o legado jus-político do lobby do batom vinte anos depois

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O LEGADO JUS-POLÍTICO DO LOBBY DO BATOM VINTE ANOS DEPOIS:
A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Salete Maria da Silva
e-mail:[email protected]
Universidade Regional do Cariri
Vinte anos depois...
O ano de 2008, no Brasil, será marcado por discussões e comemorações dos vinte anos da
promulgação do vigente texto Constitucional. A Ordem dos Advogados do Brasil-OAB e a Câmara dos
Deputados já se manifestaram no sentido de realizar importante reflexão sobre as duas últimas décadas
sob a égide desta Lei Maior.
O movimento de mulheres no Brasil, e em especial o movimento feminista, não podem ficar ao
largo desta importante discussão. Como professora de Direito Constitucional, feminista e pesquisadora
interessada na questão da transversalização gênero/Direito, proponho uma discussão que, a priori, vise
destacar a participação das mulheres na elaboração desta Carta Política, evidenciando, assim, as
conquistas, as circunstâncias históricas e, necessariamente, refletindo sobre os limites e possibilidades de
ganhos jus-políticos para as mulheres a partir desta marcante experiência político-institucional.
Antes de adentrar na questão principal objeto desta comunicação, é de alvitre consignar que, para
fins de desenvolvimento deste trabalho, partiremos da premissa de que o assim chamado lobby do batom grupo de pressão formado por deputadas, feministas e ativistas do movimento de mulheres - não pode ser
lembrado apenas como um apelido cunhado pela imprensa para, à época, em princípio, se referir, com
desdém, a mais um dos inúmeros grupos que circulavam no âmbito do Congresso Nacional durante a
elaboração da atual Constituição Federal brasileira.
Para que as futuras gerações compreendam o papel mobilizador e articulador deste lobby, é
importante fazer um exame acurado deste fenômeno, identificando-o como um instrumento de
participação jurídico-política que legou uma importante contribuição não apenas para as mulheres
brasileiras, mas, sobretudo, para a sociedade na qual estas estão inseridas e também para o próprio Estado
que, desde a promulgação da Lei Maior, fora obrigado a observar que a questão da igualdade de gênero é,
a um só tempo, direito de todos e todas como também dever e obrigação das instituições estatais.
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“20 anos de Constituição. Parabéns! Por quê?”
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No nosso entender, em que pesem as importantes contribuições de pesquisadoras como Céli
Pinto (1994) e Ana Alice Costa (2005) que, ao analisarem o movimento feminista brasileiro, se reportam
e destacam o lobby do batom, faltam pesquisas mais específicas, com dados e elementos mais detalhados,
acerca deste momento da história do constitucionalismo brasileiro em que as mulheres tomaram de
assalto o Congresso Nacional e elaboraram o que preferimos denominar de “A Carta que elas
escreveram”.1
Em face disto, é possível dizer, e este é um dos objetivos deste trabalho, que o lobby do batom se
afigura como uma importante estratégia política utilizada na história do movimento feminista e de
mulheres no Brasil, para, reivindicar, propor, pressionar e garantir direitos com vistas à chamada
igualdade de gênero no país.
Sendo assim, para uma melhor compreensão desta estratégia, convém fazer, de modo sucinto,
mas indispensável, uma rápida abordagem sobre o que nós chamamos de uma necessária e urgente
comunicação entre feminismo e Direito, a fim de compreender melhor a luta das mulheres pela cidadania.
Feminismo(s) e Direito(s)
Em Hannah Arendt (1989:331) temos a melhor compreensão e síntese da categoria analítica
chamada cidadania, qual seja, “é o direito a ter direitos”. Os feminismos, desde as primeiras vozes até
aqui, vêm desenvolvendo lutas contínuas pela conquista da cidadania para as mulheres, ou seja, pelo
reconhecimento social e estatal de que as mulheres também têm direito a ter direitos.
Reconhecendo que a cidadania, conforme Pinsk (2005:9), “não é uma definição estanque, mas
um conceito histórico”, e, sobretudo reconhecendo que o ideal de cidadania ainda hoje em voga é aquele
herdado do Século das Luzes, e, portanto, conforme Costa (1990:64) “é uma categoria masculina,
construída com base na exclusão das mulheres”, impõe-se destacar que nem mesmo a esta cidadania,
limitada e insuficiente, as mulheres de todo o mundo tiveram acesso; ficando as brasileiras, ao longo de
mais de quatro séculos da história nacional, privadas de direitos que somente eram conferidos
constitucionalmente aos homens; razão pela qual o movimento feminista deve conhecer, criticar e propor
direitos (d)e cidadania para as mulheres.
Diante disto, é válido identificar lobby do batom como um instrumento utilizado para, em dado
momento da história política brasileira, buscar garantir para mulheres um status constitucional que lhes
conferisse direitos e as reconhecesse como cidadãs.
1
Título geral de nossa tese de doutorado atualmente desenvolvida no Programa de Estudos Interdisciplinares em Mulheres,
Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia-UFBA, onde abordamos a transversalização de Gênero no Direito a
partir da perspectiva constitucional.
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Sendo assim, e para uma melhor compreensão desta temática, faz-se necessário, ainda que in
passant, falarmos acerca do Direito como um instrumento capaz de manter situações e/ou operar
mudanças em dada estrutural político-social. Deste modo, ao refletir sobre a transversalização
gênero/Direito, considero que o Direito cumpre e cumpriu, ao longo dos anos, o status quo masculino ao
reproduzir um sistema de subjugação da mulher e de outras categorias historicamente oprimidas,
exploradas e excluídas.
Trata-se de demonstrar, com âncora nas contemporâneas contribuições dos teóricos pósestruturalistas, que os velhos paradigmas que orientaram e sacralizaram o mundo jurídico
e, logicamente, o Direito enquanto ciência, assim como outros ramos do saber humano,
estão colocados em cheque; e que, ante a presente crise (do Direito, inclusive), é possível
vislumbrar e tentar contribuir para um outro modo de se conceber, de se elaborar e de se
concretizar o Direito. Destarte, talvez seja este o momento das mulheres, sobretudo as
feministas, avançarem com mais veemência nesta seara, assim como se têm feito,
acertadamente, em áreas como a História, a Literatura, a Educação, a Saúde, etc. (SILVA,
2007:02)
A importância de se compreender o Direito - seja como Ciência, seja como norma de conduta enquanto instrumento de empoderamento para as mulheres vem, ainda que tímida e esparsamente,
ganhando corpo entre pesquisadoras, juristas ou não, em todo o mundo; inclusive, com bastante ênfase,
na América Latina. Nomes como o de Alda Facio, Lorena Fries, Silvia Pimentel, Camen Campos e
Flávia Piovesan já não são desconhecidos entre pesquisadoras que trabalham no campo dos direitos e da
cidadania para as mulheres.
A discussão sobre relações de gênero e Direito se impõe como um tema importante a ser
estudado numa perspectiva feminista, não devendo se limitar somente à compilação das leis e a avaliação
de seus benefícios (ou malefícios) para as mulheres. Impõe-se que as estudiosas deste campo, feministas
ou não, se apropriem da produção teórica jurídica e auxiliem na (des)construção de categorias analíticas
que, até então, sob o manto da neutralidade e imparcialidade, serviram e servem para impor às mulheres,
sob o signo da lei, ou de sua (má) interpretação, um lugar de subalternidade política juridicamente
justificado. Sobre esta temática, nos chamam a atenção as juristas feministas Alda Facio e Lorena Fries,
(1999:140):
La organización y estructura del derecho em si mismo y sus pricipales instituiciones, es
decir su razonamiento, sus categorias, distinciones y definiciones así como su retórica,
contribuyen a fijar limites dentro de los cuales lãs personas piensan e imaginan sus vidas.
Así, el derecho define jerarquia, espacios, valores, actividades y asigna poderes
desiguales para cada uno de los sexos. El contenido de las normas jurídicas afecta la
percepcion y evaluacion que la gente hace de la realidad a si como las practicas de
elaboracion, interpretacion y aplicacion de las normas que regulan las conductas de
ambos sexos, afectan la forma em que las personas construyen su visión de cuál es su
lugar y rol a propriado em esta sociedad.
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No Brasil, de modo incipiente e, nem sempre voltado para a crítica teórica da ciência jurídica,
mas, em geral, destinado à denúncia ao androcentrismo na lei, existem alguns artigos e raríssimos livros
sobre esta temática. Silvia Pimentel, pretendendo contribuir com a discussão, produziu, em 1987, um
opúsculo intitulado A mulher e a Constituinte, uma contribuição para o debate. Neste livro a autora traz
um panorama dos direitos das mulheres no Brasil, ao longo das sete Constituições anteriores e registra
informações sobre a conquista e construção destes direitos em outros países, além de destacar a
importância da participação das mulheres no debate constituinte. Um ano após a promulgação da Lei
Maior, ainda sob o entusiasmo da experiência do lobby, Fanny Tabak escreveu A nova ordem legal mulheres na Constituinte (1989), apontando alguns avanços jurídicos decorrentes da atuação deste grupo
de pressão política.
Tais publicações, portanto, em suas conclusões, já nos davam algumas pistas da necessidade do
movimento feminista buscar, discutir e compreender permanentemente, acerca da transversalização do
gênero no Direito, e vice versa, uma vez que uma das formas de se conquistar direitos é a partir da lei e, a
partir da participação na elaboração das mesmas, afinal, no Brasil, uma fonte fundamental de obtenção de
direito é a lei.2
A compreensão da correlação entre a luta política e a construção de direitos não é algo novo para
as feministas. Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges, durante as revoluções burguesas do século
XVIII, uma na Inglaterra e outra na França, já tinham esta compreensão ao elaborarem Cartas
reivindicando para as mulheres os direitos que eram conferidos somente aos homens de seu tempo. O que
as diferenciava de outras mulheres cujas histórias também foram marcadas pela petição de direitos,
igualmente através de cartas, como foi o caso das brasileiras no processo constituinte, é o fato de, no
Brasil, na época referida, existir um movimento que se valeu de um lobby devidamente organizado, além
de haver representação política institucional de mulheres no Poder Legislativo a quem foram destinadas
as reivindicações.
Em ambos os casos as mulheres se depararam com períodos de transição democrática, de
mudanças nas leis fundamentais, e buscaram obter conquistas e (re)desenhar o modelo de Estado, visando
criar condições que as incorporasse e as respeitasse enquanto pessoas titulares de direitos. Os desfechos
2
A lei é uma das fontes de direito no Brasil, sendo importante frisar que é “uma das”, não sendo a única, pois o Direito,
consoante se sabe, não se limita à lei e, tampouco, a conquista do direito pela lei é, per si, suficiente, uma vez que muitos
direitos requerem, para sua efetivação, ações políticas que possibilitem o seu pleno exercício, como, por exemplo, o direito à
educação, à saúde, à moradia, etc. E, no caso específico das mulheres, para que possam fruir de uma vida sem violência e/ou
para que, uma vez vitimadas, possam ser receber o tratamento que a lei lhes outorga, é necessário um conjunto de ações
estatais tendentes a materializar o previsto em lei. Exemplo: criação de delegacias especializadas, juizados especializados, casa
abrigo, dentre outros instrumentos e mecanismos tendentes a concretizar o direito reclamado.
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distintos, no entanto, mostraram que as subscreventes das Cartas reivindicatórias estavam, com sua pena3
chamando a atenção da sociedade para o fato que de que as mulheres escreviam, falavam e lutavam a
partir de um lugar marcado por uma histórica ausência de direitos.
Destarte, é importante lembrar que a ausência de direitos, percebida pelas feministas, faz surgir o
feminismo. Podemos dizer que o feminismo nasce exatamente onde e quando as primeiras feministas
perceberam que as relações sociais eram historicamente marcadas pela subordinação da mulher e pela sua
exclusão dos espaços sociais e de poder. Ou seja, perceberam que a sua história era a história da ausência
de direitos. O binômio feminismo/direito, portanto, se entrelaça desde a origem das primeiras lutas das
mulheres por um lugar social.
A compreensão de que havia uma exclusão histórica que submetia, em menor ou maior grau, as
mulheres e que esta submissão era legitimada, por vários instrumentos dentre os quais leis e discursos
jurídicos, justificadores e mantenedores desta segregação, obrigou as feministas a entender que a sua ação
não poderia prescindir da defesa de leis que as incluíssem e as reconhecessem como sujeitos de direitos.
Todavia, o que as feministas talvez ainda não houvessem percebido é que de nada adiantaria propugnar
declarações e elaborarem cartas endereçadas aos homens e destinadas a instâncias políticas
exclusivamente representadas por eles.
Era necessário reivindicar a participação das mulheres nas instâncias decisórias e pressionar, de
dentro e de fora, ou seja, no interior e na fronteira, para que suas vozes fossem ouvidas e consideradas.
No Brasil de 1987/88 as condições para esta pressão estavam construídas e o lobby, portanto, fora a forma
que o feminismo encontrou para (de dentro e de fora), pressionar a fim de que os direitos das mulheres
ficassem fixados na Lei Maior.
Destarte, é acertado dizer que, desde os primórdios da história do feminismo as mulheres
buscam, insistentemente, a mudança legal como meio de inclusão social; todavia, naquele período, estas
mudanças, dadas as condições de não-organização das mulheres, não puderam sequer ser atendidas e,
muito menos, implementadas.
No entanto, vale destacar que, desde este período as mulheres já sabiam que no Estado moderno,
herdeiro do liberalismo e proclamador da legalidade, a lei era uma fonte de direito, não obstante esta não
fosse como até hoje não o é, a única (e em muitos casos não é a melhor) fonte de direito.4
3
No Brasil, a pena significando a tinta e na França, significando condenação à morte.
Ao falarmos em fontes, do e no direito, estamos apontando o lugar de onde ou o modo como surgem as normas jurídicas e os
princípios que regem o Estado. No campo teórico, temos que existem dois tipos de fontes jurídicas fundamentais: as diretas e
as indiretas, ou formais e informais. Não obstante não haja consenso acerca desta divisão, majoritariamente os estudiosos
exemplificam a lei como sendo o protótipo da fonte direta do direito e apontam a doutrina, a jurisprudência e os costumes
como fontes indiretas. Investigar a fonte de uma regra jurídica significa conhecer o ponto de onde ela saiu, o contexto, a
ebulição social que a fez emergir. No Brasil, a principal fonte de direitos é a lei. E, dentre as leis, a que tem maior destaque,
4
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Todavia, o feminismo enquanto movimento social interessado em mudança nas relações sociais
não pode desprezar o importante papel da legislação na construção da cidadania de grupos historicamente
excluídos, como as mulheres, por exemplo.
Por outro lado, as discussões e advertências que faço acerca das possibilidades, e limites que a
legislação apresenta em termos de inclusão, igualdade e equidade na esfera social, devo dizer que, para
fins de fortalecimento da luta feminista em prol de uma sociedade onde as mulheres possam ser
respeitadas em suas diferenças e incluídas nos espaços sociais de poder, faz-se necessário o estudo do
direito a partir de uma perspectiva de gênero e o estudo do gênero a partir de uma perspectiva de
construção de direitos, haja vista que, se o Direito rege as relações estabelecidas na sociedade, então não é
possível que estudiosos das relações sociais ou mesmo elaboradores e executores de leis possam seguir
mantendo metade da população excluída ou, quando muito, mínima ou desproporcionalmente incluída
nas esferas institucionais e sociais de poder.
Sendo assim, é importante destacar o papel do direito para a luta feminista, uma vez que, a luta
das mulheres pode ser retratada como a luta pelo seu reconhecimento enquanto pessoa, e, em face disto,
pela sua afirmação enquanto pessoa titular de direitos. Razão porque a luta das mulheres é, de fato, para
usar uma expressão de Juliet Mitchel (1967): “a revolução mais longa”.
O instrumento fundante do Estado democrático, em termos de direitos, é a Constituição Federal.
E, no nosso caso, é esta uma Carta Política que, tendo sito escrita a diversas mãos, há vinte anos atrás,
inaugurou, no território brasileiro, um estado de expectativa e busca por melhores condições de vida,
também, para as mulheres.
A Constituição Federal como marco histórico
Em Norberto Bobbio (1992:5) os direitos humanos “por mais fundamentais que sejam, são
direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstancias, caracterizadas por lutas(...)” e, exatamente
por serem históricos, não surgiram “de uma vez e nem de uma vez por todas.” No caso particular das
mulheres, a história da conquista de seus direitos, no mundo e no Brasil, é pontilhada por lutas diversas,
onde se registram avanços e recuos, num processo impulsionado pelo movimento feminista que, como
sabemos, não é um movimento retilíneo e uniforme, mas recheado de complexas discussões, variadas
podendo, inclusive, invalidar as outras, é a Constituição Federal. Daí porque a importância de haver, em épocas de elaboração
ou de alteração desta norma, participação social organizada capaz de influenciar o seu conteúdo e de, a partir daí, proporcionar
novos tipos de relações sociais entre pessoas e grupos.
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demandas com dinâmicas difíceis de ser acompanhadas e compreendidas “por quem não vivencia suas
entranhas.” (COSTA, 2005:9).
De idêntico modo, a experiência constitucionalista brasileira também não constitui um
movimento retilíneo, pois faz parte de um processo político cheio de incongruências e pródigo em
exclusão de mulheres e de outros grupos historicamente discriminados.
Ao longo de mais de
500 anos, o Brasil já elaborou oito Constituições. Destas, quatro foram impostas pelos governantes e
quatro foram votadas por assembléias constituintes. No entanto, até 1986, apenas uma mulher havia sido
eleita deputada constituinte: a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz, que em 1934 atuou junto ao
parlamento nacional na elaboração da Lei Maior. Todavia, pelas próprias condições da época, teve uma
participação acanhada, quase insignificante, sem apoio e/ou ampla mobilização de movimentos feministas
e/ou de mulheres. Assim, em que pese à conquista do direito ao voto obtido em 1932, e recepcionado e
ampliado pela Constituição de 1934, não se podem destacar avanços em termos de direitos da mulher
nesta norma superior, tampouco nas demais que a sucederam.
Em face disto, até a promulgação da atual Constituição brasileira, as leis no Brasil (fossem
constitucionais ou infraconstitucionais), sempre tiveram um caráter flagrantemente masculino, reforçando
preconceitos e gerando discriminações contra a mulher. A Constituição Federal vigente, significou, no
plano jurídico nacional, um marco legislativo no tocante aos direitos da mulher e à ampliação de sua
cidadania. Esta conquista, todavia, deve ser creditada, principalmente, à articulação das próprias mulheres
na Assembléia Nacional Constituinte; que, através das 26 deputadas eleitas, e, sobretudo, através da
pressão exercida pelo movimento feminista, conseguiu, mobilizando o Brasil de norte a sul e de leste a
oeste, apresentar emendas populares capazes de eliminar séculos de subordinação legal das mulheres aos
homens e sua exclusão das instâncias de poder.
O legado jus-político do lobby do batom
Com atuação junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM, as mulheres lançaram,
em 1985, a campanha Mulher e Constituinte, cujo lema era: "Constituinte prá valer tem que ter palavra de
mulher". Esta campanha permitiu que discussões e debates acontecessem, durante meses, por todo o país,
resultando na elaboração da "Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes", entregue ao Congresso
Nacional no dia 26 de agosto de 1986, pelas mãos de mais de mil mulheres, numa atuação que, conforme
já fora dito acima, no processo constituinte ficou publicamente caracterizada como o "lobby do batom".
Esta carta, sistematizadora de reivindicações posteriormente transformados em direitos na
Constituição Federal, foi o símbolo de todo esse processo, talvez um dos maiores na história do
movimento de mulheres brasileiro. No entanto, tudo isto somente foi possível porque o movimento
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feminista brasileiro, que participou ativamente das lutas pela redemocratização do país, estava
significativamente maduro em termos de interlocução dos grupos entre si, destes os partidos políticos,
notadamente os de esquerda, e também com o próprio Estado, de quem já vinha se aproximando em face
da criação dos conselhos de direitos da mulher, institucionalizados desde 1982 em alguns estados e
capitais. (COSTA, 2005:17).
A velha questão da autonomia total do movimento em face do Estado cedia lugar (porém não
sem resistência) à compreensão de que, sem este (o Estado), o feminismo não teria como realizar medidas
que levassem a transformação da condição feminina, haja vista ser característica e monopólio do Estado
moderno os mecanismos de coerção (através das leis), e de implementação de políticas públicas (medidas
socioeconômicas), capazes de regulamentar as relações na sociedade e de possibilitar transformações
culturais emancipatórias, inclusive, em favor das mulheres.
Sendo assim, o movimento feminista, recém saído de uma polêmica e agitada discussão
realizada durante o VII Encontro Nacional Feminista, ocorrido em 1985 em Belo Horizonte e, já não
sendo nem tão “bem comportado” nem tão “radical” (COSTA, 2005:17) optou por, sobretudo em parceira
com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM, buscar construir, junto com o Estado, políticas
públicas para as mulheres. A participação no processo constituinte, portanto, sob a organização do
CNDM, comprova a nova conduta do movimento feminista e atesta a seqüência e conseqüência deste
processo dinâmico de maturidade política.
Para a cientista política Celi Pinto (1994:263) “o movimento (feminista) via CNDM teve
decisiva atuação no processo constituinte de 1987-88, conseguindo ganhos de alto significado”.
Juridicamente falando, as mulheres obtiveram diversas conquistas. A Constituição Federal acolheu
diversas demandas do movimento de mulheres, a começar pela garantia do princípio da igualdade
jurídica, que trouxe importantes desdobramentos e influenciou a interpretação de leis e outras normas
infraconstitucionais.
Alem das próprias mulheres, crianças, adolescentes, população negra, pessoas com deficiência,
idosos e presidiários tiveram direitos garantidos, influenciados pelo lobby do batom. A atual Constituição
graças à atuação exemplar deste lobby, é considerada umas das mais avançadas do mundo. No entanto,
questões como o direito ao aborto, a situação das domésticas e o reconhecimento do direito à livre
expressão sexual para os segmentos de orientação sexual pouco ortodoxo, como lésbicas, gays, bissexuais
e transgêneros não foram contemplados neste período e seguem prejudicados pela inadimplência estatal.
Registramos muitas demandas do movimento de mulheres e feministas atendidas na agenda
pública estatal. Temas que anteriormente eram tratados apenas pelas mulheres foram incorporados às
discussões nacionais. A criação de uma Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, em 2003; a
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elaboração de um Plano Nacional de Políticas para as mulheres e a realização de duas grandes
Conferências Nacionais, são conquistas cujos alicerces, direta ou indiretamente, foram traçados pelo
lobby do batom, há duas décadas atrás.
Não obstante isto, pouco progresso foi alcançado em termos de espaços de poder para as
mulheres nas três esferas do Estado nacional. Em quaisquer das funções estatais, seja ela, legislativa,
executiva ou judiciária, a presença das mulheres ainda segue desproporcional ao seu número em termos
populacional, eleitoral e educacional.
Não resta dúvida de que depois do lobby do batom o modo como mulheres fazem movimento
social e político neste país nunca mais foi o mesmo. É fato incontestável que mulheres marcaram, de
forma indelével, a Constituição Federal de 1988, uma vez que cerca de 80% de suas reivindicações foram
incorporadas ao texto constitucional e convertidas em direitos fundamentais. Em face da pressão exercida
pela organização e mobilização das mulheres, a Constituição estabeleceu, em seu artigo 5º, inciso I, que
"homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações", e no inciso XLI deste mesmo artigo, esclarece
que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais".
O princípio constitucional da igualdade foi contemplado também no âmbito das relações
domésticas e familiares, trazendo conseqüências no plano da legislação infraconstitucional, em especial
nos campos do direito da família e penal. Assim, as mulheres conseguiram garantir, no artigo 226 § 5º da
Lei Maior que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher". Ou seja, pelo menos juridicamente, o homem já não é, por presunção social, o
chefe de toda família.
Mais especificamente em relação ao tema da violência, a principal conquista jurídica das
mulheres foi à inclusão do § 8º no artigo 226, estabelecendo que "O Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito
de suas relações". Sem dúvida nenhuma este dispositivo constitucional significou um inegável avanço no
desvelamento do tabu da violência doméstica, reconhecendo que o Estado deveria coibir a violência na
constância das relações familiares. Os frutos desta prescrição ainda hoje estão sendo aprimorados,
mediante a recente aprovação, pelo Congresso Nacional, por exemplo, da Lei Maria da Penha, que
criminaliza os atos de violência nas relações familiares e que, neste ano, fez seu primeiro aniversário.
A Constituição de 1988, pode-se dizer, está em plena sintonia com as convenções internacionais
de proteção aos direitos humanos e, com base nos princípios de igualdade, não-discriminação e nãoviolência, sendo paradigma para toda a legislação infraconstitucional civil, penal, trabalhista, dentre
outras; determinando, ainda que os poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) atuem
consoante esta orientação.
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O movimento feminista e de mulheres hoje no Brasil sabe que os direitos fundamentais de todos
os brasileiros e brasileiras, bem como os seus deveres, estão inscritos na Lei Maior e, a partir dela,
tornam-se obrigatórias as suas observâncias e implementação por todos os entes e agentes estatais de
todos os poderes da nação. É a Constituição Federal o norte para a ação de autoridades e de particulares, é
dela que emanam os comandos para a elaboração de políticas, de leis e de decisões judiciais. Leis
infraconstitucionais e tratados internacionais assinados pelo Brasil devem obediência a esta Carta
Política, o que lhe confere ainda mais relevo em termos de fonte para toda e qualquer reivindicação
jurídica feita em âmbito nacional.
Sabe-se que até a promulgação da atual Constituição, não havia no Brasil, exceto em nível de
exegese, de interpretação, a figura do tratamento isonômico entre homens e mulheres, o que deixava as
mulheres ao alvedrio do “eu penso, eu acho” por parte das autoridades constituídas. Não existia,
consoante há agora, possibilidade de discriminação positiva em favor das mulheres nos termos atuais
Constituição. Ou seja, a atual Carta Política inaugura no plano jurídico nacional um novo horizonte para a
vida em sociedade.
Por outro lado, é consabido, por todas e todos, que ter direitos na lei não significa o usufruto
automático dos mesmos. Todavia, a previsão legal constitui importante conquista, uma vez que energiza a
luta e acarreta obrigatoriedade de observância pelo Estado e pelos particulares, possibilitando sua
cobrança e efetividade. O movimento feminista nestes últimos vinte anos soube, acertadamente,
conquistar direitos para as mulheres, monitorar o cumprimento dos mesmos e exigir políticas públicas
tendentes a efetuá-los e/ou aprimorá-los.
Assim sendo, no Brasil, desde a histórica, ousada e paradigmática atuação do lobby do batom é
possível manter acesa a bandeira da igualdade de gênero pugnada historicamente por mulheres e homens
comprometidos com uma sociedade mais igualitária política e juridicamente falando.
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