Universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sul – unijuí vice-reitoria de graduação – vrg coordenadoria de educação a distância – CEaD departamento de ciências administrativas, contábeis, econômicas e da comunicação – dacec Coleção Educação a Distância Série Livro-Texto Walter Frantz associativismo, cooperativismo e economia solidária Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil 2012 2012, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0216 E-mail: [email protected] Http://www.editoraunijui.com.br Editor: Gilmar Antonio Bedin Editor-adjunto: Joel Corso Capa: Elias Ricardo Schüssler Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí F836a Frantz, Walter. Associativismo, cooperativismo e economia solidária / Walter Frantz. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2012. – 162 p. – (Coleção educação à distância. Série livro-texto). ISBN 978-85-419-0007-2 1. Cooperativismo. 2. Associativismo. 3. Economia solidária. 4. Desenvolvimento - Sustentável. I. Título. II. Série. CDU : 334.4 Sumário CONHECENDO O PROFESSOR...................................................................................................5 INTRODUÇÃO................................................................................................................................7 UNIDADE 1 – A ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA COMO BASE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA.......................................................11 Seção 1.1 – Aspectos históricos do movimento cooperativo moderno ..................................11 Seção 1.2 – O Cooperativismo Moderno e a Economia Solidária..........................................24 UNIDADE 2 – CARACTERIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DE ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA.................................................................39 Seção 2.1 – A Fundamentação da Cooperação........................................................................39 Seção 2.2 – Um Modelo Ideal de Organização Cooperativa..................................................46 UNIDADE 3 – A COMPREENSÃO DA AÇÃO E DA ESTRUTURA COOPERATIVA...............57 Seção 3.1 – O Cooperativismo Como Fenômeno Social Complexo . .....................................57 Seção 3.2 – A Racionalidade da Cooperação na Economia de Mercado...............................63 UNIDADE 4 – RELAÇÕES ENTRE AS PRÁTICAS SOCIAIS DE EDUCAÇÃO E DE COOPERAÇÃO..............................................................83 Seção 4.1 – Conceitos de Educação e Cooperação..................................................................83 Seção 4.2 – Um Novo Lugar Para a Cooperação e a Educação..............................................90 UNIDADE 5 – ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA NA AGRICULTURA FAMILIAR..................97 Seção 5.1 – Agricultura Familiar: seus problemas e esperanças ...........................................97 Seção 5.2 – Cooperativismo e Agricultura Familiar..............................................................106 UNIDADE 6 – LIMITES E POSSIBILIDADES DE RESISTÊNCIA À EXCLUSÃO SOCIAL PELA ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA...................119 Seção 6.1 – Problemática da Exclusão Social........................................................................119 Seção 6.2 – Um Lugar Para o Movimento Cooperativo no Processo de Produção e Distribuição de Riquezas............................................................126 UNIDADE 7 – MOVIMENTO COMUNITÁRIO E COOPERATIVISMO................................133 Seção 7.1 – A Experiência do Movimento Comunitário de Base de Ijuí..............................133 Seção 7.2 – A Instrumentalização do Movimento Comunitário de Base ...........................143 UNIDADE 8 – DESAFIOS À UNIVERSIDADE NO ESPAÇO DAS PRÁTICAS SOCIAIS...........................................................151 Seção 8.1 – Concepções de Universidade..............................................................................151 Seção 8.2 – A Universidade no Processo de Desenvolvimento e sua Possível Relação com o Cooperativismo e a Economia Solidária...................................154 REFERÊNCIAS............................................................................................................................163 EaD Conhecendo o Professor associativismo, cooperativismo e economia solidária Walter Frantz Possui Graduação em Ciências Naturais (1974) e Pedagogia (1975) pela Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Doutorado em Ciências Educativas: Sociologia, Pedagogia e Ciências Políticas, pela Universidade de Münster, Alemanha (1980). Além disso, fez estudos de especialização em administração de empresas cooperativas, pelo Instituto Chileno de Educação Cooperativa, em Santiago do Chile, e estudou economia cooperativa no Instituto de Cooperativismo da Faculdade de Economia da Universidade de Münster. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Educação e do Desenvolvimento, atuando com os seguintes temas: associativismo, cooperativismo, educação em associações e organizações cooperativas e desenvolvimento local. Participou da gestão da Cooperativa Agropecuária e Industrial (Cotrijuí) (1985-1991). Exerceu a função de reitor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) (1993/98). Foi Presidente da Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Fidene) (1993/98) e também atuou como presidente do Fórum dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento do Estado do Rio Grande do Sul (1994/96). Atualmente, é professor titular da Unijuí, adscrito ao Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais e Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências. 5 EaD Introdução associativismo, cooperativismo e economia solidária Em 2006, Klaus Wiegandt escreveu: “Nós nos desviamos do caminho de sucesso inicial com muito progresso e nos encontramos em um caminho equivocado de ameaças com riscos imprevisíveis” (apud Jäger, 2007, p. 9).1 De acordo com Wiegandt, o planeta Terra não suporta mais o modelo de desenvolvimento embasado em objetivos e metas de maximização do lucro e da acumulação do capital. Assegura ele que o maior perigo vem da crença de uma possibilidade de um ilimitado crescimento econômico, por parte de políticos e líderes empresariais, que acreditam nas inovações tecnológicas como respostas para todos os desafios sociais, hoje e no futuro. Afirma que cientistas de diferentes áreas concordam que, hoje, não existe nenhuma alternativa para as sociedades que não seja o caminho da sustentabilidade. Observa ainda que uma sociedade que queira, seriamente, orientar-se por um desenvolvimento sustentável não pode prescindir de atores sociais críticos e criativos, dispostos ao debate e às ações (apud JÄGER, 2007). Ao submeter a natureza ao poder de uso da ciência e da tecnologia, a sociedade moderna corre diferentes riscos. Junto com a produção de riquezas, especialmente na era industrial, produzem-se riscos ambientais e sociais. Afirma Ulrich Beck (2010, p. 16): “No centro da questão estão os riscos e efeitos da modernização, que se precipitam sob a forma de ameaça à vida das plantas, animais e seres humanos”. Escreve este autor (2010, p. 93) que, na sociedade de risco, o aperfeiçoamento das capacidades de saber lidar com tal situação torna-se “uma atribuição básica das instituições pedagógicas”. A finitude geográfica e a vida do planeta, a fragilidade das individualidades, no contexto da concorrência dos grandes capitais e das transformações em curso, colocam limites e orientações à ação do ser humano. Cada vez mais, nossos espaços naturais e sociais de vida são interdependentes. Os novos paradigmas para a sociedade do século 21, portanto, devem ter como base a ecologia, a finitude dos recursos naturais, os princípios da suficiência, da responsabilidade social e da solidariedade. Disso resultam imensos desafios à humanidade, em todos os níveis e campos da organização humana. Trata-se de um cenário de desafios à ciência, educação, política e economia, principalmente. 1 Tradução livre do original em alemão por Walter Frantz: Wir sind vom frühen Weg des Erfolges mit vielen Fortschritten abgekommen und befinden uns auf einem Irrweg der Gefährdung mit unübersehrbaren Risiken. 7 EaD Walter Frantz Muitos são os dados que permitem assegurar que estamos diante de uma crise dos grandes sistemas modernos de organização social, que tem sua expressão nas experiências capitalista e comunista. Como se expressa essa crise? A crise dos grandes sistemas se caracteriza pela frustração com a competição capitalista, diante dos seus resultados sociais e pela decepção com a revolução socialista do século 20. Como consequência, de certa forma, vive-se, hoje, a ausência de um projeto global de sociedade para a maioria da população. É nesse espaço de crise, isto é, entre a lógica capitalista e o fracasso das experiências socialistas que, a meu ver, se recoloca a questão da economia solidária e do cooperativismo como uma prática social de dimensão econômica, política e cultural. Afirma Hugo Assmann (1998) que a humanidade chegou numa encruzilhada ético-política, e, ao que tudo indica, não encontrará saídas para a sua própria sobrevivência como espécie ameaçada por si mesma se não construir consensos sobre como incentivar conjuntamente o potencial de iniciativas e as frágeis predisposições à solidariedade. Esses consensos terão de ser construídos, tanto pela comunicação dos sujeitos, pelo diálogo e interlocução de seus saberes quanto pela prática social de seus afazeres pela vida. Essa visão abre espaço ao associativismo e cooperativismo. Entendo, porém, que o sistema cooperativo moderno só poderá ser uma alternativa a uma economia do humano ao não ser instrumentalizado por um ou outro dos grandes sistemas. Assim, um desafio que nasce da crise dos grandes sistemas é o da construção de uma concepção teórica de uma formação social em bases culturais, políticas e econômicas que possa acolher a liberdade individual e a necessidade do coletivo como dimensões de realização do ser humano. Vive-se o desafio da construção de um novo projeto de sociedade: o novo como necessidade. A possibilidade de novo projeto da sociedade, em meu estabelecimento, passa pela participação, cooperação, solidariedade e pela ampliação da esfera pública, ainda que não estatal. Afirma André Morin (2004, p. 76) que, na visão de Paulo Freire, “O homem sujeito de sua história, dialogando com seus parceiros humanos, é capaz de atingir um nível de consciência crítica que lhe permita transformar a sociedade circundante”. Isto é, possibilita se organizar e reagir. Assim, a solidariedade e a cooperação impõem-se mais como necessidades do que como meras opções. Impõem-se como reação. A sociedade humana precisa construir novas formas e padrões de coexistência e cooperação dos seres humanos entre si, com relação ao seu meio ambiente e às futuras gerações. Talvez seja essa a grande tarefa da humanidade para as próximas décadas: a de construir e reconstruir as condições de uma metamorfose social (Morin, 1998) que assegure a vida para os seres humanos e toda a natureza. 8 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária O estudo sobre associativismo, cooperativismo e economia solidária tem a preocupação com a formação de capacidade crítica. Isto é, uma capacidade criativa e inovadora de pensamentos e conceitos que permitem desenvolver melhor as habilidades e funções profissionais, as interações e ações coletivas de atores sociais de um mundo necessitado de mudanças e transformações sociais. A sua preocupação deve ser a formação crítica das estruturas mentais de reflexão, isto é, da superação de uma visão e compreensão de mundo, diante de uma realidade em constante transformação e sobre a qual quer exercer poder de influência. A base de uma formação crítica está nas diferentes ciências e campos de saber e deve servir à política. A formação crítica não deve acontecer apenas no pequeno espaço das aulas. A formação crítica deve se estender pela leitura, pelo debate, especialmente sobre a própria prática, ainda que esta apresente dificuldades, limites, falhas ou erros. A leitura, o diálogo, a argumentação e os debates são fundamentais para a viabilização de um processo de desenvolvimento das pessoas. Pela reflexão crítica sobre erros é possível aprender mais do que sobre acertos. Importa reconhecer que a capacitação para a reflexão crítica não se alcança apenas pela frequência de salas de aula, mas pela leitura, entendida como uma comunicação com um universo maior de experiências e suas abstrações, consolidadas em conceitos e teorias. Creio que as experiências dos alunos são tão importantes quanto os conhecimentos dos professores, no contexto da sala de aula. A aprendizagem vem do espaço da prática, porém iluminado pela leitura, pelas teorias, analisado e interpretado pela reflexão crítica e pelo debate de quem dele participa. O texto a seguir está dividido em unidades que exigem leitura, reflexão e debate. Os seus conteúdos vão desde a questão histórica do movimento cooperativo até o lugar da educação e da universidade no processo social de desenvolvimento e que busca ter na organização cooperativa um de seus motores. O texto resulta de reelaboração de diferentes publicações e se destina às aulas de EaD do componente disciplinar Associativismo, Cooperativismo e Economia Solidária. Espero poder contribuir para a formação crítica das pessoas que acreditam no cooperativismo como caminho possível para um desenvolvimento mais justo e sustentável. Acredito estarmos diante do desafio da construção de uma concepção teórica de uma formação social em bases culturais, políticas e econômicas, que possa acolher a liberdade individual e a necessidade do coletivo como dimensões de realização da felicidade do ser humano. 9 EaD Unidade 1 associativismo, cooperativismo e economia solidária A ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA COMO BASE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer e entender aspectos históricos do movimento cooperativo como expressão de um movimento social de base popular e que traz, em suas diferentes formas de organização, princípios e valores de uma economia do humano, referenciais às práticas da economia solidária. Seção 1.1 Aspectos Históricos do Movimento Cooperativo Moderno Ocupar-se com o estudo do cooperativismo não significa apenas querer descrever fatos, acontecimentos específicos, em ordem cronológica, mas extrair deles a experiência humana. Os fatos históricos, relativos ao movimento cooperativo, perdem-se na sua multiplicidade e na vastidão da dimensão do tempo. Ocupar-se da história do cooperativismo significa destacar os principais pensamentos e visões das experiências de cooperação, em um determinado tempo e lugar. O que importa é abordar sentidos e significados inerentes à história do movimento cooperativo. É uma história antiga. Estudar a história do cooperativismo significa, acima de tudo, descobrir os conteúdos políticos da experiência humana do movimento cooperativo. O que a interpretação dessas experiências revela? Trata-se de descobrir as raízes das experiências presentes no movimento cooperativo. Ela revela dificuldades e lutas dos seres humanos no processo de produção dos bens materiais de vida. É uma história, portanto, diretamente ligada à economia daqueles que cooperam, isto é, está vinculada à produção e à distribuição daquilo que os seres humanos necessitam ou desejam para viver. Sob esse ponto de vista, o cooperativismo aparece como uma atividade humana bem concreta, que leva a marca histórica de cada época em que ela ocorre. Por isso, pode-se falar de diferen­tes práticas cooperativas ao longo da História da Humanidade. 11 EaD Walter Frantz Para compreender o sentido das práticas cooperativas faz-se necessário compreender o sentido e o modo de produção de cada época. É preciso saber como cada indivíduo ou grupo social participa do pro­cesso de produção e de distri­buição dos bens ou das rique­zas obtidas. No caso do movimento cooperativo moderno, o conflito social presente em sua base, historicamente, esteve relacionado com a má distribuição das riquezas, as restritas oportunidades sociais, a luta por melhores condições de vida, o reconhecimento da liberdade de organização. Os seus valores eram relacionados ao associativismo, à solidariedade e à cooperação, ao reconhecimento de seus protagonistas como sujeitos, com valor e dignidade. O movimento cooperativo moderno nasceu em função da defesa e da valorização do trabalho humano. Na sociedade moderna a organização cooperativa possui um caráter instrumental, mas no sentido de recolocar o trabalho humano como sendo a centralidade. A natureza desse caráter instrumental da cooperativa, além dos esforços técnicos do trabalho em si com o sentido de garantir um lugar nas relações econômicas, implica uma cultura do humano e não do capital. Na modernidade, o cooperativismo é edificado como um lugar de reconstrução das condições de vida, tendo na economia humana o seu fundamento. A modernidade consiste em acreditar no poder e na capacidade da organização humana. O cooperativismo moderno é expressão dessa crença. O cooperativismo moderno nasceu da passagem da simples organização da mútua-ajuda à organização racional das necessidades e dos interesses das pessoas. O cooperativismo moderno nasceu do processo da passagem da economia da necessidade para a economia do interesse que se realiza pelas relações de oferta e procura. Sucintamente, a isso chamamos de economia moderna. A economia moderna funciona no espaço do mercado por meio da oferta e da procura. Na relação entre oferta e procura, porém, instalou-se a concorrência entre os interesses de quem trabalha e o interesse do capital. O interesse do capital se impôs como motivação para a produção e a distribuição dos bens e das riquezas. Na economia moderna a cultura que se afirmou como hegemônica foi a da concorrência entre os interesses do trabalho e do capital. Diante disso nasceu o movimento pela organização cooperativa moderna. O movimento cooperativo, como fenômeno da modernidade, tem a ver com a defesa do interesse do trabalho humano contra os interesses do capital. Os fundamentos do cooperativismo moderno são os interesses dos seus associados, além das suas necessidades. O cooperativismo moderno busca proteger os interesses das pessoas, de seu trabalho, estimulando-as à cooperação. A cooperação tem um sentido econômico que se expressa pelo esforço de reduzir custos, por exemplo. A redução de custos busca ampliar a economia dos associados e, assim, melhorar as condições de vida. 12 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Na modernidade, a qualidade de vida está relacionada com a economia. Historicamente, foi esta uma preocupação do cooperativismo moderno e que, hoje, se expressa pelo princípio da responsabilidade social, de sua relação com a comunidade de sua inserção. O movimento cooperativo moderno busca a afirmação da cultura da cooperação nas relações econômicas de oferta e procura, em favor do trabalho humano. Busca-se sair da individualidade pelo estabelecimento de interesses comuns. Este é o aspecto político do cooperativismo moderno: o desafio da construção de um novo projeto de sociedade, a sociedade em rede cooperativa em favor da valorização do trabalho. Esse desafio recoloca a questão da cooperação para a economia. Em outras palavras, afirma a atualidade do movimento cooperativo moderno, diante da ausência de um projeto global de sociedade para a maioria da população. A história do cooperativismo se confunde com a história da economia, isto é, com a história da produção e da distribuição dos bens e das riquezas entre os seres humanos. O termo economia provém do grego – oikos+nomos = casa+normas – e se refere a uma regularidade, isto é, a normas sobre o que se passa na casa, entre as pessoas. É, portanto, um termo que carrega, historicamente, relações sociais de poder, de responsabilidades, mais que números. É um termo que comporta valores, comportamentos, cultura, desejos, necessidades e interesses. É um termo com conteúdo político e social. De forma resumida e simplificada, pode-se definir a economia como o trato das questões relativas à produção e à distribuição das riquezas. Como tal, envolve aspectos de ordem mais técnica e outros de ordem mais política. Hoje, os mecanis­mos clássicos de coordenação das questões relativas à pro­dução e à distribuição das riquezas são o mercado e o plane­jamento, por parte do Estado. Por isso, fala-se em economia de mercado e em economia planejada, com funções reservadas ao jogo da oferta e da procura e/ou ao poder de Estado. São sistemas de referência que, na prática, não existem em estado puro, iniciando-se, por aí, uma complexidade, que, muitas vezes, acaba em um linguajar, ou em teorias e conceitos, de difícil entendimento aos não especialistas. A economia, contudo, não pode ser assunto apenas para especialistas. Ela envolve vidas de pessoas. Aos espe­cialistas está reservado um espaço próprio, no campo do estudo e do desenvolvimento da ciência sobre a produção e a distribuição das riquezas. Aos não especialistas é posto o desafio de entender a economia, pelo menos nos seus aspectos fundamentais, que envolvem diretamente a sua vida, seja como produtores ou como consumidores de bens e riquezas. É importante perceber que a economia é algo construído e sub­metido a interesses, seja do trabalho ou do capital. Assim, quando se fala em agen­tes econômicos, aponta-se na direção dos cidadãos envolvidos no processo de produzir e distribuir riquezas. Pensa-se em sua organização, em sua responsabilidade indi­vidual e coletiva, em sua capacitação para o desempenho téc­nico e político, no contexto maior da economia. 13 EaD Walter Frantz O termo cooperativismo deriva do latim e expressa um movimento social. É um termo composto pela preposição “cum”, que significa “com, em companhia de, juntamente com” e pelo verbo “operari”, que significa “trabalhar”. Dessa forma, o termo cooperativismo traz em sua origem histórica a noção de trabalho conjunto, de relações sociais de trabalho. Os principais fundamentos filosóficos do movimento cooperativo são: •Humanismo: valorização do homem pelo que ele é e não pelo que ele tem. •Solidariedade: um por todos e todos por um. •Justiça social: a cada um conforme a sua participação. •Liberdade; autodeterminação do ser, inclusive para a cooperação. •Democracia: cada pessoa um voto e decisão pela maioria. •Participação: uma exigência da vida cooperativa. Todos são donos. •Responsabilidade: responder pelas decisões e acompanhar a vida da cooperativa. As ideias cooperativistas brotaram de um contexto de transformações que entraram em curso com a desagregação da ordem feudalista e o estabelecimento da ordem capitalista, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. De acordo com o sociólogo italiano Domenico De Masi (1999, p. 110-111), por séculos o lugar de vida e de trabalho era coincidente, isto é, as pessoas trabalhavam e viviam, predominantemente, no mesmo lugar: na oficina artesanal. A Revolução Industrial significou a ruptura desse núcleo de vida e de trabalho. Pode-se imaginar o forte impacto disso na vida das pessoas, das famílias e das comunidades. De Masi aponta as seguintes características da organização do trabalho artesanal: •A habitação e a oficina conviviam sob o mesmo teto e, muitas vezes, ocupavam o mesmo espaço. •Os trabalhadores eram também, em grande parte, os próprios membros da família artesã e proprietários da casa-oficina e dos poucos meios de produção. •O chefe de família era também o chefe do negócio, detinha os seus segredos de produção, o poder de decidir, de formar e disciplinar. •A aculturação acontecia pelo aprendizado; o aluno, mesmo quando estranho à família, era afiliado a ela e compartilhava os seus modelos de vida e de trabalho. •As tarefas domésticas e profissionais eram realizadas ao mesmo tempo e no mesmo lugar. •A oficina produzia o produto em todas as suas etapas, desde o projeto técnico até a venda. •O mercado era restrito e o cliente, muitas vezes, acompanhava o andamento do processo de produção. 14 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária •Vida doméstica, trabalho, comércio, lazer, religião, etc., compunham um conjunto no qual muitas coisas eram em comum, formando uma comunidade. Inclusive, muitas vezes, o trabalho era trocado entre as diversas oficinas, embora cada uma constituísse um sistema autossuficiente. •A dimensão afetiva e emocional prevalecia sobre a dimensão racional, no espaço da vida e do trabalho. •A tecnologia era rudimentar. •Não existia a energia elétrica e nem a vapor. A energia era a do homem ou dos animais. •Não havia uma divisão mais complexa do trabalho. Misturava-se o trabalho físico e mental, executivo e criativo. •Havia um predomínio das necessidades sobre os interesses. As pessoas trabalhavam mais por necessidades que por interesse. •As questões e as relações locais predominavam na vida das pessoas. A Revolução Industrial mudou tudo isso, abalando fortemente a vida das pessoas. Ao lado das coisas boas, ela trouxe também muitas dificuldades. Segundo De Masi (1999, p. 151-152), as principais características da sociedade industrial são as seguintes: •Concentração de grandes massas de trabalhadores assalariados nas fábricas. •Produção em massa. •Urbanização da economia e da vida. •Predomínio da economia industrial no conjunto da economia nacional; •Mudanças no processo produtivo, mediante aplicação das descobertas científicas que eram incorporadas ao mundo da produção. •Organização racional do processo de trabalho. •Divisão social do trabalho. •Especialização de tarefas e funções no processo de trabalho. •Separação entre o local de vida e de trabalho. •Progressiva escolarização da população. •Separação entre capital e trabalho, com crescentes conflitos nas relações de trabalho. •Aparecimento de uma classe média. •Difusão de ideias liberais e democráticas. 15 EaD Walter Frantz •Aumento progressivo do consumo de produção industrial. •Formação de uma cultura de consumo. •Maior mobilidade geográfica e social das pessoas e famílias. •Crença em progresso irreversível e num crescente bem-estar. •Difusão da ideia de que o ser humano deve conhecer e dominar a natureza. •Sincronização dos tempos da vida com os tempos da máquina: substituição do tempo e do ritmo da natureza. As transformações da era industrial alteraram em muito a vida das pessoas. Embora tivessem aparecido muitos benefícios, também foram grandes os problemas. O cooperativismo nasceu da reação aos problemas sociais da época. A sua organização e funcionamento refletem a compreensão que as pessoas tinham desses problemas. Diante das transformações em curso, existiam percepções, compreensões ou explicações mais estruturais, de ordem geral, ou se reduzia à percepção dos fatos ao âmbito das dificuldades pessoais ou conjunturais. Em razão de dificuldades teóricas de análise, de interpretação da realidade social e dos desafios por soluções urgentes, diante das dificuldades materiais dos trabalhadores, muitas experiências de organização cooperativa se sustentavam em visões idealistas e utópicas de superação dos problemas concretos da vida. As formas precursoras de cooperativismo moderno constituem-se, principalmente, por meio da ajuda mútua, com a finalidade de atender, diretamente, as necessidades de seus membros pela produção e conservação de alimentos. Constituem-se também expressões de reações das pessoas e grupos sociais diante dos problemas sociais do mundo do trabalho. As experiências de cooperação são perpassadas pelo senso de justiça social e pelo esforço por organizar um poder de ação sobre os problemas sociais. Essas experiências são chamadas de utópicas. O termo utopia vem do grego e quer dizer “lugar nenhum”. Aos pensadores sociais da época que apostavam nesse tipo de organizações cooperativas e no caminho da organização cooperativa como forma de superação do modo de produção capitalista, Karl Marx denominou de socialistas utópicos. Marx é o responsável por essa denominação, pois ele afirmava em seus debates com os “socialistas utópicos” que esse não seria o caminho de superação das contradições da sociedade capitalista. Propunha a revolução como caminho dessa superação (Marx; Engels, 1998). Muitas foram as experiências precursoras do cooperativismo moderno (Faust, 1977). São consideradas precursoras as experiências de cooperação antes de 1844. O movimento cooperativo utópico, ao não conseguir reconhecer os limites do contexto maior, terminou em fracassos, aparentemente, pelas seguintes causas: 16 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária •Caráter filantrópico •Falta de controle democrático •Métodos e técnicas administrativas e organizacionais falhas •Não retorno de excedentes •Venda a prazo •Não racional: utópico No fim do século 18, em meio à Revolução Industrial, o tempo de trabalho das pessoas passou à indústria, isto é, sob o seu controle. Embora sua remuneração fosse baixa, isso significava, no entanto, a monetarização das economias familiares. Menor tempo passava a ser dedicado à produção própria dos alimentos. Era o fim da economia das necessidades e o começo da economia dos interesses, mediante relações de mercado. Relações sempre mais impregnadas pela lógica dos interesses do capital. Essas mudanças trouxeram também sérios problemas de alimentação para a classe trabalhadora. A questão do consumo, da alimentação, passou a ser um dos problemas mais agudos, sob diversos aspectos. Essa situação está na raiz da experiência pioneira do movimento cooperativo moderno, simbolizado pela Cooperativa de Consumo, de Rochdale, em 1844, na Inglaterra, e que existe até hoje. A história do movimento cooperativo apresenta muitos ideólogos e realizadores, presentes nas mais diferentes experiências de cooperação. Inspirado nas experiências utópicas, em 1844, na cidade Rochdale, na Inglaterra, nasceu o cooperativismo moderno. Diante de graves problemas, como desemprego, falta de alimentos e salários baixos, depois de um fracasso de greve, nasceu a ideia da organização de uma cooperativa, com capital próprio. Após estudos para evitar novos fracassos, organizou-se a Rochdale Society of Equitables Pioneers (Sociedade dos Justos Pioneiros de Rochdale) (Holyoake, 1975). O que se pode destacar na experiência de Rochdale: •Coesão social •Ausência de oportunismo •Fidelidade e estabilidade de contratos •Ideia de articulação entre as cooperativas •Desejo de coordenação internacional 17 EaD Walter Frantz A iniciativa dos tecelões de Rochdale, em 1844, foi uma das experiências mais marcantes da história do cooperativismo moderno. É considerada a experiência matriz do cooperativismo moderno. O cooperativismo moderno incorporou os ideais sociais da época: autoajuda, solidariedade, democracia, liberdade, equidade, altruísmo e progresso social. A experiência de Rochdale não iniciou o movimento cooperativo, mas transformou-se em um modelo de organização que conseguiu superar as inúmeras dificuldades práticas de cooperação, no contexto da realidade da época, em que florescia a revolução industrial capitalista. Precisa ser vista como resultado de longas experiências e lutas sociais. Não pode ser entendida como algo produzido por um pequeno grupo de tecelões. Eles souberam sistematizar as inúmeras experiências de cooperação, realizadas ao longo de décadas de esforços pela superação de problemas sociais graves. Foi uma experiência prática de cooperação que reconheceu determinados princípios necessários à organização e funcionamento de um empreendimento cooperativo no contexto da nova realidade socioeconômica. Princípios orientam práticas; são normas de ação; são supostos gerais sobre os quais se baseiam as normas de ação. A experiência de Rochdale foi uma experiência pioneira de aplicação mais racional dos princípios de organização econômica de um grupo de pessoas. A iniciativa dos tecelões de Rochdale apresentou-se, historicamente, como uma tentativa econômica, por meio do cooperativismo de consumo, de produzir uma solução para os principais problemas de seu sustento econômico, na época das profundas mudanças e transformações que a Revolução Industrial impunha aos trabalhadores. Acreditavam que, em longo prazo, esse movimento cooperativo poderia trazer a total emancipação do trabalho das relações de dominação dos interesses do capital. Acreditavam que, abandonando a luta política e se organizando eles mesmos, chegariam a construir estruturas socioeconômicas que garantiriam melhores condições materiais e sociais para os trabalhadores. A experiência de Rochdale foi de natureza prática e não utópica, procurando reduzir custos e garantir o abastecimento. Pela via do consumo a baixo custo, buscavam melhorar a renda das famílias. Não foi uma experiência fundada na visão do socialismo utópico, e sim baseada no pragmatismo da sobrevivência. Adotou uma posição defensiva prática, dentro da ordem, pela integração ao mercado. Abandonou a posição defensiva do movimento anticapitalista dos socialistas utópicos. Por essa razão, adotou métodos e instrumentos racionais de orientação como: venda à vista; precisão nos pesos e medidas; atenção à qualidade da mercadoria; dividendos na proporção das compras e juro sobre o capital dos associados. Procurou corrigir distorções das práticas cooperativas, diante da realidade do mercado (Burr, 1965). Os princípios mais importantes de organização e funcionamento, reconhecidos pelos tecelões de Rochdale para garantir o sucesso do empreendimento cooperativo, foram: 18 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária 1.Controle democrático: um voto por pessoa. 2.Livre adesão: entrada e saída livre. 3.Limitação do juro ao capital. 4.Retorno de excedentes. 5.Vendas à vista. 6.Venda de mercadorias de boa qualidade. 7.Educação econômica e cooperativa. 8.Neutralidade política e religiosa. Em 1930, por sugestão da Aliança Cooperativa Internacional, foi formada uma comissão para revisar as diferentes classificações dos princípios. Os resultados desse trabalho foram apresentados em 1934, em Londres. De acordo com essa revisão, estabeleceram-se os seguintes princípios: 1.Livre adesão 2.Controle democrático 3.Retorno de excedentes 4.Limitação do juro ao capital 5.Neutralidade política e religiosa 6.Vendas à vista 7.Educação cooperativista Em 1938, em Paris, a Aliança Cooperativa Internacional reconheceu os quatro primeiros princípios como fundamentais, isto é, como Princípios Primários, sem os quais não seria reconhecido o caráter de cooperativa. Os demais foram definidos como métodos operacionais e administrativos, de caráter secundário. Em 1966, em Viena, na Áustria, foram revisados os princípios, ficando assim constituídos: 1.Adesão livre (incluindo neutralidade política, religiosa, racial e social). 2.Gestão democrática. 3.Distribuição das sobras: ao desenvolvimento da cooperativa; aos serviços comuns; aos associados “pro rata” das operações (i.é. proporcional à participação). 4.Taxa limitada de juros ao capital social. 19 EaD Walter Frantz 5.Constituição de um fundo para educação dos cooperados e do público em geral. 6.Ativa cooperação entre as cooperativas, em plano local, nacional e internacional. Em 1995, em Manchester, na Inglaterra, os princípios foram novamente reformulados, passando a ter a seguinte redação: 1.Adesão voluntária e livre. 2.Gestão democrática pelos membros. 3.Participação econômica dos membros. 4.Autonomia e independência. 5.Educação, formação e informação. 6.Intercooperação. 7.Interesse pela comunidade. A análise dos princípios revela a história da época. Assim, podem-se observar nos princípios os traços históricos da problemática social que sustentou, ao longo das décadas, o movimento cooperativo. •O princípio do controle democrático: guarda a luta pela igualdade, não submetendo as pessoas ao volume do capital. Busca realizar a democracia na esfera econômica. Traz implícito o direito do voto, da participação, da valorização da pessoa, do trabalho. A origem deste princípio está na posição dos cartistas, que lutavam por direitos políticos, por participação política, estendida a todas as pessoas. Convém lembrar que, na época, o voto na sociedade civil era privilégio de grupos e classes sociais. Houve experiências anteriores de cooperação que condicionavam o poder de participação, de decisão, ao volume de operação. Em consequência, os mais fortes assumiam o controle da cooperativa, submetendo as pessoas ao capital. •O princípio da livre adesão: ingresso e saída livres, em igualdade de condições, sem discriminação. É fácil imaginar-se a importância desse princípio em uma sociedade ainda marcada pela história das relações feudais de servidão ou mesmo marcada por experiências de escravidão. •O princípio da limitação do juro ao capital: este princípio está inspirado na ideia de Robert Owen, segundo o qual, pagos os juros (limitados) ao capital, o restante dos resultados deve ser destinado a incrementar o bem-estar dos sócios e funcionários. Era um princípio revolucionário, na época, embora, hoje, possa estar defasado em alguns países. A finalidade inicial foi estimular a poupança e a capitalização. 20 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária •O princípio do retorno de excedentes: revela a importância da visão econômica do empreendimento, o estímulo à participação econômica. Tem como efeito a redistribuição de renda, evitando a concentração e eliminando o lucro, objetivo do capitalismo. O consumo, porém, está muito ligado ao volume da renda. Nesse caso a redistribuição apenas mantém a estrutura de renda. Também pode ser um importante instrumento de avaliação e de controle da gestão, desde que não haja manipulação de resultados. •O princípio da neutralidade política e religiosa: sendo o cooperativismo em sua essência social uma questão política e a política, em sua essência, uma questão cooperativa, como se deve entender a proposição desse princípio? É preciso ter presente o clima social, as visões culturais e as questões políticas da época. Deve-se levar em conta a existência de opiniões e práticas políticas diferentes entre os trabalhadores: cartistas,1 owenistas,2 ludistas,3 socialistas, etc. A neutralidade foi proposta no sentido de garantir a unidade necessária à organização e funcionamento da cooperativa concreta dos tecelões de Rochdale. A experiência de Rochdale está embasada na solução econômica e não política, diante dos fracassos dos cartistas, especialmente. Assim, pela neutralidade política, o clima da cooperativa ficava livre das disputas partidárias e ideológicas. Mais tarde reconheceu-se nessa atitude prática e inteligente um princípio de organização e funcionamento de uma cooperativa moderna. Muitas vezes, porém, esse mesmo princípio de neutralidade política tem sido usado pela conveniência de interesses políticos específicos, constituindo-se em uma relação de poder ideológico de dominação, no interior de organizações cooperativas. Também não se pode esquecer que, na época, a religião era muito importante e segregava as pessoas. Muitos, no entanto, eram racionalistas (owenistas); os sindicatos e os obreiros ingleses tinham adquirido fama de ateístas. Além disso, ainda existiam as lutas religiosas. A questão religiosa não unia as pessoas, em virtude das diferenças e da pouca tolerância, em alguns casos. •O princípio da venda de mercadorias de boa qualidade: na época, a adulteração de mercadorias era frequente no comércio. Em razão dos baixos salários, os operários eram obrigados a comprar produtos de baixa qualidade. •O princípio da venda à vista: a venda a crédito havia inviabilizado as experiências cooperativas anteriores. O desemprego era alto e dificultava o pagamento das contas a prazo. Havia também problemas de má-fé, no sentido de honrar os compromissos das contas. Diante dos fatos reconheceu-se a necessidade de vender à vista. 1 Trata-se de partidários de movimento revolucionário de massas da classe operária, na Inglaterra, na metade do século 19. O movimento publicou a Carta do Povo e lutou por reformas políticas: pelo sufrágio universal, voto secreto, revogação da exigência de ser proprietário de terras para ser eleito ao Parlamento. 2 Seguidores de Robert Owen (1771-1858) – um dos mais importantes precursores do cooperativismo moderno, que via no trabalho a fonte de toda riqueza e propunha sua organização cooperativa. 3 Seguidores de Ned Ludd, do movimento contrário à mecanização do trabalho em substituição da mão de obra, no início do século 19. 21 EaD Walter Frantz Não se pode esquecer, no entanto, que se buscavam outras formas de combate às dificuldades do desemprego, por meio da cooperação na produção, gerando-se empregos. Os pioneiros de Rochdale buscavam o cooperativismo integral, na tentativa de incorporar toda a problemática social dos trabalhadores da época, porém perceberam a necessidade de certos princípios básicos para a sobrevivência das iniciativas particulares e específicas de cooperação. Constataram que a problemática global não caberia nas experiências tópicas, que o todo não caberia nas partes. As proposições da experiência de Rochdale, portanto, não se resumiam ao armazém de gêneros alimentícios. Propunham atuação no sentido de dar conta das principais questões sociais da época: habitação e emprego. Construir casas e produzir alimentos eram atividades incentivadas com o objetivo de gerar emprego e atender as necessidades específicas de habitação e alimentação. Assim, “alimentavam o sonho” de um projeto cooperativo para a sociedade. Contrapondo-se à velha ordem, os ideólogos da liberdade de ação econômica imaginavam chegar à harmonia dos interesses na sociedade. A evolução dos fatos, entretanto, não comprovou a profecia dos teóricos da livre-iniciativa, provocando reações: a reação pela socialização do processo produtivo, mediante o planejamento central das atividades econômicas e a reação pelo movimento cooperativo. No capitalismo, a organização das atividades econômicas se caracteriza por uma produção não determinada pelas necessidades específicas dos que nela trabalham, desde um ponto de vista qualitativo ou quantitativo, mas por uma produção que visa a fazer frutificar o capital nela investido. No cooperativismo, a organização coletiva das atividades econômicas visa a atender às necessidades e interesses específicos das pessoas ou grupos de indivíduos. Trata-se da associação de pessoas, embora por objetivos econômicos, vinculados à valorização de seu trabalho no contexto das relações de mercado. O termo cooperativismo contém em sua raiz a noção de trabalho, de relações de trabalho. O movimento cooperativo nasceu das lutas pela valorização do trabalho humano. Por isso, a noção de organização cooperativa é mais ampla que uma simples instrumentação técnica. Além do instrumental técnico, a organização cooperativa surge de um movimento social que traz em seu bojo histórico a questão da valorização do trabalho humano, constituindo identificação, associação e comunicação entre os que trabalham com seus instrumentos de atuação. O movimento cooperativo procura não só assegurar instrumentos técnicos de trabalho, mas a dimensão política das relações de trabalho, pela ação comunicativa de seus executores. Como produto de um movimento social, a cooperação não pode ser entendida apenas como uma 22 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária relação técnica de trabalho, como uma relação funcional de um sistema de trabalho, mas como expressão política e técnica de superação da interação dos trabalhadores, submetidos à lógica da acumulação do capital. O movimento social pela organização cooperativa, no entanto, não é um bloco único. É um movimento que toma formas e sentidos de organização, segundo as estruturas sociais, as concepções políticas, as categorias econômicas, as nacionalidades e as crenças religiosas, as diferentes concepções e interpretações do sentido da cooperação. Ao se estudar a origem do movimento cooperativo, pode-se verificar que existem diferentes propostas. Uma proposta era mais centrada no problema da produção, no processo produtivo, nas relações de produção, procurando alterar o rumo das relações capitalistas de produção. Outra proposta se centralizava mais nas relações de mercado, aceitando as relações de produção, estabelecidas pela ordem da economia industrial capitalista, procurando alterar as relações de poder na comercialização da produção. Por isso, no movimento cooperativo é possível reconhecer, historicamente, diferentes posições políticas de interpretação do caminho de organização cooperativa: de resistência, de inserção, de alternativa (Faust, 1977; Vester, 1975). Assim, as reações que levaram ao movimento cooperativo podem ser classificadas em três tipos: O primeiro tipo consiste em uma reação no sentido de voltar à velha ordem: esta era uma posição conservadora que se inclinava à reconquista da velha ordem, por meio da cooperação. Parecia ser possível reverter a Revolução Industrial, reconquistando as posições perdidas dos artesãos, entre elas a propriedade de seus instrumentos de trabalho; muitos deles buscavam retornar à velha ordem. O segundo tipo consistia em uma reação no sentido de superação da ordem, recém instituída, mediante a organização cooperativa: essa posição progressista acreditava na possibilidade de transformação ou de superação da ordem capitalista em execução, ainda que gradativamente. Essa visão se dividia em duas grandes linhas: a) A linha da via pacífica de superação da ordem: esta acreditava poder fazer as transformações pela economia, cada vez mais organizada em bases cooperativas. A superação pacífica da problemática social seria possível pela cooperação. A soma das unidades econômicas cooperativas poderia gerar a superação da ordem competitiva. A proposta de superação pacífica do sistema capitalista implicava a renúncia da luta de classes como motor da História, de sua transformação. A proposta pacífica implicava um apelo à racionalidade da organização cooperativa: o sucesso da empresa deveria atrair os trabalhadores para formarem novas cooperativas. A cooperação mútua, no lugar da competição e da ganância pelo lucro, passando pela produção, distribuição e consumo, integraria os setores, constituindo-se na base da nova sociedade, mais 23 EaD Walter Frantz justa e humana, sem explorados nem exploradores. A organização cooperativa era vista como uma estratégia de mudança social. Acreditava-se que o sistema cooperativista pudesse reverter tendências estruturais da sociedade. b) A outra via da superação da nova ordem apostava na organização da classe trabalhadora, apostava nas lutas sociais. Essa posição é mais perceptível em seus primórdios, quando ainda existia na percepção política de muitas pessoas certa nebulosidade sobre os rumos da sociedade em transformação. As correntes políticas conservadoras, liberais e progressistas se debatiam em busca de afirmação de suas ideias de construção da sociedade. Havia certa luta de ideias pela hegemonia do pensamento social e político. O mundo passava a ser compreendido, cada vez mais, como uma obra dos homens, construído segundo suas ideias e interesses. A época era marcada por diferentes tentativas e expectativas de solução dos problemas, gerados no processo de mudança e de transformações. Assim, coexistiam diferentes entendimentos e expectativas de construção da ordem social e econômica e que se expressavam também no campo do cooperativismo. O terceiro tipo consistia em uma reação no sentido de organizar a nova ordem: essa posição pode-se identificar no campo da cultura capitalística que não questiona a ordem social maior, mas se opõe ao egoísmo dos indivíduos sem, no entanto, propor a eliminação da economia privada. Poderia ser definida como uma posição de liberalismo social. O cooperativismo aparece como um instrumento de domesticação do “capitalismo selvagem” e como complemento econômico, ocupando espaços na economia concorrencial. A questão desafiadora às economias individuais é de se inserir na ordem, sem sucumbir nela. Acredita-se que a cooperação elimina os efeitos danosos do capitalismo, especialmente com relação aos mais fracos. A cooperação permite recuperar a força da competição. Seção 1.2 O Cooperativismo Moderno e a Economia Solidária A cooperação em sua forma moderna pode ser considerada um produto da organização capitalista da sociedade, constituindo-se uma reação às dificuldades técnicas, sociais, políticas e culturais, diante da lógica da acumulação do capital. As modernas formas de organização cooperativa nasceram no espaço do mercado capitalista. A cooperação moderna propõe mudanças 24 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária na organização econômica da sociedade, mediante a instauração de um sistema baseado em associações-cooperativas, de caráter econômico, postas a serviço das necessidades e interesses de quem trabalha. O cooperativismo apareceu, historicamente, por meio das diferentes experiências, como um instrumento para substituir o individualismo pela cooperação, reduzindo custos, riscos, promovendo a colaboração econômica das economias associadas com o objetivo de alcançar melhores resultados. Apesar das diferentes experiências, em diferentes áreas da economia e em diferentes países, existem alguns elementos comuns ao entendimento do cooperativismo. Isso permitiu caracterizar o movimento cooperativo moderno, em termos mundiais. Nas organizações cooperativas se reconhece como elementos comuns as seguintes características: – são sociedades de pessoas; – a associação é livre; – os fins são comuns; – o empreendimento econômico coletivo emprega os meios de todos os associados e o seu risco é também comum; – a ordem social e econômica da organização cooperativa se apoia não na competição entre os seus membros, mas no entendimento, na solidariedade, com relação aos objetivos comuns. Pode-se considerar que as formas históricas da organização cooperativa incorporaram a problemática das relações de trabalho, no mercado capitalista, a) opondo uma proposta alternativa, pela via socialista, ou b) procurando se inserir no mercado pela recuperação da capacidade de competição e concorrência, pela via da cooperação entre as economias individuais enfraquecidas. O cooperativismo moderno carrega em seu núcleo o objetivo da valorização do trabalho humano. Os associados desenvolvem uma conduta racional de associação, de cujo processo nascem formas de organização e instrumentalização de seus interesses e objetivos. Organizar uma cooperativa é buscar construir poder, especialmente nas relações econômicas com o mercado. A organização cooperativa constitui-se como uma reação aos problemas técnicos ou políticos de produção e distribuição das riquezas entre os seres humanos. A base da organização cooperativa está fundada nas dimensões técnicas e políticas do trabalho humano e associada às consequências sociais daí decorrentes. O comportamento co-operativo dos associados na empresa-cooperativa deve ser racionalmente organizado, mediante normas, regras, contratos. No espaço das questões sociais, decorrentes do processo técnico e político de trabalho, elaboram-se os conceitos de solidariedade e de cooperação. Nas relações sociais do processo de trabalho dá-se cooperação e solidariedade. Cooperação e solidariedade são práticas sociais. 25 EaD Walter Frantz A organização de um empreendimento solidário, ao tirar o indivíduo de seu mundo particular, relacionando-o com os outros, pelos laços sociais da amizade, da emoção, da razão, da associação, da cooperação, construindo espaços coletivos, desperta a responsabilidade social e a solidariedade, elementos fundamentais ao desenvolvimento do ser humano e de seus espaços de vida. Os seres humanos se humanizam pelo reconhecimento solidário e cooperativo do outro. A economia popular solidária tem suas raízes históricas nas atividades informais de setores populares que tomaram consciência “de que os Estados, os partidos políticos e os poderes estabelecidos não se preocupam de solucionar os problemas que os afetam” (Houtart, 2001, p. 16). Trata-se de uma iniciativa pragmática de quem espera pouco ou nada das instâncias formais de poder e parte à construção solidária de soluções para os seus problemas imediatos comuns. Lembra o autor, no entanto, “que o contexto global no qual agem os novos agentes da economia solidária, seja de que tipo forem, condiciona muito fortemente sua existência e sua evolução” (Houtart, 2001, p. 22). Ensina François Houtart (2001, p. 16-17) que: Baseadas na solidariedade seguidamente existentes nesses meios, nasceram iniciativas que pretendem alcançar níveis de organização econômica, social, cultural e política superiores e alternativos ao sistema capitalista neoliberal. Visam à criação de uma economia popular em que encontrariam lugar tanto trabalhadores urbanos e rurais, manuais e intelectuais, proprietários e não-proprietários, trabalhadores dependentes do capital e independentes. Hoje, junto as camadas sociais de menor renda, o movimento cooperativo, especialmente por meio de iniciativas de economia solidária, recobra importância social e econômica, buscando inserir-se na estrutura social e evitar a exclusão social (Singer; Souza, 2000). A economia solidária pode ser caracterizada como um esforço de construção de uma alternativa à produção e de sua distribuição sob a lógica do capital. Isto é, no lugar dos interesses do capital, busca-se afirmar a primazia da centralidade humana, as necessidades de quem produz (Maréchal, 2000). A marca forte de um processo civilizatório mais humano é a substituição das relações instintivas de concorrência pelas relações de respeito, de solidariedade e de cooperação entre os seres humanos e destes com a natureza, isto é, com a vida em geral. Hoje, por meio de iniciativas de economia solidária e cooperativa, parece renovar-se a capacidade de reação e organização da sociedade civil, diante dos desafios que as transformações tecnológicas e o poder econômicofinanceiro impõem, especialmente ao mundo dos trabalhadores. 26 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Assim, para além de sua afirmação como instrumento de organização econômica, o movimento social pela cooperação passa a assumir dimensões que vão além das questões econômicas. Nesse sentido os processos sociais de organização cooperativa incorporam questões sociais, políticas e culturais. Por parte de associados, existe também uma percepção política do movimento cooperativo (Frantz, 2009, p. 146-147). A cooperação é buscada como uma reação ao risco de exclusão, de marginalização ou exploração, no contexto maior da interação econômica. Afirma Cibele S. Rizek (1998, p.16), que “a organização ou desorganização do trabalho, a estruturação ou desestruturação das formas de sociabilidade convidam a repensar, hoje, a questão social [...]”. Nesse contexto de dificuldades, retoma-se o cooperativismo como um projeto de esperança, como um espaço concreto de organização de quem se sente ameaçado de exclusão. E isso apesar das dificuldades de se construir e manter estruturas coletivas em uma sociedade, cada vez mais individualizada (Bauman, 2008). Diante de sua ressignificação como movimento social, a qualificação para a cooperação ganha importância, desafiando o movimento cooperativo para a adoção de práticas de educação popular. Os objetivos da cooperação, junto aos que lutam por alternativas à tendência de exclusão, instituem a importância do diálogo como um de seus meios de gestão e, consequentemente, potencializa a concretude de suas práticas como um processo social de educação, isto é, de educação popular. No contexto atual de globalização e de dificuldades sociais, a organização cooperativa volta a ser uma prática social valorizada e validada. Muitos são os que lhe emprestam importância, no sentido de sua afirmação como sujeitos e atores sociais ativos. Retomam o cooperativismo como um projeto de esperança, como um espaço concreto de organização como instrumento coletivo de encaminhamento de suas economias, estimulando o desenvolvimento de novas relações sociais. No seio das necessidades e urgências sociais, ressurge o cooperativismo, sendo-lhe atribuídas novas funções, especialmente no campo do trabalho, transformado na grande questão social de nosso tempo (Singer; Souza, 2000). Para muitas pessoas ou grupos sociais, hoje, a cooperação torna-se, novamente, elemento fundamental à construção de seus espaços de vida, pois a organização cooperativa, para além da expressão material, desenvolve também expressões culturais, políticas e sociais que se somam aos interesses, objetivos e necessidades de seus associados. A organização cooperativa adquire um significado mais amplo que a simples função de encaminhamento de operações técnicas e instrumentais das economias individuais associadas. Em decorrência disso, impõe-se a necessidade de repensar as práticas cooperativas. De acordo com Manuel da Silva Costa (2001, p.13), 27 EaD Walter Frantz um dos maiores dilemas, quer da economia capitalista, quer da organização burocrática, foi a formação do individualismo, esvaziando o indivíduo da sua alma, isto é, da sua emotividade e subjectividade. Tanto a nova divisão técnica do trabalho industrial, como a organização funcional no seio das burocracias modernas ignoram o indivíduo, com seus projectos e anseios, com as suas identidades, valores e significados. A dimensão cultural de um empreendimento cooperativo está nos valores, nas crenças, nas normas e costumes inerentes às práticas sociais cooperativas. São componentes que incidem sobre o funcionamento de uma organização. Reconhecer a importância de outras dimensões na organização cooperativa certamente não diminui o fundamento econômico da cooperação. A recuperação dessa dimensão cultural e de seus significados não econômicos constitui uma potencialização do capital social, uma possibilidade social agregadora e integradora da organização cooperativa diante do fenômeno da exclusão social e econômica. Por isso, pode-se afirmar que empreendimentos de economia solidária são também lugares de educação. Isso não apenas por que nelas se promove a atividade educativa, com vistas à capacitação para a cooperação, mas porque nos seus diferentes espaços a educação decorre das relações sociais que ali acontecem, tendo em vista os interesses, as intenções, as necessidades dos associados e as ações decorrentes dessa trama social complexa. Os seres humanos se educam nas relações sociais do trabalho, educam-se pela comunicação crítica, pelo debate e argumentação sobre os diferentes aspectos de suas vidas. Os conteúdos desse processo educativo são, por isso mesmo, ora mais técnicos, ora mais políticos. Afirma André Ricardo de Souza (2000, p. 7): “Os empreendimentos solidários ainda têm pouco peso econômico, mas possuem grande significação cultural, afinal são experiências destacadamente educativas”. O empreendimento solidário é uma questão econômica, embasada na cooperação, porém a economia cooperativa que nele se processa é uma questão mais ampla que a simples produção e distribuição de bens e riquezas. A economia pode ser definida, de um modo muito amplo, como o trato das questões relativas à produção e à distribuição das riquezas. Como tal, envolve aspectos de ordem mais técnica e outros de ordem mais política. Além disso, pode-se falar de uma economia da necessidade e de uma economia do interesse. Nos últimos séculos, a partir de uma concepção mais liberal de economia (não confundir com a economia neoliberal dos tempos atuais), foi colocado o interesse no lugar da necessidade como nova base para a economia. Assim sendo, a sociedade moderna é fundada na economia do interesse e da liberdade dos indivíduos. A economia moderna funciona pela competição entre os interessados. A economia moderna funciona no espaço do mercado, mediante a oferta e a procura. O sentido histórico da competição tem a ver com estímulo à qualificação do trabalho humano. A cooperação moderna acontece entre os interessados com o objetivo de poder inserir-se no espaço 28 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária do mercado. O sentido histórico da cooperação moderna não conflita, necessariamente, com o sentido histórico da competição da economia moderna. O foco da competição é a qualificação técnica da economia e o foco da cooperação é a qualificação social da economia. Ocorreu, no entanto, que a lógica do capital se estabeleceu como motivação para a produção e a distribuição dos bens e das riquezas. O processo da competição e o espaço do mercado passaram a ser submetidos aos interesses do capital. A competição deixou de ser uma relação entre as economias dos interessados e passou a ser uma relação entre capital e trabalho ou uma relação de concorrência entre capitais. O capital apropriou-se do espaço da liberdade e fez valer o seu interesse: a economia da acumulação capitalista. O capitalismo acentuou o individualismo e, como consequência disso, fragilizou os laços sociais de poder dos indivíduos livres. Em termos sucintos, esse é o cenário histórico de afirmação do movimento cooperativo moderno. O cooperativismo moderno nasceu da problemática social no contexto da Revolução Industrial, quando a economia capitalista se afirma como sistema hegemônico. O cooperativismo como fenômeno da modernidade surgiu como movimento de defesa do interesse do trabalho humano contra os interesses do capital. A lógica da cooperação moderna é a valorização do trabalho humano, é a emancipação do ser humano pela valorização de seu trabalho. Na sociedade moderna, a organização cooperativa passou a ter um caráter instrumental no sentido de recolocar o trabalho humano como sendo a centralidade. Em linguagem figurativa, pode-se dizer que a sociedade humana tem uma espécie de motor ou motores que a fazem se organizar e funcionar, isto é, fazem o movimento da sociedade. A sociedade se movimenta por motores sociais que podem estar localizados no campo da economia, da política, da ciência, da tecnologia, da cultura, da arte, da música, da literatura, da comunicação, da educação, etc. As engrenagens centrais desses motores sociais são as relações que os seres humanos acabam estabelecendo entre si nesses campos da atividade humana. Um desses movimentos da sociedade é o movimento cooperativo, que pode estar na economia, na política, na cultura, na educação, na comunicação, entre outros. Como movimento social, o cooperativismo carrega dentro de si as diferentes tendências e interpretações, inerentes a um movimento dessa envergadura política e econômica. O motor do movimento cooperativo é a valorização do trabalho humano e a sua força de movimento são as relações de cooperação. O cooperativismo moderno se afirma como um movimento social em defesa do trabalho humano e como instrumento de ação na passagem da economia das necessidades para a economia dos interesses. No meu entendimento, é preciso inscrever as práticas de economia solidária no movimento cooperativo. Uma das iniciativas preferenciais para a prática da economia solidária pode ser a organização cooperativa. Claro, pode-se buscar outras formas legais de organização. 29 EaD Walter Frantz É importante que se formalizem as atividades de economia solidária, a qual exige cooperação. O cooperativismo moderno se ocupa da economia dos interesses dos indivíduos livres, isto é, expressa a economia dos interesses dos indivíduos livres e não do capital, pela associação das individualidades. A economia solidária expressa as necessidades dos indivíduos livres, estimulados pela solidariedade, pelo coletivo. O cooperativismo moderno parte do indivíduo, acolhido pelo coletivo. A economia solidária parte do coletivo para acolher o indivíduo. Ambas as práticas têm em comum a valorização do trabalho, porém, mais que isso, representam processos de produção de conhecimento, de educação, de aprendizagem. Historicamente, a solidariedade nas dificuldades de produção e distribuição dos bens materiais e espirituais de vida conduziu à cooperação, à organização cooperativa. Assim, a solidariedade é o sentido da ação cooperativa que coloca o ser humano, o trabalho dos homens, como o centro da economia. Concretamente, na ação cooperativa, a solidariedade se revela pela participação política e econômica de seus atores. As práticas de participação política e econômica são, na verdade, relações que expressam compromissos entre os associados. A participação política e econômica na organização e funcionamento das ações cooperativas de produzir e distribuir riquezas garantem a estabilidade, o sentido e a razão do empreendimento cooperativo. Quando essas relações se esvaziam de solidariedade, o projeto cooperativo perde sua substância essencial, ou seja, retira-se dele o elemento central que é a presença ativa e comprometida do associado. A diminuição ou o impedimento de um dos elementos da participação, isto é, da solidariedade política ou econômica, pela invocação de razões técnicas de gestão, limitam ou anulam o ato cooperativo. Isso permite concluir que solidariedade e cooperação são fenômenos sociais de natureza política e econômica. Além disso os associados, construindo poder para a busca de soluções práticas, relativos aos seus problemas, induzem a um processo de aprendizagem: manipulam informações, aprendem e constroem conhecimentos. Educam-se, assim, nas relações sociais e econômicas de cooperação e de competição. Educar-se para o poder político com a finalidade de construir uma nova “ordem social” é uma etapa fundamental do processo de organização cooperativa. A discussão sobre cooperativismo e solidariedade está, novamente, na ordem do dia. São temas da grande escola da vida. É verdade que trazem consigo a marca do sofrimento ou da frustração de quem não os conseguiu realizar, ao longo da, muitas vezes, penosa peregrinação terrestre de tantas gerações. Não apenas isso, porém, nos vem da experiência de nossos antepassados. O cooperativismo e a solidariedade são temas que vêm envoltos pela aprendizagem das experiências históricas de gerações passadas e de seus desejos por nos legar um mundo melhor. 30 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Os temas não são novos, embora se revistam de peculiaridades e características próprias de nossa época. São temas marcados pela longevidade do tempo humano, mas que atravessam os séculos, impulsionados pela capacidade dos homens em não renunciar aos sonhos e à esperança por uma vida melhor, substanciada esta nos desejos de justiça e paz entre os homens e suas nações. Nisso se fundamenta a nossa responsabilidade pela construção de um mundo mais solidário e cooperativo. A atualidade dos temas está nas circunstâncias sociais da nossa época. As circunstâncias da problemática social que os recoloca no cenário dos debates sobre economia, política, cultura ou educação são novas. Hoje 20% da população do mundo controlam 86% da riqueza das nações. Os Estados mais ricos, isto é, um quinto dos Estados do planeta, produzem 84,7% do produto mundial bruto, os seus cidadãos efetuam 84,2% das transações econômicas mundiais e possuem 85,5% de toda a poupança interna. Os afortunados desses países mais ricos guardam para si o privilégio da utilização de 85% da madeira consumida no mundo, 75% dos metais extraídos e 70% da energia produzida (Martin; Schumann, 1998, p. 37). Diante desse quadro, quais as chances dos mais pobres, ou melhor, da maioria da humanidade? De acordo com os economistas Hans-Peter Martin e Harald Schumann (1998, p. 15), “o ritmo da transformação e a redistribuição do poder e da prosperidade provocam a erosão das antigas unidades sociais mais rapidamente do que se pode processar o desenvolvimento das novas”. Assim, mais que uma globalização, há uma decomposição global, certa uniformização mundial. Dizia Boutros Boutros-Ghali, ex-secretário geral da ONU: “O nosso planeta está sob pressão de duas forças monstruosas e antagônicas: a globalização e a fragmentação” (Martin; Schumann, 1998, p. 35). Em meio a uma velocidade de informações e visões para todos os lados, há uma sensação crescente de vazio. “A proximidade e a simultaneidade mediáticas não criam laços culturais e, sobretudo, não garantem a uniformização dos níveis econômicos” (Martin; Schumann, 1998, p. 29). A divisão econômica da sociedade se agrava mais e mais. Cada um busca cuidar de si, de seu quintal. O desenvolvimento como um projeto de um mundo unido, mesmo sob uma orientação ideológica tradicional, fundada na liberdade, na igualdade, na fraternidade, parece ter acabado. Não há proposta política, em termos globais, atualmente, que permita inspirar confiança para o futuro, diante do sucesso da economia de mercado capitalista e do fracasso das experiências de economia socialista, centralmente planejadas, resultando em frustração social profunda. A experiência capitalista com o seu sucesso econômico frustrou as expectativas sociais da maioria. A experiência socialista com seu fracasso econômico jogou na perplexidade a maioria. “Quais são as regras, quais são as formas de sociedade que permitirão gerir os problemas ambientais e alimentares e as dificuldades econômicas?” (Martin; Schumann, 1998, p. 35). 31 EaD Walter Frantz Diante disso, um dos desafios maiores para a humanidade neste início de século 21 é restabelecer o primado da política sobre a economia, do homem sobre o capital. A economia cooperativa solidária parece conter essas possibilidades de reconstrução das relações econômicas entre os homens. As relações sociais de cooperação e de solidariedade são inerentes à natureza humana. O movimento cooperativista procura fundamentar os princípios da organização cooperativa do trabalho, como mecanismo de produção e distribuição de riquezas, na concepção de ser humano como um ator social cooperativo. A economia cooperativa e solidária, talvez, possa vir a ser um novo espaço social, político, cultural, por onde nasça uma nova proposta de sociedade que consiga abrigar os 80% da população que têm acesso apenas a 20% da riqueza produzida. Trata-se de construir um espaço político de atuação sobre o presente em direção ao futuro das nações e dos povos. O projeto de uma economia cooperativa solidária oferece uma nova oportunidade de luta em favor de um futuro mais confiante, de um futuro com novas oportunidades de inclusão social. Oferece a oportunidade de um olhar um pouco adiante, com a esperança de não sucumbir aos percalços da política de uma globalização concentradora de riqueza e poder ou à desesperança dos sonhos perdidos de uma modernidade com liberdade, igualdade e fraternidade. A economia cooperativa e solidária oferece uma oportunidade de retorno à liberdade criativa dos sujeitos como atores sociais de seus próprios projetos culturais, políticos e econômicos. Abre lugar à liberdade da imaginação e à criatividade dos sujeitos. A economia cooperativa solidária, ao mesmo tempo em que contém as frustrações, as dúvidas, as incertezas e perguntas dos sujeitos, constitui-se também em um processo educativo e pedagógico em direção a um mundo mais justo e mais seguro para todos. Apresenta-se como uma nova utopia a reconstruir relações sociais sufocadas pela ideologia do egoísmo individualista, a serviço da racionalidade do lucro em desfavor do homem. A economia cooperativa solidária devolve a oportunidade à economia do humano. No contexto da globalização, em que o trabalho, enquanto núcleo da estrutura social sofre grandes transformações tecnológicas e organizativas, o cooperativismo, enquanto prática econômica, aparece, novamente, a exemplo de outros períodos difíceis da história do trabalho, como importante instrumento de articulação e de (re)integração da população nas estruturas sociais das comunidades e, especialmente, no processo de produção, a favor de uma economia mais humana. De acordo com Pierre Lévy (1999, p. 47), nada é mais precioso que o humano. Ele é a fonte das outras riquezas, critério e portador vivo de todo o valor. [...] é preciso ser economista do humano, [...] É necessário igualmente forjar instrumentos – conceitos, métodos, técnicas – que tornem sensível, mensurável, organizável, em suma, praticável o progresso em direção a uma economia do humano.4 O grifo é meu. 4 32 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A opção por uma economia cooperativa solidária pode também representar o retorno da perspectiva de uma luta política, embasada nos princípios da liberdade dos sujeitos, de suas experiências. Pode representar a possibilidade de uma nova totalidade a ser construída e sempre reconstruída pelas experiências dos sujeitos. A economia cooperativa solidária pode constituir-se em expressão da capacidade criadora e construtora de novas relações sociais, fundamentadas na cidadania de seus atores. Mais que uma explicação teórica, é preciso fazer um esforço de compreensão do que vem a ser economia cooperativa e solidária na prática. Para além de buscar bases e conceitos que permitam compreendê-la, de modo abstrato, é preciso inserir-se no contexto histórico das sociedades, pois, antes dos conceitos teóricos em si, existe a realidade social. Nela se localizam as bases conceituais. No meu entendimento, pela economia cooperativa e solidária trilha-se, inclusive, um caminho de resgate das relações sociais de mercado. O mercado não deve ser mais visto apenas como o lugar da concorrência, mas como o espaço da criatividade, da cooperação. Nessa relação a individualidade é importante e não deve ser subjugada, mas apenas sustentada pela coletividade solidária. A coletividade se constrói, organiza-se, para sustentar os indivíduos e não o contrário. A coletividade é um meio para a pessoalidade, a subjetividade no coletivo. O valor está nas pessoas e não nos meios. O mercado, atualmente, está dominado pela lógica do capital e não pelas necessidades, interesses, desejos e criatividade dos homens. O mercado, contudo, como um espaço de relações de troca entre os homens existiu muito antes de o capital ser hegemônico e dominador nas relações econômicas. A economia cooperativa e solidária pode e deve resgatar o mercado, submetido e acorrentado ao grande capital e não ao homem. No mercado capitalista o trabalho humano é subjugado ao capital, limitado às necessidades do capital. No mercado da economia cooperativa e solidária, o homem é estimulado à criatividade, à criação de bens e riquezas que devem ser distribuídas de acordo com o seu trabalho. O mercado é um espaço de comunicação das necessidades, dos interesses e dos desejos dos indivíduos, das criatividades de cada um. É um espaço de potencialização da sociabilidade dos indivíduos, constituindo-se em um “ente coletivo” qualificado, a partir da participação de cada um, estimulado pelas necessidades, pelos interesses, pela criatividade do outro. É um espaço social no qual o homem, não como “lobo do homem”, mas pela solidariedade, constrói a sua individualidade por meio da interação das criatividades. O mercado deve ser o espaço da liberdade dos atores, socialmente comprometidos e coletivamente responsabilizados. 33 EaD Walter Frantz O mercado da economia cooperativa e solidária torna públicas as qualidades e as necessidades das pessoas. Os indivíduos se estimulam para produzir riquezas que lhes deem a sustentação e o bem-estar pessoal e coletivo. O mercado é, assim, também, de certa forma, instrumento da construção da esfera pública da vida social. Todas estas questões precisam estar presentes na gestão dos processos de economia solidária. O gestor, antes de um técnico, deve ser um educador, um pedagogo. A Pedagogia é uma relação social, através da qual fluem forças, interesses, visões de mundo, ideologias, no sentido da socialização. Na confluência das opiniões, no diálogo dos saberes, constrói-se a cooperação, processa-se a educação, define-se o seu sentido pedagógico. A instituição de um lugar de educação é um dos maiores desafios à gestão de organizações de economia solidária. Gestão não é um procedimento técnico, operacional. Em um processo de gestão localizam-se funções técnicas e operacionais. O processo de gestão se utiliza de técnicas para cumprir funções operacionais. Gestão é um processo complexo que envolve aspectos culturais, políticos, econômicos, sociais, ambientais, etc. A gestão de uma organização de economia solidária não pode ser um processo de relações hierárquicas. A gestão de uma organização de economia solidária envolve a todos os seus integrantes. A gestão não é um processo social neutro. Ela indica uma direção de necessidades, interesses, desejos. A gestão de uma organização de economia solidária deve ter as necessidades e os interesses dos associados como seu objetivo, sua finalidade. A gestão de uma organização de economia solidária sofre condicionamentos e influências internas e externas e que podem produzir efeitos negativos ou positivos. A partir do campo das experiências práticas, podem-se extrair algumas questões importantes à gestão de uma cooperativa ou, no caso, de um empreendimento de economia solidária: • Pelo menos ter mínima compreensão do que seja o movimento cooperativo moderno ou do que seja um empreendimento de economia solidária. • Ter conhecimento do que seja uma cooperativa e do que seja economia solidária. • Ter clareza quanto à validade, necessidade e importância da cooperação. • Conhecer os principais desafios do contexto externo à organização. 34 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Síntese da Unidade 1 Ao finalizar a reflexão da Unidade 1 é possível retomar e fazer as seguintes considerações a respeito do movimento cooperativo moderno, sem as quais este perde a sua essência histórica de luta pela valorização do trabalho, enquanto tem o capital como o seu instrumento: – O termo cooperativismo traz em sua origem histórica a noção de trabalho conjunto, de relações sociais de trabalho. Está relacionado à economia, tendo o seu núcleo na valorização do trabalho humano. – O movimento cooperativo moderno expressa uma articulação entre economia e política que busca exercer poder nas relações de mercado. A constituição de poder de atuação na economia é elemento central do cooperativismo moderno. – No cooperativismo moderno a economia não se resume às relações de mercado – de produção e distribuição –, mas também incorpora as relações de cooperação e solidariedade entre os associados. A economia cooperativa se distingue da economia concorrencial. – No movimento cooperativo moderno interesses se identificam, aproximam-se e cooperam, de acordo com suas necessidades e objetivos. Nesse processo, os associados desenvolvem e incorporam valores e comportamentos com vistas aos seus objetivos. – Na organização e funcionamento de uma cooperativa, os indivíduos interessados precisam ver o outro como “parte cooperativa” e não “concorrencial”. Das relações cooperativas nasce solidariedade, responsabilidade social, espaço coletivo, elementos de capital social. – O cooperativismo busca afirmar um lugar de reconstrução das condições de vida, tendo na economia humana o seu fundamento. – O cooperativismo moderno revela a preocupação com a apropriação dos resultados do trabalho, ante a reorganização técnica do trabalho e a divisão social do trabalho, sob os interesses do capital. – O cooperativismo moderno busca a instauração de uma ordem justa, fundada na cooperação, na solidariedade dos indivíduos, constituindo espaços coletivos comuns para suas economias. – O cooperativismo revela uma preocupação com os rumos da sociedade industrial emergente, expresso pelos conflitos na divisão social do trabalho e no processo da apropriação dos seus resultados. 35 EaD Walter Frantz – Apesar das críticas que se possa fazer às diferentes experiências históricas de cooperativismo, pode-se falar de um movimento cooperativo, ainda fundamentado em valores e princípios que lhe emprestam forças (ideias-força). – Apesar do risco ideológico de não ver o cooperativismo a partir de sua prática concreta, apagada pela visão idealista, os valores do cooperativismo ainda podem se constituir em importante fonte de energia para enfrentar a realidade do contexto das transformações, hoje. Eles podem se transformar em capital social da organização cooperativa. – A cooperação em sua forma moderna pode ser considerada um produto da organização capitalista da sociedade: constitui uma reação às dificuldades técnicas, sociais, políticas e culturais, diante da lógica da acumulação do capital. – A cooperação moderna propõe mudanças na organização econômica da sociedade, mediante a instauração de um sistema baseado em associações-cooperativas, de caráter econômico, posto a serviço das necessidades e interesses de quem trabalha. – No capitalismo, a organização das atividades econômicas caracterizase por uma produção não determinada pelas necessidades específicas dos que nela trabalham, desde um ponto de vista qualitativo ou quantitativo, mas por uma produção que visa a fazer frutificar o capital nela investido. Trata-se de uma produção determinada pelo interesse. – O capitalismo – a lógica do capital – apropria-se da liberdade do indivíduo e a transforma em comportamento egoísta individual – no sentido da concorrência, contrário ao comportamento cooperativo. – No cooperativismo, a organização coletiva das atividades econômicas visa a atender às necessidades e interesses específicos das pessoas ou grupos de indivíduos. Trata-se da associação de pessoas, embora por objetivos econômicos, vinculados à valorização de seu trabalho no contexto das relações de mercado. – O espaço da cooperação pode ser “colonizado” pela cultura capitalista, submetendo-o à lógica do capital e não à do trabalho. – O cooperativismo deve estar voltado à economia dos fins: o ser humano. Não pode ter a acumulação de capital como fim, mas como meio de realizar os fins. 36 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária – No cooperativismo deve existir a capitalização. A capitalização, além da sua importância para o sucesso do movimento cooperativo, de ser levada a efeito como um meio da economia cooperativa. Na economia cooperativa a capitalização deve obedecer à lógica da cooperação. – O cooperativismo – a lógica cooperativa – deve “desconstruir” a visão e cultura individualista (do ser humano e do comportamento social), recuperando o espaço das relações cooperativas na economia. – Além do instrumental técnico, a organização cooperativa nasce de um movimento social que traz em seu bojo histórico a questão da valorização do trabalho humano, constituindo a identificação, associação, comunicação, entre os que trabalham, como seus instrumentos de atuação. – O movimento cooperativo procura não só assegurar instrumentos técnicos de trabalho, mas também a dimensão política das relações de trabalho, pela ação comunicativa de seus executores. – Como produto de um movimento social, a cooperação não pode ser entendida apenas como uma relação técnica de trabalho, como uma relação funcional de um sistema de trabalho, mas como expressão política e técnica da interação dos trabalhadores, submetidos à lógica da acumulação do capital. 37 EaD Unidade 2 associativismo, cooperativismo e economia solidária CARACTERIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DE ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer conceitos de cooperativismo e entender características e sentidos de organização cooperativa. Seção 2.1 A Fundamentação da Cooperação Nesta Unidade procura-se aprofundar a compreensão o fenômeno cooperativo. Parte-se do suposto de que se trata de um fenômeno social complexo e multifacetado em sua organização e funcionamento. Busca-se o entendimento do sentido e dos significados da organização cooperativa contemporânea. A reflexão visa a contribuir para a percepção de suas potencialidades no processo das transformações sociais ou no processo da reorganização dos espaços sociais, culturais, políticos e econômicos. O sentido da racionalidade funcional de uma organização cooperativa aponta para as questões econômicas, mas as práticas cooperativas têm significados que repercutem também em outros espaços sociais. Há outras dimensões e reflexos que importa conhecer. A produção de clareza e de conhecimento a respeito das organizações cooperativas pode constituir a relevância e o significado social do movimento cooperativo na atualidade. Espero poder contribuir, assim, com as possibilidades de aperfeiçoamento institucional e organizacional das cooperativas. No decorrer do texto busco identificar e compreender os processos educativos, identificar e compreender a estrutura de poder, as suas relações e o seu sentido para a organização cooperativa. O fenômeno da educação e do poder, em organizações cooperativas, acontece no contexto das relações sociais que decorrem e envolvem a prática da cooperação. São fenômenos inerentes às práticas de cooperação. 39 EaD Walter Frantz Com relação a isso, levanto algumas hipóteses. Primeiramente, levanto a hipótese de que organizações cooperativas, como associações instrumentalizadas para a consecução de interesses e objetivos específicos, constituem-se em campos de educação e espaços de poder. A prática cooperativa é uma prática de educação e de poder. Agregam-se a ela, complementarmente, também as seguintes hipóteses: de que o processo de educação é elemento fundamental a sua constituição e consolidação; de que a construção de um espaço de poder é condição essencial a sua estabilidade e de que esse poder só pode ser estruturado e exercido se ocorrer, no interior da organização cooperativa, uma prática e ação educativa efetiva e coerente com a qualificação dos associados como sujeitos da organização. Sem isso, corre risco o projeto cooperativo. A questão da educação já tem sido tratada por diferentes autores, ao longo da história do cooperativismo.1 Como afirma Marlene Ribeiro (1999, p. XIII), porém, na apresentação de sua pesquisa sobre a universidade brasileira, que, certamente, também já foi muito estudada, ao longo de sua história, “uma realidade suporta muitos e diferentes olhares”. Realidades sociais são complexas e dinâmicas e, por isso, podem ser revisitadas, constantemente, por diferentes e novos olhares. Acompanhado de concepções teóricas, de olhares outros, pretende-se revisitar o campo da educação e os espaços de poder, sob a ótica da experiência e da participação de práticas cooperativas, descobrindo ou (re)interpretando novamente os fenômenos e, assim, fazer da teoria e da experiência um novo ato cognitivo. O olhar sobre a organização cooperativa pelo ângulo das práticas de educação e de poder, não quer desconhecer os muitos e diferentes olhares já produzidos, mas inserir-se na discussão, a partir de experiências, de olhares e lugares específicos. Quer somar-se ao pensamento já “acumulado” sobre a prática do cooperativismo, quer juntar-se aos olhares e vozes de quem foi ouvido pelas falas das entrevistas, pelas respostas aos questionários. O conhecimento se produz no diálogo, na interlocução. Embora se tenha à disposição dessa reflexão um razoável conhecimento já “acumulado”, segundo Edgar Morin (2000a, p. 18), “o conhecimento deve ser permanentemente revisitado e revisado pelo pensamento”. Afirma que “o pensamento é, mais do nunca, o capital mais precioso para o indivíduo e a sociedade” (Morin, 2000a, p. 18). 1 Schneider, José Odelso. Democracia – participação e autonomia cooperativa. In: Perspectiva Econômica, São Leopoldo: Unisinos, vol. 26, n. 72-73, 1991. (Série Cooperativismo nº 29-30). 40 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária O pensamento é um capital social que se expande com a reflexão. E com esse capital é preciso trabalhar, transformá-lo em diálogo, em argumento, em interlocução de saberes. Argumenta Mario Osorio Marques (1993, p. 15) que “o conhecimento, antes de ser estranhamento e distinção, é simpatia, aproximação e comunhão”. O conhecimento aproxima as pessoas, dispõe para a cooperação. Não existe cooperação sem conhecimento. Experiências constituem parte importante de uma reflexão. As experiências podem conduzir ao conhecimento, por meio da dúvida, do questionamento. Das experiências profissionais relacionadas às práticas do associativismo e cooperativismo, brotaram muitas dúvidas, incertezas, perguntas e uma necessidade de ampliar e aprofundar os conhecimentos sobre o sentido e os significados das organizações cooperativas. Após ter participado de experiências específicas, no espaço da educação e da gestão, sinto-me motivado e desafiado à reflexão, à busca de respostas e de maior compreensão dos fenômenos da prática cooperativa. Acredito também que o associativismo e o cooperativismo são práticas sociais com validade atual e pertinentes à realidade de um mundo em transformação. O seu sentido econômico lhe empresta importância política e social. Para muitas pessoas, ou grupos sociais, hoje, a associação e a cooperação tornam-se, novamente, elementos fundamentais à construção de seus espaços de vida. A organização cooperativa, para além da expressão material, contém também expressões culturais, políticas e sociais que se somam aos interesses, objetivos e necessidades de seus associados e se fazem presentes no funcionamento de uma cooperativa. A dimensão cultural está nos valores, nas crenças, nas normas e costumes inerentes às práticas cooperativas. Escreve Morin (2000a, p. 48) que “uma cultura fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e guiam as vidas humanas”. Por eles passa a relação entre cultura e vida e, assim, também entre as práticas de cooperação e a concretude da vida de seus integrantes. As dimensões não materiais da cooperação ganham a sua importância na dimensão não material da vida humana. Podem, no entanto, as dimensões não materiais da cooperação constituir-se em elementos de força cooperativa ou solidária, no jogo do mercado, por melhores condições grupais de vida? Até que ponto podem as dimensões não materiais da vida constituir-se em bases de sustentação de uma economia? Fundado na questão econômica como princípio organizador da cooperação, muitas vezes limita-se o trato do fenômeno cooperativo a aspectos operativos e técnicos de um empreendimento cooperativo. Talvez a atenção ao econômico, evidente e compreensivelmente necessária, tenha feito com que se descurasse da complexidade do fenômeno da organização cooperativa, reduzindo-o demasiadamente a essa dimensão, separando-o em partes e fragmentando a sua unidade e globalidade. Consequentemente ofuscou-se a compreensão de seu sentido e significado social mais amplo. 41 EaD Walter Frantz Na visão de Morin (2000a, p. 14-15), a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão [...] Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável. A abordagem compartimentalizada do fenômeno da cooperação pode esconder mais do que revelar a complexidade de sua natureza. A prática da cooperação, isto é, a sua gestão como atividades técnicas específicas, leva, muitas vezes, à perda da dimensão da complexidade e da globalidade do fenômeno. Compartimentaliza-se e especializa-se o projeto cooperativo em atividades de assistência técnica, de contabilidade, de comercialização, de compra e venda. Diluise a noção social do todo, a dimensão da unidade e da complexidade do projeto cooperativo. O associado torna-se uma peça dessa engrenagem compartimentalizada, torna-se comprador e fornecedor de mercadorias. Desaparece como sujeito político dessa organização. A relação cooperativa é reduzida ao econômico, porém de natureza técnica e de difícil compreensão e transparência em sua operacionalização. Busca-se entender e explicar a cooperação pelos seus aspectos econômicos. Embora fundamentais, a gestão do projeto cooperativo passa a obedecer aos ditames dos aspectos econômicos, da empresa cooperativa, quando não das forças e interesses que ditam as políticas do mercado. Afirma Morin (2000a, p. 16) que “a política econômica é a mais incapaz de perceber o que não é quantificável, ou seja, as paixões e as necessidades humanas”. Segundo este autor (2000a, p. 18), “o enfraquecimento de uma percepção global leva ao enfraquecimento do senso de responsabilidade – cada um tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada –, bem como ao enfraquecimento da solidariedade – ninguém mais preserva seu elo orgânico com a cidade e seus concidadãos”. Isto é, no caso de uma cooperativa, a percepção compartimentalizada da cooperação enfraquece a identidade com o todo do projeto cooperativo, com as necessidades e os interesses dos demais associados. Aqui nasce a necessidade e a importância da educação para a cooperação. A educação para a cooperação inicia-se pela compreensão do fenômeno cooperativo e, ao produzir-se conhecimento, constrói-se a base de seu poder. Sendo assim, comecemos pela reflexão teórico-conceitual mais ampla, por uma questão primária e elementar que diz respeito à origem e fundamentação do pensamento cooperativo. Não com a intenção de estabelecer uma resposta, uma explicação que limite o pensamento crítico do leitor, mas que, exatamente, ajude a abrir as portas da expansão de seu pensamento, de suas explicações e compreensões. Com essa finalidade me valho da confecção de quadros esquemáticos como instrumentos auxiliares de reflexão. 42 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária O Quadro 1, a seguir, tem a finalidade de auxiliar na compreensão do fenômeno da origem do cooperativismo e da fundamentação da prática da cooperação. Tem um significado apenas de orientação, não de condicionamento da reflexão. É um esquema auxiliar que não deve limitar a reflexão do leitor. Os quadros usados como esquemas explicativos, no decorrer do presente texto, são produtos de uma reflexão sobre organização cooperativa, estimulada por leituras teóricas e por práticas cooperativas, somadas ao longo de anos de envolvimento com o cooperativismo. No intuito de entender melhor os sentidos e os significados de uma organização cooperativa, elaborei quadros esquemáticos que expressam um conceito de empreendimento cooperativo, amplamente aceito e presente na literatura. Quadro 1 – Origem e fundamentação da cooperação Fonte: Elaboração do autor. A origem e a fundamentação da cooperação é preciso buscar no processo de trabalho, nas questões fundamentais da economia: a produção e a distribuição de bens e riquezas. No processo de trabalho nascem as cooperativas como instrumentos de poder de decisão sobre a produção e a distribuição de seus resultados. É, portanto, um fenômeno social com base econômica. Os mecanismos tradicionais mais conhecidos de coordenação do processo de produção e distribuição são o mercado e o planejamento. 43 EaD Walter Frantz O cooperativismo, como prática social, nasce e se desenvolve nos espaços do mercado e do planejamento. Surge como uma reação aos problemas técnicos, às dificuldades sociais ou políticas, inerentes ao processo de produção e distribuição de bens e serviços pelo mecanismo do mercado ou do planejamento. A organização cooperativa, como reação organizada, deve conter a energia da liberdade, da ousadia de construir alternativas, novos caminhos, privilegiando o homem, a economia do humano. Nesse processo social de produção e distribuição é que se define a concepção de cooperativismo, os seus princípios orientadores da prática cooperativa. Por isso, pode-se dizer, de um modo simplificado, porém esclarecedor, que cooperativas são, em sua origem, organizações sociais instrumentalizadas, isto é, nascem de uma relação social, com objetivos econômicos os quais se busca realizar, por meio de uma empresa, mas que têm dimensões sociais mais amplas que seu sentido econômico primário. Organizações cooperativas são, por isso, exatamente, campos de educação e espaços de poder. O funcionamento de uma cooperativa expressa relações econômicas, políticas, sociais e culturais, nas quais estão contidos processos de educação e de poder. Educação e poder são dois fenômenos que sempre andam juntos na dinâmica da organização social. Diz Moacir Gadotti (1998, p. 22) que “a questão da educação nunca esteve separada da questão do poder. Os que ainda insistem que a educação é uma questão técnica, na verdade estão ocultando, atrás da razão técnica, um processo político”. Pelas falas dos associados buscar-se-á identificar e entender esses processos de educação e poder. Georges Lapassade (1989, p. 101) define como “organização social uma coletividade instituída com vistas a objetivos definidos, tais como a produção, a distribuição de bens, a formação de homens”. As cooperativas são, no nosso entender, organizações dessa natureza. São organizações que se instrumentalizam, constituindo-se em um empreendimento comum com vistas a buscar alcançar esses objetivos. Lapassade (1989), ao definir esse tipo de organização social, refere-se a “empresas no sentido mais amplo”, incluindo dimensões não econômicas como a formação de homens. Cooperativas são, exatamente, empresas com um sentido mais amplo: com sentido econômico, com significado político, social, cultural. O empreendimento cooperativo tem um sentido mais amplo que apenas a organização de um negócio. O negócio cooperativo, o seu sentido econômico, é a base do empreendimento, mas o seu sentido amplo contém outros significados e reflexos. Por isso, pode-se dizer que as atividades da cooperação e a sua gestão representam uma ação social organizadora que guarda significados para além dos seus objetivos, do seu sentido econômico. O impacto da existência e da atuação de uma cooperativa sobre o meio que a abriga tem significados de ordem cultural, educativa, política ou social. 44 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária De um modo prático, de acordo com os Quadros 2 e 3, pode-se afirmar que o empreendimento cooperativo tem dois polos: a associação que se instrumentaliza pela empresa. Na associação está a ação dos sujeitos e na empresa está a estrutura operacional, entretanto constituem esses polos uma unidade, absolutamente entrelaçada. Como afirmamos, o desenho esquemático dos dois polos serve apenas ao esforço explicativo e de compreensão da natureza de uma organização cooperativa. Além disso, resguardadas as limitações do uso dos termos já consagrados, poderíamos dizer de outra maneira, que uma organização cooperativa é composta por uma estrutura e superestrutura, representadas por seu sentido econômico e seus significados culturais, políticos, sociais. Ou melhor, à estrutura que incorpora a parte econômica da organização corresponde a empresa; à superestrutura que incorpora o processo político do empreendimento cooperativo corresponde a associação. Talvez a noção de ação e estrutura seja uma forma adequada para definir a complexidade de uma organização cooperativa. Quadro 2 – Conceito de Organização Cooperativa Fonte: Elaboração do autor O Quadro 2 sintetiza um conceito de organização cooperativa: uma cooperativa é uma ação política, organizada pelo entrelaçamento de dois polos fundamentais – a associação e a empresa – que se fundem e tomam corpo, por meio de uma estrutura de relações e funções técnicas e operacionais. A percepção desse conceito e de sua implicação prática para o funcionamento de uma cooperativa deve ser um dos conteúdos básicos para programas de educação para a cooperação. Uma organização cooperativa é, antes de tudo, uma associação de pessoas e não de capitais que se propõe a atuar na perspectiva da economia dos componentes dessa associação, isto é, na perspectiva de sua racionalidade econômica como economias individuais. Ao fazê-lo, porém, essa associação cria, organiza e estrutura um instrumento adequado que vem a ser a empresa cooperativa: – uma empresa comum com o objetivo de apoiar e complementar a administração das economias individuais, dando-lhes suporte no jogo competitivo do mercado. 45 EaD Walter Frantz Essa característica diferenciada – como associação e como empresa – remete a duas questões fundamentais para o sucesso do empreendimento cooperativo. Primeiro, da natureza associativa decorre a necessidade da participação política de seus associados na condução do empreendimento cooperativo e, segundo, da natureza empresarial decorre a necessidade da participação econômica dos associados na cooperativa. A viabilização da participação política e da participação econômica é uma questão central na administração do empreendimento cooperativo, condicionada pela racionalidade da natureza do próprio ato associativo, isto é, ninguém contribui com recursos na organização cooperativa pelo simples prazer de contribuir. Existem objetivos, interesses e necessidades que levam a isso. Esses aspectos dão sentido e significado à cooperação. Seção 2.2 Um Modelo Ideal de Organização Cooperativa O significado do cooperativismo é sempre construído na prática. O verdadeiro significado do cooperativismo vem de sua prática, da capacidade de gestão dos projetos cooperativos, que dependem de muitos fatores, dentre os quais o próprio conhecimento e compreensão de todas as suas dimensões e possibilidades, não o reduzindo apenas a um instrumento de mercado. Não se pode desconhecer os fatores externos que lhe advêm dos contextos maiores de sua inserção no mercado competitivo, os desafios e as dificuldades que estes interpõem. Também não se pode desconhecer as potencialidades de seus fatores imateriais internos, de suas dimensões não econômicas, de seus significados. Na percepção desses fatores, desses significados, está também um dos requisitos mais importantes para uma boa gestão de organizações cooperativas. Percebê-los e administrá-los adequadamente é um dos maiores desafios aos dirigentes e administradores de organizações cooperativas. 46 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Quadro 3 – Um modelo ideal de organização e funcionamento de uma cooperativa Fonte: Elaboração do autor. O Quadro 3 procura representar, com maior detalhamento, a dinâmica funcional-operacional dessa estrutura. Procura representar a unidade da natureza cooperativa, a funcionalidade-operacional da questão das relações e espaços de poder institucionalizados. No espaço que se abre entre a associação e a empresa, constituindo a unidade da organização cooperativa, está toda a complexidade da estrutura do poder operacional do empreendimento cooperativo. A ação do poder institucional é exercida pelas atividades de planejamento, de organização, de direção, de controle e de avaliação do processo administrativo. Os aspectos políticos das atividades desse processo são inerentes à associação, enquanto os aspectos técnico-operacionais são inerentes à empresa. A estrutura do poder funde em uma dinâmica construtiva o sentido e os significados da organização cooperativa. Especialmente, na associação realizam-se os seus significados culturais, políticos ou sociológicos. Na associação concentra-se o processo do diálogo, da comunicação, do debate entre os associados, por meio de reuniões, encontros ou outras formas de participação. A associação é, por excelência, o espaço do poder político da organização cooperativa. Mediante esse processo os associados definem os seus objetivos, explicitam os seus interesses e necessidades. Nesse processo identificam-se, aproximam-se, educam-se, constroem relações de poder e organizam a sua participação política no empreendimento cooperativo. 47 EaD Walter Frantz A empresa constitui a instrumentalização da associação para operar a consecução de seus objetivos nas relações de poder, especialmente, com o mercado. É o espaço de realização do sentido da organização cooperativa, portanto é o espaço da participação econômica, onde são definidas as relações operacionais, técnicas e funcionais. É o espaço do poder burocrático de operacionalização das decisões políticas que lhe chegam pelos canais institucionais das assembleias, dos conselhos, dos comitês ou comissões. Erik Boettcher (1974, p. 22), ao tratar da cooperação e da democracia na economia, define a cooperação como uma ação consciente e combinada entre sujeitos com vistas a um determinado fim, isto é, um fim econômico, em que as atividades individuais dos sujeitos envolvidos são coordenadas, mediante negociações, discussões, arranjos e acordos. Trata-se, portanto, de uma ação organizada, no espaço da associação, mas que se busca realizar em seus detalhes operacionais pela instrumentalização dessa organização, no espaço da empresa, especialmente, pelas relações com o mercado. Como se pode constatar, para Boettcher a cooperação começa pela interação de sujeitos. A motivação dessa interação tem sua base no sentido econômico da cooperação, isto é, na racionalidade técnica da organização instrumental com o objetivo de dar suporte às economias dos cooperantes. No processo da interação dos sujeitos, contudo, estão dimensões e significados da cooperação que se distinguem da racionalidade técnica. Constrói-se poder de representação política, instauram-se processos educativos, firmam-se e desenvolvem-se diferentes relações e inserções no contexto da sociedade que não têm como base o sentido estritamente econômico do empreendimento cooperativo. Igualmente, o autor reconhece a cooperação de pessoas jurídicas que fazem acordos, negociações. O seu conceito de cooperação é, portanto, mais amplo, incluindo-se as economias de pessoas jurídicas.2 De fato, muitas são as situações de pequenas economias, predominantemente familiares, que constituem pessoas jurídicas como base de organização legal. Na verdade, porém, representam essas pessoas jurídicas a instrumentalização individual de pessoas físicas. Trata-se de uma forma jurídica de organização do trabalho dessas pessoas, mais que do capital em si. Assim, uma cooperação desse tipo de pessoas jurídicas é, na realidade, uma cooperação de pessoas físicas cujas economias individuais estão organizadas, de acordo com uma legislação que regulamenta suas atividades, o seu trabalho. No caso, existe uma identidade, quase perfeita, entre a economia individual organizada dessas pessoas físicas e a sua organização como pessoas jurídicas. 2 Boettcher define a cooperação (Zusammenarbeit) como “das bewusste Handeln von Wirtschaftseinheiten (natuerlichen und juristischen Personen) auf einen gemeinsamen Zweck hin, wobei die Einzelaktivitaeten der Beteiligten durch Verhandlung und Abmachungen koordiniert werden” (1974, p. 22). 48 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A partir da definição de Boettcher, pode-se entender que a cooperação é, em seu princípio constituinte, um acordo racional de sujeitos a respeito de algo: os seus interesses e necessidades, diante da produção e distribuição de bens e riquezas, isto é, a economia. Diante dessas definições, pode-se (re)afirmar que organizações cooperativas são fenômenos relativamente complexos. Nascem da articulação e da associação de indivíduos, tendo por base as suas economias, que se identificam por interesses ou necessidades comuns, buscando o seu fortalecimento pela organização e instrumentalização, com vistas a objetivos e resultados específicos, normalmente de ordem econômica. Na definição do que vem a ser uma cooperativa, o reconhecimento da natureza associativa e instrumental é essencial como ponto de partida para a sua conceituação e sua diferenciação de outras empresas privadas ou estatais. Esse (re)conhecimento, em nosso entendimento, talvez seja um dos maiores desafios às políticas de gestão de um empreendimento cooperativo, entendidas, não pela razão técnica, mas pela razão comunicativa e pela qual se reconhece nelas um sentido pedagógico. Está inerente à gestão de uma organização cooperativa o desafio de que seus administradores se descubram e qualifiquem como pedagogos, como educadores. Isso não significa capacitar-se apenas para falar sobre a questão da educação, especialmente, nas organizações cooperativas, mas desafia o gestor a falar de sua própria educação para a cooperação, daquilo que ele próprio faz como associado ou entende ser uma cooperativa, ou melhor, uma prática cooperativa. A definição e a compreensão de cooperativa estão também condicionadas pela dinâmica do mundo do trabalho, da economia. No contexto da globalização o trabalho, como núcleo da estrutura social, sofre grandes transformações tecnológicas e organizativas. Como uma reação a esse cenário, atualmente, ressurge o cooperativismo, novamente como prática econômica de produção e distribuição, a exemplo de outros períodos difíceis da história do trabalho. Muitas questões sociais inerentes ao processo de globalização, sejam elas culturais, políticas ou econômicas, passam pela organização cooperativa. Nesse sentido, o cooperativismo é expressão de uma reação organizada, instrumentalizada, e, como tal, também contém dimensões outras que não apenas a econômica. A organização cooperativa adquire, inclusive, significados que vão além de seu sentido, estritamente econômico e voltado aos seus associados. Constitui-se como um bem público e desenvolve significados para o contexto social maior. Hoje, inclusive, constitui-se em um dos fundamentos filosóficos de sua organização e funcionamento da cooperação a preocupação com a comunidade. As organizações cooperativas, nesse contexto dos efeitos da globalização, tornam-se também importantes espaços de educação, de aprendizagem e de construção de poder, condições necessárias para o enfrentamento das condições adversas do rápido e profundo processo de trans49 EaD Walter Frantz formações, sobretudo no mundo do trabalho. Muitas vezes, porém, esse parece ser um aspecto de difícil viabilização, diante da redução da organização a um mero instrumento de mercado. Não se pode desconhecer a importância desse sentido instrumental, mas é um desafio à gestão do empreendimento cooperativo não perder a noção do “sentido mais amplo da empresa”. Por conta de uma releitura crítica da prática histórica do cooperativismo, especialmente da prática cooperativa no meio rural, pode-se levantar a hipótese de que foram descuidadas, muitas vezes, as questões dos sujeitos, das culturas, da solidariedade e dos valores, isto é, as questões do mundo da vida, na expressão habermasiana, em favor dos processos de racionalização sistêmica das atividades de cooperação. A razão técnica prevaleceu sobre a razão comunicativa. Não se trabalhou, adequadamente, a questão da organização cooperativa pela interação comunicativa dos associados, diminuindo a resistência destes ao processo de colonização na instituição do projeto cooperativo por mecanismos sistêmicos de racionalização. Essa questão aparece em muitas entrevistas, junto a associados, espontaneamente, tão logo se comece a falar sobre as suas experiências de organizações cooperativas.3 As organizações cooperativas, como associações e empresas, confrontadas com a problemática das transformações, exigem de seus associados conhecimentos, capacidade de articulação, identificação coletiva e responsabilidade social. Assim, podem constituir-se em importantes núcleos regionais de capital social. Além, é claro, de permitirem uma acumulação cooperativa de capital ou de recursos materiais, sob controle democrático. As práticas de controle democrático nas cooperativas, além da sua expressão como força e poder, constituem-se em um privilegiado campo de educação, de formação e qualificação dos associados. Como espaços de democracia, podem as cooperativas desenvolver importante capital social, sem o qual também não há desenvolvimento sustentável propriamente dito. Entende-se por capital social o conhecimento, a aprendizagem, a socialização, os comportamentos, os valores, as ideias, etc. Essas são importantes dimensões de seus significados no campo da educação e nos espaço das relações sociais de poder. A educação é um processo que se realiza, de forma complexa e múltipla, nas relações sociais, as quais ocorrem nos mais diferentes espaços da vida humana: no trabalho, nos grupos sociais, nos movimentos sociais, na família, na escola, na igreja, no partido político, no sindicato e na cooperativa. É um fenômeno que contém aspectos técnicos, políticos e culturais. As características cognitivas das práticas, técnicas, econômicas ou políticas, inerentes à complexidade do fenômeno social da cooperação, contribuem para o processo educativo em organizações cooperativas. De acordo com o José Carlos Libâneo (1998, p. 18), Entrevistas feitas com associados da Cotrijuí quando da realização de projeto de pesquisa. 3 50 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária [...] um dos fenômenos mais significativos dos processos sociais contemporâneos é a ampliação do conceito de educação. [...] as transformações contemporâneas contribuíram para consolidar o entendimento da educação como fenômeno plurifacetado, ocorrendo em muitos lugares, institucionalizado ou não, sob várias modalidades. Libâneo (1998, p. 22), define a educação como sendo [...] o conjunto das ações, processos, influências, estruturas, que intervêm no desenvolvimento humano de indivíduos e grupos na sua relação ativa com o meio natural e social, num determinado contexto de relações entre grupos e classes sociais. Entende ele a educação como uma prática social “que atua na configuração da existência humana individual e grupal” (Libâneo,1998, p. 22). Como tal contém intenções, interesses, e produz-se nas relações dessas intencionalidades “enraizada no contexto geral da sociedade” [...] tendo “como agentes múltiplas instituições e práticas” (p. 24). Segundo este autor, [...] a educação associa-se, pois, a processos de comunicação e interação pelos quais os membros de uma sociedade assimilam saberes, habilidades, técnicas, atitudes, valores existentes no meio culturalmente organizado e, com isso, ganham o patamar necessário para produzir outros saberes, técnicas, valores, etc. É intrínseco ao ato educativo seu caráter de mediação que favorece o desenvolvimento dos indivíduos na dinâmica sociocultural de seu grupo, sendo que os conteúdos dessa mediação são os saberes e modos de ação. É esta idéia-força que explica as várias educações, suas modalidades e instituições (p. 24). Pode-se afirmar que organizações cooperativas se constituem em campos de educação e espaços de poder, fundados no sentido da organização e na atuação de seus associados, fundamentais as suas condições de estabilidade como organização, mas também processos de educação e de poder ocorrem a partir de fatores externos à organização, vindos dos contextos da cultura, da economia e da política, por exemplo, nos quais a cooperativa está inserida. Assim, os processos de educação e de poder contêm e estão sob a ação de fatores endógenos e exógenos. A organização cooperativa, de modo especial, no contexto da economia e da política, é um lugar social que possibilita aos seus envolvidos a produção de conhecimentos a respeito da realidade social, de sua “trama” de funcionamento no processo de produção e de distribuição de riquezas. Identificar as práticas ou ações educativas, as relações de poder, inerentes às organizações cooperativas e compreendê-las, segundo a sua racionalidade e funcionalidade, é fundamental para a construção das condições de estabilidade de uma cooperativa, uma vez que esta deve ser produto de uma ação consciente e combinada entre sujeitos com vistas a um determinado fim. 51 EaD Walter Frantz A educação como ação ou como prática social aparece, muitas vezes, nas organizações cooperativas de forma difusa, associada a processos de comunicação, de interação entre os associados, dirigentes, funcionários ou outros interlocutores presentes no espaço da cooperação. Aparece como uma ação entre sujeitos ou como uma prática sobre sujeitos, procurando influenciálos em suas ideias, modos de pensar, de interpretar a vida social, especialmente a da realidade cooperativa, sugerindo ou levando-os a comportamentos e visões de mundo favoráveis à natureza da prática cooperativa. Da mesma forma, pode-se perceber a questão do poder nas organizações cooperativas. Este aparece, muitas vezes, como um conjunto de relações presentes nos processos formais de funcionamento de uma cooperativa, sejam elas relações de posse, de uso ou de controle do conhecimento, do saber tecnológico, de produção, uso ou controle da informação, de comunicação, de administração ou de operação técnica das atividades e objetivos da cooperativa. A questão do poder está nesses espaços da organização, entre pessoas ou grupos de associados, de acordo com seus interesses ou capacidades de articulação. No espaço da cooperação, como associação ou empresa, é construído poder. Essa construção, no entanto, é um processo complexo, de múltiplas direções e que revela diferentes relações. Uma cooperativa pode ser definida, teoricamente, como um espaço de poder. Um poder buscado pela cooperação, porém esse espaço de poder não existe em si mesmo. Ele existe em função de objetivos e interesses concretos, a partir dos quais passa a ser articulado. A noção de cooperativa, conforme já foi visto, leva a imaginar um grupo de indivíduos, organizados entre si, em bases associativas, com o intuito de assim se fortalecerem na consecução de determinados objetivos e interesses comuns. Sendo esses objetivos econômicos, o espaço de poder desses indivíduos é organizado no contexto da correlação de forças e interesses que agem sobre a produção e a distribuição dessa produção na sociedade. Na economia de mercado, a organização do espaço de poder se dá em relação ao exercício de poder no mercado, isto é, em relação à atuação da cooperativa no contexto desse mercado. 52 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Quadro 4 – O sentido econômico da organização cooperativa Fonte: Elaboração do autor. Por isso, [...] a questão do poder nas organizações cooperativas aparece, muito mais, sob o ponto de vista econômico e do exercício desse poder no mercado. Aparece como algo que se dá, se organiza, em função da natureza do sistema econômico e de sua atuação nele. Aparece mais a ‘face empresarial’ do ato cooperativo e, nesse caso, o exercício do poder está mais vinculado à administração e à operacionalização da empresa cooperativa. Esse poder se localiza na esfera da articulação dela com o mercado (Frantz, 1986, p. 56). É um poder, em princípio, voltado para fora da organização. Sendo, no entanto, a cooperativa uma associação que organiza um instrumento de atuação, isto é, uma empresa, em função dos objetivos presentes nessa associação, ela também contém um poder que se exerce na interação dos associados entre si, destes em relação ao mercado, por meio da empresa-cooperativa e, consequentemente, estabelece-se uma relação da empresa com seus associados. Na interação dos associados entre si as relações de poder nas organizações cooperativas podem também refletir as relações de poder existentes no contexto da sociedade, isto é, as relações de poder existentes nas estruturas sociais da sociedade. Quando isso acontece, a 53 EaD Walter Frantz organização cooperativa corre o risco de ter nela instalados conflitos, transpostos das estruturas sociais para dentro do empreendimento cooperativo, representando uma ameaça concreta a sua estabilidade. É fundamental que essa situação seja administrada, pela via do diálogo, levando-se sempre em conta os objetivos do empreendimento cooperativo acordados entre os associados. Essa situação constitui-se também em um desafio à educação para a cooperação e que deve ser resolvido no âmbito da associação-cooperativa. Não se pode desconhecer que, hoje, os interesses capitalistas conformam os indivíduos, tanto no campo da economia quanto da política, da cultura ou da educação. Instauram-se contradições entre o sentido da vida, o do trabalho e o do capital. Cada vez mais as pessoas são construídas pelos valores do sistema capitalista. Também não se pode desconhecer, entretanto, que o debate sobre essas contradições pode levar à consciência política e à constituição de forças capazes de se contrapor ao sistema, por meio de movimentos sociais. Pelo reconhecimento, análise e interpretação das contradições, isto é, pela conscientização, os indivíduos associados podem reconstruir caminhos pedagógicos da cooperação ao se fazerem sujeitos e atores políticos pelo debate sobre a experiência social da organização cooperativa, instituindo uma interação educativa. As práticas de organização e funcionamento de uma cooperativa podem ser espaços privilegiados dessa interação educativa, seja pelo diálogo sobre a cooperação em si, ou seja, pelo debate sobre as contradições inerentes a essas práticas, em meio a uma racionalidade pautada pela concorrência entre as unidades econômicas e pela busca da remuneração do capital. Na organização social cooperativa, a educação acontece, mediante a participação política, pelo diálogo de saberes a respeito das práticas de cooperação. Não apenas pela troca de informações ou pela aceitação das proposições dos outros, mas pela busca crítica do entendimento daquilo que acontece entre as pessoas envolvidas na cooperação. Por isso, quando o diálogo falha, corre risco o projeto cooperativo. Uma organização cooperativa se caracteriza, em termos sucintos, por dois polos: um associativo e outro instrumental, isto é, empresarial. Como tal, uma cooperativa é uma ação política, organizada pelo entrelaçamento desses polos. “A percepção desse conceito e de sua implicação prática para o funcionamento de uma cooperativa deve ser um dos conteúdos básicos para programas de educação para a cooperação” (Frantz, 2002, p. 75). 54 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária No caso de uma organização cooperativa, o diálogo, no espaço da associação, isto é, entre os associados, é fundamental à produção de uma consciência crítica que instrumentalize o seu controle social. Para Paulo Freire, segundo Jaime José Zitkoski (2008, p. 130), “o diálogo é a força que impulsiona o pensar crítico-problematizador em relação à condição humana no mundo. Através do diálogo podemos dizer o mundo segundo nosso modo de ver”. A educação para a cooperação, voltada à organização e funcionamento de uma cooperativa, pode ser definida como uma ação “entre sujeitos” que buscam construir acordos, influenciandose em ideias e modos de pensar comuns, favoráveis à natureza da prática cooperativa (Frantz, 2003, p. 20). A instituição de um processo de educação pelo diálogo entre os associados se dá como uma condição inerente e indispensável à organização e ao funcionamento da cooperativa. “Em razão da natureza da organização cooperativa – associação e empresa –, a educação, como formadora e qualificadora de seus integrantes, se constitui em um dos aspectos fundantes de sua estrutura de poder, de seu controle político, de sua gestão” (Frantz, 2003, p. 28). Afirma François Dubet (1994, p. 33), “para que o actor actue, importa [...] que ele tenha integrado na sua personalidade as razões de agir e de desejar os fins comuns”. Isto é, a educação como processo pedagógico que pode conduzir à conscientização a respeito do fenômeno social da cooperação e da capacitação de seus atores ao controle social da organização e funcionamento da cooperativa. Certamente aqui nasce um dos maiores desafios à educação para a cooperação, especialmente se for compreendida como educação popular. De acordo com Alfonso Torres (2008, p. 13-14), não existe uma única compreensão ou definição de educação popular, entretanto o autor aponta algumas características que podem formar um núcleo comum: uma leitura crítica da ordem social vigente, uma intencionalidade política emancipadora, uma contribuição ao fortalecimento dos setores dominados como sujeitos históricos capazes de promover a transformação social, a construção e o emprego de metodologias educativas dialógicas, participativas e ativas. Segundo Torres (2008, p. 14), todas as propostas de educação popular, na América Latina, fazem referência ao caráter injusto da ordem social de relações capitalistas. No entendimento do autor (2008, p. 22), a educação popular pode ser definida como práticas sociais e elaborações discursivas nos espaços da educação com a intenção de contribuir para que as camadas populares possam se constituir sujeitos de transformação da ordem social injusta. Enfim, a educação popular tem suas raízes na luta pela promoção das necessidades e dos interesses das camadas populares, isto é, das camadas sociais menos favorecidas. Pode-se reconhecer que esse “fundo histórico” faz a “ligação” entre o movimento cooperativo e a educação 55 EaD Walter Frantz popular. Assim sendo, revela a importância da afirmação da educação popular como instrumento de controle social, de gestão política, das iniciativas cooperativas, especialmente as do campo popular. Pode-se reconhecer o encontro entre a concepção de educação popular e a história do movimento cooperativo como um movimento social de reação à submissão do trabalho ao capital. Nesse reconhecimento está o potencial educativo do movimento cooperativo, apesar dos limites que advêm de seu atrelamento e sua instrumentalização em favor do projeto do capital. Esse potencial educativo não decorre de conceituação teórica da organização cooperativa. Decorre da conscientização de seus associados em relação às contradições do sistema maior que buscam transformar e cuja lógica econômica submete tanto o coletivo da cooperação quanto os próprios associados, individualmente. Síntese da Unidade 2 Nesta Unidade você pôde entender melhor a caracterização e a definição de uma organização cooperativa, em termos filosóficos e teóricos e seu potencial como um lugar de educação. Uma organização cooperativa se caracteriza, em termos sucintos, por dois polos: um associativo e outro instrumental. Como tal, porém, uma cooperativa é uma ação política, organizada pelo entrelaçamento dinâmico das especificidades funcionais de cada um desses polos. As práticas contraditórias do processo social da organização e do funcionamento de uma cooperativa, na economia de mercado capitalista, permitem reconhecer o seu potencial de educação popular. Ao serem submetidas ao diálogo entre seus associados, questionando-as, pode-se promover uma nova consciência a respeito das práticas cooperativas, construindo caminhos de educação popular nos espaços das relações de cooperação. 56 EaD Unidade 3 associativismo, cooperativismo e economia solidária A COMPREENSÃO DA AÇÃO E DA ESTRUTURA COOPERATIVA OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer e entender com maior profundidade o sentido e a ação da organização cooperativa, nas relações de mercado, a partir de dados empíricos. Seção 3.1 O Cooperativismo Como Fenômeno Social Complexo O cooperativismo não é uma ciência; é uma prática social. Por isso, recorre-se às diversas ciências para melhor entendê-lo. As pessoas que se ocupam dessa prática social podem se servir de teorias do campo científico para compreender melhor aquilo que fazem ou o que ocorre nas organizações cooperativas. É importante, no entanto, ter o cuidado de não “recortar” a realidade da prática social de modo a “adaptar-se” ao quadro referencial teórico. A teoria deve servir ao entendimento da prática, porém ela não consegue explicar toda a prática. Sempre restam dúvidas ou surgem novas perguntas que levam a novos conhecimentos, ao final, a novas teorizações. Para a reflexão sobre o funcionamento de organizações cooperativas, deve-se buscar interlocução, diálogo, em diferentes campos de conhecimento, junto aos seus diversos teóricos. Normalmente, para isso, recorre-se ao campo das Ciências Sociais. Os seus conceitos teóricos podem servir de orientação às reflexões sobre a organização e o funcionamento de cooperativas que se quer desenvolver. O recurso a esses conceitos explicativos teóricos permite expandir o pensamento e a noção compreensiva das atividades de cooperação, das práticas do cooperativismo. O confronto entre a teoria e a prática pode produzir melhor clareza, melhor compreensão daquilo que acontece, no dia a dia, dentro de uma organização cooperativa. 57 EaD Walter Frantz Na verdade, de certo modo, também todos os associados e funcionários, além de práticos, são também teóricos do cooperativismo, pois, ao discutirem sobre as suas experiências, produzem novos conhecimentos, elaboram conceitos que os ajudam a compreender melhor aquilo que acontece e que se faz nas cooperativas. Assim, pelo caminho da prática-reflexão-prática, os associados e os funcionários desenvolvem conhecimento, base para novas teorizações. A percepção e a sistematização desses conhecimentos, elaboradas nas práticas, podem se constituir em uma das melhores orientações para a gestão das cooperativas. Quanto mais se compreende os fenômenos e os acontecimentos em todos os espaços da vida, mais possibilidades de organização e ação se apresentam, diante de suas dificuldades ou interesses. Entre o conhecimento e a ação dos homens existe uma estreita relação. Dessa relação nasce o poder de ação. Pela organização cooperativa busca-se poder de ação. Assim sendo, faz sentido aprofundar o conhecimento teórico sobre o que é e como funciona uma cooperativa. O exercício do poder cooperativo depende dessa compreensão, depende de conhecimento. O cooperativismo é um fenômeno social complexo e, de certo modo, polêmico. Diante da complexidade e da polêmica, é compreensível que surjam incertezas, muitas dúvidas e perguntas a respeito das práticas cooperativas, tais como: Qual a racionalidade da cooperação? Qual o uso social dos ideais e princípios do cooperativismo? Quais os mecanismos que regulam a organização cooperativa? Qual a relação entre a ação de cooperação dos indivíduos associados e a estrutura de organização cooperativa? Quais os efeitos dessa relação? Qual a solidariedade necessária à cooperação? Deve a organização cooperativa, como reação a uma situação de problemas ou dificuldades, também cultivar as dimensões não econômicas do fenômeno cooperativo? Teria a cooperação, predominantemente, suas raízes no egoísmo do ser humano, na busca por maximizar, individualmente, as vantagens entre diferentes escolhas, ou seria a cooperação também expressão de uma dimensão ou natureza solidária da sociabilidade do ser humano? Como deve ser a gestão de uma cooperativa, diante disso tudo? Diante das incertezas e das perguntas, abrese o campo da pesquisa para as diversas ciências, para a teorização. Afirma Morin (2000a, p. 59) que a condição humana está marcada pelas incertezas. Mais que lacunas, portanto, as incertezas e questionamentos a respeito da natureza do cooperativismo são elementos componentes da prática da cooperação. Não é na certeza, mas no diálogo entre os diferentes saberes que está o valor da pesquisa e o caminho de novas respostas. Constituir as condições do diálogo científico entre os diversos saberes e teorias é tarefa central à produção de conhecimento sobre as práticas cooperativas. A prática da pesquisa constitui o espaço de articulação e entrelaçamento das ciências, no caminho das teorias de explicação da ação e da estrutura de organização cooperativa. Ensina Marques (1998, p. 98) que 58 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária cumprida primeira tarefa de desenhar o seu tema, ou o eixo central, a espinha dorsal, de sua pesquisa, cabe agora ao pesquisador convocar uma específica comunidade de argumentação em que se efetive o unitário processo de interlocução e certificação social de saberes postos à discussão em cada tópico a ser desenvolvido. O estudo e a pesquisa dessas dúvidas e perguntas constituem, hoje, após as diferentes experiências, a base de minha nova relação com o cooperativismo, de modo especial com as organizações cooperativas do meio rural. Os laços com o tema e a inquietação por sua melhor compreensão e a necessidade de encontrar respostas às perguntas acumuladas, ao longo dos anos de vivências e práticas, me reconduzem, agora, pelos caminhos do estudo e da pesquisa, ao histórico lugar social de sonhos e esperança: as famílias da agricultura familiar, de alguma maneira, sempre depositaram no associativismo e na organização cooperativa uma esperança de poder melhorar, por meio de suas múltiplas práticas, as suas condições de vida. Assim, espero poder contribuir para a compreensão do sentido econômico da ação cooperativa e do conteúdo social, político e cultural da organização cooperativa. O cooperativismo é uma prática social, em cujo centro se encontram questões do mundo da vida, especialmente as ligadas a sua base material. Como prática social, está condicionada a diferentes tempos e lugares. Diante do quadro de profundas transformações pelas quais passa a sociedade contemporânea, ressurge o cooperativismo, especialmente no campo do trabalho, da economia, com diferentes sentidos e funções. Em muitas circunstâncias, as cooperativas aparecem mais como meios de garantir a “inscrição na estrutura social”, procurando evitar a exclusão social. Em outras circunstâncias, a cooperação se constitui em um instrumento de poder nas relações econômicas do mercado. Organizações cooperativas nascem como fenômenos sociais complexos, da articulação e da associação de indivíduos que se identificam por interesses ou necessidades, buscando o seu fortalecimento pela organização e instrumentalização, com vistas a objetivos e resultados, predominantemente, de ordem econômica. A cooperação é, em seu princípio constituinte, na economia de mercado, um acordo racional de sujeitos sobre algo, isto é, a economia, e os seus interesses e necessidades diante da produção e distribuição de bens e riquezas. Esse acordo se desenvolve, política e operacionalmente, nos espaços da associação e da empresa cooperativa, mediada pela comunicação. A economia envolve aspectos de ordem técnica e política. É algo construído, inacabado, dinâmico, submetido a interesses. É um espaço entrecruzado de poder técnico e de poder político, no qual atuam os seus agentes e que é produzido a partir do conhecimento dessa dupla dimensão e relação. Assim, no espaço da organização cooperativa, fazem-se presentes também questões sociais, políticas e culturais, que perpassam a sua natureza associativa e seu caráter instrumental. 59 EaD Walter Frantz A cooperação é uma ação que decorre de um ato de vontade política de indivíduos que passam a se identificar como sujeitos e atores, a partir de necessidades ou interesses comuns, em um determinado contexto social. Passam a pensar e a agir de uma forma ordenada e esclarecida, associando-se na interação, com vistas à realização de seus objetivos. Normalmente, trata-se da afirmação de necessidades e interesses econômicos, no contexto do mercado, isto é, os associados buscam a valorização de seu trabalho. A cooperação, nesse caso, pode ser definida como um ato racional, de inteligência, pelo qual o contexto da realidade se torna compreensível, permitindo a ação organizada dos sujeitos sobre ela. Essa realidade pode ser a da produção e distribuição de riquezas, isto é, a realidade do mercado. Os associados produzem clareza a respeito da realidade e do contexto que os envolve, organizam ações de intervenção em favor dos seus objetivos comuns. Assim, constituem-se atores no complexo jogo das relações econômicas e sociais do mercado. Pela organização cooperativa buscam constituir poder nas relações de mercado. Uma cooperativa pode ser definida, teoricamente, como um espaço de poder. Um poder buscado pela cooperação. Porém, esse espaço de poder não existe em si mesmo. Ele existe em função de objetivos e interesses concretos, a partir dos quais passa a ser articulado socialmente, [...] o espaço de poder desses indivíduos é organizado no contexto da correlação de forças e interesses que agem sobre a produção e a distribuição dessa produção na sociedade. Na economia de mercado, essa organização se dá em relação ao exercício do poder, isto é, em relação à atuação da cooperativa no contexto desse mercado. [...] Pela organização cooperativa os indivíduos buscam o poder de inserção no mercado: onde desfrutam de uma posição individual de força econômica inferiorizada (Frantz, 1986 p. 56). Organizações cooperativas abrigam diferentes relações de poder, diferentes práticas e ações de educação. Nessas práticas ou ações educativas ou relações de poder podemos encontrar interações do tipo comunicativo, isto é, entre os associados que discutem sobre a cooperação, ou do tipo estratégico, interações técnicas de mando, nos espaços operacionais da empresa. A educação e o poder são questões fundamentais, inerentes às organizações cooperativas, fundamentais às condições de estabilidade do empreendimento cooperativo. Tanto as relações do ato cooperativo quanto as relações dos negócios cooperativos se consolidam pela gestão adequada dessas duas questões, inerentes à associação e à empresa com finalidade cooperativa. O poder é organizado no contexto da correlação de forças e interesses que agem sobre a produção, a sua posse e distribuição. As diferentes relações de poder ocorrem nos espaços da associação e da empresa, ou no espaço que se constitui entre esses dois polos do empreendimento cooperativo. 60 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Em entrevista, no ano de 2000, realizada com os associados da Cooperativa Regional Tritícola Serrana Ltda. (Cotrijuí), 91,1% responderam que a cooperativa representa força, poder. Somados aos 5,7% que responderam que apenas em parte representa força e poder, verifica-se que 96,8% dos associados entrevistados acreditam que a organização cooperativa representa poder. As razões apontadas para essa crença estão 60,6% fundamentadas no campo político, isto é, na associação, e 25,2% na empresa, quer dizer, no campo econômico. Apenas um entrevistado respondeu que a força, o poder da cooperativa, reside na legislação.1 Isso revela que o associado tem consciência do poder de associação e organização, percebendo-se, individualmente e coletivamente, como força de atuação política e poder operacional nas relações de marcado. A questão do poder aparece como um conjunto de relações presentes nos processos formais de funcionamento, sejam eles de domínio, uso e controle do conhecimento, do saber tecnológico de produção, uso e controle da informação, da comunicação, da administração ou da operação técnica das atividades e objetivos da cooperativa. Está nos espaços da organização, entre as pessoas ou grupos de associados, está nas relações com os agentes do mercado. A educação como ação social ou como prática social aparece, muitas vezes, de forma difusa, associada a processos de comunicação, de interação entre os associados, dirigentes, funcionários ou outros interlocutores, presentes no espaço da cooperação. Aparece como uma ação “entre sujeitos” ou como uma “prática sobre outros”, procurando influenciá-los em suas ideias, modos de pensar, de interpretar a vida social, especialmente a da realidade cooperativa, sugerindo ou levando-os a comportamentos e visões de mundo, favoráveis à natureza da prática cooperativa. De acordo com a mesma pesquisa realizada com os associados da Cotrijuí, 73,2% concordam que a participação em práticas cooperativas é uma espécie de “escola da vida”, 19,1% concordam em parte e 7,6% não concordam. Dos entrevistados 29,3% relacionam esse sentido educativo com a formação de ordem mais política, vinculado ao caráter associativo, 21,7% relacionam isso à formação geral, ao conhecimento, vinculada à informação, à visão de mundo, à construção de valores, ao estímulo à aprendizagem e 17,2% referiram-se à formação de ordem técnica, relacionada à empresa, à administração, à economia, ao que acontece na propriedade, na produção. Escreve José Pedro Boufleuer (1997, p. 22), “que toda e qualquer ação educativa constitui um tipo de interação humana”. Do mesmo modo pode-se afirmar que todo e qualquer tipo de poder constitui uma relação humana. Educação e poder acontecem na interação humana. Assim, na interação humana de organização e funcionamento de uma cooperativa produz-se educação e 1 A pesquisa foi realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e Cooperativa Regional Tritícola Serrana Ltda. (Cotrijuí), que depois mudou a denominação para Cooperativa Agropecuária e Industrial. 61 EaD Walter Frantz constrói-se poder. Isso acontece em função da “ordem social” que se busca construir. A organização e o funcionamento da cooperativa é uma “ordem social”, primeiramente, em relação ao grupo cooperativo, em relação aos seus integrantes que precisam estabelecer normas de comportamento, de interação, de orientação de suas ações individuais e coletivas, mas, também, o empreendimento cooperativo é o meio de construção de uma “ordem social” maior, de relações de mercado mais amplas, que os seus atores querem constituir, em vista de necessidades e interesses. Interpretando Jürgen Habermas, Boufleuer (1997, p. 23) escreve que para a viabilidade de uma ordem social, é necessário que se estabeleçam certos padrões de interação que permitam um entrelaçamento regular e estável de ações. Para que isso ocorra é necessário que as ações sejam coordenadas segundo regras, ou seja, que obedeçam a um mecanismo de coordenação. Em relação à organização cooperativa, isso nos permite afirmar que a educação para a cooperação obedece a um “poder de direcionamento”, a um mecanismo de coordenação das práticas educativas, proveniente do pacto associativo-cooperativo, celebrado pela vontade política dos sujeitos. A educação cumpre uma função construtora das condições necessárias à cooperação. Em decorrência desse entendimento e de acordo com concepções habermasianas, nas práticas ou ações educativas e nas relações de poder, inerentes às organizações cooperativas, é possível encontrar interações do tipo comunicativo ou do tipo estratégico que se constituem em seus mecanismos de coordenação. As interações comunicativas entre os cooperantes acontecem, predominantemente, no espaço associativo, quando discutem e decidem sobre a organização da cooperação e definem os objetivos a serem alcançados. As interações estratégicas ocorrem no espaço da instrumentalização co-operativa, quando da realização dos objetivos. Na associação-cooperativa esse “poder de direcionamento” estará embasado em uma interação comunicativa, isto é, em uma interação entre iguais, de um para o outro, viabilizando-se o pacto de direcionamento da organização. Teoricamente, de acordo com a legislação cooperativa, todos os associados têm os mesmos direitos e deveres, isto é, os mesmos poderes na organização e funcionamento da cooperativa.2 Pelo menos, em termos legais essa igualdade está posta, podendo servir de base para as relações de poder no exercício das práticas cooperativas. No polo da organização cooperativa, isto é, na instrumentalização-cooperativa, o processo de poder é coordenado por um mecanismo de interação de tipo estratégico, isto é, por uma relação hierárquica de um sobre o outro, do tipo empresarial. Em virtude da natureza da organização, porém, esse polo deve funcionar sob “controle de direcionamento” do poder político da 2 Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971. 62 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária associação-cooperativa, evitando-se a “politização” das funções burocráticas e técnicas em si. Por politização entende-se, aqui, uma atitude de supremacia, de mando, orientadora dos interesses e finalidades da organização e funcionamento da cooperativa. A “politização” dos setores de apoio, segundo o conceito de organização e funcionamento de uma cooperativa, representaria uma ruptura da noção de empresa-cooperativa, onde as relações de poder devem obedecer a uma estrutura técnica, funcional, executiva e sob controle, em última instância, dos associados. Na organização e funcionamento de uma cooperativa existem aspectos associativos, políticos, e aspectos organizativos, técnicos, cuja dinâmica relacional se constitui em núcleo central diferenciador de sua gestão. A gestão de uma cooperativa precisa considerar essas diferenças, os seus significados, que podem representar elementos de estabilização da aliança cooperativa. A compreensão da natureza da aliança de economias individualizadas é condição básica à educação para a cooperação. Seção 3.2 A Racionalidade da Cooperação na Economia de Mercado Ao se buscar distinguir entre associação e organização, encontra-se um suporte teóricoconceitual, na senda do pensamento sociológico de Karl Mannheim. As noções de associação e organização, em Mannheim (1962), permitem uma reflexão sobre essa dupla “natureza” de uma cooperativa: associação-cooperativa e empresa-cooperativa. Contribuem para entender o funcionamento de uma organização cooperativa, do que vai por dentro de uma prática de cooperação. São caminhos conceituais que ajudam na leitura e compreensão das questões de educação e de poder em organizações cooperativas. Na associação-cooperativa estão as pessoas com seus desejos, seus interesses ou necessidades, seus sentimentos, suas paixões e vontades. Nesse espaço definem os seus objetivos, mas que “continuarão em presença” com os demais aspectos da vida dos associados, exigindo, constantemente, uma ação comunicativa, orientada pela racionalidade de suas opções. Na empresa-cooperativa está a instrumentalização, está a estrutura, a estratégia, estão os mecanismos de realização dos interesses e objetivos que as levou a se associarem. A associação é o lugar dos acordos, dos debates, a organização é o lugar das regras, do contrato, da cooperação. Isso implica diferentes relações de poder e processos educativos. 63 EaD Walter Frantz Os sujeitos desenvolvem uma conduta racional em suas relações de identificação, uma conduta racional de associação, de cujo processo nascem formas de organização que instrumentalizam seus interesses e objetivos. Pela comunicação, no espaço da associação, organizam-se e estruturam seus instrumentos de ação cooperativa, desencadeando processos educativos e construindo relações de poder. Por isso, pode-se afirmar que organizações cooperativas se constituem a partir de dois polos, o associativo e o cooperativo-instrumental, perpassados por processos de educação e poder. Na associação-cooperativa está a vontade política e na empresa-cooperativa está o poder da ação instrumental dessa vontade. Para Mannheim (1962, p. 299), associações “são conscientemente organizadas com uma finalidade definida, racional. Não compreendem todos os aspectos da vida de seus membros, e é possível ingressar nelas, ou deixá-las, livremente”. Na definição do que seja uma organização cooperativa, além do aspecto associativo em si, temos o de organização instrumental consciente. Associar-se, racionalmente, significa fazer uma escolha, uma opção, de acordo com uma finalidade clara, consciente, obedecendo, portanto, ao princípio da livre adesão, em favor de uma organização com outros. É um ato racional, de luz, de clareza, dos que se associam, em favor de finalidades específicas: redução de custos, melhorias de preços, agregação de valor, ganhos de qualidade, de segurança, de competição, de poder nos espaços do mercado, etc. Mannheim afirma, bom base em diferentes abordagens sociológicas, que o termo racionalidade é empregado em dois sentidos: o de substancial e o de funcional. A racionalidade substancial define um ato de pensamento, de conhecimento. A racionalidade substancial existe, segundo ele, quando um ato de pensamento revela “percepção inteligente das inter-relações dos acontecimentos de uma determinada situação” (1962, p. 63). Como tal, pode-se interpretar esse ato de pensamento como fundamento de uma vontade política que se converte em ação na relação entre pessoas e que leva a escolhas, a opções, pela percepção inteligente das inter-relações dos acontecimentos, pelo esclarecimento de quem se associa. Esse conceito de racionalidade substancial pode ser empregado para definir e explicar a opção pela associação-cooperativa, por parte de quem percebe as vantagens da cooperação. Trata-se, portanto, de uma ideia política, esclarecida, carregada de vontade, apontando finalidades, interesses. O ato associativo é, assim, sob esse aspecto, um ato substancialmente racional, pois está fundado na percepção inteligente, no princípio da livre adesão.3 Nesse caso, os associados estão conscientes, esclarecidos, com relação a sua opção. Quando não ocorre um ato dessa natureza, isto é, quando não existe um ato substancialmente racional de livre adesão à cooperação, uma opção 3 A livre adesão é um dos princípios fundamentais do cooperativismo moderno. 64 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária esclarecida pela cooperação, o bom funcionamento de uma organização cooperativa, fundada em objetivos econômicos, pode ser prejudicado. Impulsos, desejos ou sentimentos, conscientes ou não, Mannheim (1962) denomina de “substancialmente irracionais”. Nesse caso, participar de um empreendimento cooperativo, fundado em impulsos, desejos ou sentimentos, seria uma irracionalidade. Na minha concepção, no caso do cooperativismo agrícola brasileiro, especialmente das chamadas cooperativas de trigo e soja, além da presença e função do Estado em seu surgimento e desenvolvimento, muitos produtores rurais tornaram-se associados não por uma percepção inteligente do caminho cooperativo, por uma opção de livre adesão. Chegaram ao cooperativismo pelo caminho das políticas de incentivo ao cooperativismo por parte do governo, pelo caminho das políticas de incentivo à modernização agrícola, ou mesmo pela adesão às ideias cooperativistas como solução aos seus problemas econômicos, porém carentes de informações e conhecimentos a respeito da complexidade da natureza de uma organização cooperativa. Consequentemente, em muitos casos passou a existir uma “cooperação dependente” dos incentivos governamentais, de falsas expectativas ou mesmo de irracionalidades, como desejos, esperanças, sentimentos. Naturalmente, nesse caso passou a existir o risco à estabilidade do empreendimento cooperativo por conta de uma lacuna na compreensão dos acontecimentos, isto é, na capacidade de decifrar os acontecimentos do contexto de inserção da cooperativa. Certamente, é impossível generalizar a explicação, mas, em muitas circunstâncias concretas, não se pode desconhecer que a falta de compreensão do sentido e significado das políticas oficiais de incentivo ao cooperativismo pode ter prejudicado o desenvolvimento de algumas cooperativas. É evidente que a estabilidade da cooperativa depende mais dos resultados gerados, das expectativas atendidas. Caso, entretanto, não houver uma ação adequada para a superação da condição de “cooperação dependente”, pela percepção inteligente, pela compreensão do seu sentido e significado, pela construção de uma opção esclarecida, existe o risco de frustrações no quadro social. A dependência, na verdade, significa uma ausência, uma alienação da condição de associado racionalmente orientado e permite o risco de mau uso político ou operacional da cooperativa. A construção de uma opção esclarecida, racional, é função da educação para a cooperação, que deve possibilitar o entendimento do sentido e dos significados da organização cooperativa. Mannheim afirma que o termo racional não é usado em Sociologia apenas para designar atos de pensamento ou conhecimento. O termo também é empregado no sentido funcional, de funcionamento de uma organização em direção a seus objetivos. A palavra racional é usada no 65 EaD Walter Frantz sentido de caracterizar “uma série de medidas organizadas de forma a levar a um objetivo previamente definido, recebendo todos os elementos dessa série de atos uma posição e um papel funcionais” (1962, p. 63). O conceito é usado para caracterizar uma situação de organização funcional, na qual os comportamentos dos integrantes de uma organização são “funcionalmente racionais”, isto é, “cada ato tem um papel funcional na consecução do objetivo final” (Mannheim, 1962, p. 63). Refere-se à distribuição das funções e papéis dentro de uma organização, tendo como referência os seus objetivos. O campo da racionalidade funcional está mais na empresa-cooperativa. A percepção e a compreensão dessa racionalidade funcional, por parte dos associados, dirigentes ou não, são de fundamental importância para o desempenho e a estabilidade de uma cooperativa, pois a racionalidade funcional é condicionada pelos objetivos da organização. Uma organização cooperativa não pode negligenciar o objetivo, a razão de sua existência sob o risco de se desestabilizar. Objetivo e racionalidade funcional compõem uma equação cujo resultado é a estabilidade da cooperativa. A qualificação do quadro social de uma cooperativa, em razão dos comportamentos funcionalmente racionais, independentemente das posições na estrutura hierárquica da organização, exige um amplo trabalho de educação, de formação. Essa educação para a cooperação deve ser orientada pela racionalidade funcional da organização cooperativa. Segundo Mannheim, associações são “grupos concretos de contornos definidos, compostos de membros que se reuniram para certas finalidades objetivas” (1962, p. 303). Esse conceito corresponde à noção de associação-cooperativa: um grupo concreto, definido e com finalidades objetivas. Nessa noção está implícita a afirmação de que cooperativas são espaços de poder. Como “grupos concretos” com “finalidades objetivas” procuram exercer poder, em direção aos seus objetivos, ao mesmo tempo em que influenciam o comportamento dos seus membros, de acordo com seus estatutos, regulamentos e normas de convivência ou de funcionamento, “deixando, não obstante, margem para uma variedade de decisões, para a multiplicidade de opiniões sobre a oportunidade de determinada política” (1962, p. 303). A associação, pelo princípio da livre-adesão, deve constituir-se em bases democráticas, abrigando a multiplicidade de opiniões para que se viabilize a participação política, condição essencial para sua estabilidade. A estabilidade de uma organização cooperativa depende de uma orientação estatutária e de normas de comportamento, produzidas no processo dialógico da associação-cooperativa. O direcionamento da cooperativa não elimina a possibilidade da democracia, da multiplicidade de opiniões. 66 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Dois aspectos importantes com relação à associação-cooperativa merecem ser destacados, a partir do pensamento de Mannheim (1962): existem finalidades definidas, objetivas para a associação, isto é, existe uma racionalidade funcional e existe espaço para a discussão, inclusive com a liberdade de adesão, um dos princípios do cooperativismo. Assim, sob essa ótica, estão dadas e fundadas as condições da participação política e da participação econômica dos associados, base para a estabilidade do empreendimento cooperativo. Deve a participação política ser uma ação coordenada com referência aos objetivos definidos, isto é, funcionalmente racional. Segundo o autor, na associação o comportamento dos seus membros é “racionalizado”, mas não “racionalmente organizado”, isto é, a associação se dá em função de objetivos definidos, mas não se constitui na organização. Observa Mannheim (1962, p.303) que os grupos associativos “são enformados por um espírito que leva à regulamentação racional do comportamento”. No caso de uma associação-cooperativa, isto é, com vistas à instrumentalização cooperativa, esse é o espírito cooperativo.4 O comportamento é orientado pelos objetivos da associação, mas não está regulamentado, organizado, em função desses objetivos. Existe um espírito que leva a sua organização racional, à regulamentação. É função da educação para a cooperação desenvolver esse espírito cooperativo. Para Mannheim (1962, p. 303), “se a regulamentação for mais além, se o comportamento dos indivíduos que participam dessa ação coordenada for cuidadosamente calculado e predeterminado, e sua eficiência puder ser estabelecida em termos mais ou menos quantitativos”, quando esse comportamento é “racionalmente organizado”, então “a associação se transforma em organização”, isto é, no caso da organização cooperativa, a associação-cooperativa se instrumentaliza, estruturando sua empresa-cooperativa, o seu poder operacional. No processo da organização ocorre a regulamentação do comportamento, em virtude dos objetivos estabelecidos na associação. Assim, transpondo esse raciocínio à organização cooperativa, a participação política tem seu espaço privilegiado na associação-cooperativa. A participação econômica na empresa-cooperativa é regulamentada, racionalmente organizada, em razão dos objetivos estabelecidos. O comportamento cooperativo dos associados na empresa-cooperativa necessita ser racionalmente organizado, por meio de normas, regras, contratos. Mediante a participação econômica acontece, efetivamente, a cooperação. Pela participação política os associados buscam garantir o poder de controle sobre a cooperação. 4 O espírito cooperativo está contido e expresso nos fundamentos e princípios da organização cooperativa: adesão livre e voluntária; controle democrático pelos associados; participação econômica dos associados; autonomia e independência; educação, treinamento e informação; cooperação entre cooperativas; preocupação com a comunidade. 67 EaD Walter Frantz Esse controle é importante para a transparência das práticas de cooperação, da qual decorre a confiança e a fidelidade dos associados. Desses aspectos específicos de organização decorrem consequências e desafios particulares à administração de um empreendimento cooperativo. Empreendimentos cooperativos são estruturas de comportamento racionalizado e organizado, isto é, são empresas-cooperativas, sem demérito à dinâmica da inteligência emocional do campo cooperativo, presente na associação-cooperativa. A prática do poder de gestão é condicionada por aspectos que exercem influência no sentido da estabilidade da organização cooperativa. De acordo com Mannheim (1962, p. 303), nas estruturas instituições de “comportamento racionalizado e organizado”, as atividades são padronizadas e “não somente seus processos básicos, mas seus objetivos finais e os meios usados para atingi-los, foram calculados antecipadamente e são, nesse sentido, organizados”. No caso da empresa-cooperativa, de comportamento racionalizado e organizado, isso traduz o espaço da gestão. A administração “não pode ser criada ao acaso, ela implica num objetivo pré-definido” (Mannheim, 1962, p. 304). Os objetivos precisam ser definidos na associação-cooperativa que constitui o campo político da organização, isto é, as atividades tecnoburocráticas são precedidas pelas atividades políticas. Mannheim (1962, p. 304) observa que, em se tratando de assuntos sociais, “a administração só pode ser imposta quando as atividades deixam de ser políticas”, isto é, a administração tecnoburocrática de uma cooperativa deve ser despolitizada. Essa visão contempla a noção técnica da administração de cooperativas, sob controle político dos associados. Identificar nas formas de organização e nas práticas administrativas de uma cooperativa um controle social, na verdade, permite identificar diferentes relações ou tipos de poder em organizações cooperativas. O poder político dos associados, o poder técnico de gestão da burocracia, o poder de influência das cooperativas, no contexto da realidade social em que atuam. Daí a importância da necessidade do debate na associação-cooperativa sobre a administração, isto é, sobre as necessidades, os interesses, os objetivos da organização que, uma vez definidos, passam à esfera técnica, operacional, onde devem ser operacionalizadas as decisões dos associados. Entende-se a administração como atividade técnica e operacional, embora condicionada e direcionada pelo poder político, o qual tem seu fundamento nas necessidades, interesses e objetivos da associação-cooperativa. O poder da burocracia deve estar submetido a esse poder político. Pelo caminho do pensamento de Mannheim pode-se afirmar que na associação-cooperativa estão as atividades políticas, “o tipo de ação grupal em defesa de opiniões e valores finais”, enquanto que na empresa-cooperativa está a administração que “não luta e não determina finalidades, mas apenas constitui um meio de colocá-las em prática” (1962, p. 304). 68 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Desse modo, na organização cooperativa, a associação, como expressão política do ato cooperativo, submete a empresa, o instrumento administrativo, aos seus objetivos e finalidades centrais. Ou, em outras palavras, na associação-cooperativa está a vontade política, o controle da gestão, e na empresa-cooperativa está a função de seu cumprimento, estão os mecanismos operacionais técnicos da instrumentalização do ato cooperativo. Na empresa-cooperativa as atribuições e funções técnicas administrativas são predeterminadas, politicamente, no espaço da associação-cooperativa. Os comportamentos dos associados, a suas relações cooperativas, determinadas pelos objetivos e finalidades centrais da associação, no espaço da empresa-cooperativa são predeterminados e coordenados, por meio de estatutos, regulamentos e normas, debatidos e acordados na associação-cooperativa. Finalmente, ainda convém observar o que afirma Mannheim com relação ao poder de decisão nas organizações. Segundo ele (1962, p. 304), “os que controlam a política (...) dirigem a organização”. Os associados devem exercer o controle político nas organizações cooperativas, devem dirigir, dar o direcionamento para as ações administrativas. Dirigir não é a mesma coisa que administrar. Dirigir é dar a direção; é direcionar o sentido da organização; é dar o sentido e o significado da gestão aos que se ocupam das funções tecnoburocráticas. A ocupação e o desempenho dessas funções pode-se definir como sendo ações de gerenciamento, de administração. O conceito de direção contém uma dimensão mais política, enquanto o de administração carrega um sentido mais técnico. Assim, a ação estratégica deve estar submetida à ação comunicativa. Levando-se esse raciocínio para dentro da organização cooperativa, consequentemente impõe-se a importância da esfera da associação-cooperativa. Para que a organização cooperativa seja, de fato, a expressão dos interesses e objetivos dos associados, é preciso que sejam fixados os mecanismos de seu controle político, mediante uma estrutura de poder que viabilize a participação política, a racionalidade e a transparência da gestão. Esse aspecto recoloca a importância do processo educativo, de qualificação, na cooperativa. Em razão da natureza da organização cooperativa – associação e empresa – a educação, enquanto formadora e qualificadora de seus integrantes, se constitui em um dos aspectos fundantes de sua estrutura de poder, de seu controle político, de sua gestão. Mannheim, ao se referir às ações políticas e administrativas em grupos organizados, enfatiza a necessidade de formação e qualificação de seus integrantes. Afirma este autor (1962, p. 304) que é preciso “preparar dois tipos de homem. Um, capaz de dirigir-lhes a política, deve ter iniciativa política no sentido amplo da expressão; o outro deve ser capaz de realizar essa política, exatamente, com eficiência indiscutível”. 69 EaD Walter Frantz Ao se transpor esse entendimento de Mannheim (1962) para uma organização cooperativa, especialmente para as cooperativas agrícolas tradicionais, nos deparamos com os dois principais grupos humanos presentes nessa organização, o dos associados, incluídos nesse grupo os seus dirigentes eleitos, e o do corpo técnico-burocrático, isto é, seus funcionários administrativos. Esses dois grupos compõem, respectivamente, o poder político, um poder de instituição, e o poder tecnoburocrático, um poder atribuído, um poder instrumental de gestão técnica. Ou seja, os associados compõem o poder da organização, da direção, e o corpo técnico-administrativo faz uso do poder instrumental para a administração da ação cooperativa, a serviço da realização dos seus objetivos. Por isso, a formação e a qualificação são tarefas ou funções centrais da educação em organizações cooperativas. Certamente o sucesso do empreendimento cooperativo guarda relação direta com a formação e qualificação dos funcionários, dirigentes e associados. Na relação dinâmica desses dois polos de poder, em suas práticas, podem vir a existir conflitos de poder. Esses conflitos não são de todo negativos. Podem constituir-se em energias de qualificação da organização e do funcionamento de uma cooperativa, no entanto os seus aspectos negativos podem ser evitados, amenizados ou superados pela comunicação, pela formação e qualificação de seus componentes. Volta-se, assim, à importância da comunicação e da educação em cooperativas como um mecanismo de superação do paradigma clássico de organizações burocráticas. Pela comunicação e educação se constrói o modelo de gestão participativa, centrado na valorização do capital social que os associados e os funcionários podem representar em organizações cooperativas. Em razão da natureza da organização cooperativa – associação e empresa – a educação, como formadora e qualificadora de seus integrantes, se constitui em um dos aspectos fundantes de sua estrutura de poder, de seu controle político, de sua gestão. Por isso, comunicação e educação, em organizações cooperativas, não devem envolver apenas os associados, mas também aqueles que venham somar-se a elas pelo seu trabalho, pelos serviços técnicos ou gerais, necessários ao empreendimento cooperativo. Enfim, de acordo com Mannheim (1962, p. 305), “a organização e a administração são formas de controle social tipicamente modernas”. Identificar nas formas de organização e nas práticas administrativas de uma cooperativa um controle social, na verdade, permite identificar diferentes relações de poder em organizações cooperativas. Trata-se do poder da burocracia, localizado na operacionalidade, no funcionamento da empresa-cooperativa, isto é, na administração, e do poder da influência, em si, das organizações cooperativas, no contexto da realidade social em que atuam. Quando economias familiares, como as de agricultores, se associam e se instrumentalizam para cooperar entre si, em função de suas dificuldades e interesses, essa organização produz um grande volume de atividades e serviços especializados, fora de suas unidades familiares de 70 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária trabalho. Esse trabalho vai além daquele que já acontece nas unidades econômicas associadas. Nem sempre os associados conseguiriam, pessoalmente, dar conta desse trabalho, mesmo que quisessem, sob pena de reduzirem a atenção às exigências de suas economias. A organização dessas atividades depende do trabalho e da incorporação do serviço de terceiros. Isso exige uma estrutura, uma ordem, com normas, funções e procedimentos, que se pode chamar de burocracia, constituindo a base para um novo poder, o poder da burocracia. As ações estratégicas da gestão dessa organização e de suas atividades devem estar submetidas à ação comunicativa dos associados entre si. Para que a organização cooperativa seja, de fato, a expressão dos interesses e objetivos dos associados, é fundamental que essa burocracia esteja, realmente, sob seu controle. É preciso que sejam fixados os mecanismos de seu controle político, por meio de uma estrutura de poder que viabilize a participação política dos associados, a racionalidade e a transparência da gestão. Gadotti (1998, p. 24), ao tratar das relações de poder inerentes aos processos de educação, faz referência ao poder dos tecnoburocratas que “concebem as coisas e os fenômenos estaticamente, como funcionam hoje; estabelecem, por isso, normas fixas e abstratas, incrementam a massificação e a uniformização, reduzindo as possibilidades de participação efetiva dos indivíduos nas decisões”. Existem os conflitos de poder nas organizações cooperativas que têm seu núcleo na relação de seus dois polos. O autor, no entanto, não condena o progresso técnico e o planejamento, mas alerta que a tecnoburocracia tende a controlar a organização do processo educativo, da escola, supervalorizando o planejamento e o conhecimento técnico-organizacional, a hierarquia, as estruturas, impondo suas crenças e valores, fazendo predominar a razão técnica em desfavor da criatividade, da participação política dos indivíduos. Por essas razões, o quadro técnico-burocrático, especialmente, necessita de oportunidades de educação e qualificação para o desempenho de suas ações no processo de administração de uma cooperativa. Necessita do aprofundamento da compreensão da natureza e do sentido de uma organização cooperativa. Essa formação poderá, não só, amenizar os conflitos entre a participação e a burocracia, mas qualificar o novo paradigma de organização em afirmação no contexto das transformações da sociedade contemporânea: o paradigma centrado na participação. Com relação à burocracia, à administração burocrática e seu significado, em organizações cooperativas, é importante ver também o que Lapassade (1989) explicita sobre o fenômeno burocrático. Embora o diga em outro contexto, diferente daquele de uma organização cooperativa, a sua observação pode ser transposta para o ambiente de uma cooperativa, para o momento de valorização da participação, de revisão do paradigma da operacionalidade organizacional. Afirma Lapassade (1989, p. 201) que 71 EaD Walter Frantz o que há de novo no modo de produção e de domínio burocrático é, se podemos dizer, o seu “altruísmo”, para usar um termo moral, ou ainda o seu caráter “social”, ou, melhor ainda, o seu caráter “democrático”. [...] A burocracia, ao contrário, não apenas se apresenta como a serviço da coletividade, como a serve efetiva e realmente. [...] O burocrata [...] trabalha, sacrifica-se, administra, orienta, planifica, “serve”. O que é preciso reprovar na burocracia e nos burocratas é, antes de tudo, o fato de que alienam fundamentalmente os seres humanos, retirando-lhes o poder de decisão, a iniciativa, a responsabilidade de seus atos, a comunicação. O que Lapassade (1989) diz ser preciso reprovar na burocracia e nos burocratas constitui-se em um risco permanente na ação de gestão de cooperativas. Esse risco, de algum modo está na lógica do processo burocrático e na ação comportamental dos burocratas. Na organização burocrática há um determinismo implícito; está subentendida a superioridade da técnica, da razão técnica, instrumental, da interação de tipo estratégico. Na organização cooperativa essa ação tem seu sentido na ação da empresa-cooperativa e, de algum modo, podese dizer que está em contradição com as ações no espaço da associação-cooperativa. No cenário da organização e funcionamento de uma cooperativa pode a questão da participação política do associado aparecer como contraposição ao processo burocrático, gerando conflitos. Max Weber desenvolveu o conceito de organização burocrática, diante da necessidade de superação das relações antigas de dependência pessoal, de vassalagem, de nepotismo, presentes em organizações de origem feudal e pré-capitalista. Defendeu a necessidade de serem substituídas pelas relações de dependência formal, legal, hierárquica, funcional, superando-se a visão metafísica pela visão da certeza, do concreto (Costa, 2001). Com a crise da visão da certeza, com o questionamento do próprio capitalismo, diante das dificuldades ambientais e sociais de produção e distribuição de bens e mercadorias, diante dos limites do meio ambiente, da competição, da concentração, da superprodução, da sustentabilidade política e da segurança do sistema, nasce o questionamento daquilo que foi o instrumento da organização da produção capitalista, a burocracia. A burocracia que marginalizou o indivíduo, a sua criatividade, a sua subjetividade, a sua emotividade, cede lugar, mesmo resistindo, à participação, a um novo paradigma, menos determinista. A construção ou a regeneração da democracia, como expressão da prevalência da política sobre a economia, mediante uma participação organizada e efetiva, é um dos maiores desafios dos tempos atuais. 72 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A participação aparece como a emergência de um novo modelo de organização, de um novo paradigma de organização, centrado na valorização da criatividade, na valorização do capital humano. A participação como um processo de distribuição de poder envolve profundas mudanças na concepção e funcionamento das organizações, tanto do ponto de vista da reorganização do poder nas organizações, quanto da reorganização das estruturas das organizações. O novo paradigma precisa descobrir e desenvolver os seus instrumentos de gestão. O discurso da participação se legitima na crise do processo burocrático, da organização burocrática. Na organização participativa, criativa, está presente a ação comunicativa, participativa. O novo modelo se assenta no princípio da simplicidade organizacional, na descentralização do poder e da competência, apóia-se no princípio de comando pela cultura, pelos valores (Costa, 2001). Na organização burocrática, de maneira simplificada, pode-se afirmar que está implícita a ideia de que, em seu funcionamento, os aspectos técnicos são mais importantes que a liberdade da criatividade humana. Essa visão, hoje, não tem mais a mesma força do passado. Verifica-se a passagem de uma visão mecânica, determinista, burocrática, para uma visão de organização criativa e participativa, cooperativa e social. Afirma-se uma nova visão de organização, embasada na valorização da criatividade humana, na participação. Isso acarreta profundas mudanças na concepção, estruturação e funcionamento das organizações. Implica resgatar o capital humano, o capital social, em todas as suas dimensões, a favor de uma organização flexível, participativa e criativa. Como consequência disso, é preciso desenvolver novas formas de gestão, assentadas na descentralização, na simplificação, na valorização da criatividade humana, na comunicação. As cooperativas, certamente, estão entre as organizações que oferecem o maior potencial de superação do paradigma burocrático em favor desse novo modelo, centrado na valorização da criatividade dos indivíduos, mediante a participação. Nesse sentido, as cooperativas podem também se constituir em importantes espaços do desenvolvimento de uma sociedade. As funções tecnoburocráticas em uma cooperativa com o perfil do novo paradigma de organização – centrado na criatividade, na valorização do capital humano – devem estar submissas aos interesses e necessidades daqueles que decidem sobre os seus rumos, sua direção. Estamos falando de organizações cooperativas que mantêm quadros técnico-administrativos contratados, distintos de seu quadro associativo. Em cooperativas que não tenham esses quadros distintos, todavia, isso igualmente também é válido. Em tais organizações também pode se instaurar o poder do antigo modelo burocrático, por meio do poder de grupo, a partir da divisão social do trabalho. Talvez este seja um dos maiores dilemas das organizações desse gênero. De acordo com Lapassade (1989, p. 203), porém, o poder da burocracia é “um poder que consiste em ‘fazer trabalhar’, em dirigir, em orientar, em utilizar informações, em tomar decisões, em planificar”. De acordo com o autor, esse poder supõe a aceitação pela coletividade. No caso 73 EaD Walter Frantz de uma cooperativa, supõe a aprovação dos associados, isto é, essa coletividade é a associaçãocooperativa. No espaço da associação deve ocorrer a discussão, a tomada de decisão sobre o poder burocrático, suas funções e atribuições. Esse é o caminho que pode desviar dos conflitos ou da contradição, inerentes ao processo político e operacional da gestão de uma organização cooperativa. Nas palavras de Lapassade (1989, p. 205), é evidente que essas decisões visam a permitir as trocas, a garantir o funcionamento, a programar, a planejar, a servir em princípio à coletividade. No entanto, o único objetivo explicitamente almejado é o crescimento material das riquezas (realizado ou não) e não o desenvolvimento psicológico dos indivíduos. Esse crescimento material, desde que se realize (...) termina, na realidade, por aumentar a massa dos bens (...). O poder de decisão da burocracia, no caso de uma cooperativa, deve estar relacionado à operacionalidade, à obtenção de resultados. O controle pela coletividade, porém, deve ter o sentido de impedir que aumento da massa dos bens não signifique apenas o aumento do patrimônio. Isso nem sempre significa uma melhora da economia dos associados, mas pode ser argumento e base, simplesmente, para a melhoria salarial dos burocratas, por exemplo, ou para ampliar o seu espaço de poder. Afirma Lapassade (1989, p. 205) que o burocrata que visa não apenas a administrar mas também a aumentar os instrumentos de produção, a provocar novos investimentos, a prever planos a longo prazo, não visa apenas a aumentar as possibilidades de trabalho, mas sobretudo a criar objetivos novos sobre os quais exercerá a sua administração; ele aumenta, portanto, em realidade, o seu poder, além de aumentar a sua reputação. Lapassade, na verdade, fala de uma autocriação de poder, em favor do burocrata, do técnico, que poderá ser usado para negociar vantagens ou ganhos salariais. De acordo com Lapassade (1989, p. 206) o fenômeno burocrático “é uma forma de domínio sui generis. Ele não aparece como uma forma de parasitismo [...], mas, ao contrário, como o motor, o núcleo central, o cérebro da sociedade”, fazendo-se útil, necessário e essencial. Por esses espaços e mecanismos a burocracia constrói e estabelece o seu poder, inclusive o de se recompensar. Às vezes, no entanto, em organizações cooperativas, o poder do burocrata se baseia mais na dificuldade dos associados em tomar decisões, em ter acesso à informação ou saber usá-la, em ter a qualificação adequada e exigida para operar a organização complexa da empresa-cooperativa. Por isso, torna-se necessária e é fundamental em organizações cooperativas a atividade 74 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária de educação, de formação, de qualificação técnica, a informação, a transparência das operações de gestão, a participação, a democracia. Desses aspectos decorre não só, mas também, a estabilidade da organização cooperativa. A satisfação dos associados não depende apenas de fatores materiais, mas também de aspectos psicológicos e políticos, inerentes à associação-cooperativa, à participação política, que podem se constituir em vetores de força para equilibrar as relações de poder entre os mecanismos da burocracia e as necessidades e os interesses dos associados. A promoção desse equilíbrio é tarefa central dos dirigentes eleitos. Cabe a estes promover as relações de comunicação, de participação, entre a associação-cooperativa e a empresa-cooperativa. Além das influências e controles dos grupos locais sobre o comportamento de seus integrantes, afirma Mannheim (1962, p. 305) que [...] há controles sociais que se baseiam na interdependência dos atos humanos, sem se centralizarem em grupos, comunidades ou associações concretas. Isso significa que nossos atos podem ser controlados pelos atos de outros, mesmo que não sejam de membros de um grupo definido. Existem atos de controle externo à organização cooperativa. Esses atos de controle podem partir do contexto cultural, político ou econômico, de inserção social da organização cooperativa ou de seus associados. Na condição de membros da sociedade, de uma comunidade, estes podem ser influenciados, controlados, pela interdependência de relações sociais. Segundo Mannheim (1962, p. 305-306), esse controle acontece mediante uma categoria sociológica que denomina de estrutura de campo – conhecido na ciência física como campo magnético5 – e que se situa “entre os grupos concretos orgânicos e as grandes organizações”. No caso de uma cooperativa, essa estrutura situa-se no campo de relação da organização com o meio ambiente maior, especialmente nas suas relações com o mercado, no qual estão as grandes organizações. Essas grandes organizações ou estruturas não precisam ser apenas as empresas, podem também ser as estruturas de pensamento, de valores, de cultura, de interesses, de política. São estruturas de controle, de poder, que se manifestam pela propaganda, pela educação, etc. O que importa é observar que temos, assim, a noção de uma estrutura de campo entre dois polos, a organização cooperativa e o mercado. O autor identifica no mundo do comércio – intercâmbio econômico, transporte, viagens comerciais, correspondência, escritas e especulação – uma estrutura de campo. Por meio dessa estrutura de campo é exercida a influência, o controle e poder sobre indivíduos e grupos con- 5 Conceito emprestado da Física, por meio de K. Lewin, da Psicologia, e J. F. Brown, da Sociologia, conforme Mannheim,1962, p. 305-306. 75 EaD Walter Frantz cretos organizados, isto é, sobre a organização cooperativa e também sobre seus associados, individualmente. Do contexto de inserção no mercado brota uma influência sobre a associaçãocooperativa e a empresa-cooperativa. Diz Mannheim (1962, p. 306-307) que a pressão existente no campo é transmitida pelas atividades interdependentes dos indivíduos [...]. Sempre que os conflitos e a concorrência se fizerem sentir com todo o ímpeto, e os indivíduos tiverem de fazer suas adaptações, sempre que é impossível prever a tendência dos acontecimentos, as leis que governam as ondas magnéticas da estrutura de campo têm mais efeito sobre a natureza humana do que o costume tradicional ou a organização racional. Os associados passam a ser orientados e articulados uns aos outros pelos sistemas de valores externos do mercado e que os pressionam mais que os seus valores ou o poder de sua cultura. Em uma cooperativa, isso significa que, através das atividades dos associados, lhes é transmitido um poder de controle que vem de fora e que pode ser mais forte que o seu poder de organização associativa. Esse poder maior está ancorado na concorrência que se estabelece entre as economias individuais dos próprios associados, na tentativa de sobrevivência pela disputa, nos espaços do mercado. O mercado pressiona os associados no sentido da melhora ou do aumento da produção de suas economias individuais, tornando-os, na verdade, mais competitivos e concorrenciais, inclusive entre eles. Em consequência, o mercado pode ter mais efeito sobre eles que os princípios associativos ou a solidariedade tradicional. Embora se associem contra pressões do mercado, as forças deste se impõem à organização. Passa a ser aceita a ideia de que quem não puder acompanhá-las deve deixar o espaço aos que o conseguem fazer.6 Corre-se o risco de ver sucumbir, assim, a solidariedade tradicional dos associados e a sua própria associação, diante do poder maior que lhes vem da estrutura de campo do mercado. Pode-se estabelecer uma relação de poder de competição entre os associados, a partir de fora, da estrutura de campo. Entre a associação-cooperativa e a empresa-cooperativa, a partir das relações de mercado, funciona um espaço de poder, isto é, desenvolvem-se relações econômicas e políticas, de influência sobre o comportamento dos associados. A estrutura de campo do mercado exerce uma pressão sobre a associação-cooperativa e a empresa-cooperativa. A estrutura de campo, isto é, as forças presentes nas relações de mercado, influenciam o comportamento, condicionam a vida 6 Essa manifestação foi possível colher de um associado produtor de leite, após ter participado de uma reunião sobre as dificuldades de produção de leite, diante das exigências do mercado, realizada na sede da Cotrijuí no dia 8.9.2001. 76 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária dos associados. Essa estrutura exerce um controle, um poder sobre eles, por meio de diferentes mecanismos: pela imposição de padronização dos seus produtos, pelas tecnologias de produção, inclusive, pela imposição de horários e ritmos de trabalho.7 A cooperativa representa – como empresa – a instrumentalização de defesa, racionalmente organizada, dos interesses e objetivos da associação-cooperativa. Pela via de acesso ao mercado, porém, ao campo de estrutura, ela também impõe, paradoxalmente, um comportamento racionalizado e organizado, pela assistência técnica, pela informação, pela padronização, vinculada aos interesses externos. As forças externas são maiores e se convertem, assim, inclusive, em desejos, interesses e objetivos dos associados. Por sua vez, também pode ocorrer, no interior da associação-cooperativa, uma reação a essas forças, isto é, de construção de poder político, de tal forma que a estrutura de campo acaba se constituindo, nesse sentido, em um mecanismo de estímulo à nova organização de poder. Nessa interação de forças desenvolvem-se adaptações e reações que envolvem processos de educação e aprendizagens, qualificando os associados em termos políticos e técnicos. Afirma Mannheim (1962, p. 307) que, “sob a influência segmentária dessas estruturas de campo, desenvolvem-se novos traços de caráter do homem econômico que diferem dos ideais de sua comunidade orgânica”. Sob essa influência, alteram-se as noções ideais de organização cooperativa, ressocializando, reeducando os seus membros associados, em função do mercado. Elaboram novas aprendizagens. Na estrutura de campo se estabelece uma pressão, um controle sobre a cooperativa, de sua natureza associativa e empresarial, sobre os seus integrantes. Essa pressão é transmitida por meio das atividades interdependentes dos sócios, em razão do ato cooperativo, dos seus interesses e compromissos mútuos. Isso se torna perceptível, concretamente, pelas exigências de padronização e qualidade dos produtos dos associados, no caso de agricultores. O mercado lhes dita as normas de procedimento. Os associados controlam a si mesmos, em última instância, diante dessas normas de padronização e qualidade de seus produtos. Nas relações de mercado fluem também as normas da cooperação e que devem ser assumidas por todos os associados. Constitui o mercado, dessa forma, um mecanismo de comunicação entre os cooperantes pelo qual fluem as relações de poder entre os próprios associados. Abre-se, assim, pelo mercado, uma oportunidade de aprofundar as relações cooperativas entre eles. É da natureza desse processo e de suas possibilidades, como ambiente cognitivo, que decorre a importância da democracia, da participação, da transparência, como princípios de funcionamento de organizações cooperativas. O diálogo, a interlocução, o debate, entre os associados, são a base do processo educativo e de aprendizagem, que se estrutura nas organizações cooperativas. A 7 Isso pode ser percebido no caso das atividades de produção de leite e da suinocultura. 77 EaD Walter Frantz comunicação se constitui uma possibilidade real de poder para os associados, ante o mercado. Como tal, a comunicação é elemento essencial da razão cooperativa. A comunicação é um espaço de poder e um campo de educação do qual depende o sucesso do empreendimento cooperativo, de sua estabilidade. A estrutura de campo do mercado, em relação a uma organização cooperativa, exerce uma pressão sobre a associação-cooperativa e a empresa-cooperativa. A qualidade do produto e a padronização, reclamadas pela via das relações comerciais, exercem pressão sobre os produtores, obrigando-os ou levando-os a mudanças e melhorias em seus processos produtivos. Pelas relações de mercado, isto é, pela pressão das suas exigências, no espaço cooperativo, por meio da comunicação, também pode ser influenciada a gestão dos processos de produção em geral e, de modo específico, outros aspectos mais, como a ecologia, o meio ambiente natural, produzindo-se novos comportamentos, novos processos de trabalho. A qualidade do produto e a padronização, reclamada pela via das relações comerciais, exercem pressão sobre os produtores, obrigando-os ou levando-os a mudanças e melhorias em seus processos produtivos. Novos comportamentos de trabalho ou de relações de trabalho podem ser observados a partir da pressão exercida pela estrutura de campo, materializada pelas relações comerciais. O consumidor ou o comércio, como mecanismo de relações, exerce controle, poder, pela relação de compra e venda. Os produtores são levados a aceitar esse controle, em razão de seus próprios interesses, fundantes da cooperação. Assim, o poder de controle se constrói também na relação comercial. O produtor orienta-se por essa relação de poder, de controle de qualidade, para se qualificar tecnicamente. Nas relações de mercado podem também fluir princípios éticos, que se pode definir como sendo de cooperação: uma cooperação com relação ao outro-cooperado e ao outro-consumidor. Essa é uma questão que começa a ser reconhecida, hoje em dia, como sendo um desafio à formação da consciência de quem produz e de quem consome. É um novo espaço de educação que se estrutura nas relações de mercado. Nesse espaço inclusive funda-se a lei de proteção ao consumidor. O empreendimento cooperativo pode se constituir em um campo privilegiado de educação desse processo de formação, construído nas relações internas de cooperação, nas relações com o outro-cooperado, nas relações de interdependência ou integração entre as cooperativas, no caso de redes de cooperação, ou nas relações com o outro-consumidor. De acordo com Manheim (1962, p. 288), “o principal objetivo da educação é habitualmente conseguir uma conformidade social básica”. Essa não precisa ser, necessariamente, uma função negativa, no sentido do enrijecimento das estruturas sociais, impedindo a superação das contra78 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária dições a ela inerentes, obstruindo a dinâmica de seu aperfeiçoamento democrático. A educação também trata dos padrões de comportamento dos indivíduos na sociedade. A maior discussão e atenção crítica deve estar voltada ao tipo de sociedade que se quer. A educação decorre desse processo; ela vai em direção da afirmação das suas conquistas. A educação para a conformidade social básica e a regulamentação da associação-cooperativa é traduzida por um comportamento racionalizado coletivo. Para Mannheim (1962, p. 301), “o comportamento racionalizado coletivo começa abolindo os elementos simbólicos tradicionais, em favor dos que são essenciais à função do órgão em questão, julgado exclusivamente pelas necessidades da situação presente”. Isso exige que os integrantes da associação dialoguem a respeito do seu projeto comum para que se construa um entendimento coletivo, evitando que valores, hábitos ou interesses não adequados à nova organização grupal possam gerar instabilidade. Da racionalidade comunicativa nasce a importância da educação, do diálogo, da interação comunicativa, da transparência do projeto para os seus próprios membros integrantes. São condições de estabilidade da organização cooperativa. A educação é, assim, ao mesmo tempo, uma exigência da organização cooperativa e uma consequência. A construção de poder, por sua vez, é um objetivo fundamental da organização cooperativa e move o processo associativo do projeto cooperativo. Pelas atividades de educação é produzida uma nova “ordem social” entre os membros da associação, embasada em novos valores e interesses, relacionada com os objetivos da associação. São produzidas as condições para um trabalho coletivo, de cooperação. Assume a educação para a cooperação uma função de viabilização de uma “ordem social” que regulamenta, acima de tudo, a associação-cooperativa. Pode-se falar, nesse sentido, de um processo de transformação social e cultural do grupo de associados. Essa “transformação social-cultural” também causa seus efeitos sobre os grupos familiares ou comunidades às quais pertencem os membros da associação-cooperativa. Diz Mannheim (1962, p. 301) que “freqüentemente não podemos transformar a ordem social sem modificar os seres humanos e suas convenções”, pois, é por essa porta das modificações dos associados que entra a influência da cooperativa sobre as comunidades e seus membros, fazendo brotar certa identidade cultural e comportamentos comuns a todos, mesmo que não sejam membros diretos da cooperativa. Hoje, de certo modo reconhecendo esse fenômeno sociocultural, o movimento cooperativo internacional já incorporou a relação com a comunidade em seus princípios de organização e funcionamento de uma cooperativa, como princípio de sua responsabilidade social, da preocupação com a comunidade. A organização cooperativa contém sentidos e significados mais amplos, para além dos interesses de seus associados. Nesse espaço da preocupação com a comunidade estabelecem-se também relações de poder e processos de educação. 79 EaD Walter Frantz Educação e poder são dois fenômenos sociais que em suas práticas se entrecruzam. Mais que isso, são fenômenos que se fazem presentes, mutuamente, um no outro, dificultando, sob certos aspectos, a sua “separação”. Isto é, como fenômenos sociais um contém o outro dentro de si, como resultado de suas práticas. E, como tal, de acordo com Freire (2001, p. 23), não existe “uma educação neutra, que se diga a serviço da humanidade, (...) uma prática política esvaziada de significação educativa”. Isto é, toda educação, voltada à construção do social, contém uma intenção política, em sentido pedagógico amplo, e, como tal, também é poder. Ou melhor, a educação é a construção de poder com base no conhecimento. Afirma Freire (2001, p. 23-24) que do ponto de vista crítico, é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político. Isto não significa, porém, que a natureza política do processo educativo e o caráter educativo do ato político esgotem a compreensão daquele processo e deste ato. A organização cooperativa como espaço político de relações sociais e econômicas, voltado à construção de poder, especialmente em suas práticas econômicas, expressa também um caráter educativo. Nesse processo manipulam informações, aprendem e constroem conhecimentos, o se que traduz em educação. Educam-se, assim, nas relações sociais e econômicas de cooperação e de competição. Essa é uma das funções da educação cooperativa: racionalizar e organizar o comportamento dos associados, dentro de um “espírito cooperativo”, em função de uma “ordem social” contida na associação-cooperativa. Os associados, construindo poder para a busca de soluções práticas, relativas aos seus problemas, induzem a um processo de aprendizagem. Nesse processo educativo se desenvolve poder político e de tal modo que as ações do processo educativo se entrecruzam ou se identificam, ou mesmo se confundem, com a questão da construção de poder político. Educar-se para o poder político com a finalidade de construir uma nova “ordem social” é uma etapa fundamental do processo de organização cooperativa. Organizar uma cooperativa é buscar construir poder, sobretudo nas relações econômicas com o mercado. No interior da cooperativa, no entanto, existem e se desenvolvem outras relações de poder. Os associados reclamam do controle, expressam o conflito com a burocracia, com a administração, quando não sentem a cooperativa como expressão de seus interesses e objetivos, quando não conseguem participar. Buscam afirmar poder no interior da cooperativa com relação a sua estrutura de organização e funcionamento. Em uma pesquisa realizada com a associados de uma grande cooperativa de produtores rurais, em 2000, a respeito da relação entre os associados e a administração, foi possível obter alguns dados interessantes sobre o fenômeno do poder. Na opinião dos entrevistados, quando perguntados se o associado consegue influenciar a forma de administração da cooperativa, 62,8% responderam afirmativamente e 14,1% responderam que em parte essa influência é possível. 80 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Apenas 23,1% responderam que não conseguem influenciar a administração. Essa influência para 51,2% dos entrevistados é possível pela participação política, isto é, pelo diálogo, por meio de reuniões e outras formas de comunicação. Apenas 5,7% indicaram a participação econômica como a forma de influência sobre a administração, enquanto 16,5% indicaram a estrutura de representação como o mecanismo de influência. Perguntados se deveriam ser consultados antes de decisões importantes, 90,6% responderam que sim e 8,8% disseram que em parte sim, isto é, nem sempre. Isso significa que 99,4% dos associados desejam acompanhar as grandes decisões da cooperativa. A razão dessa comunicação entre administração e quadro social deve-se ao clima de confiança que pode gerar (33,3%), ao fato de serem os associados os donos (22,4%), à necessidade de comunicação (12,8%) ou à relação de dependência entre associado e cooperativa (5,1%). Caso não forem consultados 59,1% dos entrevistados acatam e reagem, 24,2% cumprem as decisões e 4,7% reclamam. Os dados revelam a importância da comunicação direta entre associados e administração, bem como uma relação de dependência do associado com relação à importância econômica da cooperativa. A relação econômica para com a cooperativa, por isso, não é vista como um mecanismo de poder preponderante. A explicação disso pode estar relacionada ao fato de a maioria dos associados ter pequenas economias e enxergar na cooperativa um instrumento de força política, mais que econômica, quando levado ao terreno da economia individual. De acordo com os dados da pesquisa 77,5% dos entrevistados possuem menos de 50 hectares de terra. Os dados também podem ser uma expressão de confiança dos associados na cooperativa. Parece ter sido um dos erros históricos em muitas cooperativas, uma das falhas de gestão do funcionamento do empreendimento cooperativo, o fato de que muitos administradores, executivos e funcionários burocratas, passaram a fazer a política da organização cooperativa, submetendo a associação-cooperativa ao seu comando. Em consequência disso, muitas vezes submetiam também as atividades do processo educativo, suas funções, transformando-as em instrumentos de submissão do associado a uma organização cada vez mais distante de suas necessidades, interesses e objetivos. Afirma Morin (2000a, p. 19): “Quanto mais técnica torna-se a política, mais regride a competência democrática”. O poder burocrático em organizações cooperativas apresenta certos riscos: a marginalização do associado. A burocracia, ao se transformar em poder político, tende a se aliar às exigências do mercado. Com essa inversão e aliança perde-se a essência da cooperação, não se realiza o projeto cooperativo, como um processo social, político e cultural, com a finalidade de dar poder aos associados. A meu ver, essa inversão parece ter sido um dos aspectos da crise do cooperativismo, com destaque para a crise das cooperativas de trigo e soja no Estado do Rio Grande do Sul. As relações de poder eram exercidas pelo Estado, pelo capital ou por “grupos de poder”, dentro da 81 EaD Walter Frantz organização cooperativa, representados por grupos de cooperados ou pela burocracia, os quais nem sempre estiveram associados aos interesses e objetivos comuns da maioria dos associados. Isso se constitui uma inversão de ordem nas relações de poder entre a associação e a empresa cooperativa. Essa inversão contém o risco da instabilidade da organização cooperativa. O associado deve exercer o controle político. Ele dá o sentido à ação administrativa. Por isso, diálogo, interlocução de saberes, comunicação de conhecimentos e informações entre associados, dirigentes, executivos, burocratas e quadro funcional são fundamentais para a estabilidade do empreendimento cooperativo. Entre a associação-cooperativa e a empresa-cooperativa, os dois polos da organização cooperativa, deve existir um constante fluxo de informação e comunicação, gerando transparência e confiabilidade. A transparência e a confiabilidade são essenciais à estabilidade da organização cooperativa, mas elas devem estar embasadas em processos políticos e técnicos qualificados. Ou, em outras palavras, são produtos de um processo educativo-pedagógico, voltado ao projeto cooperativo e de relações de poder, enraizadas e fundadas na associação-cooperativa. Síntese da Unidade 3 Nesta Unidade você pôde entender melhor as diferentes racionalidades de uma organização cooperativa como associação e como empresa, na economia de mercado de relações capitalistas. A partir disso, buscou-se ressaltar a importância da participação política dos associados na organização e funcionamento de uma cooperativa. Procurou-se destacar que a transparência e a confiabilidade são essenciais à estabilidade de uma cooperativa. Estas devem estar embasadas em processos políticos e técnicos qualificados. Dessa forma, constituem desafios à política de educação e desenvolvimento do quadro funcional e social de uma cooperativa. 82 EaD Unidade 4 associativismo, cooperativismo e economia solidária RELAÇÕES ENTRE AS PRÁTICAS SOCIAIS DE EDUCAÇÃO E DE COOPERAÇÃO OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer conceitos de educação e de cooperação e entender a relação entre práticas sociais educativas e de cooperação. Seção 4.1 Conceitos de Educação e Cooperação A cooperação é um conceito, de certa forma, ambíguo, que permite múltiplos usos. É empregado para definir ações, relações entre indivíduos, ou como um conceito de organização institucional. Para Boettcher (1974, p. 22), “cooperação é a atuação consciente de unidades econômicas (pessoas naturais ou jurídicas) em direção a um fim comum, pela qual as atividades dos participantes são coordenadas através de negociações e acordos.1” Assim, em princípio, a cooperação é entendida como uma ação consciente e combinada entre indivíduos ou grupos associativos com vista a um determinado fim. Para os fins de nossa reflexão, vou definir a cooperação como um processo social, embasado em relações associativas, na interação humana, pela qual um grupo de pessoas busca encontrar respostas e soluções para seus problemas comuns, realizar objetivos comuns, busca produzir resultados, mediante empreendimentos coletivos com interesses comuns. A educação é um fenômeno complexo da existência humana. Por conseguinte, também tem muitas definições, compreensões ou explicações e acontece em diferentes lugares e de diversos modos. Libâneo (1998, p. 22) a define como “o conjunto das ações, processos, influ- 1 Traduzido por mim do texto original alemão. 83 EaD Walter Frantz ências, estruturas, que intervêm no desenvolvimento humano de indivíduos e grupos na sua relação ativa com o meio natural e social, num determinado contexto de relações entre grupos e classes sociais”. Para Marques (1996, p. 14), a educação se cumpre num diálogo de saberes, não em simples troca de informações, nem em mero assentimento acrítico a proposições alheias, mas na busca do entendimento compartilhado entre todos os que participam da mesma comunidade de vida, de trabalho, de uma comunidade discursiva de argumentação. Dessa relação nasce um “espaço de atuação pedagógica”, no qual se desenvolvem processos, práticas educativas e cooperativas. Na verdade, a educação e a cooperação são duas práticas sociais que se processam de tal forma que, sob certos aspectos, uma contém a outra. A educação é um processo social fundamental na vida dos homens. Na cooperação, como um processo social, produz-se educação, sendo, assim, a organização cooperativa, além de seus outros significados, também um lugar social de educação. Entrelaçam-se e potencializam-se a educação e a cooperação, como processos sociais. No processo da educação é possível identificar práticas cooperativas e no processo da cooperação pode-se identificar práticas educativas. A organização da cooperação, em seus aspectos práticos, exige de seus sujeitos e atores uma comunicação de interesses, de objetivos e práticas, a respeito do qual precisam falar, argumentar e decidir. Nesse processo de interlocução de saberes de cada associado, os dois fenômenos se relacionam, entrelaçam-se e potencializam-se, como práticas sociais específicas. Assim, no diálogo da cooperação, cumpre-se a educação, fundada no processo de construção e reconstrução dos diferentes saberes daqueles que participam da organização e das práticas cooperativas. Há, portanto, uma estreita relação entre esses dois fenômenos, entre essas duas práticas sociais: na prática cooperativa, para além de seus propósitos e interesses específicos, produz-se conhecimento, educação e aprendizagem; na prática educativa, como um processo complexo de relações humanas, encontra-se cooperação. Para compreender essa relação em seus desdobramentos práticos, em seus significados, deve-se olhar e perguntar pelo seu uso social, pelos seus sentidos, por suas forças, seus movimentos, suas origens. Deve-se perguntar pelas intenções, interesses e necessidades de quem pratica a cooperação, de quem está envolvido no processo da educação. Deve-se compreender o sentido pedagógico dessas práticas, isto é, a direção que se dá ao processo educativo. Afirma Libâneo (1998, p. 22), que 84 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária o pedagógico refere-se a finalidades da ação educativa, implicando objetivos sócio-políticos a partir dos quais se estabelecem formas organizativas e metodológicas da ação educativa. Nesse entendimento, o fenômeno educativo apresenta-se como expressão de interesses sociais em conflito na sociedade. Não é, portanto, a educação, a Pedagogia, um fenômeno neutro, isento de interesses e intenções. Nesse sentido, “politizam-se” as práticas educativas e cooperativas no sentido da construção de novos espaços e oportunidades sociais, de novos conhecimentos e saberes, e não no sentido da introdução aos espaços sociais, às oportunidades, conhecimentos e saberes já existentes e dominantes. Segundo Roberto Machado (1999, p. XXI), “todo o conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber”. Por meio de práticas educativas e cooperativas, procura-se estimular a responsabilidade social dos seus atores, especialmente alunos e professores das escolas. Trata-se, pois, da institucionalização de um processo de produção de conhecimento e de conscientização política, no sentido da construção de novos espaços de vida, a partir de práticas cooperativas, atividades e práticas escolares de educação. O sentido da educação pela cooperação, nas escolas, a sua dimensão pedagógica, é a formação de atores sociais, sujeitos construtores de uma sociedade democrática, isto é, livre, participativa e justa. Assim entendida, a prática educativa, sua dimensão pedagógica, tem também uma direção política e um conteúdo ideológico. Constitui-se igualmente em construção de um espaço de poder. A organização de espaços de poder é fundamental ao desejo, aos interesses e às necessidades de mudanças ou transformações da realidade social. Nas palavras de Machado (1999, p. XXI), saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. A possibilidade de poder contribuir para o desenvolvimento, para as mudanças e transformações da realidade, por meio da educação cooperativa, tendo em vista a melhoria das condições de vida das populações envolvidas, coloca o desafio de construir espaços de poder pelo entrelaçamento, pela integração das práticas de educação e de cooperação, como processos sociais de afirmação e emancipação de seus sujeitos. Conforme já referido, Libâneo (1998, p. 22) define a educação como “uma prática social que atua na configuração da existência humana individual e grupal”. Acontece no espaço das relações sociais. No caso de uma organização cooperativa, essas relações têm como base os interesses, 85 EaD Walter Frantz as necessidades de seus integrantes e os objetivos da associação. A educação na organização cooperativa atua na configuração dessa associação, levando-se em conta os interesses, as necessidades e os seus objetivos. Estes se fazem “força pedagógica” no processo da educação. Para Marques (1996, p. 14) a educação se dá centrada na questão da produção do conhecimento, pela interlocução dos diferentes saberes “sempre em reconstrução através das aprendizagens no mundo das tradições culturais que se ampliam, nos espaços sociais dos distintos âmbitos lingüísticos e do convívio em grupos e nos processos da singularização dos sujeitos”. Trata-se de um processo de interlocução de diferentes vozes que se aproximam, se solidarizam, se identificam para a construção de espaços comuns de atuação, sem, no entanto, renunciarem a si mesmas, preservando, assim, as condições e as posições do diálogo de seus saberes, de suas experiências de vida. Na argumentação em favor do entendimento comum configuram-se, educam-se para a cooperação. Organizam as suas relações, associam-se. A educação para a cooperação, no entanto, não é uma concepção teórica que se faça realidade; é uma prática social que se constrói na intencionalidade dos seus atores, na dimensão pedagógica do processo. De acordo com Libâneo (1998, p. 71), a educação, para além de sua configuração como processo de desenvolvimento individual ou de mera relação interpessoal, insere-se no conjunto das relações sociais, econômicas, políticas, culturais que caracterizam uma sociedade [...] as funções da educação somente podem ser explicadas partindo da análise objetiva das relações sociais vigentes, das formas econômicas, dos interesses em jogo. Com base nesse entendimento, a prática educativa é sempre a expressão de uma determinada forma de organização das relações sociais na sociedade. Sobre o processo de educação, seu lugar social, seu uso social, seu significado, sua produção e natureza, existem muitas teorias, opiniões e explicações. Isso expressa, certamente, também a origem de crises e conflitos na área da educação e que tem a ver, especialmente, com o seu uso social ou com o sentido de sua dimensão pedagógica. A educação como função construtora e reconstrutora dos espaços de vida se faz presente pela via das organizações sociais, entendidas estas como lugares de cultura, de política, de economia, associando-se “a processos de comunicação e interação pelos quais os membros de uma sociedade assimilam saberes, habilidades, técnicas, atitudes, valores” (Libâneo,1998, p. 24). Sob essa ótica, a prática cooperativa, como expressão das ações entre pessoas que se associam em virtude de seus interesses ou necessidades, é, certamente, também um lugar privilegiado de processos de comunicação, de interação, isto é, de educação. E, como tal, as organizações cooperativas também se constituem em “espaços pedagógicos” de educação e, consequentemente, também de poder. 86 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Ao estudar o pensamento de Habermas, no sentido de compreender a Pedagogia da ação comunicativa, Boufleuer (1997, p. 20) afirma que a “noção de pedagogia implica uma relação entre sujeitos, isto é, uma interação”. Diz ser “uma interação marcadamente dialética”, em que, citando Kant, ”homens educam outros homens em homens”. Assim entendida, a toda a prática educativa corresponde uma Pedagogia, sendo esta, no entanto, uma ação, um processo que se desenvolve, de acordo com o lugar social da educação ou com o uso social que se dá à educação. Não é uma ação neutra e está presente em todas as relações humanas que compõem o laço social, relações que não se dão em espaços abstratos. Segundo Libâneo (1998, p. 20), “o pedagógico perpassa toda a sociedade, extrapolando o âmbito escolar formal, abrangendo esferas mais amplas da educação informal e não-formal”. Está presente, portanto, também na prática do cooperativismo, como um processo de educação informal. Para Carlos Brandão (apud Libâneo, 1998, p. 18), ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. [...] Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar em que ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a única prática, e o professor profissional não é seu único praticante. Vários e distintos são os lugares e os processos da educação; diferentes são os lugares e os processos de produção de conhecimento, de aprendizagem, de desenvolvimento de habilidades. Muitas são as pedagogias. O homem educa e é educado, aprende e ensina em um processo de convivência com os seus semelhantes, seja por uma relação cooperativa ou competitiva. Pelo conhecimento, pela educação, pela aprendizagem, constrói os sentidos de sua existência. O conhecimento é produto da capacidade de pensar e viver o mundo, de atribuir significados à realidade; é criação humana, gerado no esforço por entender e fazer a vida. No processo da convivência social e, especialmente, no processo de produção de sua sobrevivência e afirmação, seja na relação com a natureza ou com os demais seres humanos, o homem constrói conhecimento, processa educação, aprende e desenvolve capacidades. Ensina Marques (1995, p. 10) que as aprendizagens “se estruturam nas vivências cotidianas dos específicos e diversificados lugares e tempos sociais, âmbitos lingüísticos específicos em que vivem e atuam os seres humanos”. A sociedade humana está em constante construção e reconstrução, movida pela produção do conhecimento, de diferentes saberes e ciências, pelo seu 87 EaD Walter Frantz uso, condicionado por necessidades, desejos e interesses em interação. Desse processo também nascem, nos diferentes tempos e lugares, organizações sociais, espaços de cultura e política, abrigando processos e práticas de educação e de aprendizagem. A educação acontece nos espaços da vida humana, em todas as suas dimensões, com todos os seus sentidos. Confunde-se, portanto, com a própria experiência humana de querer conhecer a si mesmo e ao mundo que habita. A preocupação do homem com o seu mundo, com as diferentes dimensões de sua vida está presente desde os tempos mais antigos. Apenas, porém, ao pensar a sua existência e a sua organização, desvinculada das mitologias, do mundo das divindades, permitiu, efetivamente, a produção do conhecimento. A partir desse esforço por conhecer a realidade, surgiram as ciências, destinadas à descoberta das relações entre as coisas e os homens, das leis que regem o mundo natural. Foi desse esforço por conhecer o mundo, o homem, a sua organização, as suas relações com os outros, que nasceram as ciências, os diferentes saberes que fundamentam a aprendizagem humana. Para Marques a aprendizagem – característica distintiva do ser humano – é entendida não como uma simples adaptação ao que já existe, mas como uma capacidade de recriar, reconstruir ou mudar o existente. Assim, o aprendizado distingue os homens das demais espécies de animais. Aprender com os outros, construir conhecimento e transmiti-lo é uma característica do ser humano. As gerações mais velhas orientam, ensinam às gerações mais novas as suas experiências de vida, inclusive métodos e técnicas, caminhos pelos quais estas podem construir novos conhecimentos a respeito da realidade que os cerca, seja ela social ou natural. Boufleuer (1997, p. 21) ensina que tornamo-nos propriamente humanos graças à pedagógica relação que estabelecemos com a geração mais velha e com nossos coetâneos. Desde a mais tenra idade outras pessoas, nossos pais e educadores, irmãos e companheiros, interagem conosco estabelecendo entendimentos sobre aspectos do mundo, a fim de que possamos nos desenvolver como indivíduos socializados. Nesse sentido a Pedagogia é uma relação social, por meio da qual fluem forças, interesses, visões de mundo, ideologias, com objetivo de socialização. Pode ser definida como uma prática política, uma prática de construção de poder. A soma de práticas sociais pelas quais novos indivíduos são transformados em membros de sociedades ou comunidades anteriormente existentes constitui o processo de socialização. Na dinâmica do processo de socialização os indivíduos ensinam e aprendem. “A socialização é um processo de aprendizagem que se apóia, em parte, no ensino explícito e, também em parte, na aprendizagem latente” pela exposição e interação social (Jahoda, 1996, p. 711). 88 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Esse processo pode ser coercitivo, competitivo ou cooperativo. Ele se realiza no espaço das relações humanas. Assim sendo, as organizações cooperativas, as escolas, são lugares de socialização e de suas práticas depende a natureza desse processo de socialização. Explicita Marques (1995, p. 16) que, ao se entrelaçarem os processos da socialização, da individuação e da singularização do sujeito, os homens aprendem uns dos outros, constituem-se em sujeitos sociais concretos da aprendizagem e adquirem, como pessoas, as competências que os tornam capazes de linguagem e ação para tomarem parte nos processos de entendimento compartilhado e neles afirmarem sua própria identidade. Essa característica essencialmente humana de produzir conhecimento, aprendizado, de transmitir às gerações futuras, só se tornou possível porque o homem tem a capacidade de criar sistemas de símbolos: a linguagem, pela qual dá significado as suas experiências vividas e as transmite aos seus semelhantes. A transmissão se dá em todos os lugares e processos concretos da vida nos quais o ser humano realiza sua natureza social. A escola se constituiu, ao longo do tempo, como um lugar privilegiado para as ciências, para uma educação e uma aprendizagem mais intencionada e sistematizada, para a transmissão, para a comunicação. Os homens, no entanto, são educados e aprendem também fora da escola, nos outros lugares sociais da vida: na família, nos grupos de amigos, na organização do trabalho, nos espaços políticos, nos espaços da organização cooperativa. Assim, o conhecimento, a educação, a aprendizagem, a socialização, se processam também nos espaços da organização cooperativa, na prática da cooperação. Segundo Marques (1995, p. 15-16), de frente aos saberes articulados nas tradições culturais e de face às experiências do mundo da vida, a aprendizagem não é conformação ao que existe nem pura construção a partir do nada; é reconstrução autotranscendente, em que se ampliam e se ressignificam os horizontes de sentido desde o significado que o sujeito a si mesmo atribui (...) na aprendizagem, graças à produtividade de indivíduos e grupos inter-vinculados no sucederem-se as gerações, reassumem eles e reconstroem o mundo da vida. Nela se reinterpreta a experiência cultural dos grupos e se insere em novas totalidades de sentido; ressignifica-se cada um de seus elementos. 89 EaD Walter Frantz Seção 4.2 Um Novo Lugar Para a Cooperação e a Educação A existência humana, tanto em sua forma individual como grupal, está submetida a um processo de profundas e constantes transformações em todos os seus sentidos. De acordo com Libâneo (1998, p. 20), essas transformações tecnológicas e científicas levam à introdução, no processo produtivo, de novos sistemas de organização do trabalho, mudança no perfil profissional e novas exigências de qualificação dos trabalhadores [...] São requeridas novas habilidades, mais capacidade de abstração, de atenção, um comportamento profissional mais flexível. Para tanto, repõe-se a necessidade de formação geral, implicando reavaliação dos processos de aprendizagem, familiarização com os meios de comunicação e com a informática, desenvolvimento de competências comunicativas, de capacidades criativas para análise de situações novas e modificáveis, capacidade de pensar e agir com horizontes mais amplos. O mundo do trabalho, o mundo da vida, as organizações sociais, enfim, cada espaço da vida dos homens está sendo profundamente atingido pelas transformações e mudanças em curso. Os efeitos disso tudo ainda não podem ser bem avaliados. Sentimos em todos os espaços de nossas vidas que estamos sendo desafiados, exigidos e atingidos, constantemente, por profundas transformações. Elas exercem pressões sobre nossas vidas, produzem novas necessidades, abrem espaços de sentidos múltiplos para novas formas de organização social. No meu entendimento, esse é um novo espaço para o associativismo, base para a organização de muitos e diferentes espaços de nossas vidas. A reconstrução dos laços sociais para a cooperação ética de suas populações, conforme expressão de Lévy (1999), talvez seja, hoje, uma das tarefas mais fundamentais da educação e da Pedagogia emancipadora do ser humano, dentro e fora da escola. De acordo com Lévy (1999, p. 42), a evolução da técnica, o progresso da ciência, as turbulências geopolíticas e os elementos aleatórios dos mercados dissolvem os ofícios, pulverizam as comunidades, obrigam as regiões a se transformar, as pessoas a se deslocar, mudar de lugar, de país, de costumes e de língua. A desterritorialização, muitas vezes, fabrica a exclusão ou rompe os laços sociais. Quase sempre confunde as identidades, pelo menos aquelas que fundavam sobre pertenças ou “raízes”. Resultam um terrível desajuste, uma imensa necessidade de coletivo, de laço, de reconhecimento e de identidade. Movimentos sociais, associações, cooperativas ou outras práticas sociais, podem se constituir em lugares privilegiados para a reconstrução do coletivo, dos laços sociais rompidos, de reconhecimento e identificação cultural dos indivíduos. 90 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Diante do quadro de profundas transformações, especialmente econômicas e políticas, pelas quais passa a sociedade contemporânea, ressurge a questão do cooperativismo, sendo-lhe atribuídas diferentes funções, especialmente no campo do trabalho, da economia. Em muitas circunstâncias, as cooperativas ou outras formas associativas, de solidariedade, aparecem mais como meios de garantir a “inscrição na estrutura social”, procurando evitar a exclusão social, que põe em risco a própria identidade de grupo, de vizinhança ou até de cultura. A organização ou desorganização do trabalho, a estruturação ou desestruturação das formas de sociabilidade convidam a repensar, hoje, a questão social nos termos de um novo crescimento da vulnerabilidade de massa, cujo risco se acreditava afastado (Rizek, 1998, p. 16). A própria diminuição dos espaços públicos estatais, a crise do Estado do Bem-Estar Social, ao lado da exclusão de milhares de pessoas do sistema produtivo privado, no contexto das políticas neoliberais, ampliam os espaços para as organizações cooperativas, enquanto instrumento de organização da sociedade civil ou como formas de enfrentamento do desemprego. O fim destas cristalizações históricas experimentadas de fato, ou reivindicadas como horizonte, é o que caracteriza o momento contemporâneo, situação de transitoriedade que clama por diagnósticos precisos, na medida em que os indícios de transformação já estão desenhados. O processo de degradação dos eixos que se constituíam nos pilares da sociedade salarial vem pondo em xeque modos de socialização e formas de integração com base no trabalho, vem revertendo identidades, filiações, formas de coesão e de solidariedade (Rizek, 1998, p. 15). O reconhecimento, a adesão, entretanto, às formas de organização solidária, associativa ou cooperativa, não pode se dar de outra maneira do que por intermédio de um processo de educação plurifacetado, centrado no conhecimento, na conscientização, produto da interlocução dos indivíduos, do seu diálogo e da sua argumentação crítica a respeito das experiências de vida já realizadas. Libâneo (1998, p. 18, 23), afirma que “as transformações contemporâneas contribuíram para consolidar o entendimento da educação como fenômeno plurifacetado, ocorrendo em muitos lugares, institucionalizado ou não, sob várias modalidades”. Segundo este autor, esses lugares podem ser os movimentos sociais ou outros grupos organizados, constituindo-se “diferentes manifestações e modalidades de prática educativa”: educação informal, não formal e formal. Atividades de educação não formal, observa, são aquelas que se desenvolvem com intencionalidade nos movimentos sociais organizados, nos trabalhos comunitários, etc. A educação informal acontece pela interação, pela interlocução dos sujeitos, pelas relações que resultam dos processos e práticas diversas nos espaços da vida, sejam de dimensão cultural, econômica ou política. 91 EaD Walter Frantz O cooperativismo é uma prática social histórica, em cujo centro estão questões do mundo da vida ou ligadas a sua base material. É uma prática social que institui um lugar de aprendizagem, um lugar de educação. A sua instituição se dá como uma condição inerente a sua organização, seu funcionamento, seu progresso. Na interação dos associados, dos cooperantes, em sua ação comunicativa, em seu diálogo, como partícipes de um projeto comum, produzem eles as condições para um processo de socialização de conhecimentos, de experiências. Educam-se para a cooperação, produzem conhecimentos e aprendizagens necessárias aos fins da cooperação. A educação é um processo cooperativo, desde que esteja voltado à emancipação humana, um processo interativo e democrático de diferentes vozes que se fazem sujeitos da sua história pela ação comunicativa, pela cooperação na construção dos seus espaços de vida, submetendo-se essas diferentes experiências de vida, suas reflexões e argumentos a um diálogo reconstrutor das relações e práticas sociais decorrentes. Nas organizações cooperativas produz-se educação, mas ela se faz cooperativa nas práticas da interação dos cooperados, seja pela ação discursiva da argumentação sobre o fazer, ou seja, pelo fazer. Ela se faz cooperativa na prática, nas relações dos cooperantes. A educação no espaço da organização cooperativa, a sua prática pedagógica, contém e revela a noção, a compreensão que se tem do que vem a ser uma cooperativa. Na definição do que vem a ser uma cooperativa, na economia de mercado, especialmente no caso de cooperativas de agricultores, entram dois aspectos básicos que compõem o ponto de partida para a sua conceituação e sua diferenciação de outras iniciativas, como as empresas privadas ou estatais. Uma organização cooperativa é, antes de mais nada, uma associação de pessoas (não de capitais) que se propõe atuar na perspectiva da economia dos componentes dessa associação, isto é, na perspectiva de sua racionalidade econômica enquanto economias individuais. Porém, ao fazê-lo, essa associação cria, organiza e estrutura um instrumento adequado que vem a ser a empresa cooperativa: – uma empresa comum com o objetivo de apoiar e complementar a administração das economias individuais, dando-lhes suporte no jogo competitivo do mercado. Portanto, a empresa cooperativa se constitui em uma extensão da economia dos associados, os quais encontram nesse instrumento cooperativo uma opção mais vantajosa do que a ação individual para se lançar ao mercado. Decorre daí que a ação empresarial cooperativa deve ser determinada e moldada, antes de mais nada, pelas atividades e objetivos das economias de seus associados. Essa característica diferenciada – como associação e como empresa – remete a duas questões fundamentais para o sucesso do empreendimento cooperativo. Primeiro, da natureza associativa decorre a necessidade da participação política de seus associados na condução do empreendimento e, segundo, da natureza empresarial decorre a necessidade da participação econômica dos associados na cooperativa. A cooperativa só consegue ser eficiente, a longo prazo, mediante o cumprimento desses dois aspectos. 92 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A viabilização da participação política e da participação econômica é uma questão central na administração do empreendimento cooperativo, condicionada pela racionalidade da natureza do próprio ato associativo, isto é, ninguém contribui com recursos na organização cooperativa pelo simples prazer de contribuir. Existem objetivos e interesses que levam a isso (Frantz, 1985, p. 57-58). Esse, portanto, é o espaço das práticas educativas, em se tratando do cooperativismo de agricultores. A educação cooperativa, ou melhor, a educação para a cooperação, define-se no espaço das práticas concretas. De certa forma, é a expressão da compreensão dessas práticas ou mesmo de seu uso social. Contém intenções e interesses, que fazem a sua “base pedagógica”. O fenômeno social das práticas de educação ocorre em um contexto de interesses e necessidades. Está vinculado ao esforço, às intenções ou ao jogo de interesses por construir um espaço de poder, mediante as organizações cooperativas. Tem intencionalidade política, portanto, e não apenas funcionalidade organizativa. A organização e a implantação do espaço de poder, fundamentado na participação política do associado, só são viáveis através de um processo pedagógico, orientado crítica e construtivamente na perspectiva da consecução dos objetivos e finalidades da cooperação. Não se processam, simplesmente, pela clareza teórica dos conceitos, mas pela dinâmica da prática social desses conceitos (Frantz, 1986, p. 59). Organizações cooperativas são fenômenos, relativamente complexos. Nascem da articulação e da associação de indivíduos que se identificam por interesses ou necessidades, buscando o seu fortalecimento pela organização e instrumentalização, com vistas a objetivos e resultados, normalmente de ordem econômica. Contêm elementos sociais, culturais e políticos. A cooperação é, em seu princípio constituinte, um acordo racional de sujeitos sobre algo, isto é, a economia, e os seus interesses e necessidades diante da produção e distribuição de bens e riquezas. O cooperativismo, contudo, por isso mesmo, como prática social educativa, cultural e política, tem a característica de incorporar esses elementos ao seu sentido econômico. A economia envolve aspectos de ordem técnica e política. É algo construído, inacabado, dinâmico, submetido a interesses. É um espaço entrecruzado de poder técnico e de poder político, no qual atuam os seus agentes e que é produzido a partir do conhecimento dessa dupla dimensão e relação. Assim, no espaço da organização cooperativa, se fazem presentes também questões sociais, políticas e culturais, que perpassam a sua natureza associativa e seu caráter instrumental (Frantz, 1999, p. 59). A prática da economia, por suas características sociais, culturais e políticas, contém processos de aprendizagem, processos de educação. Afirma Lévy (1999, p. 174), que “é preciso admitir também o caráter educativo ou formador de numerosas atividades econômicas e sociais”. Também Libâneo (1998, p. 71) argumentou que “a educação, para além de sua configuração como processo de desenvolvimento individual ou de mera relação interpessoal, insere-se no conjunto das relações sociais, econômicas, políticas, culturais que caracterizam uma sociedade”. 93 EaD Walter Frantz Organizações cooperativas abrigam diferentes práticas e ações de educação. Nessas práticas ou ações educativas podemos encontrar interações dos tipos comunicativo ou estratégico, constituindo campos de educação e espaços pedagógicos, organizados no contexto da correlação de forças e interesses que agem sobre a produção, sua posse e distribuição. A educação como ação social ou como prática social aparece, muitas vezes, de forma difusa, associada a processos de comunicação, de interação entre os associados, dirigentes, funcionários ou outros interlocutores, presentes no espaço da cooperação. Aparece como uma ação entre sujeitos ou como uma prática sobre outros, procurando influenciá-los em suas ideias e seus valores, em seus modos de pensar, de interpretar a vida social, especialmente a da realidade cooperativa, sugerindo ou levando-os a comportamentos e visões de mundo, favoráveis à natureza da prática cooperativa. Para além das diferentes funções que as práticas de educação possam assumir na organização e funcionamento de uma cooperativa, coloca-se a ela o desafio da produção do conhecimento, ou, de acordo com a expressão de Pierre Lévy, da “inteligência coletiva”. Afirma Lévy (1999, p. 29) que “a base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimento e o enriquecimento mútuos das pessoas”. Embora o diga e use o conceito para se referir ao fenômeno do ciberespaço, como “novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores” (Lévy, 2000, p. 17) e a defina como “um dos principais motores da cibercultura” (p. 28), a expressão parece apropriada também para se falar em educação nas organizações cooperativas, tendo esta na produção de conhecimento o seu fundamento, a sua centralidade. Entende o autor ser o papel da inteligência coletiva o estabelecimento de uma sinergia entre competências, recursos e projeto, a constituição e manutenção dinâmicas de memórias em comum, a ativação de modos de cooperação flexíveis e transversais, a distribuição coordenada dos centros de decisão. [...] Quanto mais os processos de inteligência coletiva se desenvolvem – o que pressupõe, obviamente, o questionamento de diversos poderes –, melhor é a apropriação, por indivíduos e por grupos, das alterações técnicas, e menores são os efeitos de exclusão ou de destruição humana resultantes da aceleração do movimento tecno-social (Lévy, 2000, p. 29). De acordo com Manuel Castells (1998, p. 27), “vários acontecimentos de transcendência histórica têm transformado a paisagem social da vida humana. Uma revolução tecnológica, centrada em torno às tecnologias da informação, está modificando a base material da sociedade a um ritmo acelerado”. Na opinião do autor, um novo mundo está tomando forma, fazendo surgir uma nova estrutura social dominante, uma nova economia e uma nova cultura, sendo as mudanças sociais tão profundas quanto os processos de transformação econômica e tecnológica. 94 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Afirma Lévy (2000, p. 30) que “devido a seu aspecto participativo, socializante, descompartimentalizante, emancipador, a inteligência coletiva proposta pela cibercultura constitui um dos melhores remédios para o ritmo desestabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica”. Entendida a organização cooperativa como expressão dos interesses e necessidades de seus associados, como extensão de suas economias – caracterizada pela associação e pela instrumentação empresarial – dessa dupla natureza decorre a necessidade da participação, seja ela política ou econômica, embasada na “inteligência coletiva”. A questão central de um pla­no de trabalho na área da edu­cação cooperativa é a viabilização de um processo dinâmico de construção da inteligência coletiva, fundada no conhecimento, na reciclagem das aprendizagens e saberes particulares pela crítica interlocução de seus associados, embasada em princípios democráticos e práticas participativas. Síntese da Unidade 4 Nesta Unidade você pôde entender melhor como pode ser conceituada a educação e a cooperação, sobre seus usos sociais e a relação entre essas duas práticas sociais. Sobre o processo de educação, seu lugar e uso social, seu significado, sua produção e natureza existem diferentes teorias, opiniões e explicações. O mesmo se pode afirmar a respeito da cooperação. Isso permite compreender, certamente, também a origem de crises e conflitos na área da educação e da cooperação e que têm a ver, especialmente, com o seu uso social, em sociedades complexas e, acima de tudo, marcadas por contradições das quais provêm conflitos e pressões por mudanças ou transformações. 95 EaD Unidade 5 associativismo, cooperativismo e economia solidária ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA NA AGRICULTURA FAMILIAR OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer e entender o lugar do associativismo e cooperativismo na agricultura familiar como uma das formas históricas de organização social na sociedade brasileira. Seção 5.1 Agricultura Familiar: seus problemas e esperanças Em minhas atividades acadêmicas tenho como objetivo geral contribuir com o debate sobre cooperativismo na agricultura. Especificamente, o núcleo da atenção deste texto são as práticas cooperativas, presentes na agricultura familiar de origem colonial. Para isso, porém, não estou recorrendo a documentos históricos específicos para falar sobre essas práticas. Na presente abordagem, incorporo informações de um passado, mas que está presente na base daquilo que são, hoje, as cooperativas na Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Considero válido voltar no tempo e falar sobre cooperativismo e agricultura familiar, a partir da vivência e da experiência, desenvolvendo uma reflexão que se alimenta da interlocução com outros autores. Primeiramente, devo dizer que nasci em um grupo social que se estruturou na região, a partir das primeiras décadas do século 20 com a chegada dos colonos, na maioria descendentes de imigrantes europeus. A agricultura familiar foi minha primeira escola e as práticas cooperativas estão entre minhas primeiras lições. Na verdade, hoje, sei que foi mais que isso. Essa primeira escola marcou a minha vida, definitivamente, mais tarde, também na universidade, por meio do ensino, da pesquisa e da extensão. Os agricultores familiares, predominantemente, sempre depositaram no associativismo e na organização cooperativa uma esperança de poder melhorar, por intermédio de suas múltiplas práticas, as suas condições de vida. De certo modo, a fragilidade das condições materiais de subsistência condicionava o processo de socialização, os valores, o comportamento, a visão de 97 EaD Walter Frantz mundo das famílias dos agricultores familiares. Conduzia à crença na cooperação. O espaço da cooperação, certamente, alimentou muitos sonhos e proporcionou também muitas decepções a milhares de famílias. Sem os adequados conhecimentos, os agricultores não chegavam a constituir maior poder de ação em suas organizações cooperativas. De modo geral, eram submetidos a outros poderes. O grande dilema dos colonos era a falta de informação e conhecimento, fazendo-os dependentes em suas relações sociais e econômicas. Diante disso, eram levados a ter de acreditar, simplesmente, naquilo que lhes era dito.1 A relação entre conhecimento e poder foi a grande lição que veio das práticas do movimento cooperativo. Não se pode negar, entretanto, a importância dessas experiências para o campo de lutas e movimentos sociais que, ao longo das últimas décadas, marcaram a vida na agricultura familiar. Certamente, as raízes de conquistas realizadas podem ser encontradas nas lutas históricas por organização e poder de ação, por parte dos agricultores. Sob esse aspecto, as vivências e experiências tiveram um sentido pedagógico. Em amplos traços, pretendo abordar a problemática da cooperação, porém sem nominar cooperativas específicas. Finalizo, contudo, a abordagem das práticas de cooperação, a partir de dados de pesquisa realizada em uma cooperativa de comercialização de produtos agrícolas. A retomada de dados e informações de pesquisas realizadas em 2000 revela que a capacidade de resistência das economias de agricultura familiar, a esperança de suas famílias na organização cooperativa e suas estratégias de inserção no mercado de lógica capitalista sempre estiveram presentes ao longo do tempo. Antes de avançar na abordagem, considero importante retomar o que afirmam Menga Lüdke e Marli André, (1986, p. 3) a respeito das atividades de pesquisa. Escrevem as autoras (p. 3) que, sendo a pesquisa uma atividade humana e social, reflete “a carga de valores, preferências, interesses e princípios que orientam o pesquisador”. Certamente, tenho sido influenciado por valores e preferências, por uma visão de mundo e por motivações que orientam meu esforço de pesquisa e reflexão. Por isso, o texto precisa ser lido levando em consideração que acredito ser o movimento cooperativo uma força social com potencial ainda não de todo explorado, diante dos enormes desafios sociais e econômicos de nossa época. Isto é, não me desfiz da esperança de poder construir caminhos alternativos pela cooperação. A esperança sustenta a razão da pesquisa. Na condição de professor e pesquisador, constituí a organização cooperativa como um dos meus objetos de estudo, especialmente as experiências de cooperação na agricultura familiar. Foi pelo caminho da convivência e das práticas de organização da agricultura familiar que construí a minha relação pessoal com a questão do cooperativismo. 1 Marie von Ebner-Eschenbach, contista austríaca (1830-1916), cunhou a frase: Wer nichts Weiss, muss alles glauben. Em tradução livre significa: Quem nada sabe, precisa acreditar. 98 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária As razões e, em boa parte, a motivação para a escolha de meu objeto de pesquisa encontramse em experiências profissionais concretas. Participei da gestão de organizações cooperativas por alguns anos. Dessa experiência nasceram muitos questionamentos que, hoje, ainda estão presentes no estudo sobre a problemática cooperativa. Particularmente, para mim, as experiências de gestão de práticas de cooperação produziram muitas dúvidas e perguntas, a respeito do sentido e dos significados das cooperativas atualmente. Hoje busco refletir sobre essas experiências, a partir da interlocução com diferentes autores que desenvolvem teorizações sobre essa problemática social. Sinto-me motivado para estudar a complexidade do fenômeno cooperativo, na expectativa de poder contribuir, pela pesquisa, para a sua melhor compreensão como uma prática de poder. Além da teoria, no entanto, continua o desafio do diálogo com as organizações do campo empírico, isto é, com os sujeitos da cooperação. Certamente, isso permite um (re)encontro com diferentes dimensões do movimento cooperativo. A abordagem da agricultura familiar, ainda que sucintamente, é essencial para a compreensão de sua relação com o cooperativismo. Resguardada a discussão mais específica sobre a agricultura camponesa (Zarth, 2009; Sabourin, 2009), pode-se salientar que a agricultura familiar, na Região Noroeste do Rio Grande do Sul, nasceu do processo de ocupação das terras, iniciada ao final século 19, com a chegada dos primeiros colonos. Na região, foram instalados núcleos populacionais de diferentes etnias de origem europeia, porém a maioria dos colonizadores já era oriunda das antigas colonizações do Estado, chamadas “Colônias Velhas”.2 A maioria das famílias dos agricultores foi assentada em lotes de 25 hectares, desenvolvendose uma agricultura de economia familiar. Isto é, nas unidades econômicas, a força de trabalho predominante foi familiar (Roche, 1969). A estrutura fundiária original, entretanto, foi bastante alterada por diversos fatores, entre os quais: a repartição histórica dos lotes entre herdeiros, a concentração das áreas de terras pela mecanização, a expansão da cultura da soja, a racionalidade econômica capitalista, o êxodo rural, entre outros. Hoje, a agricultura familiar, mesmo com boa produtividade, passa a ser muito desafiada em termos de sobrevivência ou mesmo inviável para muitas atividades de produção, no contexto das relações de mercado e das políticas que delas decorrem. Pelo avanço da ciência e tecnologia, decorre um poder de mercado que impõe grandes transformações aos modos tradicionais de fazer agricultura familiar (Frantz, 2009, p. 171). 2 Designação dada às primeiras colonizações de imigrantes de origem europeia, no Estado do Rio Grande do Sul. 99 EaD Walter Frantz Diante desse contexto de mudanças e transformações, todavia, como se pode caracterizar e conceituar a agricultura familiar atualmente? Com certeza, não é algo que se possa fazer sem polêmica, diante das alterações históricas do sentido da produção, provocadas pela inserção na economia de mercado capitalista. Afirmam Carlos Guanziroli et al. (2001, p. 50) que é uma questão complexa em razão da grande diversidade, desde o meio físico até os “diferentes tipos de agricultores, que têm interesses particulares, estratégias próprias de sobrevivência e de produção e que, portanto, respondem de maneira diferenciada a desafios e restrições semelhantes”. Assim sendo, existem diferentes entendimentos, condicionados por circunstâncias de tempo e lugar, tamanho de área ou contratos de trabalho temporário.3 Certamente, não existe um conceito fechado sobre agricultura familiar, embora ainda possam ser reconhecidas algumas características comuns, tais como: propriedade dos meios de produção, terra como meio de subsistência e não apenas como capital, predominância do trabalho de membros da família, atividades de produção, simultaneamente voltadas à subsistência e ao mercado, maior autonomia na organização do trabalho. Quanto ao sentido do trabalho na agricultura familiar dos colonos, é preciso destacar que se trata de algo com duplo propósito: subsistência e mercado. A realização de um ou outro dependeu sempre da disponibilidade de fatores como a fertilidade da terra, o acesso ao mercado comprador e de mão de obra disponível. Além disso, com relação ao trabalho também é necessário observar que era utilizado trabalho de terceiros, na instituição das unidades econômicas familiares, principalmente para a derrubada da floresta ou para atender os picos de plantio e colheita. Isto é, essas atividades eram realizadas com trabalhadores de origem cabocla, incorporados ao mundo do trabalho rural em condições, muitas vezes, precárias e de exploração do máximo da mais-valia (Zarth, 2009, p. 54-56). Também com essa mesma finalidade era utilizada mão de obra não familiar, oriunda de famílias de colonos pobres e necessitados ou de famílias com excesso de mão-de-obra, diante da envergadura de suas próprias unidades econômicas familiares. Esse trabalho, muitas vezes, era pago com produtos. Isto é, com uma pequena fatia de seu trabalho. Além disso, em fases subsequentes da agricultura regional, em algumas economias era utilizada mão de obra de agregados ou parceiros, isto é, de famílias de agricultores pobres às quais era concedida a exploração de terras, normalmente mais exauridas e excedentes ou de difícil cultivo. 3 Disponível em: <http://www.cepea.esalq.usp.br/especialagro/EspecialAgroCepea_9.doc>. Acesso em: 23 jun. 2011. 100 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária O pagamento da cessão das terras era feito pela prestação de serviços aos proprietários das áreas ou pela repartição dos produtos obtidos nessas áreas.4 No caso da agricultura familiar camponesa, em alguns aspectos distinta da agricultura familiar dos colonos, o conceito refere-se a uma categoria social e econômica que incorpora compreensões e convicções políticas, como no caso do Movimento dos Agricultores Sem Terra (MST). O uso do termo camponês revela uma visão política tensionada quanto ao uso e posse da terra (Sabourin, 2009). Pela politização da agricultura familiar procura-se reconhecimento, afirmação de poder e espaço nas políticas públicas. Aproximam-se e se identificam colonos e camponeses com o objetivo da luta por conquistas sociais e econômicas.5 A existência de agricultura camponesa, no Brasil, nem sempre foi reconhecida, tendo sido objeto de debates entre diferentes abordagens teóricas. Eric Sabourin, em seus estudos sobre o mundo rural brasileiro, confirma a existência de uma agricultura camponesa, embora “parte da intelligentsia brasileira”, até os anos 90 tenha negado sua existência (2009, p. 39). Escreve Sabourin (2009, p. 22): “No Brasil, a agricultura camponesa se implantou nos interstícios dos espaços ocupados pela grande agricultura de plantação ou pela pecuária extensiva”. Segundo este autor (2009, p. 33), a agricultura camponesa tem diferentes origens sociais e técnicas de produção. Ao se referir ao Nordeste, cita a agricultura indígena, os trabalhadores da agricultura colonial e os trabalhadores ou pequenos colonos livres. A agricultura familiar foi, historicamente, mais um lugar para as necessidades e o interesse das pessoas que para os interesses do capital, ainda que estivesse incorporada à lógica do mercado capitalista. Em meu entender, importa saber que a história da agricultura familiar, no Brasil, é uma história de pessoas, de famílias, de pequenos agricultores, de uma população que circulou, através das gerações, por diferentes tempos e lugares, na esperança de construir suas condições de vida, tanto na dimensão econômica como na dimensão cultural e social. Uma boa parte dessa história se confunde com a luta pela inserção no contexto maior, fornecendo mão-de-obra e alimentos baratos (Frantz, 2009, p. 170). Em 24 de julho de 2006, com a Lei 11.322, foram reconhecidos e definidos os conceitos da agricultura familiar e do agricultor familiar no Brasil.6 Em seu artigo 3o a lei considera agricultor familiar aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II – utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu 4 A partir de 1970, passei a prestar serviços em escritório de sindicato de trabalhadores rurais. Muitos agricultores familiares, sindicalizados ou não, solicitavam a confecção de contratos entre as partes, definindo seus direitos e deveres. 5 Essa aproximação é possível observar nas Romarias da Terra, especialmente, a 35ª Romaria da Terra, realizada em Santo Cristo dia 28 de fevereiro de 2012, com o tema “Agricultura familiar camponesa: Vida com Saúde”. 6 Disponível em: <http://mpabrasiles.wordpress.com/2010/02/18/censo-agropecuario-confirma-agricultura-camponesae-a-principal-produtora-de-alimentos-do-pais/>. Acesso em: 24 jun. 2011. 101 EaD Walter Frantz estabelecimento ou empreendimento; III – tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família. A lei foi uma conquista dos movimentos sociais, brotados da luta pelo reconhecimento da agricultura familiar e camponesa. O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), em suas manifestações sobre o Censo Agropecuário, publicado em 2009, revela uma antiga discussão sobre o emprego de terminologias e a identidade de categorias culturais, sociais e econômicas que compõem a agricultura familiar. A manifestação revela diferentes entendimentos e posicionamentos políticos, no espaço da agricultura familiar. Reflete diferenças históricas e políticas que se traduzem, inclusive, em diferentes movimentos e organizações, no espaço do que é denominado por agricultura familiar. Afirma o MPA: “O Censo traz uma novidade de extrema importância para nós, camponeses: pela primeira vez, ele retratou a realidade da “agricultura familiar” brasileira, que nós chamamos de agricultura camponesa”.7 A agricultura familiar, também denominada agricultura camponesa (Sabourin, 2009), ocupa um lugar de importância na economia de produção alimentar, no Brasil. Em 2009, foram publicados os resultados do último Censo Agropecuário, realizado em 2006 e 2007. Os dados revelam que a agricultura familiar produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 34% do arroz, 58% do leite, 59% da carne suína e 50% das aves produzidas no meio rural brasileiro, entretanto 84,4% dos estabelecimentos rurais brasileiros, enquadrados na agricultura familiar, possuem apenas 24,3% do território ocupado no campo brasileiro.8 Segundo o ex-titular do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, verifica-se uma tendência de valorização da agricultura familiar também por parte da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). 9 Certamente, na região do Noroeste gaúcho também existem diferentes origens daquilo que, amplamente, pode-se denominar de agricultura familiar. Além disso, com certeza existe uma história de preconceitos e conflitos entre essas diferentes origens, especialmente com relação à posse da terra, ao trabalho e às técnicas de cultivo. A agricultura familiar, na região, não tem uma origem comum e nem pacífica. Está atrelada e submetida a um jogo histórico de interesses, porém nem sempre suficientemente conscientes para as partes envolvidas. 7 Disponível em: <http://mpabrasiles.wordpress.com/2010/02/18/censo-agropecuario-confirma-agricultura-camponesae-a-principal-produtora-de-alimentos-do-pais/>. Acesso em: 24 jun. 2011. 8 Censo Agropecuário de 2009, IBGE. 9 Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17987&boletim_ id=949&componente_id=15342>. Acesso em: 30 jun. 2011. 102 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Trata-se de uma problemática histórica que requer pesquisa, estudo em ambientes escolares e debates públicos. Com relação a essa questão histórica, Paulo Afonso Zarth (2009, p. 53) observa: A história da agricultura da região Noroeste do Rio Grande do Sul é permeada por diversas questões de caráter cultural, político e ideológico que interferem profundamente nas propostas de desenvolvimento regional. A tecnologia e o acesso à terra estão entre os principais pontos de discussão ao longo da história da ocupação do território. Do ponto de vista étnico-cultural, a população da região é multiétnica, dando origem a discriminações com consequências graves para os grupos menos organizados e com menos poder. Não tenho como objetivo, no entanto, aprofundar a discussão sobre a história dessa problemática da agricultura familiar e camponesa no Noroeste gaúcho,10 embora nem a história da agricultura familiar dos colonos e nem a da organização cooperativa, na região possam ser suficientemente compreendidas sem a consideração dessa problemática. Aqui, importa enumerar características da agricultura familiar dos colonos, especialmente tendo em vista a abordagem do sentido do movimento cooperativo que dela nasceu. Embora originado da agricultura familiar, o movimento tornou-se mais uma “linha de transmissão” das forças do mercado em relação à economia dos colonos. Instrumentalizado pela economia de mercado e a serviço da modernização do campo, a criatura passou a abrigar o criador. Isto é, as cooperativas passaram a ter o “mando” sobre os rumos da agricultura familiar (Frantz, 1980). Em termos amplos, como principais características da agricultura familiar dos colonos podem ser citadas a propriedade familiar da terra e o uso predominante do trabalho dos membros da família na produção. Dessa forma, caracteriza-se pela unidade entre trabalho e propriedade dos meios de produção. Essa identidade entre quem trabalha e a propriedade dos meios de produção está a serviço da vida das pessoas que nela trabalham, embora o projeto de colonização também tivesse uma motivação econômica distinta dos interesses das pessoas assentadas, vindos dos interesses da crescente industrialização do país. Apesar dessa motivação econômica externa e distinta, no entanto, inicialmente a produção estava mais relacionada com o que eram as necessidades, desejos e interesses das pessoas. Tratava-se de um processo que integrava as pessoas, amarrando-as por valores associativos ou pela proximidade de vizinhança e parentesco. Na relação social do processo produtivo predominava a necessidade e a busca pela vida, mais do que a lógica que decorre do mercado, orientada pela concorrência dos capitais investidos. Esse sentido do processo de produção e distribuição Para maior conhecimento dessa problemática recomenda-se a leitura de Zarth, P. A. Colonos imigrantes e lavradores nacionais no Sul do Brasil: projetos de ocupação da terra em conflito. In: Motta, Márcia Menendes, Zarth, P. A. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história Concepções de justiça e resistência nas repúblicas do passado (1930-1960. 1. ed. São Paulo; Brasília: Unesp; Nead, 2009, v. 2, p. 223-242. 10 103 EaD Walter Frantz orientava as ações e as interações das pessoas. Isto é, ao processo produtivo eram agregados valores e significados que provinham das necessidades e dos desejos da vida e não apenas do capital investido. Importa observar, contudo, que a ocupação das terras ocorreu no contexto de um processo de constituição dos polos nacionais de desenvolvimento, voltados à industrialização. “A agricultura familiar, desde logo, passou a ter funções nesse processo de afirmação de uma economia capitalista. Afirmou-se como fornecedora de alimentos baratos” (Frantz, 2009, p. 140-142). A inserção à lógica capitalista produziu, passo a passo, uma ruptura entre a unidade do trabalho e a propriedade dos instrumentos de trabalho. O trabalho passou a ter outro sentido ou significado na vida das pessoas. “Nos espaços sociais e econômicos destruídos, floresce a cultura do individualismo e, assim, abre-se o espaço para a afirmação da lógica do capital. O capital ocupa, cada vez mais, os espaços da economia e da cultura” (Frantz, 2009, p. 177). Com exceção da fase inicial de ocupação dos lotes, produzia-se para vender e vendia-se para comprar. Chegava, porém, a ser uma economia de mercado? Não era uma economia de mercado de fato, embora fosse constituída por razões de mercado. Não se tinha a força da organização ou o poder nas relações econômicas de comércio que garantissem renda suficiente para depender das relações de mercado. Produzia-se de tudo por que não se conseguia “gerar” ou obter os meios monetários necessários para a compra do que se necessitava ou desejava para viver. Tinha-se mão de obra e terra, mas não se tinha como “produzir” os suficientes meios de troca, isto é, recursos monetários. Por isso, eram obrigados à autossuficiência pela insuficiência do “poder de compra”. Nem a organização de cooperativas resolvia essa questão: a falta de poder nas relações de “comércio externo”. Do esforço por produzir os meios monetários para a inserção ao mercado, especialmente o consumidor, nasceram cooperativas de venda e compra de produtos. Na verdade, desde o começo o colono estava destinado a se transformar em força de trabalho de um projeto com motivação econômica maior. Esse foi o projeto maior da colonização, isto é, da ocupação das terras. Como tal, era ele próprio uma mercadoria, comprada pelo projeto de ocupação do território, pela expansão das fronteiras do capital. Sob esse aspecto, coube à economia familiar colonial a tarefa de preparar as condições para essa expansão. Atualmente as atividades da produção primária passam a ser controladas, sempre mais, pelo poder da ciência e da tecnologia a serviço do capital, abrindo-lhe espaços de poder político. A agricultura não está mais voltada para o agricultor, suas necessidades e interesses. Predominam os interesses do capital e o agricultor a eles adere. O ritmo e sentido de suas atividades são ditados, sempre mais, pela lógica do capital e não do trabalho, especialmente por meio do poder da ciência e da tecnologia. O agricultor perdeu o controle sobre o que faz. O poder de controle das atividades não está mais nas mãos dos agricultores, mas do poder de quem controla a ciência e a tecnologia, relativas à produção 104 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária agropecuária. O trabalho do agricultor é apenas um componente da fórmula, que visa como resultado à acumulação de capital. A produção de soja é um exemplo disso. É um setor da produção agrícola cada vez mais dominado pelo poder das grandes organizações. Hoje, especialmente, esse poder se expressa pela comercialização das sementes transgênicas (Frantz, 2009, p. 179). Com o atrelamento da produção agrícola ao sentido capitalista, isto é, ao mercado de lógica capitalista, o “mundo” da agricultura familiar sofreu transformações radicais. Produzir e viver passaram a ter outras referências e orientações, que não provêm mais das necessidades e desejos da vida, mas da lógica de uma ordem que tem o lucro, a remuneração do capital investido, como referência de orientação. Esse novo contexto da produção desfaz o sentido associativo do trabalho e o privatiza, isto é, os indivíduos passam a ter como referência a valorização de seu trabalho nas relações de mercado, em que o associativo e o cooperativo serão apenas instrumentos de controle de custos e não mais valores de vida. A agricultura familiar deixou de ser uma instituição de abrigo às pessoas para se tornar um espaço de economia atrelado à racionalidade do mercado capitalista, isto é, a busca do lucro. No lugar de uma economia de acolhimento à vida das pessoas, de uma economia do humano, afirma-se, sempre mais, a lógica da economia capitalista (Frantz, 2009, p. 178). Antes, a capacidade produtiva estava nas pessoas associadas, necessitadas e interessadas. Agora, essa capacidade está nas máquinas, nas tecnologias, orientada pelos interesses do capital, pelos interesses dos investimentos financeiros. Os agricultores familiares foram desatrelados do sentido original do trabalho e da cooperação para serem atrelados e submetidos aos novos fatores coordenadores da produção, oriundos do mundo do capital. A incorporação da agricultura familiar à lógica do mercado capitalista produziu rupturas em seus fundamentos tradicionais, vinculados às necessidades das pessoas e na forma de conduzir as suas atividades, como produção e troca de sementes entre as famílias, etc. (Frantz, 2009, p. 179). A penetração do capitalismo na agricultura familiar ameaça destruir as relações associativas e cooperativas, que permitem resistência à inserção ao sentido capitalista da vida. A degradação dos valores culturais associativos e a alienação poderão vir a ser mais destrutivas que a pobreza material de parte da população rural. Os ganhos materiais pela inserção na economia de mercado capitalista podem não compensar em termos de qualidade de vida, diante da perda dos valores do coletivo da agricultura familiar pela afirmação de uma cultura do individualismo e do consumismo. O processo produtivo está sendo sempre mais separado das necessidades dos trabalhadores, e, pela introdução de novos fatores de produção, submetido e instrumentalizado pelos interesses de uma nova ordem, a ordem do capital. Aos indivíduos resta a resistência pela esperança 105 EaD Walter Frantz na reorganização cooperativa, no contexto do processo da desintegração social, da derrocada dos “laços e redes humanas”, segundo Zygmunt Bauman (2001). Haverá uma nova chance ao movimento cooperativo? Seção 5.2 Cooperativismo e Agricultura Familiar A organização cooperativa como instrumento de defesa, de esperança e de resistência faz parte da história da agricultura familiar. Sob muitos aspectos, pode-se afirmar que a agricultura familiar se transformou em uma “atividade de esperança”, procurando se viabilizar por meio de “nichos de mercado” ou mediante políticas públicas de reconhecimento e apoio. Apesar das decepções com muitas experiências cooperativas e de suas limitações, não morre a esperança no cooperativismo. A necessidade de se construir poder nas relações econômicas, sob controle dos associados, alimenta a esperança na cooperação como meio de valorização do trabalho e de seu poder de compra. Sempre de novo afloram novas organizações cooperativas. Hoje, o apelo à economia solidária e às iniciativas alternativas de organização cooperativa materializa o desafio à reconstrução de relações associativas e cooperativas, na economia de parcelas significativas da agricultura familiar. As ideias cooperativistas modernas brotam de um contexto de transformações que entram em curso com a desagregação da ordem feudalista e a instituição da ordem capitalista, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. As transformações alteraram em muito a vida das pessoas. Embora tivessem aparecido muitos benefícios, também foram grandes os problemas. O cooperativismo nasce da reação aos problemas sociais da época. A sua organização e funcionamento refletem a compreensão que as pessoas tinham desses problemas (Vester, 1975). A experiência de Rochdale não deu início ao movimento cooperativo, mas transformou-se em um modelo de organização que conseguiu superar as inúmeras dificuldades práticas de cooperação, no contexto da realidade da época em que florescia a Revolução Industrial capitalista. Precisa ser vista como resultado de longas experiências e lutas sociais. Não pode ser entendido como algo produzido por um pequeno grupo de tecelões. Eles souberam sistematizar as inúmeras experiências de cooperação, realizadas ao longo de décadas de esforços pela superação de problemas sociais graves. 106 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Foi uma experiência prática de cooperação que reconheceu certos princípios necessários à organização e funcionamento de um empreendimento cooperativo no contexto da nova realidade socioeconômica. Foi uma experiência fundada no pragmatismo da sobrevivência. Adotou uma posição defensiva prática, dentro da ordem, pela integração ao mercado. Abandonou a posição defensiva do movimento anticapitalista dos socialistas utópicos. Por isso, adotou métodos e instrumentos racionais de orientação como: venda à vista; precisão nos pesos e medidas; atenção à qualidade da mercadoria; dividendos na proporção das compras e juros sobre o capital dos associados. Procurou-se corrigir distorções de práticas cooperativas anteriores, diante da realidade do mercado. Nisso consiste sua modernidade. Apesar disso, acreditava-se que, no longo prazo, esse movimento cooperativo poderia trazer a total emancipação do trabalho das relações de dominação dos interesses do capital. Acreditava-se que abandonando a luta política e pela auto-organização, seria possível construir estruturas socioeconômicas que garantissem melhores condições materiais e sociais para os trabalhadores. O movimento social pela organização cooperativa, historicamente, não foi um bloco único. A história do movimento cooperativo revela a face das difi­culdades e lutas dos seres humanos por produzir, especialmente, suas condições materiais de vida. O movimento tomou formas e sentidos de organização, segundo as estruturas sociais, as concepções políticas, as categorias econômicas, as nacionalidades e as crenças religiosas, as diferentes concepções e interpretações do sentido da cooperação. As experiências de organização cooperativa estão ligadas a questões técnicas de produção e a questões políticas de apropriação da produção. A cooperação entre os seres humanos se confunde com a história de suas economias individuais e coletivas. Pode-se considerar que a cooperação é inerente à humanização, isto é, a relação cooperativa entre os seres humanos com o objetivo de produzir condições de vida imprime marcas de sociabilidade, distintas de sua natureza instintiva. As fragilidades da vida estão na raiz dos movimentos cooperativos, brotados das necessidades, dos desejos ou interesses das pessoas. Assim, para compreender as práticas cooperativas, em determinado tempo e lugar, é importante conhecer as relações de poder no processo social de apropriação dos resultados da produção e de suas técnicas de produção. Por isso, pode-se afirmar que a cooperação se origina de um processo, associado a um poder social e técnico ou a uma visão política. As práticas das organizações cooperativas estão relacionadas à economia, tendo como núcleo político a preocupação com a remuneração do trabalho, entendido este como produção e distribuição de bens e riquezas. Por isso, pode-se destacar que a noção de organização cooperativa é mais ampla que uma simples instrumentação técnica. Tem também uma dimensão política 107 EaD Walter Frantz amarrada aos interesses do trabalho das pessoas. Além do instrumental técnico, a organização cooperativa nasce de um movimento social que traz em seu bojo histórico a questão da valorização do trabalho humano. Trata-se, portanto, também de um movimento político e, como tal, constitui a identificação, a associação, a comunicação, entre os que trabalham como seus instrumentos de atuação. A influência da organização cooperativa em processos de desenvolvimento se dá pela sua presença ativa e crítica, pela sua interferência nos espaços da cultura, da política, da economia, da tecnologia. Na agricultura familiar sempre existiu uma estreita relação com o movimento cooperativo: uma relação histórica, marcada por esperança e decepções. A relação associativa dos agricultores entre si, por meio da cooperação, de alguma maneira sempre apareceu como um elemento importante de organização de suas economias seja de suas necessidades ou interesses. Os seus atores esperavam encontrar na organização cooperativa um instrumento de poder de atuação nas relações econômicas de compra e venda em defesa de seus interesses. Depositava-se confiança no movimento cooperativo, apesar de práticas frustrantes de seu gerenciamento. A década de 50, marcadamente, foi uma época de formação de muitas pequenas cooperativas mistas, nas regiões de colonização do Noroeste gaúcho. Essas cooperativas tinham abrangência local. Isto é, predominantemente eram associações de agricultores oriundos de comunidades próximas, originadas dos núcleos de colonização. Nasciam dos problemas que as famílias dos agricultores enfrentavam em suas atividades econômicas de comercialização da produção ou de abastecimento de seu consumo. Da história do movimento cooperativo dos colonos, recordo-me de discussões havidas sobre o que acontecia nos espaços das relações comerciais. A relação de venda da produção e da compra de mercadorias, muitas vezes, constituía-se em um espaço de relações pouco transparentes e, por isso, de desconfiança. Eram relações dominadas pelos comerciantes, intermediários na cadeia das relações econômicas mais amplas. Dominavam, em grande parte, as informações, as relações de comunicação, o fluxo da circulação financeira, as políticas de formação de preços. Seguidamente afloravam insatisfações com relação à compra e venda de produtos, seja por causa dos preços baixos ou pela demora do pagamento nas vendas, ou seja, pelos preços altos, nas compras para o consumo das famílias. Discutia-se muito sobre os problemas e as dificuldades nas relações de mercado, representadas ou projetadas na figura do comerciante. Os agricultores discutiam com entusiasmo e esperança sobre a criação de cooperativas, tomados de indignação pelo que lhes acontecia nas relações comerciais que praticavam. Consideravamse explorados nas relações comerciais, expropriados pelos mecanismos da compra e da venda, pelos preços tidos como injustos. Aqui convém lembrar que havia pouca clareza com relação ao 108 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária processo inflacionário e seus efeitos sobre preços e poder de compra, dificultando a gestão de suas economias. Além disso, muitos comerciantes se beneficiavam desse processo, acumulando ganhos tanto na compra de produtos quanto na venda de bens de consumo. Também discutia-se muito, no entanto, sobre as próprias cooperativas, isto é, sobre sua gestão, seu controle, sobre a participação dos associados na entrega da produção. Diante das dificuldades de mercado, dos problemas de gestão, das crises financeiras das cooperativas, que não eram coisas raras, associados desviavam a entrega da produção, estabelecendo relações comerciais com intermediários, isto é, na concorrência. Por intermédio do comerciante, ou melhor, do comércio, se concretizavam relações de controle, de influência, de poder, às quais os agricultores reagiam, procurando opor-se pela articulação de mecanismos próprios de defesa e ação. Era uma discussão, às vezes, áspera e forte. Outras vezes, o clima era carregado de tristeza e preocupação, especialmente diante dos baixos preços e das dificuldades imediatamente daí decorrentes. Outras tantas, mediante mecanismos de associação, animavam-se os agricultores com a sensação de poderem influir nas relações de mercado, nesse jogo de poder. A organização cooperativa lhes inspirava confiança e lhes dava esperança. Organizavam as cooperativas como expressão de confiança em si mesmos, como luta por dias melhores, como reação e defesa, no duro jogo pela vida na agricultura familiar, contra a exploração que diziam sofrer na venda e na compra daquilo que era o fruto de seu trabalho e daquilo que necessitavam para viver. A energia e o esforço por organizar cooperativas alimentavam-se da esperança de poder traçar o futuro, de influir na construção de dias melhores. Por meio dessas iniciativas de autodeterminação de regras e procedimentos, de auto-organização, imaginavam construir e garantir relações comerciais mais justas e confiáveis.11 As cooperativas eram a expressão da vontade de construir relações comerciais de poder, a serviço das economias familiares. Tinham as cooperativas um sentido econômico e um significado político. A organização cooperativa era expressão da vontade política de querer construir poder sobre as relações econômicas. A cooperação nas antigas colônias, sob diversas formas práticas, muitas vezes ocupou um lugar central na vida das pessoas e nas comunidades, especialmente quando se tratava da venda de seus produtos, do abastecimento das suas necessidades de consumo, ou mesmo quando se tratava de garantir serviços ou infraestruturas necessários e não disponibilizados pelos, quase sempre, inexistentes serviços públicos estatais. Com relação ao associativismo e os primórdios do cooperativismo, no Brasil, a partir das experiências dos agricultores, nas comunidades de colonização, é recomendado ler: Rambo, Arthur Blasio. O Associativismo teuto-brasileiro e os primórdios do cooperativismo no Brasil. In: Perspectiva Econômica vol 23, nº 62-63, Série Cooperativismo nº 24-25, jul/dez. 1988, p. 3-276, S. Leopoldo: Unisinos. 11 109 EaD Walter Frantz A ausência do poder público, muitas vezes, era preenchida pelas iniciativas comunitárias, fundadas na associação e na cooperação, adquirindo, assim, essas práticas, certa dimensão pública não estatal, isto é, eram atividades que geravam benefícios a todos os moradores. Educavam-se, desse modo, os agricultores para a cidadania. Lançavam as raízes do que hoje se denomina de espaços públicos ampliados. Certamente essa dimensão pública não estatal dava sentido e significado às práticas cooperativas dos agricultores de economia familiar, indo além dos objetivos apenas econômicos. Muitos aspectos da vida das pessoas e da organização das comunidades se relacionavam com as práticas da cooperação. As práticas cooperativas dos colonos não podem, por isso, ser reduzidas, simplesmente, a um conteúdo apenas econômico, isto é, de compra e venda de produtos. Elas contêm, certamente, significados culturais, políticos, sociais e até psicológicos, com raízes na história da colonização. Por isso, sem a compreensão histórica da colonização, é difícil o entendimento do comportamento e das expectativas dos associados, diante das práticas cooperativas, nas regiões coloniais do Rio Grande do Sul. Nas comunidades, surgidas dos núcleos de colonização, a igreja, a escola e a cooperativa representavam, muitas vezes, as instituições e as formas sociais de organização, além da família, mais importantes. Historicamente, no meio rural, isto é, nos espaços da organização cooperativa dos núcleos de colonização, confrontados com as contradições das condições de sobrevivência e reprodução social, exercia-se com mais liberdade a contestação e a crítica do que na organização escolar ou na igreja, nas quais as sutilezas da dominação e da alienação eram mais facilmente aceitas, com base na tradição da obediência. Na organização cooperativa se ensaiava, mais facilmente, a capacidade da negação, da contestação, do questionamento, da afirmação de identidade própria, diante das práticas contraditórias, possibilitando conhecimento, aprendizagem e educação. Os erros e as falhas nas práticas cooperativas provocavam reações, críticas, enquanto que na organização da escola e da igreja essa capacidade de negação era mínima, segundo vivências históricas. Aos agricultores associados era mais fácil contestar a gestão das cooperativas, instituída por eles, que criticar a autoridade religiosa ou divina ou da ciência. Os agricultores eram educados no temor a Deus, isto é, à autoridade da igreja, e na crença da verdade incontestável da ciência, isto é, da autoridade da escola. A gestão das cooperativas, no entanto, estava ao alcance de sua maior ou menor participação. Afinal, era obra deles. Esse complexo processo social de relação com a fé, a ciência e a política, certamente, é um indicador da estreita relação entre poder e educação. Assim, nos processos das lutas e conflitos sociais dos núcleos de colonização, construía-se conhecimento, aprendizagem e educação, também nos espaços da cooperação. Na organização social das famílias dos pequenos agricultores a cooperação era uma prática que se impunha, 110 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária diante das dificuldades e do esforço coletivo por sobreviver. As práticas de cooperação eram as lições da “escola da vida” que funcionavam, muitas vezes, nos espaços da organização cooperativa. Pela avaliação crítica dessas práticas aprendia-se, desenvolviam-se os que dela soubessem fazer uso construtivo. A cooperativa era, assim, ao mesmo tempo, um lugar de negócios e um lugar de produção de conhecimento, de aprendizagem, de educação. O conhecimento, a aprendizagem, a educação, fluíam pelas vias das relações de poder que se organizavam e manifestavam nas práticas políticas de comunicação e negociação, na busca das informações, nas práticas da comercialização dos produtos, enfim. A ação das relações de poder ensinava sobre os lugares e condições sociais das pessoas. Ao recorrer à memória e a depoimentos de antigos associados, especialmente de pequenas cooperativas de compra e venda do meio rural, além de questões mais práticas da organização cooperativa, da ordem material, como a venda de produtos e o abastecimento de artigos de consumo, afloraram outros aspectos de ordem cultural, política e educativa. A respeito da relação comercial dos agricultores com os comerciantes intermediários foi possível colher, registrar e extrair o seguinte depoimento de uma das “testemunhas” entrevistadas: O intermediário sempre está presente na nossa porta, ele vive a vida dele, ele não é uma cooperativa; numa cooperativa eu sempre ainda procuro de ter os meus direitos como associada, como participante; agora se eu vou num comerciante, eu estou vendendo o meu produto, eu somente vendo e está terminada a minha cooperativa; a gente nasceu dentro dela, é assim que a gente tem vez e voz; então eu sempre acho ainda que o cooperativismo é o melhor sistema que existe, apesar de que existem os outros, vamos supor que eles pagam menos ou que paguem mais, mas aí então a gente sempre ainda procura a cooperativa, não é? Sempre tem alguém que vai pagar um pouco mais, se nós não tivéssemos cooperativa, eu acho, eu não sei se o produtor teria como, eu acho que ele ia ser usado muito e eles iam pagar o que eles iam querer; e uma cooperativa ainda assegura os preços, por isso nós ainda sempre somos cooperativistas. Canso de falar para os filhos também que se liguem sempre ainda a uma cooperativa porque ela, ela sempre é um meio que ainda tu podes conversar e apesar de tudo; agora num comerciante tu vais, tu não tens o que dizer porque ele é o dono da coisa e uma cooperativa sempre é um conjunto de pessoas que vão defender, que vão pensar no assunto, vão estudar e falam com as pessoas.12 O texto do depoimento foi extraído de um contexto maior da entrevista que está gravada e transcrita, disponível nos arquivos do pesquisador. 12 111 EaD Walter Frantz A organização cooperativa, além do seu sentido econômico, constituía-se, assim, em uma escola,13 na qual se gerava conhecimento, produzia-se aprendizagem, a respeito da vida na realidade social, certamente, com profundo reflexo no processo de educação mais amplo da sociedade, deitando as raízes de muitos de seus valores e comportamentos sociais atuais. Do ponto de vista dos objetivos econômicos da cooperação, deve-se lamentar e condenar as falhas das práticas cooperativas, porém do ponto de vista de um amplo processo de educação que nasce da consciência da contradição, da crítica e da autocrítica, esse processo social da capacidade de negação, de contestação, de questionamento, não é desprezível. A partir da década de 50, a economia agropecuária da região passou a ser atrelada aos interesses dos polos nacionais de desenvolvimento urbano e industrial, dinamizados pela política de associação ao capital estrangeiro (Zarth, 2009). Essa relação recompôs, isto é, condicionou o processo de seu desenvolvimento. Iniciou-se algo como uma “revolução agrícola”, na região. Ao lado da agricultura colonial e da pecuária tradicional surgiu, incentivada pelo governo, a moderna lavoura do trigo, baseada no uso de máquinas e capital financeiro. Em seguida, a ela associou-se a lavoura de soja. Diante do esgotamento das bases da economia de colonização, da necessidade de sua reprodução e sem ter gerado um projeto alternativo próprio, a agricultura familiar colonial aderiu ao modelo de modernização proposto pelas políticas oficiais. A adesão da agricultura familiar ao binômio trigo-soja também levou a incorporação de cooperativas locais tradicionais às cooperativas de trigo e soja de atuação regional, no entanto muitas delas encerraram suas atividades com a chegada da modernização agrícola e a atuação das cooperativas regionais. Entre 1960 e 1969, no território polarizado pela cidade de Santa Rosa, na Região Noroeste, foram fundadas 30 cooperativas agrícolas e fechadas 20. Entre 1967 e 1969, na mesma região, foram fundadas apenas 3 cooperativas e fechadas 16. Em 1969, nas regiões polarizadas pelas cidades de Santa Rosa, Santo Ângelo e Cruz Alta, no Noroeste do Estado, existiam 86 cooperativas agrícolas. Em 1978, em toda a Região Noroeste, porém, existiam somente mais 31 cooperativas agrícolas. Destas, 12 levavam o nome de cooperativas tritícolas, em 1978. Na Região Noroeste, ainda hoje, as cooperativas agrícolas estão entre as maiores do Estado do Rio Grande do Sul (Frantz, 1980). No cenário do binômio trigo-soja, à jusante e montante da modernização agrícola, nasceram as cooperativas regionais de armazenagem e comercialização de insumos e produtos agrícolas. As cooperativas de trigo e soja foram um importante fator de viabilização dessa modernização e de capacitação para a concorrência mercantil. No sentido de um sistema e de doutrinação. 13 112 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A bandeira do novo projeto cooperativo quanto à adesão dos agricultores ao projeto de modernização agrícola eram aceitas como uma solução para a agricultura familiar em crise. Renova-se a esperança da agricultura familiar colonial e sua confiança em iniciativas cooperativas. Além disso, a euforia pela modernização deixava pouco espaço aberto para posturas críticas que pudessem ser veiculadas em relação às políticas oficiais ou aos projetos hegemônicos de cooperativismo. Pelos caminhos da pesquisa empírica,14 o texto segue o trilho da esperança da agricultura familiar colonial, ouvindo manifestações de associados da Cotrijuí, que pode ser considerada um exemplo histórico de práticas do cooperativismo na agricultura familiar, na região, a partir de sua modernização. A Cotrijuí – Cooperativa Regional Tritícola Serrana Ltda.15 –, com sede em Ijuí, foi fundada, em 1957, por um grupo de empresários rurais, dedicados ao cultivo do trigo, com “o objetivo econômico de promover a mais ampla defesa dos interesses dos associados, comprando, em comum, artigos necessários as suas culturas, beneficiando, padronizando e vendendo suas produções, bem como facilitando-lhes a aquisição nas melhores condições possíveis”.16 A Cotrijuí, apesar de representar, inicialmente, os interesses de um pequeno grupo de empresários, dedicados à moderna e grande lavoura de trigo, mas por ter sua base de atuação em uma região com predominância de agricultura familiar, de origem colonial e diversificada, teve seu desenvolvimento fortemente condicionado pelo contexto dessa realidade da agricultura familiar. Expandiu-se pela senda da modernização da cultura do trigo e da soja na propriedade rural familiar, sendo ela, assim, de certa forma e ao mesmo tempo, causa e efeito desse processo. Aderindo à triticultura e à sojicultura comercial moderna, os agricultores passaram a se integrar à Cotrijuí, pois ela oferecia, normalmente, as melhores condições de armazenagem e comercialização. As chances de sobrevivência das pequenas cooperativas, no contexto das políticas de modernização agrícola pela monocultura do binômio trigo-soja, eram quase nulas. Ao aderirem ao binômio trigo-soja, tanto as pequenas cooperativas quanto seus associados, no contexto da época, pouco espaço de opção lhes restava além da incorporação. Ao incorporar as tradicionais cooperativas mistas dos colonos, os seus associados, quase que automaticamente, passavam também a integrar o quadro associativo da Cotrijuí. Passavam a integrar-se aos planos da cooperativa. No centro de atenção da pesquisa estiveram questões que dizem respeito, sobretudo, aos seguintes aspectos: −ao conceito e visão de cooperativismo que os associados têm; −à percepção do sentido e do significado prático de uma organização cooperativa, por parte dos associados, no momento atual; 14 Pesquisa realizada em 2000/2001. Desde 2007 denominada de Cooperativa Agropecuária & Industrial 15 Ata de fundação da Cotrijuí. 16 113 EaD Walter Frantz −à participação dos associados na gestão de cooperativas; −à razão e à validade da cooperação e, portanto, à fidelidade e compromisso para com a organização cooperativa, na ótica dos agricultores associados; −à avaliação, isto é, à percepção dos principais problemas do cooperativismo atual. Os dados da pesquisa, em 2000, permitiram algumas conclusões: existe confiabilidade e fidelidade entre os associados com relação à organização cooperativa; a organização cooperativa representa segurança, especialmente para os pequenos proprietários; existe espírito cooperativo e valorização da organização cooperativa e isso pode também ser interpretado como resultado das fragilidades das economias familiares; existe um predomínio da percepção do sentido político da organização cooperativa, independente das faixas etárias; com o passar do tempo, porém, com mais experiência, os associados tendem a ter uma visão também mais empresarial do cooperativismo; a maior base de força e poder das organizações cooperativas está na união, na associação de seus integrantes; o cooperativismo é valorizado, apesar do individualismo e da competição no mundo atual; a crise das cooperativas de trigo e soja não abalou o espírito cooperativo dos entrevistados; a validade do cooperativismo está, predominantemente, embasada em aspectos operacionais, empresariais; os preços não são os maiores problemas do cooperativismo; os dados confirmam que organizações cooperativas são campos de educação e espaços de poder; os associados veem em si mesmos uma base de força e poder na organização cooperativa e não na legislação: revelam autoconfiança e valorização da participação política; os associados priorizam a segurança em sua adesão ao cooperativismo; a associação produz a sensação de mais força e poder; a transparência é um fator de segurança, de confiabilidade, portanto de equilíbrio da organização cooperativa; participação gera a sensação de força e poder nos associados; os associados priorizam segurança e não apenas preço. Para finalizar pode-se assegurar que, apesar do sentido econômico específico das práticas cooperativas, nelas se revelam muitos significados para a vida em comunidade. Certamente, aos que se ocupam, meramente, com questões operacionais do sentido econômico das organizações cooperativas, os esforços por captar e compreender significados culturais da cooperação podem parecer menos importantes. Sem penetrar no campo dos valores, dos princípios, dos comportamentos, enfim, dos significados das organizações cooperativas, a compreensão do sentido econômico da cooperação pode correr o risco de se estreitar demais, isolando-o dos seus próprios significados sociais e reduzindo-o a dimensões técnicas ou quantidades numéricas de quadros estatísticos. O foco das práticas de gestão das organizações cooperativas situa-se mais no processamento dos resultados econômicos da cooperação. Sem dúvida, isso é central, pois trata-se do objetivo fundamental da cooperação, no entanto escreve Morin (2000a, p. 16): “A política econômica é a 114 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária mais incapaz de perceber o que não é quantificável, ou seja, as paixões e as necessidades humanas. De modo que a economia é, ao mesmo tempo, a ciência mais avançada matematicamente e a mais atrasada humanamente”. Não é conveniente reduzir os resultados de um processo cooperativo às questões econômicas, especialmente quando se trata do desenvolvimento de uma comunidade. Na inserção do processo de desenvolvimento local, uma cooperativa não deveria descuidar dos aspectos culturais que a envolvem. Os significados culturais têm a ver com a formação dos associados, com dimensões sociais da cooperação. Afirma Morin (2000a, p. 48) que “uma cultura fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e guiam as vidas humanas”. Pensar o cooperativismo apenas sob a dimensão econômica representa perigoso fracionamento de algo muito complexo, em termos sociais. Morin (2000a, p. 14-15) manifesta que a inteligência que só sabe separar, fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. [...] Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável. [...] o conhecimento progride não tanto por sofisticação, formalização e abstração, mas, principalmente, pela capacidade de contextualizar e englobar. Organizações cooperativas são fenômenos sociais complexos e ambivalentes. São iniciativas carregadas de necessidades, desejos e interesses. O seu sentido está relacionado à economia dos associados, porém como complexidade social carrega em si vários e diferentes significados. Afirma Pedro Demo (2002, p. 18-20): “Complexidade não parece ser apenas modo de se organizar. É igualmente modo de ser [...]. A realidade se diz ambígua quando possui estrutura difusa, não-linear, caótica, apresentando-se como autêntica unidade de contrários. [...] campo de força ou de energia [...]”. As organizações cooperativas são estruturas que nascem da articulação e da associação de indivíduos que se identificam por interesses ou necessidades comuns, buscando o seu fortalecimento pela organização e instrumentalização, com vistas a objetivos e resultados específicos, normalmente de ordem econômica. Em sua dinâmica, no entanto, refletem a ambivalência da realidade social que as compõem. “A realidade se diz ambivalente quando sua dinâmica manifesta direções opostas no mesmo todo” (Demo, 2002, p. 21). As questões sociais, políticas e culturais que perpassam a natureza associativa e o caráter instrumental das práticas cooperativas, além das questões econômicas, produzem essa dinâmica de direções contrárias, no espaço da organização cooperativa. 115 EaD Walter Frantz Na interação cooperativa, dinamizam-se processos sociais de educação e formação, ora mais técnicos, ora mais políticos. Isso não apenas porque nelas se promove a atividade educativa com vistas à capacitação para a cooperação, mas porque, nos diferentes espaços da organização cooperativa, a educação decorre das relações sociais que ali se processam e dinamizam, tendo em vista os interesses, as intenções, as necessidades dos associados e as ações decorrentes dessa trama social complexa. Nos espaços sociais da organização cooperativa, os associados desenvolvem processos complexos de influência entre si; desenvolvem sentimentos, ideias, valores, comportamentos, conhecimentos, aprendizagens, estruturas de poder de atuação, mediante os quais se comunicam e se influenciam. Da dinâmica dessas relações nascem ações no espaço da economia, da política, constituindo-se, assim, as práticas cooperativas em processos educativos e em processos de poder. Pode-se perceber a questão do poder como um conjunto de relações presentes nos processos formais de funcionamento de uma cooperativa, tais como domínio, uso e controle do conhecimento, do saber tecnológico de produção, uso e controle da informação, da comunicação, da administração ou da operação técnica das atividades e dos objetivos da cooperativa. A questão do poder está nesses espaços da organização, entre as pessoas ou grupos de associados. Além disso, organizações cooperativas podem ser espaços de poder que permitem influir sobre o processo de distribuição dos resultados da produção. Aqui está uma das razões mais importantes para a existência de uma cooperativa: construir poder de participação, de influência e decisão. As organizações cooperativas sempre foram desafiadas por operações técnicas de produção, armazenagem, industrialização e comercialização, isto é, por questões vinculadas à economia dos seus associados, porém igualmente sempre existiram os desafios de ordem política, de natureza cultural e social. Hoje, as organizações cooperativas continuam, cada vez mais, sendo confrontadas e exigidas pelas muitas transformações de ordem política, de natureza cultural e social, pelas quais passa a sociedade. Especialmente o fenômeno da intensificação da globalização traz muitos e novos desafios. Isso exige também de seus associados e dirigentes sempre novos conhecimentos, mais capacidade de articulação, maior identificação coletiva e responsabilidade social. Todos são confrontados, cada vez mais com novos e maiores problemas diante das transformações em curso. 116 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Síntese da Unidade 5 Nesta Unidade você pôde entender melhor como nos processos das lutas e conflitos sociais dos núcleos de colonização construía-se conhecimento, aprendizagem e educação. Na organização social das famílias dos pequenos agricultores a cooperação era uma prática que se impunha, diante das dificuldades e do esforço coletivo por sobreviver. As práticas de cooperação eram as lições da “escola da vida” que funcionava, muitas vezes, nos espaços da organização cooperativa. Pela avaliação crítica dessas práticas aprendia-se, desenvolviam-se os que dela soubessem fazer uso construtivo. A cooperativa era, assim, ao mesmo tempo, um lugar de negócios e um lugar de produção de conhecimento, de aprendizagem, de educação. O conhecimento, a aprendizagem, a educação, fluíam pelas vias das relações de poder que se organizavam e manifestavam nas práticas políticas de comunicação e negociação, na busca das informações, nas práticas da comercialização dos produtos, enfim. A ação das relações de poder ensinava sobre os lugares e condições sociais das pessoas. 117 EaD Unidade 6 associativismo, cooperativismo e economia solidária LIMITES E POSSIBILIDADES DE RESISTÊNCIA À EXCLUSÃO SOCIAL PELA ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer e entender as possibilidades de contribuição da organização cooperativa como instrumento de resistência à exclusão social. Seção 6.1 A Problemática da Exclusão Social O objeto empírico de pesquisa, em 2006, foram experiências de organização cooperativa voltadas à produção e comercialização de leite, nascidas de iniciativas de economias de agricultura familiar que lutam por permanecer nas atividades agrícolas, ou melhor, que procuram resistir à expulsão das atividades do campo, na Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. As terras da região foram ocupadas, a partir do final do século 19, por assentamentos de famílias de pequenos agricultores (Roche, 1969). A partir da década de 60 do século 20, confrontados com o problema do esgotamento de suas práticas agrícolas tradicionais, aderiram à política de modernização agrícola, isto é, ao binômio da produção de trigo e soja. A adesão à modernização foi coordenada, em grande parte, pelas cooperativas de trigo e soja (Frantz, 1980). Atualmente os agricultores enfrentam o desafio de combater a crise da monocultura, optando pela alternativa da produção de leite. Além disso, buscam constituir poder nas relações econômicas de mercado, organizando-se em novas experiências cooperativas (Thume et al., 2005). 119 EaD Walter Frantz O presente texto é um relato parcial do estudo desenvolvido, por intermédio de pesquisa bibliográfica, a partir da análise de documentos e materiais escritos sobre essas práticas concretas de cooperação, da interpretação dos relatos das experiências de organização e funcionamento dessas cooperativas. Ela faz parte do processo de debate, de diálogo, sobretudo com relação à situação da agricultura familiar, na região, a partir da universidade. A pesquisa teve como objetivo geral estudar limites e possibilidades de práticas de organização cooperativa como formas concretas de resistência à exclusão social, principalmente por parte da agricultura familiar. Entendem-se, aqui, por agricultura familiar as economias primárias, executadas exclusivamente pelas famílias, sem contratação sistemática de mão de obra de terceiros. Parte-se do pressuposto de que a organização cooperativa pode ser um caminho de resistência à exclusão social por parte dessas famílias. Historicamente, sabe-se que as cooperativas surgiram em reação às ameaças de exclusão social, buscando defender e valorizar o trabalho em meio ao processo de produção e distribuição de riquezas (Singer, 1998). Em relação às práticas cooperativas, no entanto, brotaram muitas dúvidas, incertezas, perguntas e uma necessidade de ampliar e aprofundar os conhecimentos sobre o sentido e os significados dessas organizações cooperativas. Entre as dúvidas está o questionamento quanto à validade da organização cooperativa como instrumento de luta contra a pobreza e a exclusão social. Ainda é possível relacionar práticas cooperativas e práticas de combate à exclusão social, nas condições do cenário socioeconômico atual? Quais as chances que a organização cooperativa oferece, diante das forças em ação, no mercado, sendo este dominado pela lógica do capital? Qual é a percepção que os protagonistas de experiências de organização cooperativa têm em relação aos limites e possibilidades da cooperação no contexto econômico atual? Estes são alguns dos questionamentos orientadores que acompanham o presente estudo. A finalidade prática da pesquisa foi contribuir com a reflexão sobre exclusão social e sobre possíveis instrumentos de seu combate. A constituição de instrumentos adequados e a definição de caminhos concretos para a intervenção contra a exclusão social continuam sendo questões centrais desafiadoras na sociedade contemporânea (Santos, 2005). Não há, porém, como definir caminhos ou construir instrumentos de combate sem ter clareza com relação à natureza e à problemática da exclusão social. A compreensão do fenômeno é essencial para a identificação da base do processo de intervenção: trata-se de uma base econômica ou política? Certamente, trata-se de algo complexo que passa pela economia, pela política, pela educação, pela cultura, pela responsabilidade social individual e coletiva, etc. De outro lado, para compreender e definir ou conceituar o fenômeno da exclusão social é necessário relacioná-la em um cenário, isto é, contextualizá-la. Enfim, qual o cenário da intervenção? 120 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A reflexão crítica, aqui, dever ser entendida como um ato de pensamento sobre a ação com um sentido de sua reconstrução. O pensamento, na verdade, é reflexo dessa ação de reconstrução. Ele se desenvolve na ação e, portanto, é dinâmico e deve superar-se, constantemente, pela ação-reflexão. Por meio desse processo os seres humanos se constituem sujeitos de suas ideias e ações. A partir desse entendimento acredita-se que possam ser valorizadas as experiências práticas em organizações cooperativas como instrumentos de combate à exclusão social. Isso não quer dizer, todavia, que se possa absolutizar essas experiências como respostas aos questionamentos sobre os significados do cooperativismo no combate à exclusão social. Não se está livre da ideologia da ação. Isso, porém, não invalida o sentido da reflexão, a partir da prática. Não existe reflexão sem prática. As práticas sociais constituem processos de aprendizagem, de construção de conhecimento, de educação. Enfim, a preocupação desses processos deve ser a formação crítica das estruturas mentais de reflexão, isto é, de uma mente que consegue superar as limitações e a dominação cultural sofrida diante de uma realidade em constante transformação. Como conceito orientador básico para essa reflexão, entende-se a exclusão social como resultado da perda de poder em uma determinada sociedade, grupo ou situação social. A exclusão não é apenas material, mas também acontece pelo rompimento de identidades, de laços sociais de pertença. Na base da exclusão social está a perda de poder nas relações econômicas e políticas, a destruição das identidades e laços sociais, a ruptura de estruturas socioculturais, a perda de valores e tradições de referência. Lindomar W. Boneti (1998, p. 41) afirma que “o processo da exclusão se dá a partir de um contexto de mudança na estrutura social, quer seja produtiva ou cultural. Tal processo de mudança torna diferente os sujeitos sociais, grupos ou classes sociais que, por circunstâncias variadas, não lograram condições de acompanhamento do referido movimento”. A exclusão representa a destruição de laços sociais e valores culturais, de identidades, de relações econômicas. Sob essa ótica, as raízes da exclusão são externas, isto é, estão na sociedade e não nos indivíduos. A pobreza e o desemprego, pela falta de acesso a bens materiais, espirituais ou serviços, são manifestações e vivências concretas de uma situação de exclusão social. Essas manifestações têm seus condicionantes históricos externos. A exclusão social é também sempre a expressão de seu tempo e lugar, isto é, da sociedade que a “abriga”. Escreve Castells (1998, p. 99): “La exclusión social es un proceso, no una condición”. Assim, alguém está na condição de excluído não por aquilo que é, mas pela relação com os fatores do meio. Essa concepção implica reconhecer movimento, dinâmica social, no fenômeno da exclusão social. Defende ainda o autor que a exclusão é um processo, cujas fronteiras se alteram, positiva ou negativamente, dependendo dos fatores de intervenção: educação, políticas públicas, práticas empresariais, etc. Para Castells, embora o mecanismo-chave da exclusão seja a falta de 121 EaD Walter Frantz trabalho regular como fonte de ingresso, são muitos os caminhos que conduzem à pobreza e à desestruturação social. Castells constata uma relação entre a dinâmica da sociedade rede e a exclusão social de indivíduos e territórios. Sob esses aspectos, as práticas cooperativas podem constituir fatores de intervenção. A exclusão social é um conceito polêmico, um processo social complexo, considerando-se os diferentes entendimentos na busca de uma explicação desse fenômeno social. Como tal, inclusive, não é fenômeno isento de leitura político-ideológica. Sua conceituação, certamente, guarda visões teóricas, políticas e ideológicas diferentes, ditando as suas interpretações e explicações de um cenário histórico (ESTIVILL, 2003). Ela se manifesta por intermédio de modos e formas muito distintas, na sociedade contemporânea. Os seus “conteúdos”, ou origens, são múltiplos e complexos, entrelaçando-se em suas manifestações. Com certeza, o fenômeno da exclusão social é um dos mais antigos e graves problemas da humanidade. Afirma Jordi Estivill (2003, p. 5) “que exclusão e excluídos sempre existiram desde que os homens e as mulheres vivem de forma coletiva e quiseram dar um sentido a esta vida em comunidade”. Dessa afirmação pode-se concluir que se trata de um fenômeno social, produzido na dinâmica das relações sociais de convivência e que sua solução passa pela alteração dessas relações, especialmente em se tratando do processo de produção e distribuição de bens e riquezas. Apesar das promessas da modernidade, do avanço científico e do crescimento econômico, a exclusão social continua sendo uma das marcas fortes e contrastantes da sociedade contemporânea. Como tal, já foi alvo de muitas discussões, de teorizações, de políticas públicas ou outras tantas medidas. Ela tem afetado parcelas significativas da população, isto é, milhões de pessoas, no mundo todo, através dos tempos. Ela é um produto social de múltiplas dimensões. Continua sendo uma das questões sociais mais desafiadoras às políticas públicas e a todas as demais formas coletivas ou individuais de combate. Por essa razão, o seu combate não pode ser uma tarefa apenas de governos ou de grandes estruturas de atuação. É também uma questão de responsabilidade social que começa pelo envolvimento individual, mediante a busca de sua compreensão crítica, isto é, pela construção de conhecimento, seguido pela identificação de instrumentos concretos de intervenção que deem aos indivíduos a mínima condição para se tornarem atores sociais, construindo um ponto de partida para sua inserção ativa no processo de combate à exclusão. Os instrumentos de intervenção devem ser construídos pela compreensão crítica dos indivíduos a respeito do que é proposto. Aqui, é possível identificar as dimensões dos limites e das possibilidades do processo de organização e funcionamento de cooperativas como instrumentos de resistência à exclusão social. 122 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Hoje, vive-se um processo histórico ímpar de profundas mudanças e transformações, com reflexos em todas as dimensões da vida, em especial com reflexos na economia (Habermas, 1979). Em âmbito planetário vive-se um quadro de graves contradições, em termos sociais e naturais, que se expressam em desemprego, pobreza, exclusão social, violência e em degradação do ambiente natural. Trata-se de um cenário de rupturas sociais. Nesse cenário, a intervenção parece ser um desafio à reflexão e à ação, tão complexo quanto o processo da ruptura social. De acordo com Castells (1998, p. 95-191), uma revolução tecnológica, centrada em torno das tecnologias da informação, está modificando a base material da sociedade a um ritmo acelerado. Um novo mundo está tomando forma, fazendo surgir uma nova estrutura social dominante, sendo as mudanças sociais tão profundas quanto o processo de transformação econômica e tecnológica. No novo sistema de produção – embasada na inovação e flexibilidade – redefine-se o trabalho, isto é, a economia. O capitalismo contemporâneo, tendo o capital financeiro como centro nervoso da economia, ao contrário da fase industrial clássica, não opera no sentido de incluir o maior número possível de trabalhadores no mercado de trabalho e de consumo, mas opera pela exclusão de um número cada vez maior pela automação, pela velocidade da inovação tecnológica, no mundo do trabalho. Desvaloriza-se o capital trabalho em relação ao capital financeiro. Assim sendo, o núcleo do poder está no mundo das finanças, enquanto se fragmenta e dispersa a estrutura produtiva em um cenário cada vez mais planetário e globalizado. Na sociedade atual, a submissão do mundo da vida à lógica do capital financeiro, especialmente, passou a ser a ordem das coisas, o sentido do poder e da força de regulação das relações sociais. Disso resulta marginalização, quando não exclusão social. A nova forma de capitalismo se caracteriza pela globalização das atividades econômicas centrais, pela flexibilização organizativa, pelo maior poder da empresa em relação aos trabalhadores, pela redução do Estado do Bem-Estar Social. A nova economia organiza-se em torno de redes globais de capitais, gestão e informação, cujo acesso ao conhecimento tecnológico constitui a base da produtividade e da competência. O desenvolvimento de redes interconectadas para a organização da atividade humana transforma todos os âmbitos da vida social e econômica, gerando a sua interdependência. A geração de riquezas e o exercício do poder têm passado a depender da capacidade tecnológica das sociedades e das pessoas, constituindo a tecnologia da informação o núcleo dessa capacidade (Castells, 1998). Segundo Lévy (1997, p. 42), na atualidade está em ação um profundo processo de transformação das condições de vida, nem sempre ajustado aos meios e condições das populações ou regiões, com reflexos negativos nas profissões, nas estruturas sociais comunitárias, movido pela 123 EaD Walter Frantz evolução técnica, pelo progresso da ciência. Dentre seus efeitos está a exclusão social, sob as diferentes manifestações: cultural, social, econômica. Afirma o autor que dessas transformações resultam desajustes e “uma imensa necessidade de coletivo, de laço, de reconhecimento e de identidade”, isto é, de solidariedade. Para Jeremy Rifkin (1995, p. XVII-XVIII), as novas tecnologias de informática e de comunicação estão finalmente causando seu impacto, há tanto tempo prognosticado, no mercado de trabalho e na economia, lançando a comunidade mundial nas garras de uma terceira revolução industrial. Milhões de trabalhadores já foram definitivamente eliminados do processo econômico; funções e categorias de trabalho inteiras já foram reduzidas, reestruturadas ou desapareceram. [...] Nos próximos anos, novas e mais sofisticadas tecnologias de software aproximarão cada vez mais a civilização de um mundo praticamente sem trabalhadores. [...] A maciça substituição do homem pela máquina forçará cada nação a repensar o papel a ser desempenhado pelos seres humanos no processo social. Redefinir oportunidades e responsabilidades para milhões de pessoas numa sociedade, sem o emprego de massa formal, deverá ser a questão social mais premente do próximo século. Na sociedade industrial, a ciência foi convertida, rapidamente, em força produtiva, submetida à razão instrumental técnica, a serviço do capital privado ou estatal. A promessa social emancipatória da ciência e da tecnologia, contida no paradigma da modernidade, perdeu espaço para a necessidade de eficiência e eficácia da lógica do capital. A relação entre a economia e a sociedade passou a ser regulada pela razão técnica a serviço do capital e não pela razão comunicativa a serviço da construção do mundo da vida. A submissão do mundo da vida à lógica do capital passou a ser a ordem das coisas, o sentido do poder e da força de regulação das relações sociais. Certamente, essa é uma das faces negativas do impacto do processo da globalização econômica, sob a lógica da acumulação capitalista. Martin e Schumann (1998) apontam projeções e dados de estudos sobre desemprego e exclusão social que permitem especular com a ameaça da sociedade dos dois décimos. Isto é, no futuro, para o funcionamento da economia mundial serão necessários apenas 20% da população ativa. Apontam para o declínio do poder de compra, do rendimento líquido médio, para a supressão de milhões de empregos, na Europa, apesar do crescimento do volume global das riquezas. Os protestos acontecem por todas as partes. Afirmam os autores, no entanto: “E em toda a parte o protesto termina numa resignação” (Martin; Schumann, 1998, p. 13). Esta parece ser uma das questões mais graves da atualidade: o risco da resignação, embora ainda pouco percebido como tal. Qual seria o sentido ou o significado dessa resignação em sociedades de economias desenvolvidas? Certamente, trata-se 124 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária de um estado de perplexidade, de impotência, de um “desarmamento” dos indivíduos de sua condição de atores históricos, de produtores da sociedade. Esse desarmamento pode significar a “desapropriação” dos laços sociais de pertença. A resignação, em nossa percepção, é uma manifestação contemporânea de um dos sentidos da exclusão social. A resignação aparece como um fenômeno psicossociológico novo, especialmente em sociedades nas quais a exclusão social acontece em meio à abundância de riquezas. Não se trata apenas de uma alienação, mas, talvez, de uma relação de submissão consentida, que reduz a dimensão da condição humana. Trata-se de um fenômeno que resulta da soma entre inserção e exclusão, e, como tal, representa uma contradição com a dimensão de ser humano. Não é um estado de pobreza material, mas de pobreza espiritual e intelectual, de aceitação e acomodação. A resignação parece ser um estado de espírito adequado à redução do ser social ao ser econômico, a uma unidimensionalidade do ser humano “em que o estar junto parece não ter outra razão de ser além do produzir e do consumir, [...] e tudo o que permanece fora deste quadro não tem qualquer visibilidade geral” (Barcellona, 1999, p. 184). Soma-se ainda ao cenário da sociedade de hoje uma situação social e política caracterizada por frustrações com o capitalismo e decepções com o socialismo. Um dos efeitos disso parece ser certo sentimento de impotência, de falta de poder de articulação, de reação, que se expressa pela submissão, pela resignação. Marcos Arruda reconhece as frustrações com os dois grandes sistemas econômicos vigentes, ao longo do século 20. Segundo este autor (2000, p. 51), espalha-se pelo mundo o sentimento sempre mais enraizado de que o setor privado hegemônico não consegue gerar um mundo de bem-estar e felicidade para todos e cada um dos cidadãos, povos e nações. Por outro lado, a tentativa de colocar nas mãos do Estado a hegemonia das decisões e o controle total sobre a economia, a sociedade, também se provou historicamente inviável e indesejável. Nesse cenário colocam-se a todos, indivíduos e sociedades, desafios, dificuldades, tensões e urgências, e, certamente, também novas oportunidades de intervenção. A intervenção nesses cenários e processos exige novos atores, novos mecanismos de articulação e novas alianças. Certamente, um dos maiores desafios para o século 21 será o de colocar as necessidades humanas no lugar da necessidade do lucro. Isso exige novas relações econômicas, novas relações de trabalho. No cenário econômico maior, as relações sociais são, predominante, competitivas. Na realidade de economia de mercado, contudo, não existem apenas os aspectos competitivos. Muitos são os aspectos cooperativos a desafiar os atores em seus empreendimentos econômicos, embasados na cooperação. A recuperação desses aspectos cooperativos pode ser um caminho de intervenção contra a exclusão. 125 EaD Walter Frantz De acordo com o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto (1999, p. 17), na transição crítica do mundo moderno para o pós-moderno, aparece, ou reaparece, uma necessidade profunda da análise científica sobre a sociedade humana que conduza à criação, ou invenção, de novas formas e padrões de coexistência e cooperação dos seres humanos entre si e das sociedades humanas com seu meio ambiente. Impõe-se o conhecimento e a cooperação no sentido da criação de novas possibilidades de convivência social e ambiental, de novas formas e padrões de convivência. Não apenas a solidariedade social se impõe, mas também e acima de tudo, a finitude da própria natureza impõe responsabilidade social e cooperação, em relação à preservação ambiental. Nesse contexto de desafios e exigências, a economia, entendida como produção e distribuição de bens e riquezas, abre-se ao cooperativismo como um movimento social, por meio do qual a cooperação ganha um sentido político. A cooperação política é um conceito que se fundamenta em uma compreensão histórica de mundo. Seção 6.2 Um Lugar Para o Movimento Cooperativo no Processo de Produção e Distribuição de Riquezas É no espaço de rupturas e desafios de um processo social que se recoloca, a meu ver, a questão do cooperativismo como uma prática de dimensão econômica, política e cultural, com a possibilidade de construir poder de participação e de instrumentalização no processo de produção e de distribuição de riquezas. Os mecanismos tradicionais contemporâneos de coordenação do processo de produção e distribuição são o mercado e o planejamento. O cooperativismo moderno, como prática social, nasceu e se desenvolveu, inicialmente, nos espaços do mercado e, depois, nos espaços das economias planejadas. Nasceu como uma reação aos problemas técnicos, às dificuldades sociais ou políticas, inerentes ao processo de produção e distribuição de bens e serviços, seja na economia de mercado ou na economia planejada. Estruturaram-se as cooperativas, fundamentalmente, como instrumentos de poder de decisão sobre a produção e a distribuição de seus resultados (Vester, 1975). 126 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária As concepções de exclusão e de entendimento de cenários contraditórios abrem espaço para a articulação de uma intervenção contra a exclusão social. A partir desses diferentes olhares e conceituações, parte-se para a formulação da hipótese de que as práticas cooperativas, na medida em que educam para a participação política, isto é, para a constituição de grupos de poder, podem se transformar em instrumentos de intervenção, de combate à exclusão social. Na verdade, o combate à exclusão social trata de um processo de desenvolvimento cultural, político e econômico e, como tal, é um processo social complexo. A sua complexidade implica aspectos técnicos, políticos, econômicos e culturais. Traduz-se em fenômeno de poder, de educação, de qualificação, de organização, etc. Visto sob esse ângulo, parece ser pouco frutífero o empenho em ações individuais de combate. A questão precisa ser tratada em espaços coletivos. Como um produto de dimensão coletiva, é também um desafio a formas coletivas de ação. Parte-se do pressuposto de que o caminho da organização cooperativa pode ser uma instrumentalização adequada de intervenção contra a exclusão social como processo de construção de poder, de laços sociais de identidade, de afirmação de valores, cultura e comportamentos. Pelo menos esse é um indicador que vem das múltiplas formas de organização cooperativa que, atualmente, são estabelecidas, na sociedade, mediante práticas de economia solidária, da instituição de redes de cooperação, etc. A organização cooperativa e solidária, em termos de produção e distribuição, parece ser depositária, novamente, de milhares de pessoas que buscam superar a situação de exclusão, seja pela pouca renda ou pelo desemprego. A cooperativa é uma organização composta por uma estrutura e uma superestrutura, respectivamente, representadas por seu sentido econômico e seus significados culturais, políticos, sociais. À estrutura que incorpora a parte econômica da organização corresponde a empresa; à superestrutura que incorpora o processo político do empreendimento cooperativo corresponde a associação. Entre esses dois poólos – associação e empresa – deve existir um entrelaçamento profundo e dinâmico. O polo da associação se instrumentaliza pelo polo da estrutura empresarial. Na associação está a ação, na empresa está a função. A colaboração cooperativa só se realiza pela existência e unidade desses dois polos e como uma ação organizadora de interesses associados que se instrumentalizam em função de seus objetivos. A cooperação é uma reação, a partir das pessoas, em âmbito local, mas estas podem se associar e somar, por meio de estruturas de ação, de intervenção. A associação e a soma são duas faces distintas do processo cooperativo. A associação é um processo cultural e político. A soma se expressa pela organização dos associados, constituindo estes seus instrumentos de atuação, isto é, sua empresa. 127 EaD Walter Frantz Um exemplo dessa reação são as pequenas cooperativas de produtores de leite.1 Essas cooperativas nasceram da mobilização de pequenos agricultores, em meio à crise de preço do leite. Surgiram como reação às relações desfavoráveis de comercialização, inclusive, em parte, pela frustração com o projeto cooperativo anterior, sob a forma de uma cooperativa central, constituída pelas grandes cooperativas de armazenagem e comercialização de trigo e soja, as chamadas cooperativas tritícolas. Estas venderam a infraestrutura da industrialização do leite a uma empresa privada, assumindo a função da intermediação entre produtores e indústria. Na prática, isso significou uma perda de poder sobre o mercado do leite e de perda de poder de organização dos produtores perante as grandes empresas agroindustriais. As novas cooperativas nasceram com o objetivo de organizar as condições técnicas do recolhimento da produção e de constituir poder de negociação com as indústrias de transformação do leite. Por meio delas os associados buscam defender e valorizar o seu trabalho e ganhar escala, uma vez que muitos pequenos produtores foram excluídos em razão de sua pequena produção. Na verdade, não se trata de experiências novas. No espaço da agricultura familiar, desde o começo da ocupação das terras, especialmente nas regiões de colonização do Rio Grande do Sul, os agricultores têm lançado mão de instrumentos associativos e cooperativos como mecanismos de defesa de seus interesses. Por isso, de certo modo, pode-se afirmar que essas experiências antigas, somando-se à nova experiência da luta sindical e dos movimentos sociais, inspiraram a formação das novas cooperativas. O que existe de “novo” nesse tipo de organização é que se trata de cooperativas, na maioria das vezes, sem nenhuma ou quase nenhuma estrutura empresarial, tendo um fundamento maior na associação de interesses. A identificação e a articulação das pessoas acabam sendo um fator fundamental para o sucesso do empreendimento. A partir da associação, diante de problemas comuns, os associados criam os seus instrumentos de atuação, centrados nas tarefas de organização das linhas de recolhimento da produção do leite. A visibilidade da cooperativa ocorre mais pela organização e funcionamento das linhas de recolhimento da produção e pela negociação dos seus preços, do que por outras estruturas ou atividades. Dados de pesquisa2 apontam que os associados obtiveram um preço melhor pelo leite a partir de negociações com as agroindústrias. A substituição da intermediação no recolhimento da produção e o controle sobre um volume de produção, associando-se às pequenas quantias de cada economia familiar, permitiram um poder de negociação com as agroindústrias. Geraram um 1 Ver: Esac – Economia Solidária e Ação Cooperativa, vol 1, n. 1, jul/dez 2006, p. 5-12. 2 Idem 128 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária “poder de escala” que, antes, individualmente, não possuíam. Além disso, pequenos produtores foram incluídos, sem perda na qualidade da produção. Na relação direta com as empresas de capital, os pequenos produtores eram excluídos ou remunerados de forma desvantajosa. A agregação de valor decorre de um menor custo das atividades de recolhimento da produção e de um maior poder de negociação com as agroindústrias. O efeito maior para as economias das famílias cooperantes, no entanto, é a sua inserção no “negócio” do leite. Isto é, sem a organização cooperativa, muitas famílias não teriam escala para integrar-se a uma “linha de recolhimento” do leite. Na pesquisa realizada em 20063 as principais dificuldades e desafios apontados foram a falta de infraestrutura, como sede própria, veículos, equipamentos de coleta de leite, a obtenção de uma assistência técnica mais próxima ao produtor e a formação técnica do produtor. Também o crédito para expansão e para novos projetos foi citado com frequência. A agregação de valor pela transformação da matéria-prima, entretanto, também está nos planos dessas cooperativas. Um dos objetivos é a viabilização de pequenas agroindústrias, porém não da cooperativa, mas de propriedade das famílias associadas que administrariam a industrialização, recebendo a produção dos demais associados. A cooperativa comercializaria essa produção, agora com valor agregado. Além dos resultados econômicos concretos, a pesquisa revelou outros dados e significados da organização cooperativa: •uma consciência política sobre a importância da união e da organização; •o cultivo da identidade e da coesão social e da solidariedade entre as famílias; •a recuperação da autoestima como produtores e como atores sociais; •a educação para novas formas de cooperação; •a capacitação em autogestão e gestão da economia familiar; •o restabelecimento de laços sociais de vizinhança e de comunidade; •a formação de novas lideranças nas comunidades locais; •a formação de “redes” de economia, ainda que frágeis; •a recuperação do valor da cooperação para a economia familiar; •a construção de conhecimento, especialmente, sobre relações de mercado. Os estudos empíricos permitem afirmar que organizações cooperativas podem se transformar em instrumentos de combate à exclusão social, fundamentalmente quando se constituem em espaços de poder ou campos de educação, instrumentalizando os seus integrantes, recolocandoos na estrutura de relações sociais. 3 Ibidem 129 EaD Walter Frantz O uso político da cooperação, submetendo-a às necessidades e interesses do trabalho, potencializa o seu sentido de instrumento de combate à exclusão social. A qualificação das práticas de cooperação pela educação é condição fundamental para que esta possa instrumentalizar o processo de combate à exclusão social pelo movimento cooperativo. A cooperação, por si só, como um processo operacional, sem maior consciência crítica e prática participativa por parte dos cooperantes, dificilmente poderá contribuir para o processo de combate à exclusão. No ato cooperativo deve estar implícita a compreensão técnica e política da cooperação. A economia é o fundamento da cooperação, porém no contexto competitivo do mercado e sob a pressão da lógica do capital, isto é, da acumulação de lucro, a cooperação econômica pode virar instrumento da razão técnica e dos interesses do capital, em desfavor das necessidades e interesses do trabalho. A cooperação como um lugar de comunicação, a respeito de práticas de produção e distribuição, pode contribuir para novos caminhos para a sociedade, novas relações econômicas, novos laços sociais, nova cultura. Pode-se reconhecer no cooperativismo um lugar de reconstrução de identidades, do coletivo, dos laços sociais rompidos, do reconhecimento do ser humano. O cooperativismo, entretanto, também corre o risco de ser reduzido a instrumento da razão técnica, isto é, a instrumento do capital e não do trabalho. Os espaços do cooperativismo – como associação e empresa – em seu processo de construção e funcionamento, se constituem em privilegiados campos de educação. A educação, como processo de socialização, atua na configuração do ser humano, independentemente das discussões teóricas a respeito desse processo ou dos lugares sociais de seu acontecimento. Como tal, faz-se presente nas práticas cooperativas. Os espaços associativos e operacionais de uma cooperativa podem abrigar uma Pedagogia que conduza à criação de uma consciência e um comportamento social capazes de contribuir com as políticas de combate à pobreza e exclusão social nas comunidades de sua inserção. Como prática empresarial sob controle dos associados, o cooperativismo pode se constituir em instrumento de resistência à exclusão social, na medida em que representa um processo de desenvolvimento de identidades e laços sociais, de organização, de criação de poder, de força de atuação pela qualificação técnica e política dos cooperantes para que possam garantir maior apropriação de resultados de seu trabalho. Como alcançar isso? Com atividades específicas de qualificação do processo de organização e funcionamento de uma cooperativa, estimuladas pela participação dos associados no debate crítico e autocrítico sobre as práticas cooperativas. Enfim, pode ser estratégico o estabelecimento de um processo de ação-reflexão. 130 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Síntese da Unidade 6 Nesta Unidade você pôde entender melhor que cooperativas, em seu processo de organização e funcionamento, não são apenas estruturas econômicas. Cooperativas são campos de educação e espaços de poder. Nisso está também sua potencialidade como instrumentos de combate à exclusão social. Sob essa dimensão, o processo de sua constituição e funcionamento ganha centralidade. Passa a ser um aspecto importante para a qualificação das práticas cooperativas como instrumentos de intervenção contra a exclusão social. As práticas cooperativas como instrumentos de combate à exclusão, todavia, precisam ser construídas, pois a cooperação, por si só, não remete a sua superação. Esse parece ser um aspecto político importante do cooperativismo, diante da ausência de um projeto global de sociedade para a maioria da população. 131 EaD Unidade 7 associativismo, cooperativismo e economia solidária MOVIMENTO COMUNITÁRIO E COOPERATIVISMO OBJETIVO DESTA UNIDADE •Conhecer e entender uma experiência de colaboração entre uma instituição de ensino superior e uma cooperativa com o objetivo de promover a educação para o associativismo e a cooperação. Seção 7.1 A Experiência do Movimento Comunitário de Base de Ijuí O núcleo de atenção desta unidade é a experiência de um movimento social popular. Em 1961 nasceu o Movimento Comunitário de Base de Ijuí (MCBI), no Noroeste gaúcho. Trata-se de valiosa experiência de educação popular, tendo a organização sindical e cooperativa como suas bandeiras de mobilização. Soma-se às diferentes iniciativas históricas da educação popular, no cenário social e político brasileiro, das décadas de 60 e 70. Em suas práticas metodológicas está contida uma dimensão pedagógica voltada à democracia, à participação, à responsabilidade social, à solidariedade. Pode-se justificar a releitura dessa experiência histórica pela importância que começa, novamente, a ser atribuída à questão da organização cooperativa e à educação em práticas de cooperação. Mais do que aos detalhes de sua história, hoje, interessa prestar atenção às práticas metodológicas desse movimento. Talvez seja esta a parte que ainda tenha atualidade e validade, sobretudo quando se busca construir processos e meios de participação, por meio de um movimento popular ou de uma organização cooperativa. Concordo com Morin (2004, p. 75), quando este observa: “Dando prioridade à solução de problemas ou ao fazer, não se trata de afastar o conhecimento e de perder de vista sua importância”. Em termos práticos, a experiência do MCBI ainda pode servir de referência para a reflexão 133 EaD Walter Frantz de quem reconhece a necessidade e a possibilidade de construção de espaços mais democráticos, de participação política, no sentido da inserção econômica ou da resistência à exclusão social, por meio do cooperativismo. O movimento cooperativo moderno nasceu das lutas pela valorização do trabalho humano. Pode ser considerado um produto da organização capitalista da economia. De modo sucinto, pode-se destacar que a economia capitalista se caracteriza por uma produção não determinada pelas necessidades específicas dos que nela trabalham, desde um ponto de vista qualitativo ou quantitativo, mas por uma produção que visa à remuneração do capital investido. O cooperativismo moderno se constituiu como uma reação às dificuldades técnicas e políticas com o sentido de inserção social e de resistência à exclusão econômica, diante da lógica da acumulação do capital. Hoje, as diferentes formas de organização cooperativa nascem no espaço do mercado capitalista, em que as relações econômicas são ditadas pelos interesses do capital. A organização coletiva das atividades econômicas visa a atender não apenas às necessidades dos cooperantes, mas também aos seus interesses econômicos. A cooperação está relacionada à economia, tendo como seu núcleo a remuneração do trabalho, isto é, sua valorização, no contexto das relações de mercado. As relações de cooperação têm as necessidades e os interesses econômicos dos seus atores como sua força mobilizadora. Certamente, porém, a noção de organização cooperativa é mais ampla do que uma simples instrumentalização técnica ou operacional nas relações de mercado. Tem também uma dimensão política que nasce do movimento social pela cooperação, a qual traz em seu bojo histórico a questão da valorização do trabalho humano. O termo política deve ser tomado, aqui, no sentido de um processo social, de uma relação e interação de pessoas que buscam identificação e construir algo em comum, abandonando seu locus de interesses apenas individuais e colocando-os em espaços coletivos. Nesse processo, por meio da comunicação e do debate, os associados se educam politicamente, no movimento da afirmação ou da negação da argumentação entre si. Assim, a cooperação não pode ser entendida apenas como uma relação associativa de trabalho, mas como expressão política de organização de quem trabalha, submetido à lógica da acumulação do capital. Essa dimensão política contribui à identificação e associação entre seus integrantes. Isso é, interesses se identificam, aproximam-se e cooperam. Nesse processo, os associados desenvolvem e incorporam valores e comportamentos com vistas aos seus objetivos. Expressam uma articulação entre economia e política pela busca de poder nas relações de mercado. Sob tais dimensões e circunstâncias, as práticas de cooperação se afirmam também 134 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária como processos de educação, isto é, “no diálogo da cooperação, cumpre-se a educação, fundada no processo de construção e reconstrução dos diferentes saberes daqueles que participam da organização e das práticas cooperativas” (Frantz, 2001, p. 244). O MCBI foi instituído no começo da década de 60, incentivado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí (Fafi). Instituída por freis Capuchinhos, em março de 1956, voltou-se para a região, identificada com seus valores e necessidades, ante o processo de mudanças que nela se operavam pela modernização de suas bases econômicas.1 O discurso2 de instalação do ensino superior, na Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, expressa a preocupação com a educação não acadêmica, com a educação popular. Revela a preocupação com o desenvolvimento da região, com a construção de um espaço de poder, embasado no conhecimento. O MCBI nasceu pelo caminho dessa preocupação e foi desenvolvido, predominantemente, junto a população trabalhadora urbana e junto a agricultura familiar. Os seus principais atores foram trabalhadores urbanos e pequenos agricultores, professores, estudantes, lideranças comunitárias religiosas e leigas (Marques, 1984). Alain Touraine (1998, p. 254), afirma: “Um movimento social é ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural. [...] Ele visa sempre a realização de valores culturais, ao mesmo tempo que a vitória sobre um adversário social”. A experiência da desigualdade social põe em jogo movimentos sociais e estratégias de realizações correspondentes. Assim, um movimento social se constitui em torno de necessidades ou interesses a serem defendidos ou promovidos. Os indivíduos se fazem sujeitos e atores políticos na mobilização, no movimento, na experiência social. O conflito social presente na base do MCBI esteve relacionado com a má distribuição das riquezas, as restritas oportunidades sociais, a luta por melhores condições de vida. O projeto cultural, por sua vez, esteve relacionado com os valores do associativismo e do cooperativismo como “referência e base política” para a reorganização da comunidade, nascida de um processo de ocupação territorial. É importante lembrar que a década de 60, no Brasil, foi um período marcado por diferentes propostas de participação popular, de gestação da consciência nacional popular e de engajamento de camadas populares na luta por reformas sociais (Fávero, 2006). Esse clima de conscientização crítica e de politização chegou também ao Noroeste gaúcho, penetrando pelos espaços da crise na 1 A partir de 1969, a manutenção da Fafi passou à Fidene – Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – com o objetivo de criar e desenvolver as condições para a criação de uma universidade. Em 1985, com a fundação da Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –, a Fidene seguiu como mantenedora da universidade. 2 Arquivos do Museu Antropológico Diretor Pestana, Fidene/Unijuí. 135 EaD Walter Frantz agricultura local, instaurando-se uma mobilização, que passou a ser conhecida por Movimento Comunitário de Base de Ijuí (MCBI). Como referências à mobilização, podem-se citar diferentes fenômenos sociais. Na região, ao final do século 19 e começo do século 20, foram instalados núcleos populacionais de diferentes etnias de origem europeia, porém a maioria dos colonizadores já era oriunda das antigas colonizações do Estado, chamadas “Colônias Velhas”.3 Nas unidades econômicas dos novos núcleos de colonização, a força de trabalho era predominantemente familiar. O tamanho original dos lotes de 25 hectares, em pouco tempo fixou limites à reprodução econômica das famílias. Somou-se a isso também o problema do esgotamento da fertilidade natural do solo, impondo dificuldades e limites às práticas agrícolas tradicionais (Roche, 1969). De forma sucinta, pode-se afirmar que, nas décadas de 50/60, as bases da economia regional se haviam esgotado, impondo o desafio por encontrar alternativas viáveis a sua sobrevivência como proprietários de seus próprios meios de trabalho. Diante do esgotamento das bases da economia de colonização, da necessidade de sua reprodução, como produtores rurais, e sem terem gerado um projeto alternativo próprio, os agricultores tiveram de aderir ao modelo de modernização proposto pelas políticas oficiais que, por sinal, vinham com pacotes de incentivos e subsídios e, portanto, muito atrativos. Depositavam na modernização e nas políticas oficiais a esperança de sua reprodução como produtores familiares independentes. O problema da reprodução de suas condições sociais e materiais não lhes era novo, pois já haviam-no enfrentado pela emigração ou pela migração. Agora, porém, as condições históricas, mais uma vez, lhes impunham novos desafios. Ante o esgotamento das fronteiras agrícolas acessíveis à maioria das famílias de agricultores em outras regiões, colocava-se a necessidade de encontrar possibilidades e alternativas locais de reprodução. Por isso a adesão às políticas oficiais também não encontrou resistências. Estas apareciam a todos como a grande saída para os seus impasses de reprodução como agricultores (Frantz, 1980). De outro lado, os reflexos das transformações políticas e culturais da época, das mudanças no pensamento social e político mundial, também se faziam sentir na Igreja. Nesse contexto de gestação de consciência social, a Igreja Católica, ou melhor, parcelas da Igreja, experimentava uma evolução em seu pensamento social. Os valores da sociedade capitalista, fundamentados no princípio do lucro e da acumulação do capital, passavam a ser vistos como incompatíveis com a visão cristã de mundo. Essas transformações do pensamento cristão começavam a se manifestar, em termos concretos, também nos espaços da educação brasileira. A educação passava a ser vista como um fator relevante para a mudança social. Os cristãos, imbuídos pelo novo espírito 3 Designação dada às primeiras colonizações de imigrantes de origem europeia no Estado do Rio Grande do Sul. 136 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária do pensamento social da Igreja, lançavam-se ao campo da educação. Promoviam movimentos de educação com a esperança de mudar ou transformar a sociedade, a fim de torná-la, em suas estruturas, mais humana (Lebret, 1961). Enfim, incorporaram-se os agricultores ao MCBI na esperança de constituir força e organização para atuar no contexto das dificuldades que os desafiavam. Na região, em sua essência, o MCBI expressa uma reação pela organização sindical e cooperativa, no meio rural, a partir de 1962, transformando-se em uma experiência histórica importante de educação popular. No espaço da Fafi, a extensão foi organizada por meio de cursos populares, programas de rádio, palestras e reuniões, junto a população local. A preocupação fundamental era a motivação dos participantes e o despertar de uma consciência crítica com relação à realidade social da época. Brotados dessa mobilização e atividades, foram organizados grupos de trabalho que passaram a se reunir sistematicamente, com a finalidade de analisar a realidade social e encontrar soluções para os problemas da comunidade. De acordo com Argemiro Jacob Brum (1998, p. 43), o MCBI pode ser definido “como um modelo de trabalho de comunidade construído na experiência e centrado na idéia da dignidade e valor da pessoa humana e na pedagogia do pequeno grupo e da participação”. Por intermédio desse movimento estabeleceu-se o debate político, a participação, o esforço pela organização de grupos e associações, de baixo para cima, fundado em uma Pedagogia da práxis, isto é, pela reflexão sobre a prática buscava-se construir os instrumentos de intervenção: sindicatos e cooperativas. Segundo Brum (1998, p. 44-45), organização e participação eram as palavras-chave, as idéias-força. Todo o trabalho e organização colocavam-se na perspectiva de um processo educacional e cultural de libertação e promoção humana a partir dos próprios indivíduos-sujeitos. A organização de base era tida como a forma mais consciente e eficaz de construção do poder do povo e de sua expressão como ator político e sujeito histórico. No meio urbano, o movimento se concentrou, predominantemente, nos bairros, onde foram organizadas Associações de Amigos, que passaram a discutir os seus problemas e a promover o encaminhamento de soluções. Os moradores de bairros, pelos seus Conselhos, estabeleciam um contato direto com as autoridades municipais, discutindo e levando até a prefeitura as suas principais reivindicações (Brum, 1998). Na primeira assembleia comunitária, em 22 de agosto de 1961, foram acentuadas as ideias centrais do MCBI que deveriam dar unidade de pensamento e ação. Afirmava-se então que 137 EaD Walter Frantz somos uma comunidade: nossas vidas se realizam em idênticas condições gerais: respiramos o mesmo ar, vivemos a mesma cultura. Somos solidários uns dos outros e co-responsáveis. Todos precisamos de todos. Necessitamos ter bem viva a consciência de nossa unidade. Necessitamos pensar o município em termos de unidade: é ele um todo único, um todo solidário, vivo, orgânico. Cada um de nós é parte significativa desse todo. Possuímos, cada um, o nosso lugar, a nossa missão a cumprir, o nosso papel a desempenhar, nossas responsabilidades concretas (Marques; Brum, 1972, p. 11). Na assembleia foi constituída uma Frente do Voluntariado Comunitário com o objetivo de estudar e se empenhar na busca de soluções para os problemas que envolviam e desafiavam a cada um e a toda a comunidade. A estratégia de motivação e mobilização foi a identificação daquilo que era comum e diante do que era preciso desenvolver atitudes comuns e assumir atividades idênticas. A tarefa de fazê-lo, de alguma maneira, envolvia a todos. Transparece uma visão idealista e uma aposta no espírito comunitário, de solidariedade, de identidade e de responsabilidade social. Cultivava-se a ideia da unidade social, da identidade cultural. Isso foi, certamente, muito significativo e importante, pois, na origem da colonização de Ijuí, havia diversidade étnica, linguística, cultural, religiosa, além da pluralidade política, no entanto, existia também a consciência do comum e da regionalidade. Em 1962, por ocasião dos festejos de 50 anos de emancipação municipal, fazia-se referência à cultura e à responsabilidade social dos descendentes dos colonizadores, ressaltando-se os valores orientadores a serem seguidos e revelando-se a visão da missão que se tinha a respeito da posição de Ijuí no contexto regional. Nessa referência está presente a consciência da construção de uma regionalidade e o “condicionamento natural e cultural” da colonização. Estão presentes os apelos ao associativismo, ao espírito comunitário e cooperativista. Trata-se do discurso de uma das lideranças mais influentes e expressivas das iniciativas comunitárias locais. Aos primeiros habitantes de Ijuí, diante do mato imenso [...] só lhes restava uma alternativa: [...] trabalhar sempre, de sol a sol, sem descanso e sem trégua. Não lhe era permitido esperar que as coisas se fizessem: ele mesmo devia fazê-las, se as quisesse ver feitas. [...] desenvolvendo e padronizando as aptidões trazidas [...] favorecendo os hábitos de trabalho e da iniciativa particular [...] Nasciam assim a indústria e o comércio que em breve haveriam de colocar Ijuí na vanguarda das comunas vizinhas. A intervenção humana veio substituir esta destinação geográfica, por uma missão histórica de maior valia. A cultura de Ijuí, harmoniosa e uniforme desde as construções materiais até as fulgurações do espírito criador, se há de elevar bem alto, para que se possa difundir em círculos sempre maiores por toda esta região. Para isto, no entanto, é necessário que todo ijuiense se compenetre de suas responsabilidades pessoais no sentido de que Ijuí se mantenha fiel aos rumos que lhe traçaram os pioneiros de 1890 e cresça em clima de harmonia e trabalho, sem jamais parar à espera das migalhas dos apadrinhamentos e dos filhotismos (Paula,4 1962, p. 98). 4 Nome religioso de Mario Osorio Marques, um dos fundadores da Fafi e líderes do MCBI. 138 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Nas raízes históricas de Ijuí, mais que em outros municípios da região, havia diversidade, existiam diferenças culturais. Talvez, por isso, tenha sido tão forte o discurso de que somos uma comunidade, em favor do associativismo e do cooperativismo local, de projetos comuns. Nesse sentido, Marques (1987, p. 9) afirma que a pluralidade das etnias é que lhe atribui seu caráter desmistificador e a capacidade de se superarem pela relativização das diferenças, pelas complementaridades recíprocas e pelo esforço com que todo grupo social busca resposta unitária e coerente para os problemas comuns de relacionamento no mesmo meio físico e tempo histórico, inserindo-se esse esforço nas lutas por uma estruturação global da sociedade, de que são autores por excelência as classes sociais. Nem tudo, entretanto, foi tão uníssono e comum. Diferenças de opinião e de posições políticas se fizeram sentir. A prova está no processo de afunilamento do Movimento e do trabalho desenvolvido, restando, ao final, não a comunidade, mas dois grandes grupos sociais que tinham em comum serem, essencialmente, trabalhadores diretos: moradores de bairros5 e agricultores familiares. Na verdade, ideias utópicas constituíram a base inicial, a motivação, para a organização de grupos comunitários que, no entanto, só se afirmaram com questões que diziam respeito as suas condições concretas de vida, de trabalho, de produção, de comercialização. A organização das pessoas em grupos ocorreu a partir de seus problemas comuns e concretos de vida. Foi em 1962 que se iniciou, propriamente e mais sistematicamente, o trabalho do MCBI no meio rural. Os idealizadores do MCBI procuraram fundamentar sua ação na Encíclica mater et magistra, que conclamava os trabalhadores da terra, isto é, os agricultores, à solidariedade entre si e à colaboração na criação de cooperativas e sindicatos. Escudado na autoridade da Igreja, passou-se à mobilização da população do meio rural, em favor da organização sindical e cooperativa (Marques; Brum, 1972). Não se pode desconhecer que os condicionantes mais amplos da cultura e da tradição podem ser fundamentais em processos de organização. A cultura religiosa foi importante, mas, em nosso entendimento, a identidade e a solidariedade na luta por questões sociais, centrais na vida das pessoas, foram mais importantes do que suas raízes de pertença religiosa ou cultural. Não era o MCBI um movimento que incluía questões religiosas, fechando-se os grupos sobre si mesmos. Talvez isso ajude também a explicar por que a diversidade religiosa ou a tradição cultural não se constituíram em empecilhos para o MCBI, uma vez que o Movimento foi lide- 5 Naquele tempo, o morador de bairro era, predominantemente, trabalhador empregado. 139 EaD Walter Frantz rado por freis capuchinhos e que estes também não tinham o enfoque na missão religiosa.6 As diferenças culturais, étnicas ou religiosas se somavam na luta por construírem as suas bases comuns de vida. É importante também lembrar que os agricultores já tinham, na verdade, vivência concreta de organização cooperativa, proporcionada pela existência de muitas pequenas cooperativas de compra e venda de produtos ou de cooperativas de crédito rural, nascidas no processo de colonização. Essas experiências, no entanto, começavam a apresentar sinais de esgotamento e impotência diante do novo cenário da economia, da política e de seus consequentes desafios. A partir dessas experiências desenhava-se uma crise do associativismo. Associar-se, mesmo com as melhores intenções, não era garantia de resultados econômicos. O contexto de inserção econômica colocava-os diante de outros novos desafios, vindos das relações de mercado (Frantz, 1980). Aqui, convém lembrar que, nesse período, também se desenvolvia em todo o Estado do Rio Grande do Sul uma mobilização no meio rural, conhecida como Frente Agrária Gaúcha (FAG). Em 1961, essa frente foi criada, sob a inspiração do episcopado católico e passou a combater as propostas de reforma agrária, que se articulavam naquela época fora da orientação da Igreja (Casarotto, 1977). A FAG procurava introduzir as orientações da Encíclica papal. De acordo com Marques e Brum (1972, p. 14), a FAG surgiu “como um movimento de conscientização e promoção dos agricultores, através da educação de base e do associativismo, em especial sindicalização rural”. A equipe promotora do MCBI assumiu a responsabilidade dos trabalhos da FAG, em âmbito local, embora, mais tarde, tenha ocorrido certo estremecimento nas relações entre o MCBI e a FAG, motivado pela diferença de ideias e concepções metodológicas (Marques, 1984). Segundo Marques e Brum (1972), com a finalidade de cumprir as tarefas de mobilização e organização sindical e cooperativa, no meio rural, a equipe coordenadora do MCBI passou a percorrer todas as localidades do município, solicitando aos agricultores que indicassem representantes de suas localidades para a participação em um encontro de líderes rurais. O encontro durou três dias e dele participaram 120 agricultores representantes, durante o qual analisaram os problemas do meio rural e debateram soluções que lhes parecessem adequadas. Ao final, delinearam um programa de ação, de acordo com as soluções previstas, e cada participante responsabilizou-se pela comunicação e discussão do programa com os demais moradores de sua comunidade. 6 Apesar de nascido de uma Ordem Religiosa, o ensino superior era laico, segundo Marques, Mario Osorio. Universidade emergente: o ensino superior brasileiro (RS), de 1957 a 1983. Ijuí: Fidene, 1984. 140 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária A partir dessas reuniões locais surgiram os primeiros núcleos de base, grupos de vizinhança, com características comunitárias, nos quais os agricultores passavam a se reunir, ora com a presença da equipe coordenadora do MCBI, ora sozinhos. O núcleo agregava moradores de uma determinada comunidade do interior, identificada por uma capela, escola, clube ou alguma outra forma de associação muitas vezes existente. Os núcleos de base se constituíram em espaços de formação de novas lideranças, fortalecendo-se o movimento cada vez em bases mais amplas de participação e representação. Normalmente o núcleo se constituía com uma coordenação, representada por um presidente, secretário e tesoureiro. A partir dessa experiência de organização em núcleos, o termo e a noção de núcleo foi, mais tarde, estendido e usado em grande número de cooperativas do meio rural, em outras regiões. A partir dos anos 70 a atuação do MCBI se constituiu em experiência inspiradora de muitos outros trabalhos de comunicação e educação no cooperativismo brasileiro, especialmente junto a cooperativas de produtores rurais. Entre estes, vale lembrar o Projeto de Implantação de Sistema de Comunicação e Educação das Cooperativas Agrícolas da Região do Alto Uruguai (Picecoop), no Rio Grande do Sul, e o Ccecau – Centro de Comunicação e Educação Cooperativa Alto Uruguai, instituídos em 1975, e que serviram de experiência para sua expansão a todo o sistema das cooperativas tritícolas do Estado, representadas pela Fecotrigo – Federação das Cooperativas de Trigo e Soja (Barreto, 1980). Uma vez superada a fase inicial de organização do MCBI nas localidades, isto é, nas comunidades do meio rural, passou-se a motivar e a conscientizar os agricultores para o associativismo e a sindicalização. Equipes das quais faziam parte os próprios agricultores líderes passaram a percorrer as comunidades para explicar a doutrina e as bases do associativismo, do sindicalismo. A estrutura que se organizou, a partir do MCBI, permitiu a mobilização, a discussão dos problemas e a realização de campanhas e encontros de agricultores para tratar com autoridades e dirigentes de entidades, questões relativas aos seus interesses, necessidades ou objetivos: preços e custos de produção, saúde, educação, serviços públicos, entre outros. Anos mais tarde, assim se expressava um agricultor a respeito do MCBI: “Nós discutíamos no início do movimento o problema da formiga na lavoura e hoje temos condições de discutir problemas que se referem a cooperativismo, problemas nacionais e internacionais” (Marques; Brum, 1972, p. 85). Em outra oportunidade, um agricultor afirmava: “O Movimento Comunitário de Base é um centro e uma oportunidade que o agricultor procura para melhor entender os acontecimentos, os problemas, as dificuldades e benefícios de seu trabalho” (Marques, 1984, p. 126). 141 EaD Walter Frantz Os núcleos de base, com suas reuniões sistemáticas, encontros de líderes, campanhas temáticas, debates com autoridades e dirigentes de entidades, constituíram-se em um processo de educação permanente dos agricultores e, por extensão, de alguma maneira também de seus familiares. A estrutura básica do MCBI, junto aos agricultores, pode ser caracterizada pela existência de uma equipe coordenadora, de núcleos de base, de líderes representantes. Suas principais formas de atuação foram as reuniões mensais de núcleos de base nas comunidades; os encontros mensais e anuais de líderes dos municípios ou da região; os debates, os cursos e palestras. Observam Marques e Brum (1972) que de todas as atividades eram feitos registros e, se necessário, encaminhamentos aos órgãos competentes, dos quais se esperava ou, se fosse o caso, cobrava-se retorno, principalmente, por meio dos sindicatos. Esse trabalho todo constituía a base para a participação e a influência política da comunidade organizada na prefeitura, na cooperativa, na escola ou em outros órgãos públicos ou comunitários. Essa prática exigia dos políticos locais ou dirigentes da cooperativa disposição para o diálogo e a prestação de contas. Nos encontros mensais de lideranças rurais que, normalmente, se realizavam nas dependências acadêmicas da Fafi, sob a coordenação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, mas com a participação de pessoas ligadas ao MCBI, era solicitada a presença do prefeito, secretários da administração municipal e dos dirigentes da Cotrijuí7 – Cooperativa Regional Tritícola Serrana Ltda. O MCBI pretendeu ser uma via para a população, como no caso dos agricultores, ter acesso a processos de tomadas de decisão. Aspirava ser um processo de construção de poder. Esse acesso foi proposto, principalmente, pela via do associativismo, isto é, por meio da organização sindical e cooperativa. No caso do meio rural, porém, os núcleos de base também se constituíam em espaços de organização de seus moradores, em espaços de poder, convidando especialmente dirigentes, técnicos ou representantes da cooperativa para debater nas localidades os mais diferentes temas. Os núcleos representavam, dessa forma, um espaço de comunicação e educação, constituindo-se a base de um poder em construção. A organização sindical dos agricultores locais nasceu do próprio Movimento, no entanto o MCBI não chegou a gerar uma organização cooperativa, saída do próprio Movimento. A razão disso deve estar no fato das já existentes, embora em crise, pequenas cooperativas mistas. Ou pode decorrer da presença de um projeto de organização cooperativa em expansão, na região, a partir da produção e comercialização do trigo: a Cotrijuí. A característica regional dessa organização cooperativa acolheu a regionalidade imanente do MCBI, isto é, movimento comunitário 7 Desde 2007, denominada de Cooperativa Agropecuária & Industrial 142 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária e cooperativa se interpenetraram, de certa forma, pela regionalidade e pelo discurso da cooperação. Estabeleceu-se uma mútua relação de influências e também disputa de espaço junto aos agricultores. Seção 7.2 A Instrumentalização do Movimento Comunitário de Base A bandeira do cooperativismo e a adesão dos agricultores ao projeto de modernização agrícola, aceita como uma solução para a agricultura familiar em crise, no seio do movimento, aproximou o MCBI e a Cotrijuí. Embora tivessem existido também momentos de tensão e conflitos entre o Movimento e a cooperativa, ao longo dos primeiros anos, a aproximação se consolidou: de um lado, pela defesa e pregação do cooperativismo e, de outro, pela sinalização de projetos que interessavam aos próprios agricultores. Assim, a pregação do cooperativismo e a busca de novas oportunidades econômicas pela modernização da agricultura aproximaram o movimento comunitário e a cooperativa. Os agricultores em crise ou em dificuldades econômicas crescentes passavam a ver na Cotrijuí e na modernização de suas atividades, sempre mais, uma nova possibilidade de organização diante da crise, uma alternativa para seus problemas. À cooperativa interessava também que sempre mais agricultores aderissem aos seus projetos e programas. Fechava-se, assim, o círculo de interesses mútuos e, consequentemente, institucionalizava-se, sempre mais, a colaboração entre a cooperativa e o núcleo de ensino superior, estando os agricultores no centro dessa aproximação. O MCBI tinha uma posição favorável às transformações nas atividades dos agricultores. Era favorável à adoção da moderna triticultura. Em 1966 aprofundou-se essa aproximação, quando a capacidade de mobilização do Movimento Comunitário foi de estratégica importância para a superação de uma profunda crise da Cotrijuí. De outro lado, era cada vez maior a adesão da agricultura familiar à produção do trigo e da soja, produtos de interesse vital também à cooperativa. Assim, o MCBI assumia, cada vez mais, uma função de propagação das técnicas modernas de produção agrícola e do cultivo do trigo. Os núcleos de base se ofereciam como uma estrutura excelente de comunicação, propagação de seus projetos e da assistência técnica, por parte da cooperativa. Por meio dos núcleos era levada a inovação tecnológica aos agricultores que necessitavam de novas alternativas de produção (Frantz, 1980). 143 EaD Walter Frantz Marques (1984, p. 126) registra o depoimento do presidente da cooperativa, por ocasião dos festejos dos dez anos do movimento comunitário: Despertou em nossos agricultores a perspectiva de uma tecnificação das lavouras, em níveis de melhor produtividade. Estando conscientizados os agricultores sobre o problema, tiveram os técnicos melhores oportunidades de prestar seus ensinamentos, com resultados benéficos para a lavoura. O depoimento é especialmente uma avaliação daquilo que o movimento comunitário representou, do que os núcleos de base significaram, tanto para os agricultores como para a cooperativa: um lugar de educação, de aprendizagem, de comunicação. Evidentemente, isso teve também outros reflexos: a Cotrijuí passou a exercer influência sobre os núcleos de base e, indiretamente, sobre os sindicatos dos trabalhadores rurais, refletindo-se em colaboração e apoio institucional. Em Ijuí, a cooperativa patrocinou, por longos anos, o programa radiofônico semanal “A Voz do Agricultor”, feito pelo sindicato dos Trabalhadores Rurais (Frantz, 1980). Já em 1968, de acordo com Marques e Brum (1972), iniciou-se com maior velocidade e profundidade a regionalização do MCBI. Isso ocorreu mediante o Projeto de Organização e Desenvolvimento de Comunidades de Base. Com esse propósito foi realizado o I Encontro de Sindicatos Rurais da Região e o VII Encontro de Líderes de Ijuí. Acompanhando a expansão regional da Cotrijuí, foi recomendada nesse encontro a expansão das atividades do MCBI aos demais municípios de atuação da cooperativa. Deu-se, assim, também a aproximação dos sindicatos rurais com a cooperativa, no entanto não sem algumas críticas.8 O MCBI, em consequência da sua regionalização, por meio de suas propostas e bandeiras, passou a exercer uma influência sobre o comportamento dos agricultores na região: a favor do cooperativismo e, evidentemente, da Cotrijuí. Estava, assim, consolidada a identidade entre o Movimento Comunitário, a cooperativa e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, organizados na área de ação desta. No lugar da comunidade, convocada no início do MCBI, no processo do movimento colocouse a Cotrijuí. Isto é, o movimento se “corporifica” na estrutura de organização e funcionamento da cooperativa. O lugar de cada um na comunidade, conforme definido na assembleia, passou a ser o lugar de cada agricultor na cooperativa. As lideranças do movimento comunitário foram sendo incorporadas ao projeto da Cotrijuí e os agricultores, integrados ao Movimento, passaram a ser os seus associados. O discurso pela organização cooperativa, sob as condições do contex- Cabe registrar aqui o testemunho da crítica que alguns sindicatos faziam à direção da cooperativa, sobretudo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tenente Portela, RS, pelo seu presidente. Trata-se de município com estrutura fundiária de pequenas propriedades e terras nem sempre próprias à mecanização para cultivo de trigo e soja. 8 144 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária to da época, conduzia as cooperativas de trigo e soja, que nasceram do seio da modernização, incentivada pelo Estado e desejada pelos agricultores, independentemente do tamanho de suas propriedades (Benetti, 1982). Não havia muito questionamento com relação ao projeto cooperativo em andamento e nem com relação à modernização da agricultura. Além da euforia pela modernização, o ambiente político, no Brasil, naquela época, deixava pouco espaço a posturas críticas que pudessem ser veiculadas em relação às políticas oficiais ou aos projetos hegemônicos de cooperativismo. A expansão regional das atividades da cooperativa colocou também novos desafios ao MCBI e a seus promotores. Passou a exigir nova estrutura de trabalho. A expansão regional não permitiu mais a dedicação apenas voluntária, exigiu uma “profissionalização” e uma dedicação em tempo integral. Os recursos materiais e financeiros para o atendimento do trabalho de expansão não conseguiam mais ser alcançados pela instituição de ensino superior (Marques; Brum, 1972). Estava posto, dessa forma, o desafio ao MCBI para a busca de novas alternativas de viabilização do trabalho de mobilização e de educação. Seria preciso encontrar novas fontes de recursos, financeiros e humanos. Nesse contexto, estavam dadas, na verdade, as condições necessárias para uma colaboração mais formal entre a Cotrijuí e a Fidene – Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – mantenedora do núcleo de ensino superior. Além de ser uma mantenedora de ensino superior na região, porém, a Fundação tem também entre seus objetivos o desenvolvimento regional. Nesse sentido, em 1970 foi assinado um convênio de colaboração mútua entre as duas entidades. A assinatura do convênio pode ser compreendida no contexto de expansão regional da cooperativa pela senda da modernização agrícola. A Fidene assumiu “o compromisso de executar, na área de atuação da Cotrijuí, através do Instituto de Educação Permanente, ação continuada de motivação, e educação cooperativista, junto aos agricultores da área e seus familiares, de comum acordo com os planos da Cotrijuí”.9 Essa colaboração foi possível e conveniente à cooperativa, devido aos conteúdos da ação educativa do MCBI, essenciais ao seu desenvolvimento. Uma vez de posse da herança do movimento comunitário, contudo, esta foi transformada em um valioso instrumento de gestão de suas relações com o associado e em espaço de educação, de qualificação técnica de seus associados. Pelo convênio passou-se a fazer a propagação da doutrina cooperativista, identificando-a, cada vez mais, com a existência da Cotrijuí e a sua própria atuação. A organização dos núcleos de base, que constituíam um sistema de comunicação e educação do Movimento Comunitário, passou também a servir, cada vez mais, às necessidades de comunicação e educação dos projetos da co- 9 Convênio Cotrijuí-Fidene: arquivos do Museu Antropológico Diretor Pestana. Fidene/Unijuí. 145 EaD Walter Frantz operativa. O apoio à modernização da produção agrícola, mediante a motivação dos agricultores para a adoção de novas técnicas de produção, foi, sem dúvida, também uma das razões dessa instrumentalização do MCBI (Frantz, 1983). O convênio representou a formalização da colaboração institucionalizada entre uma cooperativa e uma instituição voltada à educação, à integração, ao desenvolvimento regional. Havia, em ambas as instituições, bases e interesses comuns para essa colaboração: a busca do desenvolvimento regional, a expansão e a afirmação da organização cooperativa e, de certa forma, a identidade da própria natureza comunitária das duas instituições. Pode-se afirmar, no entanto, que a expansão regional do movimento comunitário, na verdade, significou o seu esgotamento como tal, institucionalizando-se o trabalho de motivação, de mobilização, de educação para o cooperativismo, isto é, para a Cotrijuí. O seu discurso passou a ser o discurso do MCBI. Igualmente, de cada lado estiveram também pessoas com seus interesses, projetos, suas histórias, seus objetivos e razões específicas, que se refletiam na estrutura e funcionamento dessas instituições. Para além das intenções expressas do convênio, guardavam-se, de cada lado, outras intenções, presentes ou fundadas na origem e história da cooperativa, no ensino superior da região e no Movimento Comunitário de Base de Ijuí. Eram intenções voltadas à democracia, à liberdade de organização e de expressão que ultrapassavam a perspectiva de mera instrumentalização do trabalho educativo. É importante lembrar, aqui, que a ação do MCBI e do próprio convênio transcorreu, em grande parte, em um período de restrições e anseios por liberdades políticas no país. Essas circunstâncias políticas, de alguma maneira, ofereciam dificuldades ao desenvolvimento de um trabalho de educação, cuja ação pedagógica indicava para a democracia, a liberdade de organização, a construção da consciência de sujeitos, a criticidade do cidadão. Essas circunstâncias provocavam dificuldades concretas, pela intimidação, pelo medo, pelas restrições ao trabalho de educação, mediante diferentes formas de constrangimento e repressão. A Cotrijuí e a Fafi nasceram no mesmo contexto, tempo e lugar. Consequentemente, a elas eram postos os mesmos problemas, os mesmos desafios e acalentavam, ao mesmo tempo, muitos sonhos e objetivos comuns. Viviam, também, as mesmas contradições, acolhendo ou servindo de lugar e abrigo, muitas vezes aos interesses e às ideologias em conflito. Mesmo assim existia uma consciência política, em ambos os lados, sobre o valor da democracia. A Cotrijuí, apesar de representar, inicialmente, os interesses de um pequeno grupo de empresários, dedicados à moderna e grande lavoura de trigo, por ter sua base de atuação em uma região com predominância de agricultura familiar e diversificada, teve seu desenvolvimento 146 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária condicionado, fortemente, pelo contexto dessa realidade. Expandiu-se pela senda da modernização da cultura do trigo e da soja na propriedade rural familiar, sendo ela, assim, de certa forma e ao mesmo tempo, causa e efeito desse processo. Aderindo à triticultura e à sojicultura comercial moderna, os agricultores passaram a se integrar à Cotrijuí, pois ela oferecia, normalmente, as melhores condições de armazenagem e comercialização. Embora sendo a modernização da lavoura a variável independente de sua expansão, a incorporação, em sua trajetória regional, de outras cooperativas menores existentes na região também produziu seus efeitos expansivos. Aliás, de sua criação já haviam participado pequenas cooperativas locais. Eram quase nulas as chances de sobrevivência das pequenas cooperativas, no contexto das políticas de modernização agrícola pela monocultura do binômio trigo-soja. Ao aderirem ao binômio trigo-soja, pouco espaço de opção restava às pequenas cooperativas, assim como aos seus associados, no contexto da época, além da sua incorporação à Cotrijuí e da integração a seus planos e projetos. Os planos estavam vinculados, especialmente, à modernização da agricultura, viabilizada, inicialmente, pela expansão da lavoura do trigo e, posteriormente, da soja. Esses planos, em sintonia com a política agrícola oficial, condicionaram, igualmente, a expansão da cooperativa para outras regiões do Estado e do país. Pressionada pela realidade histórica da agricultura local e pela própria crise no horizonte do binômio trigo-soja, em uma região com predominância de pequenas propriedades, os planos da Cotrijuí também passaram a incluir projetos de ampliação de sua base de atuação (Frantz, 1982). Todo esse processo de expansão foi sempre acompanhado por atividades de comunicação e educação, seja por meio da organização de núcleos, de comissões ou grupos de trabalho. Na fronteira da expansão estavam sempre presentes as atividades de mobilização, de motivação, de pregação do cooperativismo, de educação para a cooperação. Pode-se afirmar que da ação educativa do MCBI passou-se à ação instrumental na Cotrijuí. O MCBI, junto aos agricultores, desfez-se como movimento, pela identificação de seus objetivos com os planos e os objetivos da Cooperativa. Esgotou-se, lentamente, na medida em que passou a ser instrumento das atividades dos planos da Cotrijuí. Certamente esse processo também inverteu o fluxo de poder da estrutura de organização e boa parte de sua base política transformou-se em base burocrática, de natureza administrativa. A instrumentalização operacional se impôs à função política da organização dos agricultores. 147 EaD Walter Frantz O MCBI foi, historicamente, importante para a expansão e a organização da cooperativa, a ponto de ter transferido o seu dinamismo de Movimento para dentro de sua estrutura operacional. Instrumentalizou a cooperativa com uma rede de núcleos de base, fundamentais ao processo de comunicação da Cotrijuí. Chegou-se a organizar núcleos em toda a região de atuação da cooperativa, no decorrer dos anos (Frantz, 1980). Sem dúvida, o MCBI teve o mérito histórico de contribuir para o debate sobre o cooperativismo em si, sobre a participação política dos associados, sobre a comunicação e educação em cooperativas enfim sobre gestão de organizações cooperativas, enquanto associações e empresas. E talvez nisso resida ainda hoje o seu valor, no entanto a sua origem e o seu conteúdo lhe dão um caráter específico e, por isso, não podem servir, simplesmente, de modelo a ser copiado ou transposto. A sua origem histórica, o seu sentido pedagógico, a sua marca mais política e crítica, a sua dimensão mais mobilizadora e motivadora, antes o credencia como referência orientadora de reflexão do que como modelo a ser reproduzido. Enfim, pode-se constatar que o Movimento Comunitário de Base se diluiu no tempo e nas próprias ações, como é da natureza dos movimentos sociais, entretanto, penetrou e se incorporou na cultura organizacional e na política de associações e organizações, de grupos sociais, na experiência das pessoas em lidar com as questões sociais e comunitárias. Constituiu-se em marco histórico de referência para as práticas educativas em organizações cooperativas, especialmente para a organização de departamentos de educação e comunicação em muitas cooperativas brasileiras. A Unijuí, por meio de seus programas de extensão universitária, sempre dedicou atenção especial à organização social, ao desenvolvimento comunitário, sobretudo ao associativismo e ao cooperativismo. Muitos projetos e atividades da Unijuí, hoje, só podem ser explicados ou entendidos fazendo-se referência ao MCBI. Este pode ser considerado o marco histórico inicial de envolvimento mais significativo da universidade com a questão do cooperativismo. Está muito relacionado, inclusive, com a própria identidade e o projeto de instalação do ensino superior na região (Marques, 1984). Hoje, além de disciplinas em cursos de Graduação e Pós-Graduação e de atividades de extensão universitária, no Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências existe uma linha de pesquisa que se ocupa também da educação cooperativa. Sem dúvida, o MCBI foi fundamental para o desenvolvimento da própria universidade, marcando a sua natureza comunitária, o seu projeto acadêmico. 148 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Síntese da Unidade 7 Nesta Unidade você pôde entender melhor a experiência do Movimento Comunitário de Base de Ijuí no processo de institucionalização de uma universidade e de uma cooperativa. A história desse Movimento revela um esforço por construir um lugar na economia e na política, isto é, um poder de participação por parte de seus protagonistas. A ação do Movimento visava à constituição de uma consciência histórica, uma consciência de sujeitos, embasada na valorização de si próprios e na sua organização. A preocupação fundamental de seus promotores era a motivação dos participantes para uma tomada de consciência e posição diante dos problemas da comunidade daquela época. Por meio desse movimento estabeleceu-se o debate político, a participação, o esforço pela organização de grupos e associações, de baixo para cima, fundado em uma Pedagogia da práxis. Isto é, pela reflexão sobre a prática buscou-se construir os instrumentos de intervenção, quais sejam, sindicatos e cooperativas. O método do trabalho educativo desenvolvido tinha, na compreensão histórica e na organização de grupos de vizinhança, os chamados núcleos de base, um de seus fundamentos. Os núcleos de base permitiram que os agricultores passassem a se conhecer mais, identificando seus interesses, criando uma consciência coletiva, disciplinando-se para a convivência, a comunicação, a associação, a cooperação. Como grupos de vizinhança, os núcleos contribuíram para a convivência grupal, a socialização de seus membros, educando-os para a cooperação. A experiência do MCBI foi uma significativa contribuição histórica para a prática do cooperativismo e do associativismo. Revelou a importância e a validade da participação, do debate, da valorização do associado na organização destes movimentos. Mostrou a importância da solidariedade. Criou laços sociais. Deixou marcas em processos pedagógicos do ensino superior na região. 149 EaD Unidade 8 associativismo, cooperativismo e economia solidária DESAFIOS À UNIVERSIDADE NO ESPAÇO DAS PRÁTICAS SOCIAIS OBJETIVO DESTA UNIDADE • Conhecer e entender a inserção da universidade no desenvolvimento social com o objetivo de visualizar a sua importância para a promoção e apoio a iniciativas de economia popular solidária. Seção 8.1 Concepções de Universidade Para iniciar a reflexão gostaria de retomar conceituações e entendimentos sobre universidade e o seu lugar na sociedade. Isto é, gostaria de expressar e afirmar, primeiramente, o que entendo por universidade, mas também vou buscar referências em outros autores para dar base ao meu pensamento sobre universidade. Não pretendo, todavia, ditar limites ao meu diálogo sobre universidade, pois trata-se de uma instituição histórica, dinâmica, complexa e aberta.1 O texto da Constituição Brasileira afirma o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão para as atividades das organizações universitárias.2 Deste princípio decorrem as práticas sociais do fazer universitário no contexto da sociedade brasileira. Embora tenhamos uma indissociabilidade entre as atividades do fazer universitário, as práticas sociais da universidade têm seu encaminhamento, predominantemente, pela extensão universitária, ainda que não necessariamente. Também o ensino e a pesquisa podem ser instrumentos de práticas sociais 1 Para refletir sobre universidade valho-me de ideias e concepções já expressas no texto “O processo de construção de um novo modelo de universidade: a universidade comunitária”, de minha autoria, publicado in: Ristoff, Dilvo; Severgnani, Palmira (Orgs.). Modelos Institucionais de educação Superior (Coleção Educação Superior em Debate v. 7), Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006. 2 Artigo 207 da Constituição Brasileira de 1988. 151 EaD Walter Frantz específicas3 e isso, exatamente, pela afirmação do princípio de indissociabilidade das práticas acadêmicas, isto é, do fazer da universidade. Entendo que o legislador, pelo instrumento constitucional, procurou garantir a inserção das atividades específicas da universidade na dinâmica do processo de desenvolvimento da sociedade, de modo amplo e profundo. De modo mais específico, o artigo 43, incisos VI e VII da Lei 9394/96, explicita que cabe à universidade estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica. De acordo com o Artigo 4, incisos VII e VIII, da terceira versão do anteprojeto da reforma universitária, cabem à universidade a promoção da extensão, como processo educativo, cultural e científico, em articulação com o ensino e a pesquisa, a fim de viabilizar a relação transformadora entre universidade e sociedade; a valorização da solidariedade, da cooperação, da diversidade e da paz entre indivíduos, grupos sociais e nações.4 Assim sendo, pelos caminhos da legislação e do debate sobre o lugar e o papel da universidade na sociedade brasileira, pode-se concluir pela importância da responsabilidade social do fazer universitário e pelos valores que sua ação deve assumir como orientação da sua relação com o processo de desenvolvimento da sociedade. Pode-se concluir que o Brasil quer uma universidade “entrelaçada” com todas as dimensões da dinâmica do desenvolvimento social. Ao garantir base legal à relação universidade e comunidade, no entanto, o legislador deixou a definição e as especificações das práticas sociais a cargo de cada tempo e lugar do fazer universitário e como desafio à organização e à gestão dessa instituição com amplas e profundas responsabilidades sociais.5 As atividades da extensão universitária passam a depender de muitas visões e convicções, de políticas de gestão e de criatividade. Não há prescrições específicas de sua prática, porém é uma atividade inerente ao fazer universitário que aponta para o horizonte da inserção social da universidade na dinâmica da realidade social para além dos laboratórios e salas de aula. A extensão pode ser definida como o ponto de encontro entre a universidade e a sociedade, em seu sentido 3 Aqui, entendo por práticas sociais as atividades ou projetos que decorrem da relação ou inserção da universidade, via extensão, na dinâmica cultural, política ou econômica, especialmente junto as populações e movimentos sociais que têm como objetivo a melhora ou qualificação de suas condições de vida. Não se pode desconhecer, porém, que ensino e pesquisa também são práticas sociais. 4 Disponível em: <http://www.andes.org.br/imprensa/arquivo/default_reforma_universitaria.asp>. Acesso em: 30 jul. 2010. 5 Artigo 53 da Lei 9394/96. 152 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária mais amplo. Da dinâmica dessa relação, do exercício de seus interesses e poderes, certamente, nascem também concepções de universidade e de suas práticas de extensão. Consequentemente, não haverá uma definição única e as práticas de extensão serão as mais diversas. Nesse cenário, a extensão, na minha visão, pode ou deve ser vista como uma ação política de presença da universidade no processo de desenvolvimento, isto é, como uma presença ativa e construtiva de intervenção da universidade na dinâmica do desenvolvimento da sociedade. A extensão pode ser compreendida como uma ação-reflexão no processo de desenvolvimento da sociedade. A extensão vivifica a relação da universidade com a sociedade, especialmente em âmbitos locais ou regionais. As relações da universidade com a sociedade pelas práticas de atuação concreta, voltadas para necessidades sociais, reforçam esse caráter de promoção do desenvolvimento setorial, local ou regional. Em meu entendimento a extensão tem um caráter mais local e regional que o ensino e a pesquisa. Evidentemente essa visão condiciona a compreensão do que deva ser uma universidade, isto é, a sua concepção como organização e instituição. Na visão de Mauro Santayana (1994, p. 12), o papel da universidade deve ser “o de estimular e desafiar a razão, o de libertar a inteligência para a plenitude de sua possibilidade e, mais do que tudo, para a descoberta apaixonada do outro, esse nosso parceiro na imensa e enigmática aventura de viver”. Assim, sob essa perspectiva a universidade deve ser um lugar de afirmação do diálogo, da argumentação, entre os seres humanos, no campo da Filosofia, da ciência, da arte, da política, da educação, da economia ou outras dimensões da vida, tendo por denominador comum a liberdade. A argumentação deve ter um sentido epistemológico, de construção de conhecimento, mas também de sua própria construção e reconstrução como instituição. Segundo Newton Sucupira (1991, p. 36) [...] a universidade não tem apenas objetivos, ela tem um sentido que emana da própria natureza intelectual e espiritual do homem. Portanto, é preciso que a universidade não permaneça somente atrelada aos reclamos da comunidade, por que ela tem que atender a valores do saber, do espírito, que transcendem os momentos históricos de uma comunidade. A universidade, em meu entendimento, deve ultrapassar as dimensões imediatas da vida, embora deva incorporá-las ao seu fazer universitário. A universidade, sob essa ótica, é uma organização complexa, tanto em seus sentidos quanto em seus significados históricos: ela não pode ser compreendida e conduzida por visões simplistas e prático-utilitaristas que a submetam 153 EaD Walter Frantz aos interesses do mercado, como se fosse um negócio ou um simples instrumento de políticas de governos. A instrumentalização do fazer universitário – em favor da lógica do mercado ou de interesses de grupos – reduz o seu sentido maior. Enfim, a universidade é um espaço privilegiado para cultivar a memória da humanidade, a partir de um questionamento científico da sociedade e, assim, constituir-se em um olhar para o futuro. Cabe à universidade interpretar o mundo, o seu movimento; cabe a ela produzir conhecimento a respeito das consequências desse movimento. Deve ser um lugar que permita a superação da pequenez intelectual e da menoridade (Kant) política sobre os sentidos da vida. Seção 8.2 A Universidade no Processo de Desenvolvimento e sua Possível Relação com o Cooperativismo e a Economia Solidária A sociedade humana está passando por grandes e profundas transformações (Bauman, 2001) e, dentre elas, certamente, pode-se citar a reação às frustrações e fracassos dos grandes sistemas de organização política e econômica. As reações revelam que parte da humanidade começa a manifestar preocupações com relação ao futuro da humanidade e do próprio planeta. O autor Ignacy Sachs (2007) expressa muito bem essas preocupações em seus escritos sobre desenvolvimento sustentável. De acordo com Pedro Goergen (2005, XI), no centro das preocupações do homem e da sociedade contemporâneos está o estabelecimento de normas justas, de limites que garantam o respeito à natureza e à dignidade humana e que induzam a um comportamento solidário. É a exigência da recuperação da perspectiva social ante a supremacia perigosa do hedonismo individualista, dos prazeres e das vantagens pessoais, ante o bem comum e a sociedade. Vive-se uma época de fortes impactos: pela mudança de paradigmas de orientação na economia, na política, na educação, etc. Essas transformações penetram na vida das pessoas. O que está em jogo não são apenas transformações institucionais na esfera socioeconômica, mas também, e mais profundamente, uma transformação cultural, envolvendo mudanças na visão de mundo e paradigmas, valores, atitudes, comportamentos, modos de relação, aspirações, paixões e desejos. 154 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Na visão de Goergen (2005, p. IX), paira no ar uma paradoxal relação entre a desconstrução de muitos valores tradicionais e a aspiração por novos princípios orientadores da ação e do comportamento humanos. [...] Onde apenas reina o indivíduo com seus interesses egoístas, vale a lei do mais forte e instala-se um Darwinismo social que oprime tanto quanto o autoritarismo anterior do qual o homem sempre quis libertar-se. Por isso, estamos à busca de novos caminhos, de novos princípios que regulem a convivência social de forma democrática e justa. É preciso rever e repensar os costumes e as normas, gerar um novo ethos, refundar a ética. Em que termos isso deve ser feito e sobre que fundamentos é uma das preocupações centrais da cultura contemporânea. Sob esses aspectos, pode-se dizer que deste contexto nascem enormes desafios éticos à humanidade atualmente. Esse contexto desafia também a universidade, sob diferentes ângulos, entre os quais o de reafirmar o seu compromisso com a ética. A universidade deve ser um campo de luta, pela via do ensino, da pesquisa e da extensão, em favor da superação das contradições do fazer humano. A universidade não pode conviver, silenciosamente, com os atuais rumos do desequilíbrio social e ambiental que ameaçam a sociedade humana contemporânea. Diante da realidade social em desequilíbrio, é bom lembrar o que o professor Cristóvam Buarque (1994, p. 18) escreveu em relação à sociedade brasileira: “O Brasil é um dos raros países do mundo que, [...] conseguiu o avanço econômico e técnico, mas fracassou rotundamente na construção de uma sociedade minimamente utópica [...]”. Segundo Buarque (1994), a universidade deverá aceitar o desafio de se colocar ao lado da luta pela superação desse fracasso. Certamente, isso não poderá ser feito se a sua atuação for conduzida na perspectiva da lógica dos interesses do capital. O fazer universitário precisa estar colocado na perspectiva mais ampla da vida, em todas as suas formas e dimensões. A universidade não pode ser submetida ao mercado, mas, também não se deve desconhecer o fato de que ela funciona no mercado e, por meio dele, constrói muitas de suas relações com a economia e a política, especialmente. A universidade, como uma das expressões de organização e funcionamento da sociedade, deve relacionar-se construtivamente com o mercado e com os governos, no entanto o horizonte da universidade deve ir além dessa função. Do reconhecimento dessa realidade nascem os maiores desafios, não só aos dirigentes, mas a todos os integrantes da comunidade acadêmica. Esse é um dos núcleos centrais da gestão universitária, tanto de seus aspectos políticos quanto econômicos. A gestão universitária consiste em um processo complexo de dimensões culturais, políticas, sociais e técnicas. A gestão universitária não pode ser reduzida apenas a uma dimensão particular desse complexoou a uma operação de funções técnicas. A prática de gestão universitária desafia a percepção de todos os sentidos e significados da universidade. Como tal, envolve a todos os integrantes da universidade. 155 EaD Walter Frantz A universidade não deve ser “atrelada” a grupos de interesses, sejam eles do campo da política ou da economia. Antes disso, à universidade está colocado o desafio de se somar ao grande movimento social que tenha como orientação a superação constante das contradições sociais que interfiram, negativamente, na qualidade de vida e de sua sustentabilidade, em todas as suas dimensões. A força do movimento social é um dos grandes princípios da existência humana. Em meio ao movimento, condicionadas pelas suas forças, as sociedades tomam formas, estruturas e expressões, constroem relações sociais, afirmam valores e comportamentos. Os movimentos das sociedades constroem e destroem os contextos da vida dos seres humanos. Dessa forma, construção e desconstrução fazem parte da vida. As formas, as estruturas, as relações sociais, os valores e os comportamentos contextualizam a vida dos seres humanos. Aqui, sucintamente, lembro-me de dois grandes contextos históricos de movimentos da vida humana: a Idade Média e a Idade Moderna. No contexto medieval as relações sociais predominantes eram de servidão e a economia era voltada às necessidades básicas de sobrevivência, sem o reconhecimento dos interesses das pessoas. Na fase moderna se constitui a luta pela construção de relações sociais livres e pela afirmação de uma economia voltada aos interesses da liberdade humana: pode-se falar de uma economia popular. Na Revolução Liberal, porém, fracassou a economia dos interesses da liberdade humana. Os espaços da liberdade dos interesses do trabalho foram “colonizados”, isto é, ocupados pelos interesses do capital. Neste sentido, Thomas Assheuer (2009, p. 24-25) em artigo sobre Jürgen Habermas, por ocasião do 80º aniversário do filósofo alemão, comenta: De um lado, Habermas admira as sociedades modernas, pois elas – fato histórico singular – impuseram processos democráticos e ampliaram a “área de ação” discursiva da razão comunicativa. Mas, por outro lado, as sociedades modernas têm de ser temidas, pois seus sistemas funcionais desenvolvem um excesso de poder. As pressões capitalistas do mercado chocam com a autodeterminação democrática. [...] O dinamismo sufocante do capitalismo e também a técnica e a ciência empurram a sociedade para a frente. Mas, ao mesmo tempo, parte destes “sistemas” complexos é uma ameaça invisível. Eles assediam o “mundo da vida” – necessitado de zelo – dos cidadãos. Seus cálculos de proveito infiltram as velhas “tradições inconscientes-cientes” e fixam-se na esfera pré-política, na vida privada e na família. Em resumo: a vida moderna encerra uma contradição. Seus sistemas aliviam da miséria material, mas ao mesmo tempo, quase não podem ser conciliados com o dia-a-dia ou invadem como “senhores coloniais” os “poros” de formas consagradas de vida, infiltrando-as através da comercialização, da burocratização e do cientificismo. Transpondo às relações de hoje, isto significa: uma forma de “colonização” econômica está inerente à reivindicação de que a sociedade tem de ser organizada como um centro de lucro, do berço ao túmulo. O mesmo é válido para a brutal transformação das universidades, visando “eficiência”. 156 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Na economia moderna, os interesses do capital se impuseram pelo mecanismo do mercado, instrumentalizado pela lógica da liberdade do capital, à liberdade dos interesses econômicos da força humana de trabalho. Por outro lado, o movimento social de oposição à lógica do capital, por meio das experiências socialistas, fracassou ao querer restaurar a economia das necessidades humanas pelos mecanismos estatizados e centralmente planejados. Muitos são os dados que permitem afirmar que estamos diante de uma crise dos grandes sistemas modernos de organização social que têm sua expressão na experiência capitalista e na experiência comunista. Em um de seus escritos Assmann afirma que as experiências capitalistas e socialistas não souberam levar em conta as necessidades elementares e a liberdade dos desejos, o respeito aos interesses e o impulso às iniciativas do ser humano. De acordo com este autor (1998, p. 28), os seres vivos entrelaçam necessidades e desejos [...]. Os socialismos “reais” não souberam levar isso em conta, trabalhando unilateralmente com a priorização das necessidades elementares. Por outro lado, o capitalismo sempre foi mestre em manipular desejos e postergar a satisfação das necessidades elementares. Decorrente do fracasso social e da decepção dos grandes sistemas – capitalismo e socialismo – vive-se o vazio de um projeto coletivo mais amplo, estimulando o comportamento individualista. Nesse sentido, escreve Marco Raúl Mejía (1996, p. 15-16): Tudo o que se torna possível na sociedade é transportado para o horizonte do indivíduo. Tudo está na esfera do pessoal. No meio de uma grande flexibilidade, confina-se esse mesmo indivíduo a uma micromoral individualista que o impede de construir referentes e estabelecer responsabilidades sobre o que acontece em esferas de caráter mais global. Dessa forma, ninguém, aparentemente, parece responsável pelo que acontece, porque um olhar pretensamente científico mostra esses acontecimentos como sendo orientados pela ciência e pelo conhecimento. A noção da liberdade dos indivíduos – uma das promessas da modernidade –torna-se, assim, sempre mais, paradoxal: sob a força da racionalidade do sistema capitalista, a liberdade pode ser transformada em instrumento de dominação. Os referenciais coletivos cedem lugar e ganha espaço a individualidade, embora cada vez mais controlada pela racionalidade do capital, estreitando-se em individualismos. Facilmente, diante de tal processo, projetos pessoais se desvinculam de um referencial coletivo ou público, dissolvendo a identificação social maior. “O individualismo aparece mediante projetos pessoais egoístas que, além de marginalizarem e desprezarem a dimensão social coletiva, fazem uso de aspectos que eticamente seriam coletivos, para fins pessoais” (Soethe, 1996, p. 22). Segundo Herbert Marcuse (1973, p. 28), quanto mais racional, produtivo, técnico e total se torna o controle da sociedade, tanto mais inimagináveis se tornam os modos e os meios pelos quais os indivíduos controlados poderão romper sua submissão ao poder dessa racionalidade, 157 EaD Walter Frantz pois a superação dessa situação depende da sua compreensão crítica, “e o surgimento dessa consciência é sempre impedido pela predominância de necessidades e satisfações que se tornaram, em grande parte, do próprio indivíduo”. Hoje, mais que nunca, cultura e poder se fundem pelos laços da lógica da economia de mercado. Aqui, cabe perguntar sobre os limites e as possibilidades de reação, especialmente, dos agricultores familiares, diante do poder de modelar e definir a maneira de se perceber e interpretar o mundo. Qual o lugar e a função da organização cooperativa no processo de uma reação? Das experiências socialmente fracassadas nasce o desafio da construção de uma concepção teórica de uma formação social em bases culturais, políticas e econômicas que possa acolher a liberdade individual e a necessidade do coletivo como dimensões de realização da felicidade do ser humano. Afirma Goergen (2005, p. 9), [...] “a mudança de mentalidade, o nascer de uma nova consciência precisam ser estimulados, através de do processo educativo [...]”. Segundo Mejía (1996, p. 58), [...] “parte da tarefa é reinventar novos paradigmas”, no entanto, afirma o autor (p. 58-59): Não existem certezas para os novos caminhos, nem segurança para os novos passos. [...] É preciso encher-se da paciência de um relojoeiro para reconstruir os interesses dos sujeitos, hoje pluralizados, para inventar uma nova capacidade de organização com outras formas, formas que nos falem de uma pluralidade em ampliação, e para entender que a diversidade, mais do que limitar, enriquece. Aceito a ideia de que a organização cooperativa é uma das expressões mais concretas do movimento de alternativa para a humanidade, diante da frustração e do fracasso dos grandes sistemas. O movimento cooperativo busca recolocar a economia dos interesses dos indivíduos livres, mediante relações culturais, políticas, sociais e econômicas fundadas na cooperação dos que trabalham. Isto é, o movimento cooperativo defende a economia dos interessados: do trabalho e não do capital. A economia dos interesses dos indivíduos livres e não do capital é estimulada pela cooperação, pela associação das individualidades. O movimento social da economia solidária popular expressa as necessidades dos indivíduos livres, estimulados pela solidariedade, pelo coletivo. Afirma Houtart (2001, p. 17): Os setores mais avançados da economia popular não ignoram a existência das relações mercantis e capitalistas dominantes e não pretendem desconectar-se do mercado capitalista, e tampouco se percebem como um modo eficaz de integração a este último. Eles chegaram à conclusão de que para tornar viável um projeto alternativo de sociedade – em que os pobres possam obter o que lhes foi recusado até hoje – era necessário que adquirissem, simultaneamente com as formas municipais e sociais de organização (isto é, suas formas pragmáticas de reação e de organização), uma certa autonomia de reprodução cultural e material. 158 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária É importante percebermos que a economia é algo construído e não dado. Que é algo inacabado, dinâmico, submetido a interesses. A economia é um espaço entrecruzado de poder técnico e de poder político, no qual atuam os seus agentes e que é produzido a partir do conhecimento dessa dupla dimensão: a técnica e a política. Na modernidade foi colocado o interesse no lugar da necessidade como nova base para a economia. Assim sendo, a sociedade moderna é fundada na economia do interesse e da liberdade dos indivíduos. A economia moderna funciona pela competição, isto é, pela valorização da competência entre os interessados. O sentido histórico da competição tem a ver com estímulo à qualificação do trabalho humano. A economia moderna funciona no espaço das relações sociais de mercado, mediante a oferta e a procura. A cooperação moderna acontece entre os interessados com o objetivo de poder inserir-se no espaço das relações sociais de mercado. O sentido histórico da cooperação moderna não conflita, necessariamente, com o sentido histórico da competição da economia moderna que tem como objetivo a valorização do trabalho humano. O foco da competição é a qualificação técnica da economia e o foco da cooperação é a qualificação social da economia. Aconteceu, contudo, que a lógica do capital se estabeleceu como motivação para a produção e a distribuição dos bens e das riquezas. O processo da competição e o espaço do mercado passaram a ser submetidos aos interesses do capital. A competição deixou de ser uma relação entre as economias dos interessados e passou a ser uma relação entre capital e trabalho ou uma relação de concorrência entre capitais. O capital apropriou-se do espaço da liberdade e fez valer o seu interesse: a economia da acumulação capitalista. O capitalismo acentuou o individualismo, fragilizando os laços sociais de poder dos indivíduos livres. Adverte Houtart (2001, p. 22) que “a lógica dominante da organização da economia, construída sobre o lucro, a competitividade, a eliminação dos fracos e a exaltação dos vencedores, tende a absorver para o seu caminho as novas iniciativas exitosas”. O cooperativismo buscou, historicamente, a associação dos indivíduos, reconstruindo e fortificando os laços sociais de poder dos indivíduos livres. O cooperativismo como fenômeno da modernidade surgiu como movimento de defesa do interesse do trabalho humano contra os interesses do capital. A lógica da cooperação moderna é a valorização do trabalho humano, é a emancipação do ser humano pela valorização de seu trabalho. As práticas de organização cooperativa, entretanto, também correm o risco de serem reduzidas a instrumento da razão técnica, isto é, a instrumento do capital e não do trabalho. Em muitas circunstâncias, a cooperação se constitui em um instrumento de poder nas relações econômicas do mercado, nem sempre a favor do trabalho. Por isso, é preciso ter claro que a noção de organização cooperativa é mais ampla que uma simples instrumentação técnica. Possui 159 EaD Walter Frantz também uma dimensão política, atrelada aos interesses do trabalho das pessoas. Da mesma forma, a dinâmica social cooperativa pode se constituir em espaço de educação, cuja Pedagogia conduza a uma nova cultura do trabalho, uma nova cultura de produzir e distribuir riquezas, que permita resgatar o trabalho pela lógica da vida, sem desconhecer os desafios da tecnologia e das técnicas de sua qualificação. Os seres humanos estão postos diante do desafio de construir um novo paradigma de orientação para a humanidade: a construção de uma alternativa em novas bases de relações culturais, sociais, políticas e econômicas. O novo paradigma passa pelo caminho da organização cooperativa, da responsabilidade social. Isso implica profundas mudanças na concepção, organização e funcionamento da sociedade atual. Penso que os seres humanos estão desafiados à construção de novos referenciais para sua atuação na sociedade em transformação. Acredito que para a maioria da população impõe-se o desafio da construção de um novo projeto de sociedade. Creio que a sobrevivência das pequenas economias depende, cada vez mais, de novas formas de organização, de novas tecnologias de produção, de novos mecanismos de comercialização, de novos mercados, porém menos dominados pela lógica dos interesses do capital. A construção dos novos caminhos, entretanto, não começa com respostas prontas, com certezas ou verdades. Inicia-se pela dúvida, pela experiência dos erros, pela coragem da crítica e da autocrítica. Acredito que não se tenha podido, até aqui, entender e aproveitar de todo o potencial de uma economia cooperativa. De certa forma vive-se, hoje, a ausência de um projeto global de sociedade para a maioria da população (Mejía, 1996). Para finalizar o texto gostaria de mencionar que, ao longo de séculos de ciência, atrelada aos interesses econômicos, a vida dos seres humanos foi “drenada”, à semelhança da drenagem de um banhado, pelos sulcos das teorias com pretensão de certezas absolutas. No decorrer dos séculos, o valor de uso das coisas foi submetido ao valor de troca das coisas: no lugar da vida foi colocada a busca do lucro, simplesmente. Existem possibilidades de reação? Certamente, ao lado dos limites, existem as possibilidades de reação. Isto é, apesar dos condicionantes, podese agir sobre a dinâmica social. Os seres humanos têm em si a possibilidade da criatividade, da capacidade de reação. Pela criatividade e pela reação podem agir sobre os condicionantes adversos às necessidades e interesses. Existe uma energia que se forma na relação entre os seres humanos, a partir de suas necessidades, interesses, desejos, etc. Isso, no entanto, não é dado a priori: trata-se de um processo pelo qual os seres humanos constroem seus caminhos de vida. Nessa dinâmica estão os pensamentos, os valores, os conhecimentos, as ciências, a educação, a política, a economia, a arte, etc. 160 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária Na raiz da dinâmica social existe um processo dialético que pode conter a força da construção e da destruição, da afirmação e da negação/superação. A geração de consciência política pode ser expressa em ações individuais e coletivas. As formas de ação podem ser concorrenciais ou cooperativas. Dentre as certezas que os seres humanos podem ter em sua vida está a de que não têm todo o poder individual para resolver todos os problemas da vida, surgidos nos tempos e lugares dos espaços humanos. Porém, cooperativamente, podemos aumentar esse poder. Os seres humanos podem atuar sobre os seus problemas, porém, para isso, precisam mais de cooperação que de concorrência. A concorrência entre os seres humanos têm suas raízes nos seus instintos. A organização e as ações dos seres humanos, todavia, não podem ter como fundamento apenas os seus instintos, ainda que instrumentalizados por normas e leis ou amparados em teorias sociais. Os seres humanos se humanizam pelo reconhecimento solidário e cooperativo do outro. Precisam superar os seus estágios de vida instintiva para afirmar a cooperação. A marca forte de um processo civilizatório mais humano é a substituição das relações instintivas de concorrência pelas relações de respeito, de solidariedade e de cooperação entre os seres humanos e destes com o restante da natureza. É preciso humanizar mais a vida. A humanização da vida tem suas raízes na cooperação. Aqui está um grande desafio aos seres humanos, hoje: o desafio de se fazerem construtores da humanização, superando as normas e as leis que vêm das bases instintivas da vida, superando sua mera instrumentalização a serviço de uma sociedade que não consegue abrigar uma vida digna para todos. Nesse contexto, um dos grandes desafios aos seres humanos, hoje, é o de substituir as relações instintivas de concorrência pelas relações de respeito, de solidariedade e de cooperação entre os seres humanos e destes com o restante da natureza. Enfim, construir a cooperação, a solidariedade como princípio básico de vida. Certamente, aqui, começa um desafio à universidade nos espaços da educação, da pesquisa e da extensão. Acredito que aqui começa o papel da universidade: reconhecer o lugar da cooperação e da solidariedade nas relações econômicas; reconhecer o seu lugar no contexto que não consegue mais acolher a maioria da humanidade e nem garantir a sustentabilidade da vida no planeta Terra; reconhecer que a solidariedade e a cooperação se impõem mais como necessidades que como meras opções; reconhecer que estamos diante de uma crise dos grandes sistemas modernos de organização social que tem sua expressão na experiência de mercado capitalista e na experiência de planejamento estatal comunista. 161 EaD Walter Frantz Síntese da Unidade 8 Nesta Unidade você pôde entender melhor diferentes concepções de universidade e suas funções no processo de desenvolvimento social, suas possibilidades de inserção em processos cooperativos e de economia solidária. A influência da universidade, no processo de desenvolvimento, dá-se pela sua presença ativa e crítica, pela sua interferência nos espaços da cultura, da política, da economia, da tecnologia. A partir da produção do saber, cumpre ela seu papel e nascem suas funções. Não é uma inserção desvinculada de um projeto de sociedade, uma presença neutra. Pode e deve a universidade ajudar a construir as condições do desenvolvimento da região na qual está localizada. Deve contribuir para a identificação e a integração de todos os agentes do processo. Ela não pode fugir de sua inserção no processo de cumprimento do seu papel ou funções. Sob esse aspecto torna-se, também, uma estrutura de poder, no espaço local, exercido, predominantemente, a partir da produção de conhecimento, no processo das ações concretas de desenvolvimento e que lhe confere uma importância e um papel com função social. 162 EaD Referências associativismo, cooperativismo e economia solidária ARRUDA, M. Globalização e sociedade civil. Repensando o cooperativismo no contexto da cidadania ativa. In: ARRUDA, M.; BOFF, L. Globalização: desafios socioeconômicos, éticos e educativos. Uma visão a partir do Sul. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 49-102. ASSHEUER, Thomas. Jürgen Habermas. In: Magazin-Deutschland, n. 4, 2009. ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação. Rumo à sociedade aprendente. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. BARCELLONA, P. Triunfo do ocidente e decomposição da práxis vital. In: OLIVEIRA F. A. M. de (Org.). Globalização, regionalização e nacionalismo. São Paulo: Unesp, 1999. p. 181-205. BARRETO, Natanael. Processo de participação em cooperativas de produtores rurais do Rio Grande do Sul. In: Perspectiva Econômica, ano XV, vol. 10, n. 27, p. 99-205, 1980. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010. BENETTI, Maria Domingues. Origem e formação do cooperativismo empresarial no Rio Grande do Sul: uma análise do desenvolvimento da Cotrijuí, Cotrisa e Fecotrigo – 1957/1980. Porto Alegre: FEE, 1982. BOETTCHER, Erik. Kooperation und Demokratie in der Wirtschaft. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1974. BONETI, L. W. Estado e exclusão social hoje. In: ZARTH, P. A. et al. Os caminhos da exclusão social. Ijuí: Ed. Unijuí, 1998. p. 9-44. BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas. Ijuí: Ed. Unijuí, 1997. BRUM, Argemiro Jacob. Unijuí. Uma experiência de universidade comunitária. Sua história, suas idéias. 2. ed. Ijuí, RS: Ed. Unijui, 1998. BUARQUE, Cristóvam. A aventura da universidade. São Paulo: Editora da Unesp; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 163 EaD Walter Frantz BURR, Carlos. Las Cooperativas: una Economía para la Libertad. Santiago de Chile: Editorial de Pacífico, 1965. CASAROTTO, Irmão C. Marcílio. Irmão Miguel Dario. “O Irmão dos Agricultores”. Porto Alegre: Publicação da Província Marista de Porto Alegre, 1977. CASTELLS, Manuel. La Era de la Información. Economía, Sociedad y Cultura. Vol. I, 2. ed. La Sociedad Red. Madrid: Alianza Editorial, 1998. COSTA, Manuel da Silva. O reencantamento da organização: a organização participativa e a mudança de paradigma científico. In: Cadernos do Nordeste, Braga/Portugal: Centro de Ciências Históricas e Sociais da Universidade do Minho, Campus de Gualtar, vol. 16(1-2), p. 11-20, 2001. (Série Sociologia, Sociedade e Cultura 3). DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho. Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Ed. da UNB, 1999. DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire. 2002. DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. ESAC. Economia solidária e ação cooperativa, vol. 1, n. 1, p. 5-12, jul./dez. 2006. ESTIVILL, J. Panorama da luta contra a exclusão social. Conceitos e estratégias. Genebra: Bureau Internacional do trabalho, 2003. 140 p. FÁVERO, Osmar. Uma pedagogia da participação popular: análise da prática educativa do MEB – Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Autores Associados, 2006. FAUST, Helmuth. Geschichte der Genossenschaftsbewegung: Ursprung und Aufbruch der Genossenschaftsbewegung in England, Frankreich und Deutschland sowie ihre weitere Entwicklung im deutschen Sprachraum. 3. ed. Frankfurt am Main: Knapp, 1977. 782p. FRANTZ, Telmo Rudi. Cooperativismo empresarial e desenvolvimento agrícola. O caso da Cotrijuí. Ijuí: Fidene, 1982. FRANTZ, W. Genossenschaftsentwicklung und genossenschaftliche Erziehung. Eine Fallstudie aus Brasilien. Jahrbuch für Bildung,Gesellschaft und Politik, 3(5): 3-275, 1980. FRANTZ, Walter. Comunicação e educação em cooperativas: retrospectiva histórica e importância atual. In: Perspectiva Econômica, ano XVIII, vol. 13, n. 39, Série Cooperativismo, n. 11, p. 135152, São Leopoldo, RS: Unisinos, 1983. FRANTZ, Walter. O cooperativismo e a prática cooperativa. In: Perspectiva Econômica, ano XIX, n. 51, Série Cooperativismo, n. 16, p. 53-70, São Leoplodo: Unisinos, 1985. 164 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária FRANTZ, Walter. Organização e poder em cooperativas. In: Contexto e Educação, Ijuí: Ed. Unijuí, ano 1, n. 3, jul./set. 1986, p. 56-66, 1986. FRANTZ, Walter. A organização cooperativa: campo de educação e espaço de poder. In: Jornada de Pesquisa, 4. Livro de Resumos. Ijuí: Ed. Unijuí, 1999. p. 59-60. FRANTZ, Walter. Educação e cooperação: práticas que se relacionam. In: Sociologias, Porto alegre: UFRGS, ano 3, n. 6, jul./dez. 2001. FRANTZ, Walter. Organização cooperativa. Campo de educação e espaço de poder. In: Perspectiva Econômica, vol. 37, n. 119, Série Cooperativismo n. 52, p. 65-84. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2002. FRANTZ, Walter. Educação e poder na racionalidade da cooperação. In: Perspectiva Econômica, vol. 38, n. 121, jan./mar. 2003, p. 15-40, São Leopoldo, RS: Unisinos, 2003. FRANTZ, Walter. Reflexões em torno da agricultura familiar. In: ANDRIOLI, Antônio Inácio (Org.). Tecnologia e agricultura familiar: uma relação de educação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009. p. 137-187. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 41. ed. São Paulo: Cortez, 2001. GADOTTI, Moacir. Pedagogia da práxis. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1998. GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. 2. ed. revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. GUANZIROLI, Carlos et al. Agricultura familiar e reforma agrária no século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. HABERMAS, Jürgen. Technik und Wissenschaft als Ideologie. 10. Auflage, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979. HOUTART, François. A economia solidária em seu contexto global. In: Ciências Sociais, Unisinos, v. 37, n. 159, p. 11-25, 2001. HOLYOAKE, Georges Jacob. Historia de los Pioneros de Rochdale. Buenos Aires: Intercoop, 1975. JAHODA, Marie. Socialização. In: OUTWAITE, W.; BOTTOMORE, T. et al. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p. 711. JÄGER, Jill. Was verträgt unsere Erde noch? Wege in die Nachhatigkeit. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2007. LAPASSADE, Georges. Grupos, organizações e instituições. Tradução Henrique Augusto de Araújo Mesquita. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 165 EaD Walter Frantz LEBRET, Louis-Joseph. Manifesto por uma civilização solidária. São Paulo: Duas Cidades, 1961. LÉVY, P. A ideografia dinâmica. Rumo a uma imaginação artificial? São Paulo: Edições Loyola, 1997. 228 p. LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. Por uma antropologia do ciberespaço. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999. LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 1988. LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MACHADO, Roberto. Introdução. Por uma genealogia do saber. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 14. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999. MANNHEIM, Karl. O homem e a sociedade. Estudos sobre a estrutura social moderna. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962. MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. MARÉCHAL, Jean-Paul. Humanizar a economia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. MARQUES, Mario Osório; BRUM, Argemiro Jacob. Uma comunidade em busca de seu caminho. Porto Alegre: Sulina, 1972. MARQUES, Mario Osorio. Universidade emergente. O ensino superior brasileiro em Ijuí (RS), de 1957 a 1983. Ijuí, RS: Fidene, 1984. MARQUES, Mario Osorio. Introdução. In: FISCHER, Martin. Etnias diferençadas na formação de Ijuí. Ijuí: Ed. Unijui, 1987. MARQUES, Mario Osório. Conhecimento e modernidade em construção. Ijuí: Ed. Unijuí, 1993. MARQUES, Mario Osorio. A aprendizagem na mediação social do aprendido e da docência. Ijuí: Ed. Unijuí, 1995. MARQUES, Mario Osorio. Educação/interlocução, aprendizagem/reconstrução de saberes. Ijuí: Ed. Unijuí, 1996. MARQUES, Mario Osorio. Escrever é preciso. O princípio da pesquisa. Ijuí: Ed. Unijuí, 1998. MARTIN, Hans-Peter; SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização. O assalto à democracia e ao bem-estar social. Lisboa: Terramar, 1998. 166 EaD associativismo, cooperativismo e economia solidária MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. In: Estudos Avançados, vol. 12, n. 34, set./dez. p. 7-46, 1998. MEJÍA, Marco Raúl. A transformação social: educação popular no fim do século. São Paulo: Cortez, 1996. MORIN, Edgar. Sociologia. A sociologia do microssocial ao macroplanetário. Portugal: Publicações Europa-América, 1998. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000a. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2000b. MORIN, André. Pesquisa-ação integral e sistêmica: uma antropopedagogia renovada. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. PAULA, Frei Matias de S. F. de. Condicionamento geográfico de Ijuí. In: Ijuí 1912-1962 – 50 Anos. Edição histórica. Ijuí: Empresa Gráfica Michaelsen, 1962. p. 97-98. (Acervo MADP). PINTO, L. de A. C. Mundo pós-moderno: notas para discussão e registro histórico. In: MAIO, M. C.; BÔAS, G. V. (Org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil: ensaios sobre Luiz Aguiar Costa Pinto. Porto Alegre: Ed. Universidade; UFRGS, 1999. p. 13-19. RIBEIRO, Marlene. Universidade brasileira “pós-moderna”. Democratização X competência. Manaus: Editora Universidade do Amazonas, 1999. RIFKIN, J. Fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995. 348 p. RISTOFF, Dilvo; SEVERGNANI, Palmira (Orgs.). Modelos institucionais de educação superior. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006. (Coleção Educação Superior em Debate, v. 7). RIZEK, Cibele Saliba. Introdução. In: CASTEL, R. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. ROCHE, J. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. Vol. I e II. SABOURIN, Eric. Camponeses do Brasil: entre a troca mercantil e a reciprocidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. SOETHE, José Renato. Dialética e C&T: subjetividade e pedagogia. Cadernos Cepope, São Leopoldo: Unisinos, ano 8, n. 13, 1996. (Série Movimento Sociais e Cultura). 167 EaD Walter Frantz SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007. SANTAYANA, Mauro. Apresentação. In: BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. São Paulo: Editora da Unesp; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. SANTOS, B. de S. (Org.). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 501 p. SOUZA, A. R. Um instantâneo da economia solidária no Brasil. In: SINGER, P. SOUZA, A. R. (Orgs.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. SCHNEIDER, José Odelso. Democracia – participação e autonomia cooperativa. In: Perspectiva Econômica, vol. 26, n. 72-73, n. 29-30, 1991. (Série Cooperativismo). SINGER, P.; SOUZA, A. R. (Orgs.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. SINGER, P. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 182 p. 1998. SUCUPIRA, Newton. Concepção de universidade. Na perspectiva da Lei 5.540, de 28.11.68. In: SEMINÁRIO DE ABERTURA DA AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL: A UNIVERSIDADE EM QUESTÃO, 1991, Feira de Santana. Anais... Feira de Santana: Uefs, 18 a 22 de novembro de 1991. p. 29-41. THUME, V. et al. Ação coletiva para viabilização da agricultura familiar no município de São Paulo das Missões – Noroeste do RS. Realidade Rural, (43): 9-64, 2005. TORRES, Alfonso. La educación popular. Trayectoria y actualidad. Bogotá: Editorial El Buho, 2008. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. VESTER, Michael. Die Entstehung des Proletariats als Lernprozess. Die Entstehung antikapitalistischer Theorie und Praxis in England 1792-1848. 3. ed. Frankfurt am Main: Europäische Verlagsanstalt, 1975. ZARTH, Paulo Afonso. História, agricultura e tecnologia no noroeste do Rio Grande do Sul. In: ANDRIOLI, Antônio, Inácio (Org.). Tecnologia e agricultura familiar: uma relação de educação. Ijuí: Ed. Unijui, 2009. p. 51-75. ZITKOSKI, Jaime José. Diálogo/dialogicidade. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008,. p. 130-131. 168