Revolução, resistência e subjetivação em Foucault

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Revolução, resistência e subjetivação em Foucault: percursos de um procedimento
crítico na ontologia do presente
Lorena de Paula Balbino
Doutoranda / UFSCar
No ano de 1977, Foucault afirma que o pensamento moderno é comandado pela
questão da revolução, de modo que, desde a Revolução francesa, é a política que sempre se
situa em torno da questão da revolução. O problema da revolução, de sua espera como
acontecimento, remete-nos a outra questão apontada por Foucault, qual seja, em saber “quem
somos nós, nós que estamos em excesso, neste tempo em que não acontece o que deveria
acontecer?” (FOUCAULT, 2008c, p. 240). Assim a filosofia, para Foucault, coloca a questão
do que acontece atualmente e
atualmente.
quem
somos
nós
em relação
àquilo
que acontece
Na ocasião dessa afirmação, o filósofo fazia referência especificamente a
Revolução Francesa. Esse evento em especifico que se tornou no interior da história política
algo que Kant identificou como signo do progresso, e que Foucault retomará no ano de 1983
na primeira aula do curso O governo de si e dos outros. O retorno da revolução torna-se, a
partir desse evento, um problema político no que se refere a seu caráter desejável.
No entanto, questiona-se no ano de 1978 se não estaríamos assistindo ao fim da “idade
da revolução”: “Talvez estejamos vivendo o fim de um período histórico que, de 1789 a 1793,
foi,
pelo
menos
para
o
Ocidente,
dominado
pelo
monopólio
da
revolução”
(FOUCAULT,2004, p. 51). Essa observação de Foucault deve ser vista a partir de outras
afirmações do filósofo a respeito da revolução e de seu caráter desejável que sofreu
transformações com o estalinismo no cenário político europeu. Se observarmos
prioritariamente as duas entrevistas já mencionadas, veremos que elas colocam questões
importantes referentes à noção de revolução, qual seja, o desejo de seu retorno e,
particularmente, sua posição em relação ao problema da atualidade.
Primeiramente, compreender a revolução em termos de seu retorno significa percebêla no interior de uma concepção específica de tempo. Essa concepção implica entender que a
revolução imprime uma ruptura no tempo, marcando-o permanentemente e abrindo o caminho
em direção ao progresso. Essa compreensão parece imprimir no sentido histórico de tempo as
marcas de uma teleologia. Foucault, como diagnosticador do presente, entendia a tarefa
filosófica como crítica da atualidade. Seu pensamento rompeu com a noção teleológica de
tempo ao empreender a sua “ontologia do presente” e ao recusar-se a ser cúmplice da figura
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do intelectual representante da consciência universal do povo.
A sua compreensão e a maneira como escreve, por exemplo, sobre o cuidado ético nos
gregos, a disciplina, a loucura e seu enclausuramento, se inscrevem na atitude crítica de
Foucault. Segundo Edgardo Castro em seu Vocabulário de Foucault (2009), para se entender a
noção de revolução é necessário entendermos a relação entre história e subjetividade no
pensamento foucaultiano. A noção de história, segundo nos diz Castro, não é concebida em
termos de totalidade, de um processo contínuo e progressivo orientado para uma finalidade. A
história em Foucault é uma dispersão de acontecimentos que se inscrevem como recorte
temporal racionalizado por meio das estratégias do poder e do saber que o tornam natural para
a história imprimindo assim uma regularidade ao próprio acontecimento. John Rajchman
também enfatiza a discordância entre a concepção de história em Foucault com uma história
finalista orientada sob os auspícios da revolução. Segundo Rajchman, a história em Foucault
não se compromete com qualquer esquema transformativo de ordem global como no caso do
discurso revolucionário (RACHJMAN, 1987, p. 55). Ambas as perspectivas se baseiam em
concepções contrastantes de história. Ainda sobre esse contraste, Rachjman contrapõe o
intelectual revolucionário como o representante de um grupo, classe ou sociedade ao
intelectual “nominalista” que não admite falar em nome de outro.
Outra observação a ser levada em conta a respeito das reflexões de Foucault sobre a
revolução é sua relação com a noção de subjetividade. Foucault recusa a ideia de um sujeito
originário que dê conta da constituição da história fazendo da consciência humana o sujeito
originário do saber histórico. A subjetividade em Foucault não é o relativo a uma identidade
imóvel e avessa a tudo o que lhe é exterior e acidental; por ser um processo de diferenciação a
subjetividade relaciona-se com a história e o tempo. Isso significa o abandono da
compreensão de uma subjetividade imóvel em sua fixidez, como seria, por exemplo, o ego
cartesiano (CARDOSO JUNIOR, 2005, p. 345). Nessa perspectiva podemos crer que são
recusados no pensamento foucaultiano uma temporalidade histórica que, recolhida em si
mesma, encerra em uma totalidade a diversidade do tempo. Outra recusa de Foucault é o
entendimento de que a revolução se daria como tomada de consciência (CASTRO, 2009, p.
387-388) condicionada a uma vanguarda intelectual que teria por papel revelar verdades e
guiar a consciência do povo. Essa ideia do papel do intelectual e sua posição histórica, como
personalidade individual da universalidade obscura que era o proletariado, foram questionadas
pelo filósofo em algumas de suas entrevistas. Foucault não concebe uma vanguarda
intelectual que teria por objetivo atuar na conscientização daqueles que lutam dentro de
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aparelhos como os sindicatos, os partidos, os movimentos sociais, etc. Ao contrário, ele
diagnostica que há muito o papel do intelectual mudou graças a novas relações entre teoria e
prática e que hoje o intelectual atua em setores determinados da sociedade. A forte imagem do
intelectual relaciona-se à política pensada nos termos da representação e que tem suas raízes
nas lutas contra o poder e na indispensabilidade em conhecer todas as suas formas de atuação.
É possível vislumbrar o trabalho de Foucault no G.I.P. (Grupo de Informação sobre as
Prisões) como um esforço para demonstrar a necessidade de se falar por si mesmo e
demonstrar o “erro” da representação, o que levou Deleuze a afirmar, em 1972, que Foucault
nos ensinou sobre “a indignidade de falar pelos outros” (FOUCAULT, 2008c, p. 72).
Foucault aponta que não só a análise sobre os aparelhos de estado não esvaziam as
formas de exercício do poder como a ideia de que o poder se detém (e não se exerce) por algo
totalizante como o Estado pressupõe uma luta global. Se, portanto, considerarmos que a
crítica ao poder presente no discurso revolucionário centra-se sobre o poderio do Estado e da
dominação que ele exerce, veremos que há aí, para Foucault, um limite da compreensão da
questão do poder no discurso revolucionário. Em sua análise, Foucault procurou
descentralizar o problema do poder e passar para o exterior do Estado a fim de encontrar as
tecnologias de poder, como demonstra em seu curso Sécurité, territoire, population, e
procurar ver através dessas tecnologias como se constituía “campos de verdade com objetos
de saber”, desenvolvendo desse modo, a noção de governamentalidade (FOUCAULT, 2008a,
p. 157-158).
Ao descentralizar o problema do poder, Foucault nos mostra como a noção de Estado
foi supervalorizada e reduzida a certas funções de desenvolvimento e relações de produção
que o fizeram tornar-se o principal alvo de ataque ao poder e um espaço a ser tomado.
Foucault alerta-nos de que o Estado não tem a unidade e importância que se atribui a ele
(FOUCAULT, 2008, p. 292). Descentralizar o poder e não tomar o Estado como alvo único e
principal a ser questionado requer pensar nas estratégias de lutas contra o poder. Foucault
observa que as lutas desenvolvem-se contra formas particulares de poder em que ao se
localizar um foco, dar nome a ele e dizer quem o exerce constitui uma inversão de poder.
Essas observações de Foucault a respeito da questão do poder foram tornadas possíveis depois
de o filósofo ter-se preocupado com a maneira pela qual vinha tratando a questão até a
publicação de Surveiller et Punir: Naissance de la prison em 1975.
Em entrevista de 1986 publicada com o título “Rachar as coisas, rachar as palavras”,
Gilles Deleuze menciona uma crise que teria acometido Foucault após a publicação de La
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volonté de savoir, crise “vital, política e de pensamento” (DELEUZE, 1992, p. 105). CastroGómez esclarece como constituinte dessa crise a desilusão política com a Revolução iraniana
e as duras críticas ao seu trabalho de cobertura da revolução interpretado como erro teórico e
político (CASTRO-GÓMEZ, 2010, p. 18). Outro motivo da crise de Foucault refere-se ao
tratamento que havia até os anos de 1975 dado a questão do poder. Já na primeira aula do
curso Il faut Défendre la Societé, o filósofo francês insere suas reflexões sobre o poder em um
esquema interpretativo de luta-repressão, o qual ele também denomina de hipótese de
Nietzsche, esse modelo deveria agora ser reconsiderado.
Foucault recusava já antes de 1976 os modelos jurídico e econômico do poder,
defendendo um modelo interpretativo que concebesse o poder como relações de forças.
Influenciado pela sua leitura de Nietzsche, Foucault parecia conceber o poder e a história, em
texto de 1971 “Nietzsche, a genealogia e a história” como uma sucessão interminável de
dominação e resistência que por sua vez geram novas dominações. Já no ano de 1977,
Foucault reconhece no texto “A vida dos homens infames” as dificuldades de sua analítica do
poder em atravessar a própria linha dizendo que se encontra preso às relações de poder. O que
permitirá a Foucault delinear uma “terceira dimensão” como diz Deleuze (1992, p. 115) ou
passar da dupla à tripla ontologia como interpreta Francisco Ortega (1999, p. 34) e o fará a
abordar os modos de subjetivação será um deslocamento teórico, uma “mudança de
perspectiva” ou um “giro em torno do problema”.
Segundo Ortega, esse deslocamento no pensamento de Foucault dar-se-á a partir de
três mudanças teóricas, a saber: 1)um deslocamento no eixo do poder realizado a partir de
1976 nos cursos do Collège de France em que a noção nietzschiana de poder é substituída
pela ideia de poder como governo; 2) a partir das experiências de Foucault no Irã e na Polônia
ele elabora um novo conceito de política e resistência em conexão com a noção de governo e
a ideia de crítica; 3) o abandono do projeto original de Histoire de la sexualité com a recusa
do modelo repressivo e a elaboração de uma genealogia do homem de desejo.
A partir dos deslocamentos em torno da questão do poder coloca-se o problema da
compreensão das resistências no pensamento de Foucault. A resistência se dá como causa ao
exercício do poder ou seria possível que ela não seja assimilada pelas estratégias de poder? Se
analisarmos os efeitos do exercício do poder disciplinar como, por exemplo, a
individualização pela qual somos individualizados e a produção de discursos de verdade que
decorrem desse efeito do poder disciplinar, será possível colocar a seguinte questão: há
efetivamente a possibilidade de resistência ao poder ou defrontamo-nos somente com esse
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processo de individualização?
A noção de revolução
Nas atividades de cunho jornalístico que Foucault realizou para o Corriere della Sera
sobre as manifestações dos anos de 1978 e 1979 que culminaram na revolução iraniana é
possível lermos o olhar atento do filósofo sobre as insurgências naquele país em que pôde
mensurar as especificidades de tal movimento e suas diferenças em relação à noção de
“Revolução” ocidental. Nesse contexto pôde também observar na religião islâmica o meio
pelo qual a crítica e a resistência ao governo do xá se fazia nos moldes de uma
“espiritualidade política”. Avaliamos ser possível analisar como esses textos se articulam com
a produção filosófica de Foucault e, mais especificamente, de que modo sua relação com o Irã
imprimiu novas maneiras de pensar a relação entre revolução, política e subjetividade.
Christian Jambet em artigo para o Cahier de L’herne intitulado “Retorno à insurreição
iraniana” aponta para três níveis de análise em que podem ser lidos os textos de Foucault
sobre o Irã. Uma interpretação possível compreende o nível em que a filosofia política
compreende o par “estado” e “revolução” como categorias de análise. Outra leitura realizável
é a introdução de um novo conceito que é o de “espiritualidade política”. Em relação à
dualidade “estado” e “revolução”, Jambet aponta para a historicidade das preocupações
foucaultianas; já em seu curso Il faut Défendre la Societé, de 1975-1976, em que o interesse
do filósofo pela ligação entre revolta e recurso ao texto sagrado já se fazia presente, além do
que sem esse recuo ao curso de Foucault, a compreensão de seu interesse pela revolução
iraniana não se tornaria de todo compreensível.
De fato, no curso de 1976 Foucault introduz na primeira aula suas preocupações a
respeito da noção de poder. Houve, segundo o filósofo, uma crítica prolífica dos discursos,
práticas, instituições nos últimos anos que foi tornada possível graças ao que Foucault
chamou de “reviravoltas do saber”, isso quer dizer o descobrimento de saberes sujeitados
através de conteúdos históricos, blocos de saberes históricos que pôde reaparecer pelos meios
da erudição e dos saberes desqualificados, o saber das pessoas (que não pode ser confundido
com senso comum, mas que se relaciona com um saber regional) (FOUCAULT, 2010, p. 8).
Nessas duas formas de saberes tratava-se de pensar a questão do saber histórico das lutas.
Delineia-se aí, segundo Foucault, múltiplas pesquisas genealógicas de redescoberta das lutas e
da memória dos combates.
O que está em jogo nas pesquisas genealógicas é a questão “o que é o poder?”, quais
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seus mecanismos, seus efeitos, seus diferentes dispositivos de exercício. A partir dessa
preocupação, Foucault faz duas observações a respeito da analítica do poder. Se pensarmos o
poder no âmbito da economia, seremos levados a dois modos de compreensão, a saber, o da
hipótese repressiva (hipótese de Reich) e o da hipótese da “guerra” (hipótese de Nietzsche).
Na aula de 28 de janeiro, ao adentrar em sua análise da crítica do poder enquanto relações de
enfrentamento, de guerra, Foucault vê no discurso dos historiadores um operador de poder. O
discurso histórico da Idade Média compreendia, segundo ele, prioritariamente as funções de
valoração do presente, memorização e exemplaridade.
No extremo fim da idade média, no século XVI e início do XVII a história será a do
enfrentamento das raças. Essa história Foucault chama de contra-história. O filósofo observa
que esse discurso se aproxima muito mais do discurso mítico-religioso do que do discurso
político-legendário que se fazia na história romana. Até a história romana, praticada ainda na
Idade média, a consciência histórica desse período considerava que mantinha uma
continuidade com a antiguidade. O que o discurso das raças vai fazer aparecer é justamente a
consciência de ruptura que não havia até então. Esse discurso da luta das raças foi um
discurso de grande poder de circulação e metamorfose, ele se transformou ao longo dos anos e
serviu a diferentes causas. O choque entre a história da luta de raças e a história da soberania
produziu campos e conteúdos de saber. É no desenvolvimento dessa contra-história que se
situa o discurso revolucionário do século XVII até seus desdobramentos no século XIX. A
partir daí algumas questões são colocadas a respeito do discurso revolucionário: será que o
projeto revolucionário não seria nesse contexto uma vontade de tornar visível uma guerra que
o poder mascara? A prática, o projeto e o discurso revolucionário não operariam dessa forma
através de um saber histórico preciso em que objetiva-se uma inversão da relação de forças,
um deslocamento no exercício do poder?
Como mencionado, o problema da analítica do poder já preocupava Foucault pelo
menos desde a publicação de La volonté de savoir e desde a exposição da primeira aula do
curso Il faut défendre la société, ambos no ano de 1976. No curso do ano de 1978, Segurança,
território, população, Foucault defende seu estudo da governamentalidade para abordar o
problema do estado e da população (FOUCAULT, 2008a, p. 156). Estudar a
governamentalidade em oposição à noção de Estado insere-se em um projeto mais amplo que
consiste, nos diz Foucault, em um triplo deslocamento. Primeiro deslocamento: passar para o
exterior da instituição; em segundo lugar “substituir o ponto de vista interno da função pelo
ponto de vista externo das estratégias e táticas” (FOUCAULT, 2008a, p. 158). E, por fim, o
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terceiro descentramento é o do objeto, recusar a tomar um objeto como pronto como o da
“delinquência”, “doença mental”. Esses deslocamentos foram realizados, segundo Foucault,
para que fosse possível analisar as relações de poder sob suas tecnologias em estreita relação
com a constituição dos domínios de saber. (FOUCAULT, 2008a, p. 159).
Assim a cobertura jornalística de Foucault no Irã deve ser observada sob a luz de suas
reflexões sobre o poder. A esse respeito, Bani Sadr, líder da oposição iraniana no exílio dá o
seguinte relato: “Michel Foucault ia a minha casa em Cachan e trabalhávamos. Ele queria
entender como podia se produzir aquela revolução [...] Ele queria refletir sobre a noção de
poder” (ERIBON, 1990, p. 266). Na entrevista “L’esprit d’un monde sans esprit”, Foucault
afirma ser possível reconhecer uma revolução a partir de duas dinâmicas, a saber, a das
contradições da luta de classes, do enfrentamento social e a contradição política da presença
de uma classe, partido ou ideologia que consiga arrastar consigo uma nação. Acontece que em
suas observações sobre a revolução iraniana essas dinâmicas não são reconhecidas. A questão
que se coloca então é: o que é um movimento revolucionário onde não se pode reconhecer a
luta de classes, as contradições internas e nem um movimento de vanguarda? (FOUCAULT,
2001, p. 744). Em seu último artigo da série sobre o Irã, “Inutile de se soulever?”, Foucault
compreende o movimento insurrecional iraniano do seguinte modo: “As insurreições
pertencem à história. Mas, de certa forma, elas lhe escapam” (FOUCAULT, 2001, p. 790).
Que é então que se passa no Irã que escapa à história? Não devemos entender nesse ponto que
o se passa no Irã não é um movimento revolucionário como no modelo ocidental de
interpretação, mas um movimento de contraconduta?
Um movimento que ao escapar à
história não tem validade como movimento revolucionário dentro do discurso historiográfico.
Nesse sentido, a noção de espiritualidade política vista por Foucault nessas insurreições “fora
da história” deve ser compreendida no âmbito de movimentos de subjetivação individual ou
coletiva. As reflexões de Foucault colocaram em xeque a noção de revolução enquanto
categoria ocidental de interpretação de insurreições políticas, mostrando que a oposição do
poder tem, como apontou Edgardo Castro, a forma das lutas múltiplas e não da revolução
(CASTRO, 2009, p. 388). Foucault via na insurreição iraniana uma vontade de transformação
política indissociável de uma dimensão espiritual em que o que se estava em questão era a
transformação no modo de ser dos indivíduos e do mundo.
O reconhecimento de Foucault na insurreição iraniana de uma vontade de
transformação política e espiritual terá desdobramentos maiores na década de 1980. A noção
de revolução reaparecerá nos cursos L'Herméneutique du Sujet e Le Gouvernement de soi et
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des autres. reconduzida através do problema dos modos de subjetivação e da transformação
do sujeito através das técnicas de si. Nesse sentido, os temas da conversão e da espiritualidade
serão fundamentais para se entender de que modo o sujeito articula exercícios sobre si mesmo
a fim de ter acesso a um outro modo de ser.
A noção de resistência
Em conferência dada no Japão em abril de 1978, publicada sob o título de “A filosofia
analítica da política”, Foucault interroga-se sobre o papel da filosofia em relação à questão do
poder. A esse respeito o filósofo pensa o papel da filosofia não como fundamentação ou
recondução do poder mas a filosofia ao lado do contrapoder tornando visível as lutas que se
desenrolam em torno do poder, as estratégias dos adversários no interior das relações de poder
e os focos de resistência (FOUCAULT, 2004, p. 43). Essa recondução do papel da filosofia
em relação à questão do poder é pensada, sobretudo, a partir dos desdobramentos das análises
de Foucault sobre o poder disciplinar e o biopoder.
A partir das práticas e técnicas de poder desenvolvidas a partir do século XVIII e as
transformações decorrentes do poder soberano para um poder disciplinar e um biopoder, ou
seja, de um poder que exerce seu direito de decidir pela morte e um exercício do poder que
toma a vida como “campo” político de decisões.
Na confluência, portanto, do poder
disciplinar e da biopolítica com as suas especificidades: o primeiro que se incide sobre o
corpo investido e sobre ele técnicas de maximização de sua força a fim de torná-lo útil e dócil
da forma menos onerosa possível e, o segundo, a biopolítica que não se dirige apenas ao
corpo como sobretudo à vida e seus desdobramentos no campo do trabalho, da linguagem, dos
recursos naturais assim como em suas fases no nascimento, na juventude e na velhice. Implica
aí reconhecer o homem não somente como corpo, mas também enquanto população. Será
nesse contexto que veremos outras formas de resistência, de contracondutas surgirem. A
análise das formas de resistência deve necessariamente pensar as contracondutas no interior
de uma crise da governamentalidade e perguntar-se sobre quais formas elas tomam hoje.
Podemos pensar, dessa forma, a resistência ao saber médico como reivindicação de se ter o
direito sobre a própria morte e sobre a maneira como se vive e a resistência sobre o
dispositivo da sexualidade iniciadas por movimentos de liberação.
As possibilidades de resistência se arranjam no interior da verdade produzida pelo
poder. Em Histoire de la sexualité: la volonté de savoir Foucault afirma que as forças de
resistência se apoiam exatamente sobre o ponto em que o poder investe, a saber, a vida e o
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homem enquanto ser vivo (FOUCAULT, 2010, p. 158). Daí decorre que as lutas de resistência
correm o risco de serem assimiladas pelas estratégias do biopoder. Como pensar então
resistências que não estariam objetivadas e sujeitadas ao poder e ao saber? É a partir do ano
de 1978, com o contato de Foucault com o movimento sindical na Polônia e a insurreição
iraniana, que as interrogações do filósofo francês sobre resistência e poder tomam um novo
sentido. Foucault viu nesses episódios a força de grupos políticos em contestar não somente as
estratégias de poder como também os modos de vida colocados pelo poder. Segundo Branco
(2001), Foucault entende nesse momento as lutas de resistência sob a ótica da liberdade. É
nesse sentido que já no ano de 1982, Foucault sugere pensar as resistências como catalisador a
fim de esclarecer as relações de poder e perceber em que ponto essas lutas de resistência
constituem batalhas contra um “governo da individualização” (FOUCAULT apud DREYFUS;
RABINOW, 1995, p. 235).
Subjetividade e ontologia do presente
A noção de governo em Foucault colocada sob operação em suas reflexões a partir da
ampliação de sua analítica do poder é fundamental para pensarmos o sujeito ético em
Foucault, e o é justamente por ser parte desse desenvolvimento em que poder e ética se
encontram em uma mesma linha de continuidade em que compartilham a mesma natureza e
funcionamento (NALLI, 2011, p. 156). Desse modo, a questão do poder a partir da introdução
da noção de governo torna-se importante para pensarmos a constituição de subjetividades e
liberdades presente no pensamento de Foucault.
Outro ponto de inflexão necessário para se pensar as questões apresentadas até o momento é a
noção de crítica e ontologia do presente tornada possível graças ao interesse de Foucault pela
filosofia kantiana e a noção de Aufklärung. Foucault, como diagnosticador do presente,
procura a partir da análise do texto de Kant, “Was ist Aufklarüng?”, pensar a questão da
atualidade, do momento presente de forma outra que não aquela percebida como continuidade
temporal, mas sim o presente como momento de diferenciação.9 Nesse sentido, a noção de
acontecimento (événement) entendida como lugar de aparecimento de novas singularidades é
também fundamental para se pensar a questão da atualidade como momento de diferenciação.
A reflexão sobre a atualidade representa para Foucault o esboço de uma atitude de
modernidade. Deixar de situar a modernidade em um espaço temporal em que se estilizam
determinadas características em um padrão, fixadas em uma época, e sim pensar a
modernidade como uma atitude frente à atualidade que demanda uma “maneira de se conduzir
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que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa”
(FOUCAULT, 2008d,
p.
341).
É precisamente essa maneira de se conduzir frente à
atualidade que Foucault chama de “atitude de modernidade”. A reflexão crítica sobre o
presente e sobre nós mesmos, nossa maneira de agir, de se conduzir, de viver, é tarefa
imprescindível para que possamos tornar realizável o que Foucault chama de “ultrapassagem
do possível”, pensar além do universal e dos limites do obrigatório. Assim podemos pensar as
reflexões de Foucault a respeito da noção de revolução, das práticas de governo e do
procedimento crítico da ontologia do presente uma noção de política como recusa as formas
que nos condicionam, nos constrangem e nos individualizam.
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Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
2015 / 11ª edição
ISSN (Digital): 2358-7334
ISSN (CD-ROM): 2177-0417
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