Artigo Original Redução do Fluxo Salivar em Hemodialisados Decrease of the Salivary Flow Rate in Hemodialysis Patients. Luiz C. M. Miguel1, Arno Locks2, Vanessa Neumann1 1Departamento de Odontologia da Universidade da Região de Joinville; Fundação Pró-Rim Joinville, SC. 2Departamento de Estomatologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisa subvencionada com bolsa de Iniciação Científica Acadêmica PIBIC. Apresentada sob forma de Painel no XXI Congresso Internacional de Odontologia de São Paulo, 26/01 a 31/01 de 2004. RESUMO Introdução: Existem atualmente no Brasil, segundo dados da “Sociedade Brasileira de Nefrologia”, aproximadamente 60.000 pacientes que sofrem de insuficiência renal crônica (IRC) e que se submetem a tratamento de hemodiálise. Estes pacientes sofrem de vários distúrbios sistêmicos dentre os quais uma redução do fluxo salivar integral. Objetivo: Comparar o fluxo de saliva integral estimulado de 30 pacientes portadores de IRC em tratamento hemodialítico com 30 controles. Métodos: Os hemodialisados foram recrutados no programa de hemodiálise do Hospital do Rim (Joinville-SC). Os controles, sem problemas de saúde outros que os odontológicos, foram originados do ambulatório do Departamento de Odontologia da Universidade da Região de Joinville - SC (UNIVILLE) e não estavam utilizando qualquer medicação nos últimos 3 meses. Através de estímulo mastigatório foram medidos o fluxo salivar integral dos pacientes portadores de IRC e controles, medidos em mililitros por minuto (ml/min). Os resultados foram submetidos à analise estatística através do teste t. Resultados: Os resultados demonstraram que os pacientes em hemodiálise apresentaram fluxo salivar médio de 0,60 ml/min, caracterizando hiposalivação. Em contraste, os pacientes controles apresentaram uma média de 1,53 ml/min, caracterizando volume normal de secreção salivar. Os valores foram estatisticamente diferentes (p<0,01). Conclusão: Os pacientes portadores de IRC em hemodiálise, possuem um fluxo salivar integral estimulado diminuído quando comparado ao grupo controle. (J Bras Nefrol 2006;28(1):20-24) Descritores: Fluxo salivar integral; Hemodiálise; Insuficiência renal crônica. ABSTRACT Introduction: Nowadays, according to the “Brazilian Society of Nephrology”, there are approximately 60000 end-stage renal disease patients (ESRD) undergoing hemodialysis in Brazil. These patients also suffer from some systemic complications, like the reduction of the salivary flow rate. Objective: To compare the stimulated integral salivary flow rate of 30 ESRD patients with 30 controls. Method: Hemodialysis patients were derived from the dialysis program of the Hospital do Rim (Joinville-SC). Control patients were extracted from the clinics of the Department of Dentistry of the Joinville’s University - SC (UNIVILLE) and were not under any drug treatment for the last 3 months. The integral salivary flow rate of the patients with IRC and control group was measured after chewing stimulation. The results had been submitted to statistical analysis through t-test. Results: The tests demonstrated that the ESRD patients had an average of 0,60 ml/min for their salivary flow rates, categorized as hiposalivation. In contrast, the control patients showed an average salivary flow rate of 1,53 ml/min, categorized as normal. Values ere statistically different (p<0,01). Conclusion: The hemodialysis patients had a lower integral stimulated salivary flow rate when comparated to the control group.(J Bras Nefrol 2006;28(1):20-24) Keywords: Salivary Flow rate; hemodialysis; Chronic renal failure. Recebido em 25/05/05 / Aprovado em 09/02/06 Endereço para correspondência: Luiz C.M. Miguel Rua Alceu Koenntopp 720 89217-070 Joinville, SC Telefone: (47) 422-9778 E-mail: [email protected] J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 1 - Março de 2006 21 INTRODUÇÃO MATERIAIS E MÉTODOS Através de hemodiálise, os pacientes com insuficiência renal crônica (IRC) procuram manter um nível de qualidade de vida controlado enquanto não realizam o transplante renal1. Este tratamento é essencial para a manutenção da homeostase destes indivíduos. Durante as sessões de hemodiálise, as condições destes pacientes são extremamente precárias e críticas, pois precisam para sua sobrevivência, além da máquina de hemodiálise, superar suas próprias condições orgânicas fragilizadas1,2. Esta condição orgânica fragilizada de indivíduos com IRC se dá pela retenção de líquidos e impurezas no sangue e pela incapacidade funcional dos rins, o que compromete todos os outros órgãos do organismo2. A incapacidade funcional dos rins pela perda das funções regulatórias, excretórias e endócrinas traz vários problemas sistêmicos ao individuo, ocorrendo alterações de pressão arterial, anemia, alterações no metabolismo de cálcio e fósforo, entre outras2. Em relação à cavidade bucal, ocorre um aumento da presença de cálculo dental, maior presença de biofilme visível, menor presença de cáries em pacientes infantis, hipoplasia do esmalte, alterações ósseas que podem comprometer a estabilidade dentária (mobilidade), aumento da capacidade tampão salivar, aumento dos níveis de uréia presente na saliva e a redução do fluxo salivar integral1,3-11. O fluxo salivar constitui um importante fator de proteção contra a presença de cárie e destruição dental, bem como de saúde gengival. Quando este se encontra reduzido, ocorre elevação do índice de cárie dental, principalmente pela redução da capacidade tampão e incapacidade de remoção mecânica do biofilme aderido à superfície dental12. Associado a este fato, a gengiva do paciente apresenta um quadro clínico inflamatório constante, com a formação de bolsas periodontais e sangramento pela não remoção de bactérias patogênicas aderidas ao sulco gengival. No entanto, o paciente com IRC possui na sua composição salivar um alto índice de uréia, conferindo um pH significantemente mais alcalino4,10,13. Este fato, para pacientes pediátricos, pode contribuir para um menor índice de cáries e doenças gengivais, uma vez que foram encontrados níveis menores de Streptococus mutans e lactobacilos, microorganismos responsáveis pela desmineralização dental e doença gengival14. O objetivo deste trabalho foi medir o volume de saliva integral estimulada produzida por pacientes com IRC submetidos à hemodiálise, comparando-os com igual número de pacientes sem problemas de saúde e que não estivessem sob efeito de nenhuma medicação nos últimos três meses. Esta pesquisa obedeceu aos critérios da resolução 196/96 do Conselho Nacional da Saúde/Ministério da Saúde – Brasília, DF, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIVILLE e faz parte do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica desta mesma instituição. O trabalho foi desenvolvido na Fundação Pró-Rim de Joinville, SC, em pacientes com IRC que recebiam tratamento de hemodiálise. Os pacientes pesquisados receberam um esclarecimento sobre a pesquisa, assinando um termo de consentimento livre e informado. Uma ficha de anamnese simplificada foi preenchida individualmente, na qual, além dos dados pessoais, eram listados todos os medicamentos que estavam sendo utilizados naquele momento por cada um dos pacientes. Cada paciente recebia um pedaço de parafina para estímulo mastigatório. O primeiro minuto de salivação era desprezado, colhendo-se os próximos cinco minutos de estímulo salivar. O paciente expectorava em um recipiente plástico previamente resfriado para evitar espuma, cada vez que possuía um certo volume de saliva15. Ao final de cinco minutos, este recipiente era fechado hermeticamente e, após a coleta de 10 pacientes, o volume de saliva era medido no laboratório do Departamento de Farmácia e Bioquímica da UNIVILLE. Foram utilizados como índices de secreção da saliva integral estimulada com parafina os valores expressos na tabela 1, medidos em mililitros por minuto15 (ml/min). No momento da pesquisa, encontravam-se em tratamento, na Fundação Pró-Rim de Joinville, aproximadamente 270 pacientes com IRC, distribuídos em três turnos de sessões de hemodiálise. Destes, foram selecionados 30 pacientes livres de qualquer quadro infeccioso relacionado com a IRC, medicados somente para manutenção de seus equilíbrios de pressão arterial e depressão relacionada ao tratamento. O momento da coleta da secreção salivar era aproximadamente trinta minutos antes de o paciente iniciar a sessão de hemodiálise1. A coleta da saliva foi realizada de forma individualizada, por um dos pesquisadores. O grupo controle foi escolhido aleatoriamente entre os pacientes em tratamento nas clínicas odontológicas da UNIVILLE que não estivessem sob administração de qualquer medicamento nos últimos três meses, em mesmo número e com faixa etária e média de idade dos pacientes em hemodiálise pesquisados (figura 1). A coleta da saliva, seu armazenamento e medição do volume obedeceram aos mesmos critérios do grupo com IRC. Para a análise dos resultados, foi utilizado neste estudo o teste estatístico “t”. RESULTADOS Os resultados, em mililitro por minuto, demonstraram uma média de fluxo salivar integral para os pacientes com IRC de 0,60 ml/min, caracterizando hipossalivação. Para os pacientes em tratamento nas clínicas de atendimento odontológico da UNIVILLE, esta média foi 22 Redução do Fluxo Salivar em Hemodialisados Tabela 1. Secreção da saliva integral estimulada, expressa em mililitros por minuto. Hipo-salivação < 0,7 ml/min Baixo 0,7 ml–1,0 ml/min Normal 1,0 ml–3,0 ml/min de 1,53 ml/min, caracterizando fluxo integral salivar normal (figura 2). O resultado do teste estatístico demonstrou p< 0,01, evidenciando que os pacientes portadores de IRC, que se submetem a tratamento de hemodiálise, possuem um fluxo salivar integral estimulado menor quando comparados a indivíduos que não se submetem a este tratamento. Agrupando os pacientes por faixa etária, foi observado que apenas a faixa etária dos 51 aos 60 anos possui um fluxo salivar integral baixo para os pacientes com IRC, as demais faixas etárias possuem hipossalivação. Já para os pacientes não submetidos a terapias de hemodiálise, o fluxo salivar integral foi normal em todas as faixas etárias (figura 3). DISCUSSÃO Uma análise mais detalhada da ficha de anamnese de cada paciente, no item relacionado aos medicamentos que cada um deles estava tomando, revelou que cada um dos pacientes estava sob efeito de pelo menos um medicamento que possuía influência comprovada na redução do fluxo salivar. Vários medicamentos induzem à hipossalivação (tabela 2)12. Dentro das informações fornecidas pelos pacientes na ficha de anamnese, os antidepressivos e os anti-hipertensivos eram as drogas mais utilizadas. Sreebny e Schwartz16 (1997) descreveram como agentes farmacológicos com capacidade de induzir à hipossalivação ou à xerostomia, que poderia se configurar como a ausência total de saliva, 42 categorias de drogas com 56 subdivisões. A grande maioria dos pacientes queixou-se de “boca seca” como principal desconforto; porém, este sintoma pode estar associado ao aconselhamento de diminuição da ingestão de líquidos, utilizado para manter os pacientes deficientes renais em um nível apropriado de equilíbrio líquido8. Epstein e cols.8 (1980) sustentaram que as mudanças do fluxo salivar estivessem provavelmente mais ligadas à redução da ingestão de líquidos do que a fatores glandulares. Uma observação da figura 3 demonstra uma condição de hipossalivação em todas as faixas etárias, com exceção da faixa etária de 51 a 60 anos, que apresentou fluxo salivar integral baixo para os pacientes em hemodiálise. Já os pacientes do grupo controle apresentaram, em todas as faixas etárias, volume normal de fluxo Figura 1: Distribuição de pacientes por idade salivar estimulado. Os dados demonstram que, mesmo com o aumento da faixa etária, não existe uma discrepância acentuada no volume de fluxo salivar, tanto para os pacientes que estão em hemodiálise como para os pacientes controles (figura 3). Um dado importante, também relatado por Jaffe e cols.13 (1986), era a observação do estado físico extremamente precário da grande maioria dos pacientes. Apesar do estado de saúde debilitado, conferido pela IRC e pelas sessões de hemodiálise, os pacientes eram colaboradores e se interessavam em qualquer fator que pudesse levar a uma melhoria futura da sua qualidade de vida. Dos pacientes envolvidos no estudo, apenas um se recusou a fornecer saliva para o presente estudo. No entanto, do ponto de vista da saúde integral e da causa multifatorial das doenças do meio bucal, não se pode considerar um fator isoladamente como determinante do baixo índice de saúde bucal17, o que pode ser estendido para os pacientes examinados17. A compensação do baixo fluxo salivar com outras medidas, como a melhora no grau de higiene, terapias supervisionadas com fluoretos e estímulo à auto-estima deve ser considerada. Bastos e cols.2 (2004) reportaram o atendimento multidisciplinar ao paciente renal crônico “procurando oferecer um atendimento integral, não restrito apenas à monitorização da função renal”. Salienta-se, aqui, a presença do profissional da Odontologia como parte integrante dessa visão transdisciplinar no atendimento ao paciente com IRC. A saúde bucal não controlada traz implicações diretas ao quadro nefrológico e deve fazer parte integrante do cuidado geral do paciente. O quadro infeccioso, na cavidade bucal, nãocontrolado torna-se um fator de risco à rejeição do transplante renal, solução terapêutica para pacientes com IRC18. Procura-se o apoio da equipe multidisciplinar no reforço de medidas que retardem a progressão da IRC e seu impacto sobre o doente e seus familiares. J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 1 - Março de 2006 23 Tabela 2. Categoria de drogas que induzem à hipo-salivação. Analgésicos Anoréticos Antiarrítmicos Anticonvulsivantes Antidepressivos Anti-histamínicos Anti-hipertensivos Antiparkinson Antipsicóticos Antiespasmódicos Diuréticos Hipnóticos Relaxantes Musculares Sedativos (Adaptado da ref. 12) Figura 3: Fluxo salivar médio por faixa etária. AGRADECIMENTOS Figura 2: Média de fluxo salivar O ponto positivo é que a queda no fluxo salivar, induzida por uma somatória de fatores, possivelmente em função das medicações utilizadas pelos pacientes e da drástica diminuição da ingestão de líquidos, raramente causam danos irreversíveis às glândulas salivares. Uma vez cessada a administração dessas drogas, com o transplante renal, o paciente retorna à normalidade em seu fluxo salivar13. CONCLUSÃO Os resultados encontrados indicam claramente uma redução do fluxo salivar integral em pacientes com IRC submetidos à hemodiálise. Entretanto, estes pacientes não apresentavam uma variação significativa de secreção salivar integral estimulada. O conjunto de fatores associados com a hemodiálise, como a restrição à ingestão de líquidos e a utilização de medicamentos sabidamente indutores da hipossalivação, fazem com que os resultados da pesquisa indiquem a somatória de fatores como principal causa do baixo fluxo salivar integral estimulado em pacientes que necessitam deste tipo de terapia. Mais pesquisas necessitam ser realizadas, considerando, inclusive, além do estado clínico do paciente, diferentes momentos de coleta durante o dia. Os autores agradecem à Fundação Pró-Rim (Joinville, SC) na pessoa do Dr. Hercílio Alexandre da Luz Filho e da Enfermeira Denise Terezinha Gutierres, pelo auxílio com os pacientes pesquisados. Ao Departamento de Farmácia e Bioquímica da UNIVILLE, na pessoa da Professora Maristela Adamovski, chefe do Departamento, no auxílio da utilização dos equipamentos para medição do fluxo salivar. Ao Professor Marcelo T. Schein DDS, MSc, pela análise estatística. À UNIVILLE, através da Pró-Reitoria de Pesquisa e Extensão, pelo total apoio para a realização desta pesquisa. REFERÊNCIAS 1. Fujimaki M, Rosa OPS, Torres SA. Microrganismos cariogênicos em pacientes com insuficiência renal crônica em hemodiálise. Rev Odontol Univ São Paulo 1998;12(2):14958. 2. Bastos MG, et al. Doença renal crônica: problemas e soluções. J Bras Nefrol 2004;26(4):202-15. 3. Dreizen S, Brown LR. Xerostomia and dental caries. In: Stiles HM, et al. Microbial Aspects of Dental Caries. Washington: Information Retrieval Inc.; 1976. p. 263-73. 4. Al-Nowaiser A, et al. Oral health in children with chronic renal failure. Pediatr Nephrol 2003;18(1):39-45. 5. Bayraktar G, et al. Evaluation of salivary parameters and dental status in adult hemodialysis patients. Clin Nephrol 2004;62(5):380-3. 6. Mendes PCA. 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