FILOSOFIA E FORMAÇÃO HUMANA A CONSTELAÇÃO

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Filosofia e formação humana:
a constelação e o desmoronamento
da identidade em
Theodor Adorno
Philosophy and human formation: the constellation
and the collapse of identity in Theodor Adorno
Resumo O artigo visa interrogar se a Filosofia, sob a perspectiva
da obra de Theodor Adorno, pode constituir-se em elemento de
enfrentamento do modelo semiformativo que vigora na educação contemporânea. Inicialmente, analisa a complexificação das
relações sociais e suas profundas mudanças, fruto do desenvolvimento científico-tecnológico no capitalismo hodierno. Em seguida, discute aspectos da educação atual, apoiado em conceitos
como indústria cultural, semiformação, reificação, fetiche, teoria,
negatividade e constelação. Assim, busca, na filosofia adorniana,
chaves de leitura que auxiliem a intervir, desde o ponto de vista
da teoria, no complexo mundo da educação e de suas conexões
com a realidade social. Acentua-se o poder da teoria na forma
de crítica, cuja pretensão maior é a transformação concreta no
plano social, abordado com base em categorias filosóficas – neste sentido, teoria do conhecimento e teoria da sociedade estão
entrelaçadas. Em oposição ao modelo idealista, que elege o conceito como produtor de identidade, Adorno propõe, como tarefa
da dialética negativa, um voltar-se contra a identidade entre pensamento e pensado, pressuposta na totalidade, visando, então,
a não identidade entre coisa e pensamento, conceito e objeto.
O propósito é alcançar uma racionalidade que permita manter a
diferença dos objetos e que não caia no conhecimento abstrato,
comum ao pensamento da identidade. No campo especificamente educativo, propõe-se uma dialética sujeito-objeto, na qual o
sujeito não busca subordinar o objeto, identificando-o com um
conceito universal, mas entrega-se à natureza deste, salvando sua
própria diferença, como reconhecimento da mútua mediação entre
as partes. Em tal concepção educacional, os significados não são
definidos de antemão, mas estão abertos ao que Adorno chama de
constelação própria do objeto.
Palavras-chave Formação humana; Constelação; Identidade;
Filosofia; Theodor Adorno.
Abstract This paper aims at questioning whether Philosophy,
observed from the point of view of Theodor Adorno’s works,
can be an instrument for the confrontation of the pseudo-culture
(Halbbildung) which is dominant in contemporary education. As a
first step, it analyzes how social relations have been made com-
Belkis Souza Bandeira
Universidade Federal
de Pelotas (UFPEL)
[email protected]
Avelino da Rosa Oliveira
Universidade Federal
de Pelotas (UFPEL)
[email protected]
plex and their deep changes derived from the
scientific and technological development of
contemporary capitalism. Then, it discusses
aspects of the present education, grounded
on concepts such as culture industry, pseudo-culture (Halbbildung), reification, fetish,
theory, negativity, and constellation. Therefore, it seeks reading keys in the Adornian Philosophy that enable us to intervene, from the
standpoint of theory, in the complex world
of education and its connections with social
reality. The paper also stresses the power of
theory, in the form of a critique, whose major
intent is the concrete transformation of the
social field, based on philosophical categories
– in that sense, the theories of Epistemology
and Social Philosophy are interwoven. In opposition to the idealistic model that favors
concept as the identity producer, Adorno
proposes that the negative dialectics must
turn from the identity between concept and
object, presupposed in totality, thus aiming at the non-identity between stuff and
thought, concept and object. The purpose
is to reach a rationality that allows keeping
the objects’ differences and leads not to the
abstract knowledge, which is so common to
the thought of identity. In the particular field
of education, the proposal is a subject-object
dialectics in which the subject does not seek
to subordinate the object by identifying it to
any universal concept, but accepts its nature,
saving its own difference as recognition of the
mutual mediation between parts. In such an
educational approach, meanings are not previously defined but rather are open to what
Adorno calls the object’s own constellation.
Key-words Bildung; Constellation; Identity;
Philosophy; Theodor Adorno.
Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um
homem caminhava sozinho pela estrada real
que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. À sua frente, não enxergava
nem mesmo o solo negro e somente sentia o
imenso horizonte achatado através do sopro
34
do vento de março, rajadas largas como sobre
um mar, geladas por terem varrido léguas de
pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se
reta como um quebra-mar em meio à cerração
ofuscante das trevas.
Etienne – personagem de Germinal, de
Émile Zola1 –, assolado pela Grande Depressão
capitalista, em meados do século XIX, anda a
esmo. Procura trabalho em uma França em
aguda crise. Embrenha-se na noite, enxotado
que fora do abrigo improvisado onde tentara
refugiar-se enquanto andava, de fábrica em
fábrica, a pedir trabalho. As últimas centelhas
de esperança, pouco a pouco, extinguem-se
como fogo que não tem mais o que consumir.
Assim, o ponto de arranque da trama, tanto
sob a ótica do simbolismo artístico-literário
quanto da ambiência física descrita, é a mais
completa escuridão.
O jovem, então, avista pequenos fogos
ao longe, deixa a estrada reta e ganha um atalho da cor do breu; chega a uma mina de carvão
e inicia uma conversa trivial com o velho carroceiro encarregado do ir e vir dos vagonetes de
minério. Enquanto se aquece perto do fogo e
de iguais, ouve o velho que, com a mão estendida, como num displicente fiat!, lentamente
aponta e destrinça tudo o que há e o que tem
sucedido nos arredores e ao longe da mina.
Agora Etienne dominava toda a região.
As trevas continuavam profundas, mas a mão
do velho como que as povoara de grandes misérias, que o jovem, inconscientemente, sentia naquela hora à sua volta, por toda parte,
na amplidão sem termo. Não era um grito de
fome que rolava com o vento de março através
destes campos nus? As rajadas do vento haviam
aumentado e pareciam trazer consigo a morte
Para a escrita do presente texto, tomamos impulso
em Germinal (ZOLA, 1972), romance que muitos
consideram a obra máxima de Émile Zola. Por tratarse de um texto literário, optamos por dispensar
tratamento particular às citações que daí fazemos.
A fim de não subjugar a expressividade literária aos
cânones da normatização, apenas destacamos com
itálico as transcrições literais.
1
Impulso, Piracicaba • 24(60), 33-44, maio-ago. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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do trabalho, uma escassez que mataria muitos
homens. E, com os olhos errando de um ponto
a outro, ele se esforçava por furar as sombras,
atormentado pelo desejo e pelo medo de ver.
Neste ponto, o naturalismo literário de
Émile Zola parece vir do século XIX encontrar
os anseios de muitos de nós, educadores do
século XXI. Na sociedade contemporânea, a
formação humana é obnubilada pela velocidade simplificadora. Desejamos, então, furar as
sombras e ver novos horizontes, mas assusta-nos e põe-nos imóveis o caminho a percorrer. Seremos capazes de uma crítica profundamente radical ao modelo semiformativo
disseminado por toda a estrutura social nas
micro e macrorrelações? Ainda temos alguma
âncora teórica que possibilite mais do que a
simples fixação aos fragmentos? Suspeitamos
que sim. Pensamos que certo modo de fazer
Filosofia pode ser a mão que povoa as trevas,
ainda que seja das misérias que a sociedade
proporciona e sentimos à nossa volta. Desta hipótese, portanto, emerge o propósito
deste texto – queremos interrogar se a Filosofia, se a elaboração de conceitos pelo método de constelações,2 sob a perspectiva da
obra de Theodor Adorno, pode constituir-se
em um elemento de enfrentamento do modelo semiformativo que vigora na educação
contemporânea, entendendo-se a educação
A constelação é uma categoria central para que
se entenda o método por meio do qual vai sendo
delineado, ao longo da obra adorniana, o processo
de conhecimento. Eduardo Soares Neves Silva,
em sua tese de doutoramento, oferece-nos uma
excelente linha de compreensão desta categoria,
ao mesmo tempo em que mostra sua incidência ao
longo de toda obra adorniana, ao constatar que são
raros os textos em que o termo constelação e seus
correlatos não apareçam. Segundo o autor, se a
busca for feita apenas pelos termos Konstellation e
Constellation, excluindo os termos correlatos, são
encontradas 222 ocorrências, espalhadas por 98
textos independentes na obra reunida. Além disso,
foram também encontradas 21 ocorrências em 15
textos independentes, em três volumes selecionados
do espólio, e oito ocorrências em cinco das cartas
enviadas por Adorno a Benjamin. O corpus examinado
pelo autor totaliza 251 ocorrências em 118 textos
(SILVA, 2006, p. 115).
2
como processo formativo por meio do qual o
homem desenvolve os significados que orientam suas ações no mundo, suas relações com
o outro, com a sociedade e com a natureza,
como processo de produção de cultura, em
sentido amplo.
A emergência dos problemas da educação, que ainda clamam por solução, remete-nos a um mergulho profundo na investigação
dos processos pelos quais essa sociedade
constituiu-se e dos meios que a sustentam,
pois os processos educacionais não se restringem ao momento da instrução, mas transcendem-no, e a falência dos processos formativos
é um fenômeno não apenas escolar, senão
que atinge outras dimensões das relações sociais, uma vez que a esfera do educativo não
se limita às instituições de ensino.
A complexificação das relações sociais e
as profundas mudanças, frutos do desenvolvimento científico-tecnológico no capitalismo
hodierno, podem ser percebidas nos mais diversos âmbitos da vida humana. Em uma espécie de glosa à Magna moralia aristotélica, Adorno escreve a Minima moralia (ADORNO, 2008),
constatando a crise de valores da sociedade
contemporânea e a racionalidade alicerçada
no valor de troca, uma vez que o mercado é o
indexador das mais diversas esferas da vida humana, inclusive de seus produtos simbólicos.
Um olhar mais atento à realidade que
nos circunda detecta que grande parte dos
jovens hoje tem algum aparelho ligado na
maior parte do tempo (telefone celular, computador, televisão) e sua comunicação com
os demais é feita, majoritariamente, mediada por tecnologias, seja em “conversas” por
mensagens no celular, MSN, Skype, Facebook
ou Twitter, constituindo um universo no qual
crianças e jovens em formação encontram-se
hipnoticamente conectados a equipamentos
eletrônicos a maior parte de seu tempo, abandonando a possibilidade formativa do lúdico,
do brincar e do relacionar-se com seus iguais
de forma real e não apenas virtual.
A indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), como a própria expressão já indica, atua como uma extensão para o campo da
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cultura dos princípios de produção que, até
então, eram próprios da economia, pois ligados a imperativos postos pelo mercado, mas
que, ao mesmo tempo, atuam como legitimação de um padrão de dominação e integração.
É a expressão dissimulada da falência dos princípios de uma educação formadora, obliterando as possibilidades emancipatórias inerentes
à cultura, compreendida como manifestação
humana autêntica, fruto do processo de interação do homem com a sociedade em que
vive, uma vez que enfraquece a capacidade
de o indivíduo refletir sobre o mundo que o
cerca. Não dispondo de tempo para assimilar
a grande quantidade de estímulos com que
é bombardeado – e por sua fugacidade –, o
sujeito vê-se impossibilitado de assimilá-los e
deles apropriar-se na forma de conhecimento
acumulado, como dá-se pela experiência,3 restando apenas a vivência efêmera dos acontecimentos, uma vez que a percepção e o usufruto autônomo dos bens culturais, assim como a
possibilidade de incorporá-los como conhecimento vivido e passível de ser transmitido às
outras gerações, ficam-lhe coarctados.
Assim, para tratar da educação entendida como mercadoria e saturada pelos valores
da mídia, empregamos o que Adorno denomina processo de semiformação (Halbbildung),4
A posição de Adorno sobre o tema da experiência é
muito próxima da defendida por Benjamin, quando
diagnostica a perda da tradição cultural que, esvaziada
de seus conteúdos, despotencializa a possibilidade
da experiência, seja pela própria dinâmica na qual se
sustenta a sociedade capitalista, ou seja, ainda, fruto
de situações dramáticas, como a guerra que, para o
filósofo, seria um momento em que a experiência
estaria bloqueada, uma vez que o choque sofrido seria
de tal forma brutal que impossibilitaria a possibilidade
de realizar esta experiência. Na obra de Adorno, o
tema da experiência é recorrente. Assim, para não
fugir do foco a que se propõe este artigo, optamos
por não discutir as várias nuances que o conceito
ganha nas diversas obras de Adorno e o tomamos no
sentido apresentado por Maar (2003).
4
Categoria proposta por Theodor Adorno no ensaio
Teoria da semiformação (ADORNO, 2010), refere-se
à forma parcial e fragmentada como a formação
cultural é conduzida na sociedade contemporânea.
O conceito Halbbildung pode ser traduzido tanto por
semicultura quanto por semiformação, dependendo
do contexto. Zuin, conforme nota explicativa, aponta
para uma sutil diferença no processo de danificação
3
36
refletindo sobre os aspectos subjetivos da
indústria cultural e seus reflexos nas práticas
educacionais.
Adorno inicia o texto Teoria da semiformação (2010, p. 7-40), elaborado em 1959,
analisando o que define como colapso da
formação cultural. Defende que a cultura tem
um duplo caráter: ela é, ao mesmo tempo,
autonomia, liberdade do sujeito e adaptação,
conformação à vida real. De uma parte, na
tradição da filosofia alemã, os processos formativos carregam a exigência de formar seres
humanos amparados na ideia de autonomia e
emancipação dos sujeitos, mas o fracasso do
ideal de uma sociedade racional, igualitária
e justa, proposta pela cultura burguesa, permitiu que esta se satisfizesse em si mesma,
em uma hipóstase do espírito e da realidade,
convertendo-se em valor em si, dissociando-se da produção cultural da sociedade. Com
o desenvolvimento do capitalismo monopolista do século XX e a revolução científico-tecnológica, uma nova cultura vai se implantando e os produtos culturais deixam de ser
valores de uso para tornarem-se valores de
troca – são incluídos na lógica mercadológica
da indústria. A formação cultural, então, passa a ser entendida como conformação com
a realidade, privilegiando apenas o aspecto adaptativo, reduzindo a possibilidade do
pensamento autônomo e da reflexão sobre a
realidade. Quando a produção simbólica, própria do processo da cultura, distancia-se do
saber popular e aproxima-se dos interesses
do mercado, convertida em mercadoria pela
indústria cultural, encontram-se as bases para
a consolidação do que, para Adorno, constitui
o processo de semiformação. A semiformação, ao contrário do ideal da formação, que
pretende ser um processo de emancipação
da produção simbólica (semicultura), dos malefícios
à dimensão subjetiva oriundos da conversão da
formação em semiformação (ZUIN, 1999, p. 55). No
presente trabalho optamos por utilizar semiformação,
conforme a tradução revista, publicada na coletânea
organizada por Pucci, Zuin e Lastória (2010), intitulada
Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de
pesquisa, com exceção dos casos nos quais é feita
citação de autores que utilizam semicultura como
tradução mais adequada.
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dos indivíduos como sujeitos da práxis social,
produz a acomodação desses sujeitos à situação a que estão submetidos. “A elevação do
padrão de vida das classes inferiores, materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito.
Sua verdadeira aspiração é a negação da reificação” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14).
Os espaços ocupados por nossos modelos educacionais e cultural-formativos convencionais tornaram-se ferramentas inadequadas
para alcançar os objetivos a que se vêm propondo e, cada vez mais, perdem terreno para
as novas tecnologias e para a “virtualização”,
nas quais se incluem as próprias relações humanas. A ideia de uma educação formadora
está sendo considerada obsoleta em virtude
de seu anacronismo em uma época voltada
ao consumo material e ao espetáculo midiático, pois tanto a mídia informativa quanto a
de entretenimento visam apenas ao público
consumidor. Com a ideologia da facilidade,
pela rapidez com que as mensagens podem
ser captadas, elas confiscam a possibilidade
de reflexão sobre as informações. Tanto a
cultura quanto a educação são tragadas pelo
movimento simbiótico entre mídia e indústria
cultural, e a educação volta-se hoje à habilitação pragmática e à adaptação dos indivíduos
às contingências do mercado. Educação e cultura são, pois, convertidas, nas palavras de
Theodor Adorno, em semiformação, a qual
se constitui no resultado de um processo sistemático de dominação da formação cultural
pelos mecanismos político-econômicos dominantes. “A semiformação é o espírito conquistado pelo caráter de fetiche da mercadoria”
(ADORNO, 2010, p. 25).
Este paradigma identifica-se com a figura do especialista – o indivíduo que crê na
infalibilidade e na certeza de seu fazer, no
qual ele acredita que predominam os valores
da ciência, a neutralidade, a imparcialidade e
a objetividade – ou na cultura, por meio dos
valores da mídia, a veicular e reforçar o cultivo
de uma ética na qual os ideais predominantes
são o fetichismo da juventude, os cuidados
com o corpo, mas nenhum ideal de espírito.
“Vivemos uma época do pós-dever, sem obrigações ou sanções morais. Sociedades ‘pós-moralistas’, elas celebram o puro presente,
estimulando a gratificação imediata de desejos e pulsões” (MATOS, 2006, p. 19).
A filosofia é vista por Adorno em uma
perspectiva negativa. Ele enfrenta, não apenas a insuficiência de sua própria realização
diante da realidade social, mas, em sua autorreflexão, percebe sua própria contribuição
para a injustiça e o sofrimento. Esta dialética
negativa,5 como sua autoconsciência, é o reconhecimento de sua necessidade de reelaboração, não só nos termos de seu estatuto, mas
em sua relação com a realidade concreta. Uma
filosofia transformada acentua o poder da teoria na forma de crítica, cuja pretensão maior é
a transformação concreta no plano do social,
abordado nas categorias filosóficas e, neste
sentido, teoria do conhecimento e teoria da
sociedade estão entrelaçadas em seu interior.
As qualidades que a tradicional crítica do conhecimento elimina do objeto e credita ao sujeito devem-se,
na experiência subjetiva, à primazia
do objeto; […]. Sua herança coube a
uma crítica da experiência que alcança até seu próprio condicionamento
histórico e, em última análise, social.
Pois a sociedade é imanente à experiência e não allos genos. Somente a
tomada de consciência do social proporciona ao conhecimento a objetividade que ele perde por descuido
enquanto obedece às forças sociais
que o governam, sem refletir sobre
elas. Crítica da sociedade é crítica do
conhecimento, e vice-versa. (ADORNO, 1995, p. 189).
5
No contexto deste artigo, a utilização da expressão
dialética negativa, com letras minúsculas, refere-se
à teoria adorniana em seu sentido amplo. De acordo
com Buck-Morss (1981), há um eixo norteador do
conjunto da obra adorniana: seu estudo sobre
Husserl e a palestra Atualidade da Filosofia (1997)
são escritos-chave para introduzir os conceitos que
vão ser desenvolvidos ao longo de toda a sua obra,
constituindo a dialética negativa. A obra Dialética
Negativa será referida com letras maiúsculas.
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O método negativo desenvolvido por
Adorno propõe a exposição da negatividade
intrínseca da realidade, levando-a ao extremo, na esperança de que esta exposição dura
das contradições sociais auxilie os sujeitos a
conhecer o real tal qual é e, assim, por meio
da crítica, refletir sobre esse modelo, com o
intuito de modificá-lo. A dialética negativa,
que constitui o que se pode denominar núcleo filosófico da obra adorniana, representa
a tentativa do filósofo alemão de jogar o conceito contra o próprio conceito, com o intuito de ultrapassá-lo e, deste modo, exprimir o
que não era exprimível no processo de conhecimento baseado na identidade.
A Dialética Negativa foi concebida, em
grande parte, a partir de três conferências
apresentadas no Collège de France, em Paris,
no início do ano de 1961, e posteriormente
apresentadas e discutidas nos cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt ao longo daquela década. A obra só será
publicada em 1966, após longo período de
maturação. Adorno introduz a Dialética Negativa com a constatação de que “[a] filosofia,
que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se
viva porque se perdeu o instante de sua realização” (ADORNO, 2009, p. 11). Retomando a
assertiva marxiana na 11ª Tese sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2012, p. 536), de que os
filósofos apenas interpretaram o mundo de
diferentes maneiras e havia chegado a hora
de transformá-lo, conclui que esta transformação historicamente fracassou, obrigando a
filosofia a criticar a si mesma sem compaixão.
E nessa crítica reside sua atualidade. A modernidade acenou com a possibilidade de, pelo
adequado uso da razão, construir uma sociedade mais humana e justa, mas a promessa
não se cumpriu. Resta então à filosofia, pela
crítica, restaurar essa promessa.
Se, na avaliação marxiana, a filosofia tornou-se insuficiente, pois sua meta está além
do próprio filosofar, do conceito, mais do que
nunca ela se torna necessária como possibilidade de ir além de si mesma, além do conceito. Seu maior equívoco, segundo esta reflexão, é ter-se tornado um fim em si mesma.
38
O fracasso da revolução pretendida por Marx
impõe um não previsto retorno da filosofia. A
autocrítica da razão, conforme propõe Adorno, não abandona a razão, não pretende eliminá-la ou hipostasiá-la; sua filosofia é denúncia, desmascaramento, possibilitando, assim,
a realização de sua promessa.
Christoph Türcke argumenta que é função do trabalho filosófico revelar suas contradições, encontrando a desejada forma racional, pois “a razão contém tanto a promessa
quanto a exigência de sua forma adequada. A
filosofia nasceu a serviço desta exigência, assumindo o papel de advogado da promessa da
razão” (TÜRCKE, 2004, p. 43). Essa tarefa talvez seja comparável à de Sísifo,6 uma vez que,
ao longo da história, a contradição da promessa da razão mostra-se incontestável, na forma
de guerras, massacres étnicos, destruição dos
recursos naturais que garantem a subsistência
humana, entre outras barbáries. A despeito de
tudo, no entanto, é tarefa da filosofia a defesa
incondicional daquele compromisso.
Filosofia que não pretende realizar-se, é inócua, não leva a sério sua
própria ocupação, não se lembra
para o que ela nasceu. Ao assumir
sua tarefa, entretanto, ela tem de
perceber sua incapacidade de se
realizar por força própria, pois sua
realização seria muito mais do que
um processo espiritual, mental ou
cerebral, seria um processo social
no campo aberto da história. (TÜRCKE, 2004, p. 45).
A tarefa da filosofia, então, só será efetivada plenamente quando a própria estrutura
social fornecer as bases para uma sociedade
justa, por mais longínqua que esta realização
nos pareça. Decerto, as formas irracionais estão sempre presentes na história: em certos
momentos, irrompendo de modo deslavado
Personagem da mitologia grega que desafiou os
deuses e, quando capturado, sofreu uma punição:
para toda eternidade ele teria de empurrar uma pedra
de uma montanha até o topo, a pedra então rolaria
para baixo e ele teria que recomeçar.
6
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e atrevido, em seu pleno vigor; por vezes,
camuflando-se sorrateiramente sob a pele de
imaculada justiça; e, mais amiúde, mostrando-se como única realidade possível, diante da
qual nada mais resta senão resignar-se. No
entanto, o processo de autorreflexão da filosofia não permite ocultamentos. Deste modo,
é forçoso admitir que o fato de a promessa
da razão não se ter realizado, o fato de não
termos alcançado a desejada forma racional,
como insiste Adorno, por si só justifica a necessidade de sua permanência, pois, em uma
sociedade despida de contradições, a filosofia
seria supérflua.7 Mas não se suponha que a filosofia que empreende tal busca esteja imbuída de um projeto “suicida”; trata-se, isto sim,
da compreensão de sua finitude em função da
eliminação de suas causas. A formulação da
teoria, assim, faz parte de um processo social,
dentro e a partir do qual ela se faz autorreflexão crítica. Essa é, pois, a linha de raciocínio a
partir da qual vimos buscando, no interior da
filosofia adorniana, chaves de leitura que nos
auxiliem a intervir, desde o ponto de vista da
teoria, no complexo mundo da educação e de
suas conexões com a realidade social.
O alvo da crítica adorniana é a filosofia
idealista e seu intento de estabelecer a identidade entre pensamento e realidade material,
uma vez que o desvelamento da própria realidade social, como atitude crítica, demonstrava o fracasso desse projeto e a proeminência
da realidade sobre o pensamento. Adorno,
portanto, rejeita a dialética do idealismo, pois
esta pretensa reconciliação em um sistema
fechado encobre a injustiça sob o invólucro
do pensamento. Em oposição ao modelo
idealista, que atribuía ao conceito a força
de produção da identidade, Adorno propõe,
como tarefa da dialética negativa, um voltar-se contra a identidade entre pensamento e
pensado, pressuposta na totalidade idealista,
visando, então, à não identidade entre coisa
e pensamento, conceito e objeto. Neste sen Com este sentido, ver Para que filosofia da educação – 11
teses, de Hans-Georg Flickinger, que na XI tese conclui
que a grande tarefa da filosofia da educação é a sua
autosupressão gradativa. (FLICKINGER, 1998, p. 21)
7
tido, a dialética negativa é o ponto de partida
para a autorreflexão do próprio conceito.
No trecho da Dialética Negativa intitulado “Lógica do desmoronamento” (p. 126-132),
Adorno expõe, na crítica a Hegel, seu entendimento de dialética. Segundo o frankfurtiano,
Hegel, contrapondo-se à separação kantiana
entre forma e conteúdo, pretendia alcançar
uma filosofia que não fosse um método manipulável independente de seu objeto e que,
portanto, não fosse passível de ser cindida; e,
para tal, procedeu metodicamente. Na perspectiva adorniana, no entanto, a dialética não
é um método, uma vez que seu conteúdo (a
coisa não reconciliada, não submetida à identidade do pensamento), por ser repleto de
contradições, bloquearia uma interpretação
geral e sintetizadora, uma vez que é a coisa,
e não o impulso à organização próprio ao
pensamento, que provoca a dialética. Para
Adorno, a dialética é um procedimento que
implica pensar em contradição, em virtude da
contradição experimentada na coisa, e mesmo contra ela, ou seja, precisaria ser reflexiva,
possibilitando a confrontação entre coisa e
conceito, e este atuaria a partir da contradição, e não contra ela, em busca de uma síntese, pois seu movimento não tende para a
identidade na diferença de cada objeto em
relação ao seu conceito, mas coloca o idêntico sob suspeita. “Sua lógica é uma lógica da
desagregação: […] da figura construída e objetivada dos conceitos que o sujeito cognoscente possui de início em face de si mesmo. A
identidade dessa figura com o sujeito é a não
verdade” (ADORNO, 2009, p. 126).
A dialética negativa é, assim, desconstrução, desmoronamento da interpretação
do mundo concreto a partir de conceitos dicotômicos – sujeito-objeto, essência-aparência,
conceito-coisa – sobre os quais assentou a epistemologia e que, pelo menos desde Descartes,
têm sido pressupostos básicos do pensamento ocidental. A proposta filosófica de Adorno
pode ser interpretada como uma redefinição
na relação entre sujeito e objeto, entendidos
agora como processos sociais, e não meramente como pressupostos epistemológicos.
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39
A subjetividade, o próprio pensamento, não pode ser explicado a
partir de si mesmo, mas somente a
partir do elemento fático, sobretudo da sociedade; mas a objetividade do conhecimento não é uma vez
mais sem o pensamento, sem a subjetividade. (ADORNO, 2009, p. 123).
Na dialética sujeito-objeto, conforme
o modelo do idealismo, da identidade, o conhecimento é redução da diversidade a um
conceito unificador e, como desdobramento
deste, é possível afirmar a totalidade, idêntica
consigo mesma e que exclui de si tudo que se
mostra irredutível, o que não se deixa assimilar, identificar ou dominar.
É preciso insistir criticamente na
dualidade do sujeito e do objeto,
contra a pretensão de totalidade
inerente ao pensamento. Em
verdade, a cisão que torna o objeto
algo estranho, a ser dominado, e
que o apropria subjetivamente é o
resultado de um arranjo ordenador.
[…] A consciência se vangloria da
unificação daquilo que ela primeiro
cindiu arbitrariamente em elementos; daí o tom ideológico dominante de todo discurso sobre a síntese.
Ele serve para esconder a análise
que encobre a si mesma e que se
torna cada vez mais tabu. (ADORNO, 2009, p. 151).
A categoria totalidade, como tentativa
de configurar um sistema racional fechado,
historicamente institui-se como imposição,
domínio, violência, pois pretende reduzir as
diferenças, excluindo o que não se submete à
identidade da subjetividade dominante. Neste sentido, o filósofo alemão retoma alguns
elementos discutidos na Dialética do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), no
qual analisa a relação sujeito-objeto-conceito,
interpretando aquela dialética como um processo de opressão e submissão, na medida
40
em que o sujeito, tomado como opressor,
sob certo aspecto, tornava-se também vítima
e submisso, uma vez que a dominação da natureza externa exigia submeter a natureza interna e seus impulsos de prazer, em nome da
consolidação de seu domínio sobre a natureza. O preço a pagar pelo domínio e poder sobre a natureza externa foi a formação de um
eu unitário e idêntico, objetivado conceitualmente, totalizado segundo a lei da identidade
e convertido em razão instrumental.
O conhecimento, fruto do medo ancestral do homem diante das forças ameaçadoras da natureza, corporificou-se no conceito
moderno de técnica, que tem por objetivo,
não a felicidade do gênero humano, mas uma
espécie de previsibilidade que possibilite o
domínio sobre a natureza. “O esclarecimento
tem perseguido sempre o objetivo de livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de
senhores. Mas a terra totalmente esclarecida
resplandece sob o signo da calamidade triunfal” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19). O
progresso do conhecimento é o progresso do
domínio; a natureza passa de força a coisa a ser
dominada, e este processo de reificação constitui o cerne da racionalidade instrumental. Pode-se dizer, portanto que, na obra adorniana, o
problema da dialética sujeito-objeto é uma crítica à lógica da identidade e, simultaneamente,
uma crítica à razão instrumental, àquela razão
que confundiu progresso técnico e econômico
com progresso humano e, neste sentido, o conhecimento é sofrimento.
O mais mínimo rastro de sofrimento
sem sentido no mundo experimentado infringe um desmentido a toda
filosofia da identidade que gostaria
de desviar a consciência da experiência: “Enquanto ainda houver um
mendigo, ainda haverá mito”;8 é
por isso que a filosofia da identidade é, enquanto pensamento, mitologia. O momento corporal anuncia
8
Conforme nota do tradutor (p. 343, nota 15), esta
citação refere-se à obra Passagenarbeite [Trabalho das
arcadas], manuscrito de Walter Benjamin.
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ao conhecimento que o sofrimento
não deve ser, que ele deve mudar.
“A dor diz: pereça”.9 Por isso, o especificamente materialista converge com aquilo que é crítico, com a
práxis socialmente transformadora.
(ADORNO, 2009, p. 173).
Para Adorno, a constatação do sofrimento humano é o que demonstra a falsidade da história baseada na dominação; a existência da dor é o índice da tragédia da história
que se fez sob a égide da lógica da identidade.
Portanto, corre paralela à crítica dessa lógica
a necessidade de outra sociedade, não assentada no princípio de uma razão identificadora e desumanizadora, mas uma sociedade na
qual se poderia, de fato, falar de identidade,
uma identidade que respeita a diferença e a
dignidade da existência humana concreta. A
dialética negativa adorniana, assim, constitui-se em um modo pelo qual se expressa o sofrimento a que leva a lógica da identidade que
se manifesta na história, uma identidade que
se mantém indiferente à vida do indivíduo.
Seu propósito, então, é chegar a uma identidade distinta, uma racionalidade que deverá
manter a diferença dos objetos e não cair em
um conhecimento abstrato, próprio do pensamento da identidade fetichizada.
Este veio da argumentação adorniana
pode ser particularmente relevante para o
campo educativo, na medida em que chama
atenção para uma perspectiva diversa de
entender o processo de conhecimento, uma
dialética sujeito-objeto na qual o sujeito não
subordina o objeto, identificando-o com um
conceito universal, mas entrega-se à sua natureza, salvando sua própria diferença, como
reconhecimento da mútua mediação entre as
partes. O significado não é definido de antemão, mas está aberto no que Adorno chama
de constelação própria do objeto.
Adorno toma a categoria benjaminiana
de constelação em contraposição à tendência
identificadora contida no conceito, opondo-se à ideia de verdade como sistema, própria
do idealismo, em particular, o hegeliano.
O objeto abre-se para uma insistência monadológica que é a consciência da constelação na qual ele
se encontra: a possibilidade de uma
imersão no interior necessita desse
exterior. No entanto, uma tal universalidade imanente do singular
é objetiva como história sedimentada. Essa história está nele e fora
dele, ela é algo que o engloba e
em que ele tem seu lugar. Perceber a constelação na qual a coisa
se encontra significa o mesmo que
decifrar aquilo que ele porta em si
enquanto algo que veio a ser. Por
sua vez, o chorismo10 entre fora e
dentro é condicionado historicamente. Somente um saber que tem
presente o valor histórico conjuntural do objeto em sua relação com
os outros objetos consegue liberar
a história no objeto; atualização
e concentração de algo já sabido
que transforma o saber. (ADORNO,
2009, p. 141-142).
Se, ao longo da tradição filosófica, os
conceitos constituíram-se em espécies de
mônadas, detentoras de todas as qualidades
e possibilidades do objeto do conhecimento,11
na perspectiva de Adorno – na qual vimos
buscando amparo para a proposta de ruptura com o modelo de identidade – vislumbra-se o potencial de renovação, não só do
pensamento filosófico, mas das próprias práticas de formação humana. A construção de
Segundo nota do tradutor, a palavra deriva do grego:
separação, cisão.
11
Podemos assinalar conceitos como substância, de
Aristóteles; cogito, de Descartes; a condição de
possibilidade, de Kant; a ideia, de Hegel, assim como
tantos outros ao longo da história da filosofia.
10
9
Segundo nota do tradutor (p. 173), “A expressão
refere-se ao capítulo ‘Os sete selos’, de ‘Assim falou
Zaratustra’, de Nietzsche. Ela também foi utilizada por
Mahler no IV andamento de sua sinfonia n. 3”.
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41
constelações permite tornar visível o objeto,
entendendo a articulação entre a atividade
compreensiva e o princípio de composição,
realizando um modo de exposição do pensamento que contempla, ao mesmo tempo, o
objeto e suas inter-relações com a realidade
social na qual ele se insere, libertando o conceito da cristalização identitária, além de possibilitar a existência do não conceitual, não
idêntico, que constitui a constelação.
O conhecimento do objeto em sua
constelação é o conhecimento do
processo que ele acumula em si. Enquanto constelação, o pensamento
teórico circunscreve o conceito que
ele gostaria de abrir, esperando
que ele salte, mais ou menos como
os cadeados de cofres-fortes bem
guardados não apenas por meio de
uma única chave ou de um único
número, mas de uma combinação
numérica. (ADORNO, 2009, p. 142).
A elaboração de conceitos pelo método de constelações possibilita, no interior da
própria filosofia, o desenvolvimento da consciência crítica e do conhecimento da verdade
social para que a realidade histórica possa ser
acessível à compreensão racional. A filosofia,
sob este ponto de vista, exerce a função de
desvelamento do ideológico no social, colaborando na tarefa de transformação da sociedade pela exposição de suas contradições.
Formular conceitos por intermédio de constelações é romper com o modelo semiformativo que fragmenta e isola o conhecimento
tanto do sujeito que o produz, pois busca sua
referência somente na descrição do objeto,
quanto do próprio objeto, reduzido às capacidades perceptivas do sujeito cognoscente. A
formulação de conceitos, assim referida, é um
processo de formação do humano em intrínseca relação dialética com o mundo concreto, histórica e socialmente constituído, não
o mero domínio de uma racionalidade que se
impõe diante de uma natureza passiva, passível de ser dominada na identidade do con-
42
ceito. Nesta perspectiva epistemológica, não
é só o processo de conhecimento que está em
jogo, mas o próprio modelo de racionalidade
vigente na sociedade contemporânea, regida pelo princípio de identidade, que reduz
tudo à lógica do mesmo, da mercadoria. Neste
cenário, a filosofia pode constituir-se como
possibilidade para o não idêntico, para a experiência de um processo distinto do que se
estabelece como padrão da sociedade e da razão tradicionais; representa um potencial de
desvelamento de dimensões escamoteadas
pela razão instrumental, teleológica; reveste-se, portanto, de um caráter emancipador que
se relaciona à revelação de necessidades reprimidas em nome da adaptação à sociedade,
à denúncia da realidade danificada, além da
possibilidade de relação com o outro a partir
de outra lógica que não a dominante.
Eis, então, o promissor potencial formativo da filosofia adorniana – apresentar-se como processo constelatório que força a
reaparição do não idêntico, sempre solapado
pelo princípio de identidade, que reduz tudo
à lógica do mesmo, do idêntico, do administrado. Em sua empreitada crítica, busca uma
linguagem própria que empreste voz ao que
clama por ser dito, que fale do sofrimento humano e da esperança do que não pode ser.
Possibilita, por meio das categorias filosóficas,
uma forma de falar do humano, da dor real,
distante dos rigores alienantes do discurso da
técnica, como um espaço comum em meio à
difusão de saberes fragmentados, no qual todos, como seres dotados de autonomia e sensibilidade autorizam-se a dar sua contribuição.
Etienne, o personagem do Germinal,
queria furar as sombras, mas surpreendia-se
atormentado pelo desejo e pelo medo de ver.
Seu desejo foi maior que o medo… e embarcou na aventura de deixar-se afetar pelo
novo. De modo análogo, a formação humana,
insuflada pelo sopro da filosofia constelatória
de Adorno, pode ajudar a furar as sombras do
espesso véu de misérias que a sociedade administrada estende sobre nós. Os processos
educativos críticos, impregnados da dialética
da negatividade do não idêntico, podem fazer
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germinar os brotos de vida sufocados pela
sociedade administrada. E talvez possamos
voltar ao Germinal.
Agora, em pleno céu, o sol de abril brilhava em toda a sua glória, aquecendo a terra que
germinava. Do flanco nutriz brotava a vida, os
rebentos desabrochavam em folhas verdes, os
campos estremeciam com o brotar da relva.
Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se, furavam a planície, em seu caminho
para o calor e a luz. Um transbordamento de
seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes
expandia-se num grande beijo.
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Impulso, Piracicaba • 24(60), 33-44, maio-ago • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n60p33-44
43
ZOLA, E. Germinal. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1972.
ZUIN, A. A. S. Indústria cultural e educação: o novo canto das sereias. Campinas: Autores Associados, 1999.
Dados dos autores:
Belkis Souza Bandeira
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Graduada em Psicologia
e graduada e licenciada em Filosofia pela Universidade Católica de Pelotas(UCPEL),
Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL, 2008)
e Doutorado em Educação pela mesma Universidade (UFPEL, 2013).
Atua como Professora substituta no Departamento de
Ensino da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas.
Avelino da Rosa Oliveira
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Graduado em Filosofia
pela Universidade Católica de Pelotas(UCPEL), mestrado em
Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC-RS, 1996) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRS, 2002) . Atua como Professor Titular do Departamento
de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Pelotas.
Recebido: 22/04/2013
Aprovado: 28/04/2014
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DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n60p33-44
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