3. Filosofia e Fantasia Privada: Derrida por Richard Rorty versus

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano 1, Número 4, 2010
Filosofia e Fantasia Privada: Derrida por Richard Rorty versus Derrida por ele mesmo
Lucas Nogueira do Rego Villa Lagesi
Resumo:
Este artigo busca analisar a leitura feita por Richard Rorty, na obra “Contingência, Ironia e
Solidariedade”, acerca do pensamento final do filósofo francês Jacques Derrida, comparando-a com a
leitura que este filósofo, posteriormente, faria de si mesmo em conferência proferida com o tema
“Desconstrução e Pragmatismo”. Rorty parece sugerir que Derrida, definitivamente, rompe com os
limites entre filosofia e literatura, abandonando a preocupação com a esfera pública e lançando seu
pensamento em uma audaciosa aventura pela fantasia privada. O próprio Derrida, no entanto, em resposta
a esta leitura feita de sua obra pelo filósofo americano, refuta-a, assumindo seu compromisso com a
filosofia e afirmando a impossibilidade de separar o filosofar de um compromisso com a dimensão
pública. O Derrida de Rorty, aquele preocupado com a criação de um novo vocabulário e desprendido da
lógica e da argumentação racional, embora contrário à leitura que Derrida faz de si mesmo, pareceria um
pensador melhor encaixado no contexto da contemporaneidade.
Palavras-chave: Rorty, Derrida, Desconstrução, Ironia, Fantasia Privada.
Abstract:
This article tries to analyze the Richard Rorty’s interpretation, at “Contingency, Irony and Solidarity”, of
Jacque Derrida’s last philosophy, comparing it with Derrida’s self-interpretation. Rorty sugest that
Derrida definitely breaks the bounds between philosophy and literature, abandoning the concern about the
public sphere and throwing his thought in an adventure over the private fantasy. Derrida himself,
however, replying Rorty’s reading, assume his commitment with philosophy and the impossibility of
divide it from the public dimension. Rorty’s Derrida, the one concerned about the creation of a new
vocabulary and defying logic and rational argumentation, looks like a thinker more framed at the
contemporary context.
Keywords: Rorty, Derrida, Deconstruction, Irony, Private Fantasy.
1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar a leitura que Richard Rorty faz
do filósofo francês Jacques Derrida, tomando como base a obra Contingência, Ironia e
Solidariedade (RORTY, 1994), mormente seu capítulo seis, incluso na parte II. Procura,
também, confrontar essa leitura com a que Derrida faz de si próprio, embasando-se para
tal na conferência Notas sobre Desconstrução e Pragmatismo (DERRIDA, 2005), por
ele proferida no Collège International de Philosophie de Paris.
Pretendemos, então, com esta análise, descobrir se Derrida concorda com a
leitura que Richard Rorty faz de sua filosofia desconstrucionista e se existe, de fato,
uma relação tão estreita entre desconstrução e pragmatismo. Derrida é, como sugere
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Rorty, o ápice da teoria ironista, tendo sido o primeiro filósofo a mergulhar, através da
literatura, no totalmente privado, desistindo, assim da necessidade da argumentação
com a tradição filosófica? A este questionamento buscaremos nos ater, confrontando o
Derrida de Rorty com a auto-imagem que Derrida parece ter de si.
2. O Derrida de Richard Rorty
Toda a obra Contingência, Ironia e Solidariedade, de Richard Rorty (1994),
tem por preocupação discorrer sobre a impossibilidade de conciliação perfeita entre o
público e o privado, propondo, apesar disso, o modelo do ironista liberal como a mais
adequada combinação destas duas esferas para a contemporaneidade. Inicialmente faz
sua apologia ao ironismo na esfera privada, dissertando sobre seus grandes heróis
ironistas, ou “poetas fortes”, para utilizar a expressão que o próprio Rorty colhe de
Harold Bloom: Proust, Nietzsche, Heidegger e, por fim, Derrida. O ironista, segundo
Rorty, é este capaz de ultrapassar a metafísica, abandonando a busca do universal, da
Verdade, em detrimento de um desejo verdadeiramente artístico de autocriação privada
através do desenvolvimento de um novo vocabulário, de um estilo.
No sexto capítulo da referida obra, intitulado Da Teoria Ironista às Alusões
Privadas: Derrida (RORTY, 1994), Rorty dedica-se ao pensamento ironista de Derrida,
sugerindo que este, em sua última fase, teria, por meio da privatização de seu
pensamento, superado a dicotomia entre ironismo e teoria.
Rorty inicia o capítulo afirmando que Derrida está para Heidegger assim como
Heidegger está para Nietzsche. Teriam, Heidegger e Derrida, sido os leitores mais
inteligentes e mais devastadores críticos de seus antecedentes. Travariam com seus
antecessores uma relação dúbia de aprendizado e necessidade de ultrapassamento.
Derrida teria aprendido com Heidegger a importância dos fonemas, porém ter-se-ia
apercebido que “a litania de Heidegger é apenas a de Heidegger, e não a do Ser ou da
Europa” (RORTY, 1994, p. 159).
Derrida pretenderia, assim, como proposta de ultrapassamento da filosofia
heideggeriana, descobrir um modo de “quebrar a tentação de se identificar com algo de
grande – algo como a “Europa” ou o “apelo do Ser” ou “o Homem” (RORTY, 1994, p.
159).
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Segundo Rorty, a obra de Derrida, assim como a de Heidegger, se dividiria em
um período inicial, mais profissional, e em um período posterior, de escrita mais
excêntrica, pessoal e original. Este último período é o que mais interessa a Rorty. É o
último Derrida que, segundo Rorty, “privatiza o seu pensamento filosófico e, com isso,
quebra a tensão entre ironismo e teoria” (RORTY, 1994, p. 163). Abandona a tentativa
de argumentar com seus antecessores, buscando ultrapassá-los racionalmente,
substituindo este projeto pela pretensão de fantasiar sobre estes antecessores, jogando
com eles e dando livre curso às cadeias associativas que se originariam deste jogo.
Estas fantasias, entretanto, não teriam qualquer moral ou uso público (político
ou pedagógico). É esta fantasia essencialmente privada que, segundo Rorty, é “o
produto final da atividade teórica ironista” (RORTY, 1994, p. 163). Uma vez
reconhecida a impossibilidade de conciliação entre o público e o privado, da total
relação de continuidade ou causalidade entre estas esferas, mergulhar na fantasia
privada parece ser a única possibilidade de adotar, teoricamente, um referencial para si
próprio. É a única saída para o ironista buscar ir além de seus antecessores sem recair
nos mesmos modelos que eles utilizaram. Vejamos o que, a este respeito, afirma o
próprio Rorty:
Cair na fantasia privada é a única solução para o problema autoreferencial com que tal actividade teórica depara, o problema de saber
como passar à frente dos nossos antecessores sem fazer exactamente
aquilo que se repudiou terem feito. Assim, considero que a
importância de Derrida reside em ter tido a coragem de abandonar a
tentativa de unir o público e o privado, de deixar de tentar conciliar
uma busca de autonomia privada e uma tentativa de ressonância e
utilidade pública. Derrida privatiza o sublime, tendo aprendido com o
destino dos seus antecessores que o público nunca pode ser mais do
que belo” (RORTY, 1994, p. 163).
É assim que o último Derrida aprende que o grande desafio não é atingir a
natureza ou estrutura da linguagem, mas sim criar um estilo diferente, um vocabulário
único, capaz de tornar suas obras impossíveis de serem comparadas com as de seus
antecessores, e isto por um motivo simples: não haveria como estabelecer critérios de
julgamento. A luta não é mais por criar neologismos, mas por forjar um estilo.
Por fim, o outro grande salto atribuído por Rorty a Derrida seria o de
desenvolver a tal ponto um novo estilo e uma nova linguagem que seria capaz,
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conseqüentemente, de abandonar os jogos da linguagem antiga e ultrapassar a
necessidade de argumentar. O fim da argumentação é o estágio último de “evolução” do
estilo de Derrida, segundo Rorty. Vejamos o que, a este respeito, afirma o filósofo
americano:
Considero que Derrida não pretende dar um único passo dentro do
jogo de linguagem que distingue entre fantasia e argumentação, entre
filosofia e literatura, entre escrita séria e escrita lúdica – o jogo de
linguagem da grande époque. Derrida não vai jogar segundo as regras
do vocabulário final de outro (RORTY, 1994, p. 171/172).
É através deste abandono da antiga linguagem que Derrida, segundo Rorty,
ultrapassaria a distinção entre Filosofia e Literatura, entre o Racional e o Irracional.
Derrida não estaria mais preocupado com a argumentação ou com a racionalidade, não
teria mais compromisso com a tradição filosófica. Ao trabalho de Derrida já não faria
sentido a tensão entre o sério e o lúdico: Derrida não quer mais ser filósofo, quer ser
poeta forte!
É a figura do poeta forte, comprometido com a autocriação privada, que Rorty
atribui ao ironista Derrida, quando afirma que ele
(...) está a tentar criar-se a si próprio ao criar seu próprio jogo de
linguagem, a tentar evitar dar à luz outra criança através de Sócrates,
de ser mais uma nota de pé-de-página a Platão. Está a pôr em
funcionamento um jogo que corte transversalmente a distinção
racional-irracional. Mas enquanto professor de Filosofia tem
dificuldade de consegui-lo. Enquanto seria bastante primitivo
perguntar a Proust se devíamos ler o seu romance como história
social ou como um estudo de obsessão sexual ou perguntar a Yeats se
realmente acreditava em todas aquelas tolices sobre as fases da Lua,
dos filósofos pretende-se tradicionalmente que respondam a este tipo
de pergunta. Se nos anunciamos como romancistas ou poetas, é-nos
poupada uma série de perguntas difíceis devido à névoa de divino que
envolve o “artista criativo”. Mas dos professores de filosofia
pretende-se que sejam feitos de uma matéria mais resistente e que se
exponham (RORTY, 1994, p. 172).
Rorty sugere, então, colocar Derrida neste espaço de indecidibilidade entre a
filosofia e a literatura, entre a razão e a criatividade, já que considera que “sua
finalidade é a mesma autonomia que Proust e Yeats tinham em vista” (RORTY, 1994,
p. 172). A vantagem de tomar esta postura em relação a Derrida, segundo Rorty, é assim
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(...) podermos evitar dissecar sua escrita segundo linhas estabelecidas
por outros e podermos, em vez disso, sentar-nos e apreciar essa
escrita – esperar que conforto ou exemplo ela nos pode oferecer, se se
verifica ser relevante para as nossas próprias tentativas de autonomia
(RORTY, 1994, p. 172).
Assim se evitaria incorrer em deslizes como aqueles que Rorty atribui a
Gasché e Culler, de sugerir que Derrida teria “demonstrado algo” ou “refutado alguém”.
Por fim, “significa (...) abandonar a ideia de que Derrida desenvolveu um ‘método
desconstrutivo’ (...)” (RORTY, 1994, p. 173). Segundo Rorty, na obra do último
Derrida “(...) não há nenhum método envolvido, se um método é um processo que pode
ser ensinado por referência a regras” (RORTY, 1994, p. 174). O que Derrida pretende
não é traçar um catálogo de regras, mas sim descobrir o que aconteceria se nós
agíssemos desconsiderando-as:
A atitude de Derrida para com todas as regras é a de que,
evidentemente, é necessário segui-las se se quiser argumentar com
outras pessoas, mas que há outras coisas a fazer com os filósofos
além de argumentar com eles. Essas regras tornam o discurso
argumentativo possível, mas Derrida responde à pergunta “O que
aconteceria se as ignorássemos?” (RORTY, 1994, p. 174).
É assim que Derrida se transubstancia no herói ironista de Rorty, aquele que
conseguiu, sem traumas, pelo mergulho no privado, abandonar a necessidade de
argumentar, que desistiu de duelar segundo as regras dos jogos da linguagem
tradicionais. Aquele que pretende criar novos jogos, ignorando as regras do passado.
É essa consciência de que o processo de auto-invenção do poeta forte versa
sobre a sedução através da linguagem, e não do convencimento pela argumentação
racional, que caracteriza o pensamento ironista que Rorty sugere para a “pósmodernidade” e que teria atingido seu apogeu em Derrida.
Onde estaria, então, a vantagem de se desenvolver um estilo como o de
Derrida? Vejamos o que diz Rorty:
Qual é a vantagem de escrever desta maneira? Se se quer argumentos
que alcancem conclusões, não há vantagem nenhuma. Como já disse,
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não há nada de proposicional a retirar da experiência de o ler – tal
como não há no caso dos textos do último Heidegger. Deve-se, então,
julgar essa escrita por critérios “literários” ou “filosóficos”? Não,
porque, tal como nos casos da Fenomenologia do Espírito, de Em
Busca do Tempo Perdido e de Finnegans Wake, não há critérios
anteriormente disponíveis de nenhum dos tipos. Quanto mais original
é um livro ou um tipo de escrita, quanto mais destituído de
precedentes é, menos provável é dispormos de critérios e menos
sentido faz tentar atribuir-lhe um gênero. Temos de ver se podemos
encontrar-lhe um uso (RORTY, 1994, p. 174/175).
Essa auto-invenção através do estilo que promove o último Derrida é
responsável, segundo Rorty, pelas características mais maduras do ironismo, ou seja: a)
o mergulho no privado, percebendo sua incomunicabilidade com o público; b) o
abandono da necessidade de argumentar com a tradição filosófica, tornando-a apenas
objeto de suas fantasias privadas; c) a derrubada da fronteira entre a filosofia e a
literatura, com a criação de um novo vocabulário; d) a superação da metafísica e da
nostalgia da transcendentalidade.
Este, então, parece ser o perfil do Derrida de Richard Rorty.
3. Derrida por ele mesmo: resposta à leitura rortyana
Em encontro realizado no Collège International de Philosophie de Paris
organizado por Chantal Mouffe, Derrida teve a oportunidade de se manifestar sobre a
leitura que Richard Rorty faz de sua obra. Este pronunciamento de Derrida foi,
posteriormente, publicado com o título de Notas sobre Desconstrução e Pragmatismo
(DERRIDA, 2005, p. 151/170).
Neste pronunciamento, Derrida parece rechaçar, em muitos pontos, a leitura
que Rorty faz de seu pensamento desconstrucionista. No que tange, por exemplo, ao
suposto mergulho no privado que Derrida promoveria, percebendo a impossibilidade de
conciliação do mesmo com o público, vejamos o que afirma:
(...) gostaria de dizer o seguinte, especialmente para Richard Rorty,
por quem sinto uma grande gratidão pela leitura, ao mesmo tempo
generosa e tolerante, que tem feito de vários de meus textos.
Entretanto, devo dizer que obviamente não posso aceitar a distinção
público/privado da maneira em que a usa em relação com minha obra.
(...) para mim o privado não se define pelo singular (não digo pessoal,
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porque acho esta noção um tanto confusa) ou pelo secreto. Ao tempo
em que trato de tematizar uma dimensão do secreto que é
absolutamente irredutível ao público, também resisto à aplicação da
distinção público/privado a esta dimensãoii (DERRIDA, 2005, p.
154).
Portanto, Derrida afirma que Rorty estaria confundindo aquilo que ele chama
“secreto” com a esfera do “privado” ou do “pessoal”. Esta distinção entre o “secreto” e
o “privado”, entretanto, não parece ficar muito clara em seu pronunciamento.
Rorty também afirma que Derrida teria abandonado a necessidade de
argumentar e que a desconstrução já não teria mais o compromisso de atuar na esfera
argumentativa. A este respeito, vejamos o que diz Derrida:
Antes de tudo, a questão da argumentação. Estamos aqui para discutir
e para trocar argumentos da maneira mais clara, unívoca e
comunicável possível. Por outro lado, a questão que gira mais
freqüentemente em torno do tema da desconstrução é a da
argumentação. Acusam-me – se é que se acusa aos
desconstrucionistas – de não argumentar ou que não gosto da
argumentação, etcétera. Isto é, obviamente, uma difamação. Mas esta
difamação deriva do fato de que há argumentações e argumentações,
e isto é assim porque em contextos de discussão como este, onde
governa uma forma proposicional, um certo tipo de forma
proposicional, e onde desaparece necessariamente um certo tipo de
micrologia, onde a atenção à linguagem resta necessariamente
reduzida, a argumentação é claramente essencial. E, obviamente, o
que me interessa são outros protocolos, outras situações
argumentativas onde não se renuncia à argumentação só porque se
rechaça discutir sob certas condições (DERRIDA, 2005, p. 152).
Parece, então, que Derrida rechaça a leitura que Rorty dele faz quando sugere
que não há, por parte dele, nenhum compromisso com a argumentação. Derrida
esclarece que está, sim, muito preocupado com a argumentação – só que uma
argumentação que não é, necessariamente, proposicional. A ideia seria, portanto, forjar
novos protocolos argumentativos.
Sobre a afirmação de Rorty de que Derrida teria derrubado a fronteira entre
filosofia e literatura e que o mesmo já não tinha mais preocupação em produzir
trabalhos filosóficos ou ser lido como um filósofo, mergulhando, através da adesão à
literatura, na idiossincrática fantasia privada, deixemos mais uma vez falar e gesticular o
espectro de Derrida:
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Gostaria de insistir nisto porque é uma acusação recorrente, e dada a
falta de tempo e contexto, terei que falar um pouco brutalmente:
jamais tratei de confundir literatura e filosofia ou de reduzir a
filosofia à literatura. Presto muita atenção à diferença de espaço, de
história, de ritos históricos, de lógica, de retórica, de protocolos e de
argumentação. Tratei de prestar a máxima atenção a esta distinção. A
literatura me interessa, supondo que, a minha maneira, a pratico ou a
estudo nos outros, precisamente como algo que é completamente
oposto à expressão da vida privada. A literatura é uma instituição
pública de recente invenção (...) não sou capaz de separar a invenção
da literatura, a história da literatura, da história da democracia. (...)
Em todo caso, a literatura é, em princípio, o direito de dizer algo, e é
para grande benefício da literatura que seja uma operação a uma só
vez política, democrática e filosófica, na medida em que a literatura
permite formular perguntas que freqüentemente se reprimem em um
contexto filosófico (DERRIDA, 2005, p. 155/156).
E, mais adiante, mostra que não se considera um literato, mas um filósofo:
(...) apesar de que me parece necessária a ironia para aquilo que faço,
ao mesmo tempo – e é uma questão de memória – tomo muito a sério
o tema da responsabilidade filosófica. Sustento que sou um filósofo e
quero seguir sendo um filósofo, e essa responsabilidade filosófica é
algo que dirige meu trabalho (DERRIDA, 2005, p. 159).
Derrida, então, tanto nega que a literatura seja a expressão do privado, como
que tenha ele abandonado o compromisso com a tradição e a escrita filosófica em favor
de um mergulho nas belas letras.
Por fim, quanto à alegação de Rorty de que Derrida teria superado qualquer
tipo de nostalgia da transcendentalidade, vejamos, mais uma vez, o que sobre o tema
afirma o filósofo da desconstrução:
Algo que aprendi com as grandes figuras da história da filosofia, com
Husserl em particular, é a necessidade de formular perguntas
transcendentais para não ficar preso na fragilidade de um
incompetente discurso empirista e, portanto, para evitar o empirismo,
o positivismo e o psicologismo, é que resulta interminavelmente
necessário renovar o questionamento transcendental. Mas esse
questionamento deve renovar-se tomando em conta a possibilidade da
ficção, do acidental e da contingência, assegurando assim que esta
nova forma de questionamento transcendental só imite o fantasma da
clássica seriedade transcendental, sem renunciar àquilo que, dentro
desse fantasma, constitui um legado essencial (DERRIDA, 2005, p.
159).
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A este posicionamento que não abandona a transcendência, mas dialoga com
seu fantasma enfraquecido, Derrida chama de “quase-transcendentalidade”. Não há,
portanto, na superação da metafísica derridiana, abandono da tradição, da
transcendência ou da própria metafísica. O que há é um ultrapassamento sem abandono
que se dá com o enfraquecimento da base dogmática e forte deste tipo de pensamento,
com a transformação da tradição e do próprio ser em lembrança, rememoração, herança
com a qual se dialoga, mas que já não pode mais ser levada totalmente a sério como era
levada
pelos
pensadores
do
passado.
É
preciso,
então,
que
a
“quase-
transcendentalidade” seja “a uma só vez, irônica e séria” (DERRIDA, 2005, p. 158).
4. Considerações Finais
Percebemos, então, que Derrida parece rechaçar todos os “argumentos” de
Rorty que fariam de si o grande herói da segunda parte de Contingência, Ironia e
Solidariedade, o mestre da ironia que a teria levado a seu apogeu teórico.
Entretanto, se lermos atentamente a resposta de Derrida a Rorty, perceberemos
que, embora a mesma possa aparentemente consistir em uma tentativa de negação da
leitura que o filósofo americano faz dele, o que ele sutilmente promove, através dela, é a
confirmação, nas entrelinhas, de muito do que fora dito por Rorty. Não custa lembrar
que escrever nas entrelinhas, obrigando o leitor a desmontar e desconstruir o texto,
parece ser “a grande jogada” do estilo de Derrida e da “técnica de leitura” que ele
chama desconstrução.
Derrida, em sua resposta a Rorty, embora aparente argumentar ele, na verdade
só se esquiva de seus questionamentos, negando-se a uma argumentação proposicional e
fugindo das afirmações rortyanas através da criação de um novo vocabulário. É o que
faz, por exemplo, quando rechaça a distinção privado/público em sua obra
simplesmente substituindo a dimensão do “privado” pelo “secreto” (sem deixar clara a
distinção entre os termos). Posteriormente, quando combate a afirmativa de que não
estaria mais preocupado com a argumentação, afirma existirem “argumentações e
argumentações” e que está sim preocupado com ela, mas com uma argumentação não
proposicional (um novo protocolo de argumentação). Ora! O que foi este lance de
Derrida, senão um jogo de palavras? Aparentemente negando, ele confirma não estar
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interessado no antigo protocolo de argumentação, recaindo, assim (porém sem admitir),
justamente naquilo que Rorty dele afirmava.
Acerca da distinção entre literatura e filosofia, não parece clara, também, em
que consiste a marca que delimita as margens de cada uma destas formas de escritura no
pensamento de Derrida. Embora ele se afirme um filósofo, sua preocupação com a
autocriação privada por meio da criação de um novo vocabulário e a transformação da
desconstrução em um estilo de escritura não torna de todo sem sentido imaginar que ele
rompe as muralhas que separam o saber filosófico das belas letras. Não importa como
Derrida pretenda definir ou deixar de definir a desconstrução - ela não é um método
filosófico ou uma técnica filológica: é um estilo (literário) de escrita.
Quanto à questão da superação da transcendência, mais uma vez Derrida
utiliza-se de uma manobra lingüística para desviar-se das afirmações de Rorty: desta vez
forja a figura do “quase-transcendental”, que, uma vez desprovido de fundamento
metafísico, já não poderia mais ser chamado de transcendental (confirmando o
ultrapassamento da metafísica que Rorty lhe atribui). O ser, então, já não se dá enquanto
presença, mas somente, como em Heidegger, como rememoração de seus rastros e
restos. Mas o que é, então, a metafísica, senão a crença no ser enquanto presença,
enquanto ontos on?
Por que, então, Derrida aparentemente esperneia em árdua luta, evitando
assumir que Rorty talvez tenha trazido à superfície nuances importantes de seu
pensamento? Por um motivo simples: ele não poderia aceitar ser explicado pelo
vocabulário de outro. Seu impulso de autocriação restaria prejudicado se ele se
permitisse ser narrado de acordo com a linguagem de Rorty. Aqui encontramos,
finalmente, nossa chave interpretativa e, com ela, a possibilidade de conciliação entre o
Derrida rortyano e o Derrida derridiano: a necessidade de se auto-inventar através de
um estilo que não se submeta aos protocolos alheios. Nos termos de Rorty: “Derrida não
vai jogar segundo as regras do vocabulário final de outro” (RORTY, 1994, p. 172), ou,
nas palavras do próprio Derrida, “rechaço de plano um discurso que me estipule um só
código, um único jogo de linguagem, um único contexto, uma única situação”
(DERRIDA, 2005, p. 158). Isso porque, conforme o filósofo francês, “obviamente o que
me interessa são outros protocolos, outras situações argumentativas (...)” (DERRIDA,
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2005, p. 153) – ou seja: a criação de um novo vocabulário, a auto-invenção através do
estilo, como bem sugere Rorty.
Aparentemente, portanto, e ao contrário do que uma primeira leitura poderia
sugerir, há mais semelhanças do que diferenças entre o Derrida de Rorty e o Derrida do
próprio Derrida, muito embora alguma parte do Derrida rortyano pareça ser, também,
fruto da fantasia privada do pensador americano (e, assim, ele nos mostra o que
aprendeu com o filósofo da desconstrução).
Referências
DERRIDA, J. Notas sobre desconstrucción y pragmatismo. In: Desconstrucción y
pragmatismo. Compilado por Chantal Mouffe. Buenos Aires: Paidós, 2005.
RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Editorial
i
Mestrando em Filosofia (Ética e Epistemologia) pela Universidade Federal do Piauí – UFPI e Especialista em Ciências
Criminais pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Bacharel em Direito e Licenciatura Plena em
Filosofia, ambos na Universidade Federal do Piauí – UFPI. Atualmente é advogado, professor das faculdades FAP e
NOVAFAPI e pesquisador bolsista da FUNPESQ. Email: [email protected]
ii
As traduções são de minha autoria.
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