos argumentos pró-liberalização podem ser encontradas em Devlin, Ffrench-Davis e Griffith-Jones (1997), Bresser-Pereira e Nakano (2003) e Freitas e Prates (2001). 2 A CC-5 (Carta-Circular nº 5) data de final dos anos 1960, tendo sido criada “para permitir que não-residentes com negócios no país pudessem enviar dinheiro ao estrangeiro” (SODRÉ; GOTTSCHALK, 2003, p. 3). São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 3 (privatização), a equiparação da empresa estrangeira à empresa nacional, permitindo à primeira o acesso ao sistema de crédito público e a incentivos fiscais, e a flexibilização da legislação de remessa de lucros (CARNEIRO, 2002); c) Criaram-se mecanismos para facilitar aos residentes (tanto instituições financeiras como empresas não-financeiras) a emissão de títulos de dívida nos mercados financeiros internacionais. Dessa maneira, procedeu-se à “adequação do marco regulatório doméstico ao modelo contemporâneo de financiamento internacional, ancorado na emissão de securities (títulos de renda fixa e ações)” (FREITAS; PRATES, 2001, p. 85); d) Introduziram-se mecanismos destinados a facilitar a aquisição de ativos no exterior por parte de residentes, ou seja, facilitar a saída de capitais do país. Entre esses, destacam-se a flexibilização da CC-53 e a criação dos Fundos de Investimento no Exterior (FIEX).4 Essas alterações na estrutura normativa referente aos fluxos de entrada e de saída de capitais foram um dos determinantes da retomada dos fluxos de capitais para o Brasil no início dos anos 1990,5 após uma década de quase interrupção deles em função da crise da dívida externa. As principais características dos fluxos de capitais para o país nos anos 1990 são apresentadas a seguir. Em primeiro lugar, observa-se uma diversificação na composição desses fluxos vis-à-vis o movimento verificado nos anos 1970, quando predominaram os empréstimos e financiamentos. Na nova fase, há um crescimento significativo da participação dos investimentos de portfólio e dos investimentos diretos (Tabela 1). 3 Originalmente, o volume de moeda estrangeira a ser repatriada deveria respeitar os valores internalizados previamente. Em 1992, o governo brasileiro eliminou essa exigência, e, em 1996, estendeu aos residentes a possibilidade de remessas via CC-5, que acabou por se tornar o principal instrumento de saída de recursos do país, especialmente em momentos de crise. (SODRÉ; GOTTSCHALK, 2003; CARNEIRO, 2002.) 4 Trata-se de fundos criados em 1994 através dos quais residentes (investidores institucionais, empresas e pessoas físicas) podem investir no exterior, principalmente em títulos da dívida soberana brasileira. 5 Três outros fatores contribuíram para esse resultado: “I) normalização das relações do país com a comunidade financeira internacional, por meio da regularização da renegociação da dívida externa com os bancos credores e da conclusão, em abril de 1994, da regularização dos empréstimos atrasados nos moldes do Plano Brady; II) advento do Plano Real a partir de julho de 1994, que resultou, inicialmente, em maior estabilidade macroeconômica ao país; III) queda da taxa de juros internacional nos países desenvolvidos, levando-os a procurar oportunidades mais atraentes em países em desenvolvimento” (PAULA; OREIRO; SILVA, 2003, p. 923). São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 4 Tabela 1 Conta financeira do balanço de pagamentos (US$ milhões) – 1992-2002 Ano Investimentos Invest. em diretos carteira 1992 1924 14465 1993 799 12325 1994 1460 50642 1995 3309 9217 1996 11261 21619 1997 17877 12616 1998 26002 18125 1999 26888 3802 2000 30498 6955 2001 24715 77 2002 14108 -5119 * Empréstimos e financiamentos etc. ** A diferença corresponde aos derivativos. Fonte: Ipeadata. Outros investimentos* -6482 -2217 -43557 16201 -672 4832 -14285 -13620 -18202 -2767 -1062 Total** 9910 10412 8518 28744 33514 25408 29381 16981 19053 27088 7571 Em segundo lugar, esses fluxos se caracterizam, em geral, por grande volatilidade e reversibilidade (fluxo líquido negativo), notando-se uma queda significativa deles na esteira de crises externas (Ásia em 1997 e Rússia em 1998). A exceção fica por conta do IDE: “A pequena rotatividade deste último e a sua estabilidade é que conferem à rotatividade global um padrão mais estável, pois nos demais fluxos elas se ampliam progressivamente” (CARNEIRO, 2002, p. 275). Analisando a conta financeira do balanço de pagamentos, Paula, Oreiro e Silva (2003, p. 95-6) apontam as possíveis razões desse comportamento dos fluxos totais: [O] movimento do fluxo total da conta financeira é fortemente determinado pelo comportamento de “outros investimentos” (empréstimos e financiamentos em geral) e, secundariamente, dos investimentos em carteira. Os primeiros [...] têm queda acentuada em momentos de crises, em parte em função das dificuldades de rolagem ou renovação de dívidas em moeda estrangeira das empresas nesses momentos, em parte devido à saída de capitais especulativos. Os últimos (investimentos em carteira) tiveram um movimento bastante oscilatório, tendendo, em particular, a acentuar as saídas de capitais nos momentos de pressões especulativas. 3 VULNERABILIDADE EXTERNA E CRESCIMENTO A abertura financeira nos anos 1990 acarretou um aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira. A vulnerabilidade pode ser avaliada sob dois pontos de vista: (i) da capacidade de pagamento (solvência) do país; (ii) da capacidade de resistência da economia a choques externos, isto é, a mudanças abruptas dos fluxos de capitais externos (CARNEIRO, 2002). A análise que se segue atém-se ao primeiro aspecto. No novo ciclo de absorção de capitais externos, a capacidade de solvência externa da economia não pode mais ser medida exclusivamente com base nos indicadores São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 5 relativos à dívida e ao seu serviço (BATISTA JÚNIOR, 1997). É necessário levar em conta o conjunto do passivo externo, constituído, alem da dívida externa total (curto e longo prazos), pelos estoques de investimentos externos (diretos e de portfólio). Nesses termos, o principal indicador da solvência externa é a relação entre o passivo externo líquido6 e as exportações, “que afinal são a fonte última de fluxo de caixa em divisas que permite o pagamento dos serviços financeiros desse passivo” (MEDEIROS; SERRANO, 2001, p. 119). Isso posto, o problema da solvência externa se manifestará se a taxa de crescimento das exportações for inferior à taxa de crescimento do passivo externo.7 Ora, a entrada maciça de capitais, ao resultar numa apreciação da taxa de câmbio real, poderá levar à redução do superávit comercial e à deterioração do saldo em transações correntes do balanço de pagamentos, comprometendo a capacidade de pagamento dos compromissos externos da economia, expressa no aumento da razão passivo externo líquido/exportações (PAULA; OREIRO; SILVA, 2003, p. 70-1). Foi o que ocorreu no caso do Brasil nos anos 1990. A abertura financeira resultou num crescimento significativo do passivo externo da economia. Em conseqüência, aumentaram as remessas ao exterior sob a forma de juros, lucros e dividendos (ou seja, o custo líquido do passivo externo), sem que os recursos absorvidos tivessem contribuído para o crescimento da capacidade de geração de divisas da economia. Bem ao contrário, o aumento do ingresso de capitais, ao resultar em apreciação da taxa de câmbio real, levou à acumulação de déficits comerciais na segunda metade da década, que, juntamente com os crescentes desequilíbrios na conta de rendas, levaram a déficits crescentes em transações correntes. O financiamento desses déficits passou a exigir maiores ingressos de capitais, ou seja, crescimento do passivo externo, e assim por diante. Esse aumento da vulnerabilidade externa impõe um limite estrutural ao crescimento de longo prazo da economia. No “Manifesto latino-americano”, Prebisch citado por Medeiros (2001) já chamava a atenção para o problema que um crescente passivo externo poderia acarretar: À medida que aumenta a massa de capital externo, crescem também seus serviços financeiros, que vão demandando proporção crescente de recursos provenientes das exportações, e quanto mais cresce a proporção destes serviços, tanto menos haverá margem para a importação de bens de capital com estes recursos. 6 O passivo externo líquido corresponde à diferença entre o passivo externo bruto e os ativos externos (reservas internacionais, investimentos brasileiros no exterior, créditos brasileiros no exterior e haveres externos dos bancos comerciais). 7 “Como o passivo externo líquido já acumulado – como em qualquer dívida ‘rolada’ – cresce naturalmente à taxa de juros efetivamente paga sobre esse passivo, a relação crucial para a sustentabilidade de uma trajetória de crescimento com endividamento é dada pela diferença entre a taxa de crescimento do valor das exportações e aquela taxa de juros” (MEDEIROS; SERRANO, 2001, p. 119). São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 6 Em outras palavras, um aumento da razão custo líquido do passivo externo/exportações implica que um percentual crescente das receitas das exportações estará sendo destinado a servir ao passivo externo, com a conseqüente redução da parcela passível de assegurar as importações necessárias ao crescimento doméstico. O problema se torna particularmente relevante em economias que levaram a cabo processos intensos de abertura comercial, como foi o caso do Brasil na década de 1990, que a tornou muito dependente de bens de capital e insumos importados. Vejamos o comportamento desses indicadores (Tabela 2). a) O passivo externo bruto aumentou substancialmente, passando de 45,7% do PIB em 1992 para 71,5% em 2000. No mesmo período, o passivo externo líquido passou de 35,4% do PIB para 63,7%; b) O crescimento do passivo externo acarretou um aumento das remessas ao exterior sob a forma de juros, lucros e dividendos. Assim, o custo líquido do passivo externo passou a absorver um percentual crescente das exportações: de 22,4% em 1992, atinge 39,6% em 1999, reduzindo-se depois disso, graças à nova política cambial adotada em janeiro/1999; c) O aumento das remessas de lucros e dividendos e dos pagamentos de juros contribuiu para o aumento sistemático do déficit em transações correntes na segunda metade da década de 1990, quando se situou em torno de 4% do PIB. Tabela 2 - Indicadores de vulnerabilidade externa da economia brasileira – 1992-2000 Custo líquido do Ano passivo externo/ exportações (%) 1992 45,7 35,4 3,83 1,6 22,4 1993 46,8 35,0 3,90 -0,2 26,5 1994 39,3 27,5 3,43 -0,3 20,4 1995 32,3 22,2 3,37 -2,6 23,4 1996 35,5 24,7 4,02 -3,0 24,3 1997 40,5 31,2 4,76 -3,8 28,2 1998 45,0 36,4 5,62 -4,2 35,8 1999 73,2 63,0 7,05 -4,7 39,6 2000 71,5 63,7 6,96 -4,0 32,6 Fonte: Banco Central do Brasil. Valores do passivo externo bruto e líquido extraídos de Carcanholo (2003). PEB/ PIB (%) PEL/ PIB (%) PEL/ Exportações TC/ PIB (%) Nesses termos, a eventual obtenção de taxas de crescimento mais elevadas, ao pressionar as importações, acarretará um aumento do desequilíbrio externo em conta corrente. Frente a esse quadro, Freitas e Prates (2001, p. 105) observam: São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 7 O ciclo recente de endividamento externo e de crescimento do estoque de ativos domésticos, produtivos e financeiros, em poder de não-residentes, só seria sustentável e virtuoso se esses recursos contribuíssem para a obtenção de superávits na balança comercial, os quais possibilitariam o pagamento dos compromissos já assumidos com o exterior (amortizações, remessas de juros, lucros e dividendos) e, num segundo momento, a redução da dependência externa. Não é o caso da economia brasileira no contexto da abertura financeira dos anos 1990. Por um lado, grande parte do IDE se direcionou para setores que não produzem divisas. Por outro, o investimento de portfólio em geral não tem contribuído para o financiamento dos investimentos (FREITAS; PRATES, 2001). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao contrário do que pretendiam os defensores da liberalização financeira, tal processo não conduziu a economia brasileira ao crescimento sustentado. Em vez disso, ao implicar um aumento sem precedentes das remessas de lucros, dividendos e juros ao exterior, terminou aprofundando a dependência de capitais externos e reduzindo as chances de crescimento. Para a mudança desse quadro, não basta um esforço de ampliação das exportações. Tal processo só poderá ser revertido estruturalmente mediante alguma forma de redução do enorme passivo externo acumulado. Adicionalmente, é necessário impor limites ao ingresso de capitais. Tal medida, junto com a redução do passivo já acumulado, implicará a redução das remessas de recursos ao exterior, assegurando a folga necessária para importar os bens indispensáveis à retomada sustentada do crescimento. Os processos de liberalização dos fluxos financeiros colocam em evidência novas contradições do desenvolvimento capitalista no Brasil. Tais contradições não resultam simplesmente de opções equivocadas de política econômica, sendo, antes de tudo, expressão de tendências inerentes ao capital. Nesse sentido, por significativos que sejam os esforços de regulação dos fluxos de capitais que se direcionam à periferia – abrangendo seu montante, sua composição e sua destinação –, não passarão de paliativos para um problema que é, em si, muito mais profundo. REFERÊNCIAS BATISTA JÚNIOR, P. N. Apresentação. In: FFRENCH-DAVIS, R.; GRIFFITH-JONES, S. (orgs.). Os fluxos financeiros na América Latina: um desafio ao progresso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. BRESSER-PEREIRA, L. 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