RAZÃO PÚBLICA: DA FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA A RACIONALIDADE COMUNICATIVA MARIBEL DA ROSA ANDRADE1; 1Universidade Federal de Pelotas maribelbelle@hotmail JOVINO PIZZI2; 2Universidade Federal de Pelotas – [email protected] Palavras-Chave: intersubjetividade, sujeito, legitimidade, público, linguagem O presente estudo consiste na análise reconstrutiva da razão pública em Jürgen Habermas. Centra-se precisamente no giro dado pelo autor às suas convicções fundamentais, como modo de se afastar do risco de cair nos erros do cientificismo e da filosofia analítica. Pretende-se destacar resumidamente, as justificativas que o levaram a abandonar definitivamente o caminho da filosofia da consciência e dedicar-se ao giro linguístico da filosofia, ou seja, ao agir comunicativo que pressupõe a reconstrução racional do saber intuitivo, pré-teórico e implícito na prática cotidiana. Quatro pontos foram determinantes para Habermas abandonar seus estudos de filosofia analítica e dedicar-se a construção da teoria do agir comunicativo: a) o círculo sem saída da filosofia da consciência. b) a unilateralidade racional existente na relação sujeito-objeto. c) a autofundamentação ilusionaria cognitivista instrumental, e, por fim; d) a recusa do mundo da vida. O filósofo alemão sustenta que na filosofia da consciência, as antinomias permanecem presas a uma individualidade monológica. A tentativa de reduzir o sujeito a objeto empírico coloca a filosofia em um círculo sem volta. Na verdade, o sujeito se transforma em objeto do conhecimento e se encontra no mesmo nível do objeto e, essa situação o obriga a se objetivar e ao mesmo tempo, a auto - objetivar o saber. Uma característica significativa nessa mudança de paradigma proposta no agir comunicativo é a inserção do sujeito no mundo social da vida, em que a linguagem assume condição para a ação comunicativa. A problematização enfatizada fundamenta-se especialmente no fato de o sujeito não poder ser elemento de uma relação sujeito – objeto e sim, participante da relação intersubjetiva sujeito – sujeito, evitando, assim, o condicionamento instrumental das formas de vida. O abandono da teoria do conhecimento reforça a opção por uma teoria crítica da sociedade que possa assegurar os próprios fundamentos normativos1 Habermas passa então a tratar de forma sistemática da questão do Lebenswell a partir do giro linguístico. Essa mudança só é possível quando a linguagem do ponto de vista pragmático é considerada um mecanismo de coordenação do agir e a experiência “no mundo é, ela própria, um processo desenvolvido no mundo”. Portanto, a demarcação do agir comunicativo, através do enfoque linguístico, assume um papel de vital importância para o lebenswell, sendo que, o mundo da vida se caracteriza como pano de fundo do agir e do contexto no qual, falantes e ouvintes constroem suas relações. E, no giro linguístico consiste o fator essencial e revolucionário para os processos de entendimento, ou seja, o procedimento dialógico intersubjetivo. A garantia de buscar o interesse comum com pretensões universalizáveis requer admitir, nesse caso, a possibilidade de um acordo racional em torno da validade das normas. Trata-se da reconfiguração da razão pública através desse novo procedimento linguístico pragmático. O pressuposto da formação da racionalidade política é reconstruído na medida em que cidadãos pudessem encontrar razões para aceitar e fundamentar àquelas ações que foram publicamente justificadas por meio de um processo equitativo e público de deliberação. As normas que podem ser consideradas são apenas as publicamente reconhecidas, e isso exige que seja avaliada sua legitimidade de acordo com a pretensão de que as razões da justificação sejam aceitas por todos os concernidos. Nesse sentido; O pluralismo social e cultural altera a percepção da gramática dos conflitos sociais e dessubstancializa as lutas emancipatórias na autonomia das formas de vida. Isso levou a teoria crítica contemporânea a conceber uma concepção de uso público da razão capaz de abarcar em si a multiplicidade das vozes de seus cidadãos 2 e estabelecer bases basicamente democráticas de legitimação. A teoria do agir comunicativo vem revelar outro tipo de ação social cuja racionalidade não só pode ser distinguida da racionalidade estratégica, como 1 2 J.Habermas. TAC III, p. 416. R. Melo. O Uso Público da Razão: pluralismo e democracia em Jürgen Habermas, p.199. também se afirma segundo Habermas, como forma superior de racionalidade, identificada assim, como racionalidade comunicacional. É embasado nessa afirmativa que esse estudo pretende desenvolver sua pesquisa em prol de uma Razão Prática Pública, em que os participantes através da intercompreensão mútua, coordenam seus planos sob o olhar do agir comunicativo. Esse agir tem como norma moral fundamental que: Todos os seres capazes de comunicação linguística devem ser reconhecidos como pessoas, dado que são, em todas as suas ações e expressões, interlocutores virtuais, e que a justificação ilimitada do pensamento não pode renunciar a nenhum interlocutor nem a 3 nenhuma das suas contribuições virtuais para a discussão. O objetivo da análise está focado na relevância da teoria habermasiana em preencher o fim da arbitrariedade e da coerção nas questões que circundam toda a comunidade, propondo uma participação mais ativa e igualitária de todos os sujeitos nos litígios que os envolvem e concomitantemente alcançar a tão almejada justiça, atendo-se que a razão prática pública supõe uma interação comunicativa. I – O Giro Linguístico Filosófico: Uma Continuidade reconstrutiva. Numa concepção habermasiana, a filosofia da consciência privilegia mais o interior frente ao exterior, o privado frente ao público, e, privilegia também, segundo Habermas, a vivência subjetiva frente a mediação discursiva. A teoria do conhecimento ocupava o lugar de uma filosofia primeira, enquanto que a ação comunicativa era algo de status derivado. A pretensão habermasiana não é fazer uma reconstrução da teoria do conhecimento, nem mesmo restringi-la a uma teoria do significado e da fala, restrita aos padrões da filosofia analítica. A mudança ocorre e se torna possível quando a linguagem, do ponto de vista pragmático, é considerada um mecanismo de coordenação do agir4. Habermas em sua continuação - revisão da teoria, em parte herda e em parte modifica seus traços essenciais. Para ele o território de uma ciência crítica da 3 4 K.O.Apel, La transformación de la filosofia, P.400. Cf.J.Habermas, TAC III,p. 421 sociedade se situa no âmbito da cultura, das trocas comunicativas e daquilo que ele chama de esfera pública; um contexto que representa também a sede das potencialidades de libertação, próprias do mundo da vida e não apenas o lugar da manipulação do consenso. Nesse sentido, o filósofo alemão abandona os estudos na filosofia da consciência e se dedica a construção de um novo estatuto do saber; uma nova concepção linguística que objetiva definir “como é possível sua utilização orientada ao entendimento5”. O mundo da vida, em Habermas pode ser caracterizado como pano de fundo do agir, e nesse contexto do imediatamente presente, falantes e ouvintes demarcam suas relações. Por outro lado, a incapacidade do paradigma da consciência em responder as questões de uma teoria da ação, leva Habermas sustentar a Teoria da Ação Comunicativa, que assume papel fundamental para o Lebenswelt. Com a virada linguística, a Teoria da ação Comunicativa é reconhecida como um passo sem precedentes na crítica e ainda, na tentativa de superar as reduções de uma racionalidade até então com fortes indícios de debilidade. Com isso, Habermas enfrenta um difícil desafio; o de pretender critérios universais numa época em que os estilos relativistas ganham ênfase, porém, a vantagem da teoria da racionalidade comunicativa consiste numa nova trajetória: abandonar o individualismo encontrado sob as premissas da filosofia do sujeito. Assim, faz-se relevante destacar quatro aspectos relacionados entre si: a) Um novo conceito da razão que não dissolve o sentido da prática cotidiana e das formas de vida inerentes às experiências do cotidiano6. b) B) visto que uma teoria da ação supõe a compreensão, e essa não é inteligível por meio da observação, torna-se importante a distinção entre a atitude do sujeito observador e a do sujeito participante. c) A decadência da filosofia da consciência remete ao paradigma da comunicação, aspecto de vital importância para uma teoria do agir comunicativo. Assim, procura-se identificar um conceito de racionalidade capaz de dar razão às estruturas universais que subjazem à ação humana. d) O último dos aspectos está relacionado com a análise da teoria do significado, a qual desfruta de um duvidoso prestígio, fundamenta Habermas, e isso o faz insistir no aspecto pragmático da filosofia da linguagem. 5 6 Cf. J. Habermas, TAC III, p. 417. Cf. J. Habermas, Ensaios Políticos, p. 187 . O esforço de Habermas pretende estabelecer os pressupostos básicos de uma teoria da ação comunicativa como alternativa à filosofia da consciência, abordando, de forma adequada, a questão da racionalidade social. A tentativa volta-se não apenas à conexão sujeito – mundo ou à problemática, enunciado – mundo, mas sim à relação intersubjeitva entre falantes e ouvintes. A teoria crítica da ação comunicativa racionalizada destaca o sujeito como interlocutor válido, em um novo contexto, em que esse sujeito não só compartilha um saber implícito como também assume a capacidade universal de reconstruir um saber pré- teórico, ou seja, assume a tarefa de reconstruir esse saber inerente à práxis cotidiana. Para Habermas a razão só pode ser entendida se engajada com os contextos do agir comunicativo e nas estruturas do mundo da vida. Diante dessas exigências, a racionalidade comunicativa estrutura-se a cerca de três dimensões: A relação do sujeito cognoscente frente a um mundo de acontecimentos e fatos; a relação prática do sujeito em interações com outros sujeitos atuantes num mundo social; e, finalmente, as relações do sujeito sofrente e apaixonado com sua própria natureza 7 interna, com sua subjetividade e com a subjetividade dos demais. Como foi destacada, nesse sentido, a filosofia deve, pois, renunciar às formas tradicionais que permanecem com atividades caprichosamente restritas a um saber teórico, hiperestranho e alienado do mundo da vida8 A razão nesse novo contexto reverte-se numa força emancipatória e a racionalidade da ação e a questão da relação do sujeito participante, segundo Habermas, são assuntos interdependentes. O ponto nuclear da proposta habermasiana, deve ser entendido como um programa filosófico focado na reconstrução das condições de possibilidade de entendimento comunicativo, submetido a uma comprovação intersubjetiva. Não só Habermas, mas também Apel renunciam ao solipsismo da consciência individual e teorizam a passagem para um paradigma intersubjetivo, para um sujeito comunicativo-interpessoal que constitui em certas condições uma transição linguística do eu transcendental kantiano9 7 J. Habermas. Ensaios Políticos, p. 154. Cf. J. Habermas, Pensamento Pós-metafísico, p. 27. 9 D’Agostini, F. Analíticos e Continentais, p.485. 8 Esses autores não compartilham da “autodespedida da razão” que se expressa na última teorização francofurtense, e consideram insensata a pretensão de construir uma crítica da razão de todo privada de fundamentos normativos10. Eles propõem e executam uma teoria de ação “reconstrutora”. O objetivo não é outro senão uma reconstrução da razão a partir das premissas da “virada linguística”. Ora, a razão que se tem afirmado no mundo, segundo Weber e segundo Habermas, é a “razão instrumental”, ou seja, uma maneira de ver as coisas através do critério da eficácia de meios e fins, ou da eficiência técnica. A questão é que a razão instrumental nos diz quais os meios mais adequados para certos fins, mas não nos dá fórmulas para julgar a validade e a moralidade desses fins. No entanto, conforme D’Agostini, ocorre um alargamento da noção de racionalidade e Habermas persegue esse objetivo na fase central de sua obra11. Ele procura examinar os diversos tipos de racionalidades que intervêm nas mais diferentes atividades humanas, no intuito de ilustrar a específica “razão” ou a específica “lógica” que guia o agir humano nãoinstrumental e não submisso à lei da relação de meios e fins. II – Razão Pública: O âmbito da legitimação deliberativa da vontade pública. Habermas dispõe-se, sobre tudo, a refletir historicamente sobre a esfera em que atuam as ações e transformações da sociedade, onde as idéias se propagam e mudam, em que se forma a opinião pública, o consenso, o dissenso. A esfera pública é esse campo de atuação; trata-se do âmbito da vida social em que são debatidas questões de interesse geral na qual as opiniões divergentes se confrontam fundamentadas em uma argumentação racional. O público é predominantemente a burguesia, mas é precisamente nesse contexto que se forma e se organiza o dissenso racional nos confrontos do poder instituído. Para Habermas, o âmbito da cultura, dos confrontos e desencontros de opiniões não é apenas o território em que a classe dominante organiza e promove o consenso, mas também a sede de experiências explosivas, de movimentos de renovação e de crítica12. A forte crítica de Habermas consiste em que a racionalização operada pela razão tecnocrática tem conduzido à dissolução da esfera pública, à neutralização quase completa de seu papel crítico emancipador. A técnica das relações públicas 10 Ibid, p. 485. Ibid, p. 495. 12 Ibid, p. 497. 11 substituiu segundo ele, a livre e potencialmente reversiva interação social; a política das sondagens de opinião dificulta e neutraliza o livre encontro e confronto das opiniões, descartando sua possível convergência para uma ação social emancipadora. Com a então posta dissolução da esfera pública, ou seja, a redução de suas potencialidades reversivas persiste a questão: Que condições permanecem abertas para uma teoria crítica da sociedade? No decurso dos anos setenta, Habermas tornou-se o principal expoente de uma hermenêutica crítica, efetuando uma virada com respeito às posições de conhecimento e interesse, passando como ele mesmo afirma, de um paradigma subjetivo a um paradigma intersubjetivo, ou seja, à pressuposição de um sujeito linguístico interpessoal. A novidade relevante da Teoria do agir comunicativo é que o sujeito antes instrumentalizado na filosofia da consciência, agora é reconhecido como sujeito intersubjetivo, isto é, um sujeito linguístico, agente de relação não-instrumental, inserido no mundo da vida. A crítica habermasiana à razão instrumental, tão presente em sua historiografia, é um reclamo, segundo Pizzi13, no sentido de uma discussão racional pela busca permanente de alternativas ao dogmatismo unilateral e ideológico, que rejeita a quase infinitude de contribuições do mundo da vida. Dentro desse marco da teoria do agir comunicativo, encontra-se a contribuição de Habermas para recuperar as sendas perdidas de uma razão incapaz de fundamentar a universalidade de seus pressupostos e de reconhecer as validades inerentes à práxis cotidiana.14 Desde a virada linguístico filosófica, Habermas dá um novo norte a seus estudos, abandona a filosofia da consciência e começa um novo seguimento para seus pensamentos na defesa do “sujeito” como elemento intersubjetivo, dialogicamente inserido no mundo da vida. Isso faz com que a Teoria da Ação Comunicativa adquira uma dimensão sem precedentes. O autor também desenvolve teoricamente a questão da reconfiguração da razão pública; espaço em que é possível identificar elementos importantes da teoria habermasiana da democracia, para pensar o papel de uma racionalidade procedimental no processo de justificação pública de princípios e normas que pretendem legitimidade democrática. 13 14 Cf. J. Pizzi. O Conteúdo Moral do Agir Comunicativo, p. 45. Ibid, p. 311. Segundo Habermas, afirmar que determinadas normas são moralmente válidas significa necessariamente vincular a validade dessas normas à sua aceitabilidade como uma “lei universal”15. Assim, não diferentemente de Kant, Habermas também entende que somente é possível aceitar como válidas as normas que expressam uma vontade universal. Ao delimitar a validade da norma à vontade universal, ou seja, ao excluir como inválidas aquelas normas que não conquistaram o assentimento de todos os concernidos possíveis, essa exigência normativa da “lei universal” levantaria uma barreira não somente às tentativas individualistas de fundamentação do ponto de vista moral, mas também aos pressupostos de uma filosofia do sujeito.16 Habermas não entenderia por universalização de uma norma a autoaplicação subjetiva da lei moral do tipo kantiana, pois norma válida, numa concepção habermasiana, tem que merecer o assentimento por parte de todos os concernidos e para que a norma moral seja aceita e receba o reconhecimento de todos os envolvidos, não basta que o indivíduo examine sua validade apenas por meio de seu juízo moral, dessa maneira entenderíamos como a aplicabilidade da lei universal sobre sua própria máxima. Em uma leitura habermasiana a formação imparcial de um juízo expressa-se em um princípio que exige de cada um, no círculo dos concernidos, a adotar, quando da ponderação dos interesses, a posição de todos os outros. Sustenta-se, no entanto, que em razão do reconhecimento intersubjetivo das normas, o princípio de universalização encontraria sua universalização. A validade das normas passaria a depender do reconhecimento intersubjetivo, e caberia então exclusivamente a esse procedimento a responsabilidade pelo caráter universal atribuído à norma. Seria preciso então, reconstruir um necessário processo argumentativo no qual os concernidos participariam cooperativamente na questão da validação da norma. A derivação de conteúdos morais para Habermas, segundo Rúrion Melo, resultaria das pressuposições pragmáticas universais da argumentação. Habermas não formularia a partir das análises de estruturas de processos de entendimento apenas o princípio de universalidade, mas, sobretudo, reconstruiria as condições intersubjetivas de aceitabilidade caracterizadas formalmente. É importante ressaltar que o processo de entendimento pressupõe a efetivação do discurso prático para que a pretensão de validade de uma norma possa ser racionalmente aceita. 15 16 Cf. R.Melo, O Uso Público da Razão, p. 89. Ibid. Esse discurso prático, entendido como a forma de uma racionalidade procedimental, Habermas denominou princípio do discurso, cuja primeira formulação está em suas “Notas Pragmáticas” e justifica o seguinte:” Só podem reclamar validade (Geltung) as normas que encontram (ou podem encontrar) o assentimento de todos os concernidos enquanto participantes de um discurso prático”17. Essa formulação de que são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis concernidos poderiam dar seu assentimento na condição de participantes de discursos racionais, contém conceitos fundamentais que necessitam ser esclarecidos. O predicado ‘válidas’ refere-se a normas de ação e a proposições normativas gerais correspondentes; expressa um sentido não específico de validade (Gültigkeit) normativa, segundo Rúrion Melo, ainda indiferente em relação à distinção entre moralidade e legitimidade. Pode-se entender ‘normas de ação’ como expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente. ‘Concernido’ como sendo todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis conseqüências resultadas da regulamentação de uma prática geral regulada por normas e por ‘discurso racional’ podemos entender toda tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, quando realizado sob condições da comunicação que possibilita o processar livre de temas e contribuições, informações e razões no interior de um espaço público. Indiretamente o ‘discurso racional’ pode também referir-se a negociações, na medida em que estas forem reguladas por meio de procedimentos fundados discursivamente. Visto haver uma distinção entre ‘concernidos’ e ‘participantes’, distinção essa meramente analítica, o único meio de evitar uma aplicação injusta seria fazer com que os concernidos participassem do processo de fundamentação da norma, assim, ambos os papeis deveriam ser considerados do ponto de vista da autodeterminação. Por esse motivo, Habermas exigiria dos concernidos certas atribuições e capacidades racionais, devido à participação desses em discursos racionais. É importante observar que tais discursos se referem ao último e mais complexo passo do procedimento devido estar relacionados diretamente à tentativa de entendimento acerca de pretensões de validade problemáticas. É essencial destacar que o ‘pôr-se de acordo’, não depende do assentimento de apenas um dos lados da interação comunicativa, a razão não se encontra somente no falante nem somente no ouvinte, mas apóia-se, de acordo com a reconfiguração habermasiana, no reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade. Habermas comenta que: 17 Ibid. p. 91. Em ‘cada argumentação’ os participantes supõem condições de comunicação que (a)evitam uma interrupção do debate não motivada racionalmente, (b) garantem, seja pelo acesso irrestrito e com igualdade de direitos, assim como pela participação igual e simétrica na deliberação, tanto a liberdade com relação a escolha de temas como a consideração de todas as informações e razões disponíveis, e (c) excluem do processo de entendimento toda a coerção que influi exteriormente ou procede do próprio processo que não seja aquele do ‘melhor argumento’, neutralizando com isso todos os motivos que não sejam o da busca cooperativa da verdade(...)18 O procedimento discursivo não exclui a possibilidade dos participantes recorrerem à autocompreensão e à suas visões de mundo. Trata-se de uma abertura relacionada aos conteúdos e consequentemente, a constituição de um espaço público inclusivo estão intimamente ligados ao modo como as pretensões de validade seriam reconhecidas e racionalmente aceitas. Devemos considerar, no entanto, que nada, a não ser aquilo construído e aceito comunicativamente, poderia ter validade intersubjetiva como acordo racionalmente motivado. Não pode haver, portanto, para que um acordo seja obtido comunicativamente, um espaço público que exija a compreensão e aceitação de certas normas controversas sem que a força ‘ilocucionária’ da aceitabilidade racional fosse gerida sob as condições requeridas no contexto comunicativo. É possível perceber que os discursos racionais tornariam explícitas as pretensões de validade problemáticas presentes nos atos de fala, constituindo assim, o momento de maior profundeza reflexiva da relação comunicativa ao produzir os planos de ação de agentes que agem cooperativamente, levando em consideração uns aos outros, no linear de um mundo da vida compartilhado, tendo como pano de fundo, interpretações comuns do cotidiano. Nesse sentido é que; Os discursos são uma tentativa de entendimento e de resgate das razões potenciais apontadas pelos atos de fala – razões que podem ser justificadas publicamente, 18 Ibid. p. 100. isto é, razões que podem ser aceitas racionalmente por todos os possíveis participantes nos discursos19. É nas divergências plurais das sociedades contemporâneas que as condições de comunicação pressupostas nas estruturas simbólicas do mundo da vida assumem a condição reflexiva dos discursos racionais, que, por fim, também estariam indiretamente ligados às negociações reguladas por procedimentos discursivos que necessitam legitimidade deliberativa de justificação pública. Habermas por sua vez, reinterpreta as condições ideais de aceitabilidade racional das normas acerca de uma teoria do discurso ou da deliberação discursiva assumindo o lugar do modelo do contrato: a comunidade jurídica não se constitui por meio de um contrato social, mas com base em um entendimento obtido discursivamente20. O uso da razão pública em Habermas acontece no procedimento dialógico de forma a garantir a legitimação deliberativa de justificação da vontade intersubjetiva dos sujeitos na esfera pública. Esse parece ser o ponto fundamental do novo entendimento filosófico reconstruído por Habermas, a partir da reformulação de suas próprias convicções, através da Teoria do Agir Comunicativo, proporcionando ao sujeito antes ‘coisificado’ pela própria racionalidade técnica e científica, um novo conceito: o de sujeito intersubjetivamente capaz. 19 20 Ibid. p. 101 Ibid. p. 106 REFERÊNCIAS APEL, Karl-Otto. La transformación de la filosofia.Madrid: Taurus, 1985. D’AGOSTINI, F.Analíticos e Continentais.São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002. HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. ____________. Teoria de La Acción Comunicativa. Madrid: Tauros, 1988. ____________. Verdad y Justificación. Ensayos filosóficos. Madrid: Trotta, 2001. MELO, R. O Uso Público da Razão: Pluralismo e democracia em Jürgen Habermas, São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2011. PIZZI, J.O Conteúdo Moral do Agir Comunicativo, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005. _______. O Mundo da Vida. 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