a legitimidade da pesquisa e terapia com células

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DANIELA GRECHI
A LEGITIMIDADE DA PESQUISA E TERAPIA COM CÉLULASTRONCO EMBRIONÁRIAS FRENTE ÀS TEORIAS ACERCA DO INÍCIO
DA INDIVIDUALIDADE HUMANA: UM OLHAR SOBRE O ALCANCE
DA DIGNIDADE E DA AUTONOMIA
Caxias do Sul, RS
2006
1
DANIELA GRECHI
A LEGITIMIDADE DA PESQUISA E TERAPIA COM CÉLULASTRONCO EMBRIONÁRIAS FRENTE ÀS TEORIAS ACERCA DO INÍCIO
DA INDIVIDUALIDADE HUMANA: UM OLHAR SOBRE O ALCANCE
DA DIGNIDADE E DA AUTONOMIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade de Caxias do Sul como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito, linha de pesquisa Direito Ambiental e
Biodireito.
Orientadora: Drª Maria Cláudia Crespo Brauner
Caxias do Sul, RS
2006
2
Aos meus pais, Osvaldo Grechi e Ercilda Arienti Grechi
3
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Osvaldo e Ercilda, por ajudarem, incansavelmente, a atingir as metas de
vida traçadas por mim. Sem o incentivo, apoio e compreensão deles não seria de êxito o meu
esforço;
A todos que, assim como meus pais, acreditaram que eu poderia chegar mais longe;
À minha orientadora, Drª Maria Cláudia Crespo Brauner, pelo estímulo, motivação e por
ter me permitido ser “eu mesma” nesse trabalho;
Aos meus professores do Mestrado que seguem o saber, para melhor ensinar, e que
ensinam, dispostos a aprender.
4
“Nossa busca de descobertas alimenta nossa
criatividade em todos os campos, não apenas na
ciência. Se chegássemos ao fim da linha, o espírito
humano definharia e morreria. Mas não creio que um
dia sossegaremos: aumentaremos em complexidade,
senão em profundidade, e seremos sempre o centro de
um horizonte de possibilidades em expansão.”
(Stephen Hawking)
5
RESUMO
A presente dissertação investiga a legitimidade ou não do uso de células-tronco embrionárias na
pesquisa e terapia, tendo, como pontos de partida: as teorias de maior expressão concernentes ao
início da individualidade humana, não a partir do criacionismo ou da evolução darwiniana; o
referencial filosófico-jurídico atinente à dignidade da pessoa humana, como conceito e princípio;
a noção de autonomia e seu entendimento enquanto princípio bioético do respeito à autonomia.
No que concerne às teorias sobre o início da vida humana, a resposta a que se visa a lograr é qual
seria o marco inicial de proteção jurídica ao embrião localizado extracorporeamente, analisandose possível equiparação com o conceito de pessoa e a relação com o valor da dignidade humana,
insurgindo o problema da necessidade ou não do reconhecimento dessa dignidade pela ordem
jurídica. A partir da tese que defende a beneficência do embrião frente à autonomia dos genitores,
imperioso analisar a possível solução em caso de conflito. Depois de esclarecidos conceitos
inerentes à temática, alinham-se os entendimentos acerca do problema analisado, porquanto, de
um lado, advoga-se em favor do uso de células-tronco embrionárias e, de outro, opõe-se à
emergência de novas técnicas por força do argumento de que tais embriões são pessoas ou têm
direito à vida, vida essa titular do valor da dignidade humana, não sujeita à autonomia arbitrária
de terceiros. O método adotado é o analítico, visto que o ponto de partida reside no exame de
teorias, conceitos e princípios gerais, pressuposto necessário à aplicação no problema enfrentado.
A apresentação de entendimentos acerca da legitimidade da utilização de células-tronco
embrionárias na pesquisa e terapia, envolta em questões ético- jurídicas profundas, constitui o
objetivo geral da dissertação, em que pese a impossibilidade da convergência de posições, por se
tratar de temas demasiadamente instigantes.
Palavras-chave: individualidade humana; dignidade; autonomia; células-tronco embrionárias.
6
ABSTRACT
This paper aims to investigate the legitimacy or not of the use of embryonic stem cells in the
research and therapy having theories of major importance concerning the beginning of the human
individuality as starting points, not from creationism nor from Darwinian Evolution; the
philosophical-judicial background in relation to the human being dignity as both concept and
principle, the notion of autonomy and its understanding as a bioethical principle of the respect
towards autonomy. As for theories on the beginning of the human race, the answer intended to be
successful is the one that would be the initial milestone of judicial protection for the embryo
extracorporeally located by analyzing the possible equalization to the concept of person as well
as the relation to the value of human dignity, rising up the problem of the need or not for
acknowledgment of such dignity by the judicial order. Based on the thesis that defends the
embryo benefaction before parents, it is imperative that a possible solution be analyzed whenever
any conflicts may arise. As soon as concepts inherent to the theme are clarified, the settlements
with respect to problem analyzed are aligned. On the one hand the use of embryonic stem cells is
advocated and, on the other hand it is opposed to the emergence of new techniques by means of
force of the issue that such embryos are human beings or they have the right to life, and this life
is entitled to have human dignity values, not subjected to arbitrary autonomy of third parties. The
method adopted is the analytical one in view of the fact that the starting point dwells in the
investigation of theories, concepts, and general participles, a necessary presupposition to the
application in the problem faced. The presentation of settlements about legitimacy and the use of
embryonic stem cells in the research and therapy surrounded in profound ethic/juridical issues
comprise the general purpose of this paper which weighs the impossibility of convergence of
positions since such topics are extremely inciting.
Keywords: human individuality; dignity; autonomy; embryonic stem cells
7
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS..........................................................................
9
INTRODUÇÃO...................................................................................................................
10
1 CONCEPÇÕES ACERCA DAS TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA VIDA
HUMANA............................................................................................................................
14
1.1 Direito de procriar, conceito de fecundação in vitro e origem da expressão
“embriões excedentes”.........................................................................................................
15
1.2 Teorias acerca do início da vida humana.................................................................
18
1.2.1 Teoria concepcionista...........................................................................................
21
1.2.2 Teoria da nidação..................................................................................................
35
1.2.3 Teoria genético-desenvolvimentista.....................................................................
47
1.2.4 Teoria da potencialidade de pessoa.......................................................................
54
1.2.5 Teoria utilitarista...................................................................................................
60
1.2.6 Outras teorias: breves considerações....................................................................
64
2 DIGNIDADE E AUTONOMIA: UMA ANÁLISE CONCEITUAL E
PRINCIPIOLÓGICA...........................................................................................................
69
2.1 Conceito filosófico de dignidade da pessoa humana...............................................
70
2.2 Conteúdo jurídico-constitucional da noção de dignidade da pessoa humana..........
84
2.2.1 O princípio jurídico-constitucional da dignidade da pessoa humana....................
90
2.3 A dignidade da pessoa humana a partir do critério da “ascrição”............................
102
8
2.4 Autonomia: como conceito e princípio....................................................................
106
2.4.1 O conceito de autonomia e sua compreensão enquanto princípio bioético do
respeito à autonomia............................................................................................................
107
3 PONDERAÇÕES ACERCA DA LEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DE
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS NA PESQUISA E TERAPIA..........................
124
3.1 Conceitos e aplicações das células-tronco na pesquisa e terapia.............................
124
3.2 Prós e contras ao uso de células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia...........
132
3.3 A pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias: entre a legitimidade e a
restrição................................................................................................................................
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................
182
REFERÊNCIAS...................................................................................................................
187
9
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIDS – síndrome da imunodeficiência adquirida
Art. – artigo
CCB/02 – Código Civil Brasileiro (Lei 10.406, de 10.1.02)
CFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil (de 5.10.88)
CFM – Conselho Federal de Medicina
CPC – Código de Processo Civil (Lei 5.869, de 11.1.73)
DNA – ácido desoxirribonucléico
EEG – eletroencefalograma
FIVETE – fecundação in vitro e transferência de embriões
Gn – Gênesis
ONU – Organização das Nações Unidas
TC – Tribunal Constitucional
10
INTRODUÇÃO
O homem, embora consciente da transitoriedade, sempre almejou a imortalidade, de modo
que a medicina serve para conceber terapias e medicamentos para que esse desejo reste
assegurado. As questões acerca da vida e, de modo geral, a forma de prolongá-la mantêm-se no
centro da discussão, enquanto o homem, como ser racional e finito, acreditar que poderá vencer
os desígnios da natureza.
À medida que os novos conhecimentos no campo da experimentação e aplicação das
modernas técnicas genéticas contribuem para desvendar os mistérios do corpo humano,
vislumbram-se os maiores problemas para os seres humanos, relativamente à sua própria
condição e aos seus direitos. Diante das novas formas de intervenção, surgidas em meio ao
ambiente criado pelas descobertas científicas, a vida e a dignidade humanas podem sofrer danos
em diversos aspectos.
Nesse contexto, as ameaças da atualidade, transfronteiriças por natureza, não se devem
apenas a catástrofes ou acidentes naturais, mas aos possíveis resultados nefastos das novas
tecnologias, quando distanciadas das finalidades de trazer o bem à humanidade.
As novas tecnologias emergentes trazem consigo dois lados antagônicos: de um lado,
oferecem grandes benefícios à saúde humana e oportunidades de lucro para a indústria
11
biotecnológica, por outro, podem ser a causa da violação de normas éticas, bens e valores
arraigados na sociedade, criando um sentimento de insegurança nas pessoas. Nesse ambiente, a
atenção passou a centralizar-se na necessidade da preservação da dignidade humana, visto que o
temor da perda da própria identidade e liberdade agudiza-se.
As novas inquietações surgidas intensificaram alguns dos velhos problemas, como a
discussão acerca do início da individualidade humana, ou sua proteção jurídica, e o
reconhecimento da dignidade, e obrigam a enfrentar outros novos, como a legitimidade ou a
vedação da utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapias.
Atualmente, o desenvolvimento da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias
encontra-se em processo de ebulição, por força das indagações surgidas nesse novo e instigante
campo, sendo que as razões permissivas das novas técnicas não cedem às pressões de sua
oposição. Afinal, existe a possibilidade de uma plataforma de diálogo e discussão que supere o
combate infrutífero das posições divergentes acerca do uso de células-tronco embrionárias e abra
caminho a uma posição neutra sobre o uso da técnica? Existe como coadunar a proteção do
embrião (tudo, é claro, se for entendido que merece proteção) com os interesses da cura de
doenças, do prolongamento da vida com qualidade etc? O embrião in vitro pode ser reduzido a
meio para alcançar certos fins?
A pesquisa e a terapia com células-tronco embrionárias precisam ser objeto de reflexão
tanto por parte da comunidade científica, que as desenvolve, mas, e principalmente, pela
sociedade, que será afetada diretamente pelos seus resultados, sejam eles positivos ou negativos.
A abertura do pensamento a novas perspectivas impõe-se, se o que se almeja é entrar na
discussão sobre idéias e propostas de ação com um mínimo de parcialidade.
12
A utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapias tende a privatizar a
questão e reduzi-la à ótica jurídica, ou seja, permiti-la ou não. Nesse contexto criado pelos
avanços tecnocientíficos, torna-se imprescindível incluir a perspectiva ética que aponta para o
sentido do direito à vida e dignidade humanas, se for entendido que existe vida a ser protegida e
valor da dignidade a ser reconhecido no embrião localizado extracorporeamente. Nesse horizonte,
enfatiza-se que a presente investigação valer-se-á de conhecimentos filosóficos, biológicos,
bioéticos e teológicos, não se reduzindo, meramente, à análise jurídica.
Dessa maneira, justifica-se a eleição do presente problema, que investiga acerca da
legitimidade ou não da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. Como objetivo, o
trabalho visa a demonstrar a (i)legitimidade das referidas pesquisa e terapia, tendo como ponto de
partida as teorias acerca do início da individualidade humana. No afã de se encontrar maior
referencial possível para a busca de respostas nessa área de latente discussão, onde a pluralidade
de opiniões impera, analisar-se-ão as noções de dignidade da pessoa humana e autonomia, nos
sentidos conceitual e principiológico, notadamente quanto ao alcance que representam, as quais
servirão, juntamente com as demais questões tratadas, como parâmetros de decisão em um ou
outro sentido, se isso for possível.
O presente trabalho desenvolve-se em três capítulos. Inicialmente, serão analisadas
algumas noções da técnica da fecundação in vitro e a origem da expressão “embriões
excedentes”, e, mais detalhadamente, as teorias acerca do início da vida humana, notadamente as
teorias concepcionista, da nidação, a genético-desenvolvimentista, da potencialidade de pessoa e
a utilitarista, com o fim precípuo de demonstrar, atendendo-se a limitações e relativismos, qual
das teorias mais se amolda à peculiar situação do embrião criopreservado. Quanto ao aspecto
teológico envolvido nessas questões, optou-se neste trabalho por abordar, ainda que
13
sucintamente, o entendimento do início da vida humana somente sob a perspectiva da Igreja
Católica, pelas razões que se seguem: o Brasil é o maior país católico do mundo; de modo geral,
as posições assumidas pela Igreja Católica exerceram e continuam exercendo influência nas
sociedades e nas legislações de inúmeros países, notadamente na América Latina, principalmente
no que concerne ao respeito à “sacralidade” da “vida inocente” e práticas que visam a dispor dessa
“vida”. Além do que, seria demasiadamente larga a discussão se fossem levadas em consideração
as posições de todas as religiões, ainda que a análise ficasse restrita às de maior expressão.
O segundo capítulo será dedicado à análise do conceito de dignidade da pessoa humana
nos sentidos filosófico-jurídico, bem como o conceito de autonomia em diferentes perspectivas.
Outrossim, tem-se em vista analisar as noções de dignidade e autonomia sob um prisma
principiológico, a fim de que se possa chegar a um consenso, se isso for possível, acerca do
alcance de tais conceitos, mormente no que concerne ao embrião localizado extracorporeamente.
Afinal, o embrião é titular do valor da dignidade? A autonomia dos genitores é legítima para o
fim de decidir acerca da utilização do embrião in vitro na pesquisa e terapia? Qual é o alcance de
ambos os conceitos?
No capítulo final, o propósito é analisar conceitos, aplicações, prós e contras no uso de
células-tronco embrionárias em pesquisa e terapia para, ao final, tentar responder ao problema
central da presente investigação: a legitimidade ou não do uso de células-tronco embrionárias. A
resposta à questão central posta prescinde da análise de todos os conteúdos abordados nos três
capítulos, onde requer confrontação de opiniões, análise dos argumentos dos autores e a
construção de novos, atendendo-se à diversidade de opiniões acerca de tema tão instigante. Em
verdade, o capítulo derradeiro é a sede para todas as conclusões e posicionamentos assumidos.
14
1 CONCEPÇÕES ACERCA DAS TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA VIDA HUMANA
A pesquisa e a terapia com células-tronco embrionárias têm sido duramente criticadas,
visto que muitos sustentam que o início da individualidade humana dar-se-ia a partir do instante
da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, tornando tais práticas ofensivas ao direito à vida.
Por força do referido argumento, a análise das concepções acerca do início da vida humana
desponta como ponto central na fervorosa discussão sobre a (i)legitimidade do uso de embriões
na pesquisa e terapia.
O estabelecimento de critérios acerca do início da vida humana é uma discussão difícil e
repleta de posições divergentes. Sobre o marco inicial da individualidade humana, intensas
discussões sucedem em todos os países onde a evolução científica provocou a consciência para o
significado da questão e para a necessidade de reconhecer suas conseqüências nos campos ético e
jurídico, através da formulação de diversas teorias. É a partir da análise das teorias acerca do
início da vida humana que se podem estabelecer algumas conclusões sobre a legitimidade ou não
da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. Em sentido jurídico, a discussão resumese, basicamente, na possível equiparação entre nascituro e embrião criopreservado. Isso porque o
Código Civil Brasileiro estabelece em seu artigo 2º a regra sobre o início da tutela jurisdicional,
ao dispor que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a
15
salvo desde a concepção os direitos do nascituro.” Em que pese o eixo central da presente
investigação resumir-se na discussão do momento a partir do qual o Direito protege ou deveria
proteger a vida humana em formação, necessário adentrar na origem do problema do uso de
embriões, vinculada à constatação de excedentes, bem como esclarecer conceitos técnicos
inerentes à temática.
1.1 Direito de procriar, conceito de fecundação in vitro e origem da expressão “embriões
excedentes”
A discriminação lançada sobre a pessoa estéril refletiu ao longo da evolução humana e
ainda hoje se sentem seus reflexos na sociedade moderna, quer se direcione à mulher, quer se
direcione ao homem. O casal enfrenta uma angústia muito grande por não poder corresponder
àquilo que o grupo social espera de um homem e de uma mulher: a reprodução. Nesse sentido,
Leite assinala que a sociedade, como fixadora de papéis humanos, não se limita a estabelecer
paradigmas de comportamentos, mas posturas a serem vividas nas relações matrimoniais (1995,
p. 22).
A fecundação in vitro e transferência de embriões (FIVETE), como forma de reprodução
assistida1, surge como possibilidade real e meio legítimo de satisfazer o desejo efetivo de ter
filhos, de família, de reprodução, de continuidade etc. O objetivo desse tipo de fecundação
extracorpórea é “driblar a impossibilidade de procriação natural” (HRYNIEWICZ; SAUWEN,
1
O item 1 dos Princípios Gerais da Resolução nº 1.358/92 do CFM, que estabelece as Normas para a Utilização das
Técnicas de Reprodução Assistida, dispõe que “as técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na
resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas
tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade.”
16
1997, p. 76). É isso que vem legitimando, em última análise, a proposição de uma série de
inovações biotecnológicas, surgidas de forma contínua no campo da reprodução artificial.
O processo da fecundação, de modo geral, pode assim ser descrito: “ [..] a membrana
plasmática do espermatozóide entra em contato com a do ovócito. A seguir, as duas membranas
se fundem permitindo, assim, a penetração do núcleo do espermatozóide no citoplasma do
ovócito.” (CATALA, 2003, p. 106) Havendo a fusão dos dois núcleos, o evento imediato,
segundo Moore, é a “mistura dos cromossomos maternos e paternos na metáfase da primeira
divisão mitótica do zigoto.” (1991, p. 19)
A partir do conceito de fecundação, conceitua-se, especificadamente, a FIVETE:
Según esta técnica el embrión es obtenido en el laboratorio y luego transferido o
implantado en la mujer, pudiendo pertenecer ambos gametos o uno de ellos a la
pareja o ser de terceros; y la maternidad por sustitución (madres “portadoras”,
“subrogadas” o de “alquiler”), a las que se implanta el embrión de otra pareja
para que lleve a término la gestación [...] también es posible que la sustituta
aporte ella misma el óvulo mientras que el semen pertenezca al varón de la
pareja solicitante. (CASABONA, 1994, p. 208)
Trata-se de uma técnica de fecundação extracorpórea, na qual o óvulo e o espermatozóide
são unidos em um meio de cultura artificial, localizado em vidro especial, que reproduz o
ambiente da trompa de falópio, onde a fertilização ocorre naturalmente, para posterior
transferência ao útero.
O propósito da FIVETE é que a usuária da técnica reste grávida. Para que isso ocorra
procede-se à fecundação de vários óvulos, haja vista que o percentual de nidação e de estados de
gravidez, segundo Sgreccia, é muito baixo (1 ou 2 em 10) (2002, p. 429), que darão lugar a tantos
outros embriões para que se possa tentar a implantação de vários deles em ocasiões distintas, no
17
caso de fracasso da tentativa anterior. Em breves linhas, Scarparo descreve a necessidade da
retirada de vários gametas femininos em um único procedimento:
A superovulação, que se dá mediante tratamento hormonal, cujo resultado é a
geração de um número considerável de gametas femininos [...] é necessária, de
acordo com os especialistas, a fim de evitar seja a mulher submetida a vários
procedimentos para retirada de óvulos, processo considerado excessivamente
desgastante [...]. (1991, p. 40)
A produção de embriões em número superior às possibilidades de implantação no útero
materno provoca, como conseqüência, a necessidade de armazenamento de uma quantidade
muito grande de embriões não transferidos, visando-se a uma posterior transferência à usuária, no
caso de a gravidez não chegar a termo.
Ocorre que, em muitas vezes, as destinatárias dos embriões obtiveram êxito na gravidez,
ou não desejam mais se submeterem à fecundação in vitro, ou pode ter ultrapassado o número
recomendável à transferência por ciclo. Pode ocorrer, também, morte ou superveniência de
doença grave de um dos cônjuges ou do casal destinatário dos embriões congelados, ou, ainda, o
divórcio ou separação do casal. A partir de tais ocorrências surge a figura dos pré-embriões
excedentes2, nos dizeres de Borges e Oliveira, eis que foram a priori planejados e criados com a
finalidade de procriação, mas que, por força de algum motivo relevante, não serão transferidos ao
casal ou mulher que os solicitou como forma de remediar alguma infertilidade (2000, p. 69).
A partir da constatação da existência de excedentes, surgem indagações acerca do seu
destino e status, mormente quando os cientistas reclamam sua utilização para fins de
experimentação. Na tentativa de evitar a sumária eliminação, alguns centros médicos preservam
2
Alguns preferem utilizar o termo embrião excedente; outros, pré-embrião excedente. Assim, até que se chegue a um
consenso acerca de possível diferenciação conceitual, utilizar-se-á o termo embriões excedentes.
18
os embriões congelados, com o propósito de conservar suas características originais. A
criopreservação3 foi o caminho científico encontrado.
A técnica de criopreservação é regulamentada no item V, 1, da Resolução nº 1.358/92, do
Conselho Federal de Medicina. Por sua vez, o Código Civil Brasileiro, quando trata dos casos de
presunção de paternidade decorrentes das formas de reprodução artificial, dispõe, no art. 1.597,
caput e inciso IV, que “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos [...]
havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção
artificial homóloga.” A partir de tal disposição, resta claro que o Código Civil previu a
possibilidade de criopreservação de embriões quando permite a transferência “a qualquer tempo”
dos mesmos, bem como estende sobre as crianças nascidas a presunção de paternidade e
maternidade.
Abandonando-se conceitos técnicos e algumas noções preliminares no que se refere à
origem dos embriões excedentes, bem como a problemática do seu destino, passa-se a adentrar no
campo das teorias acerca do marco inicial da individualidade humana, ao qual se espera possam
fornecer indicativos à compreensão da questão envolvendo a utilização de embriões humanos,
notadamente na pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias.
1.2 Teorias acerca do início da vida humana
3
“A criopreservação de sêmen é o ramo da Criobiologia que estuda a conservação dos espermatozóides em
nitrogênio líquido à temperatura de – 196º C, com preservação da capacidade de fertilização e desenvolvimento
embrionário inicial. A técnica permite a conservação dos espermatozóides por prazo indefinido [...]. A Criobiologia
estuda, ainda, a possibilidade de conservação de pré-embriões e de oócitos [...] A técnica, relativamente nova,
anunciada a primeira utilização em 1983 na Austrália, consiste em revestir o pré-embrião de 1 a 3 dias por uma
substância crioprotetora (Glicerol), que o protegerá dos efeitos do congelamento.” (BORGES; OLIVEIRA, 2000, p.
59)
19
O presente trabalho não tem por objetivo reacender a nebulosa questão do início da vida
humana na terra, seja a partir do criacionismo (teoria de que Deus criou o homem na terra à sua
imagem e semelhança) ou da teoria da evolução de Darwin, mas o de apresentar as teorias acerca
do marco inicial de uma nova individualidade humana, com o fim precípuo de apresentar
indicativos do momento a partir do qual a proteção jurídica deveria ser estendida à vida humana,
e, conseqüentemente, assinalar qual seria a mais aceitável à temática envolvendo a pesquisa e a
terapia com células-tronco embrionárias.
Consoante Dworkin, os gregos utilizavam duas palavras para expressar o conceito de
vida, estabelecendo uma distinção: zoe, traduzida no sentido de vida física/ biológica, e bios, que
para eles caracterizava a vida como processo vivido, constituído pela totalidade de condutas,
decisões, motivos e acontecimentos que compõem o que hoje se chama de biografia (2003, p.
115). A partir de tais distinções, a presente investigação limitar-se-á a analisar o início da vida
física ou biológica do ser humano, como pressuposto à proteção do Direito.
As questões acerca do início da individualidade humana passaram a ser pauta de
discussão depois da ascensão das técnicas de Reprodução Assistida, a exemplo da FIVETE, que,
geralmente, conduz à existência de embriões excedentes e dúvidas acerca do seu status.
Outrossim, além de resolver alguns casos de infertilidade, a FIVETE deu início a uma nova era
de investigação científica: a experimentação com embriões humanos. Partindo-se do pressuposto
de que a revolução na medicina reprodutiva abriu possibilidades de converter os embriões
excedentes em um produto, uma coisa, insurge a necessidade de se discutirem as seguintes
questões: qual é o status que ostenta o embrião? A partir de que momento poder-se-ia afirmar que
se está perante uma vida humana que merece ser protegida juridicamente?
20
Quanto à proteção e respeito conferidos à pessoa e a possível correlação com os embriões
excedentes, Barchifontaine comenta:
Existe, em nível mundial, uma irredutível controvérsia sobre a liceidade do
destino dos embriões excedentes, baseada na diversidade de opiniões acerca do
estatuto do embrião – tem ele, ou não, a mesma dignidade da pessoa humana
plenamente desenvolvida? Merece, ou não, a mesma proteção e respeito? (1996,
p. 174)
Já que se pretende que o Direito vise à tutela e à defesa da vida, o problema deve ser
resolvido em função do momento em que o Direito deve estender a proteção à vida.
As questões sobre embriões e sobre a possibilidade de pesquisa e terapia com os mesmos
são questões sobre seres humanos às margens do conceito. Por isso esses debates convertem-se,
freqüentemente, em perguntas acerca do que é um ser humano e quando inicia a vida desse ser
humano. A dificuldade em fornecer respostas a essas indagações é posta na medida em que a
ciência não dispõe de parâmetros para definir exatamente quando inicia a vida humana, eis que
não existem conceitos imutáveis, eternos e prontos que se possa aplicar sem reservas. Nesse
horizonte, Varga entende que toda informação científica não pode precisar o tempo em que o feto
em desenvolvimento deve ser considerado humano. A questão é fundamentalmente filosófica e
não científica (2001, p. 68). E, se existem dúvidas a respeito de quando um feto pode ser
considerado humano, muito mais haverá em se tratando de embriões in vitro.
Há que se ter presente, também, que o problema da definição do início da vida pode ser
demasiadamente arbitrário, haja vista que está vinculado à finalidade com que alguém usa certa
definição da vida humana e o ínterim de proteção dessa vida.
Enfatizando a pluralidade, Habermas assinala que as discussões acerca do status dos
embriões têm percorrido caminhos paralelos, a saber:
21
Por um lado, sob as condições do pluralismo ideológico, não podemos atribuir ao
embrião, “desde o início”, a proteção absoluta da vida, de que as pessoas
enquanto portadores de direitos fundamentais desfrutam. Por outro lado, existe a
intuição de que não podemos simplesmente dispor da vida humana pré-pessoal
como de um bem submetido à concorrência. (2004, p. 60)
Enfim, imperioso verificar quando há uma forma de vida humana para o fim de
estabelecer o momento a partir do qual o Direito protege ou deveria proteger a vida humana em
formação, ainda que pouco de novo se possa trazer a essa discussão que ainda não tenha sido
dito. Afinal, a partir de quando há um legítimo direito à vida4?
Em se tratando das teorias sobre o início da vida humana, esse trabalho limitar-se-á a
abordar as principais, traduzidas nas teorias concepcionista, genético-desenvolvimentista, da
nidação, da potencialidade de pessoa e utilitarista, pelo fato de a maioria dos autores
posicionarem-se em favor de uma delas e pelo fato de que a presente investigação não
comportaria a análise de todas as teorias que se foram desenvolvendo ao longo do tempo.
1.2.1 Teoria concepcionista
Essa teoria, que seguramente exerce forte influência sobre vários segmentos da sociedade,
admite ser o embrião, desde a concepção, algo distinto da mãe e com uma autonomia genéticobiológica que não permite estabelecer nenhuma mudança essencial em sua natureza até a idade
adulta, ou seja, assegura ao embrião a partir da fecundação o status de ser humano ou de pessoa.
4
Embora complexa a realidade que se esconde por detrás da expressão “direito à vida”, Casabona entende como o
“derecho a la propia existencia físico-biológica del ser humano [...]. Se trata, por tanto, de un derecho individual que
recae sobre la vida, sobre la existencia misma, del que somos titulares cada uno de nosotros, cada uno de los seres
humanos en tanto vivimos, en tanto persiste el objeto sobre el que se proyecta tal derecho; un derecho que poseemos
frente a los demás individuos y frente a la comunidad, en particular frente a la comunidad institucionalizada, es decir,
frente al Estado.” (grifos do autor) (1994, p. 25) Esse sentido também é chamado de naturalístico. Em conclusão, o
objeto sobre o qual recai o direito à vida strictu sensu refere-se à sua preservação em todo o ínterim vital, ou seja, do
início da mesma até o seu fim (CASABONA, 1994, p. 27).
22
Martínez esclarece que existem duas vertentes da teoria sob análise: alguns reclamam status de
ser humano ao embrião desde o início do seu desenvolvimento e outros sustentam tratar-se de
pessoa (1994, p. 77).
Em favor da teoria supra, posiciona-se Sgreccia, conhecido bioeticista católico:
Uma vez que o desenvolvimento biológico é ininterrupto e se realiza sem
intrínseca mutação qualitativa, sem que seja necessária uma ulterior intervenção
causal, deve-se dizer que a nova entidade constitui um novo indivíduo humano,
o qual, desde o instante da concepção, continua o seu ciclo, ou melhor, a sua
curva vital. [...] Mesmo quando não é reconhecível a figura humana, há centenas
de milhares de células musculares que já fazem bater um coração primitivo; há
dezenas de milhões de células nervosas que se reúnem em circuitos e se dispõem
na formação do sistema nervoso de uma determinada pessoa. (2002, p. 346)
E conclui: “[...] o todo que aparecerá no final (se por final se entende o nascimento ou a
vida adulta) já está causativa e geneticamente presente no início, também em sentido individual.”
(2002, p. 347)
Manifestando pouca importância à definição jurídica que se dá ao embrião, Sgreccia
posiciona-se no sentido de que o embrião já é o mesmo indivíduo em desenvolvimento e, por
isso, definido como pessoa (2002, p. 347). A partir de uma perspectiva ontológico-personalista5,
defende a essência de pessoa como unidade de espírito e corpo (2002, p. 113), enfatizando que o
momento em que se dá a união da alma com o corpo, o que constitui a unidade da pessoa, é na
concepção (2002, p. 125).
Para Sgreccia, existe relação entre o início da vida biológica e vida pessoal. Quanto aos
embriões e fetos, o autor concorda que os mesmos não têm a capacidade de exercer atividades
5
Na bioética existem diversos conceitos de pessoa, que poderiam ser referidos a duas concepções fundamentais: 1) a
concepção empírico-psicológica de Engelhardt; 2) a concepção ontológico-personalista, que faz o valor da pessoa
provir não de seus atos, mas da própria estrutura ontológica do homem. É defendida principalmente por Sgreccia
(BELLINO, 1997, p. 124).
23
tipicamente humanas, principalmente as mentais (2002, p. 124). Sem embargo, posiciona-se
contrariamente a toda diferenciação ontológica:
Não se pode negar, contudo, que desde o momento da fecundação está
constituída a capacidade real de ativar essas capacidades superiores. [...] Essa
capacidade real se enraíza na própria essência da individualidade humana, cuja
corporeidade é informada e estruturada pelo espírito que a vivifica. É por essa
razão que não se pode afirmar a distinção ontológica, isto é, real entre indivíduo
humano – qualquer que seja o estádio de desenvolvimento a partir da fecundação
– e pessoa humana – qualquer que seja o estado de amadurecimento intelectual.
(grifos do autor) (2002, p. 124)
Do exposto, conclui-se que para Sgreccia a realidade biológica humana é sempre
indissociável da pessoa, visto que se o genoma ou o patrimônio genético está presente todo
inteiro desde a concepção, então esta individualidade biológica humana é pessoa. Assim, o
concebido tem a mesma natureza e dignidade humanas que a pessoa.
Mantovani advoga em favor do sistema da tutela do ser humano, estando ele nascido ou
meramente concebido, por força da prevalência da “humanidade” sobre a “animalidade”,
enquanto for identificável o menor traço de humanidade (2002, p. 192).
Inseridos no campo da biologia, constata-se que os seres vivos têm um padrão de
organização que é bem semelhante em todos eles: todos os seres vivos, exceto vírus, são
constituídos por unidades fundamentais denominadas células.
Consoante Amabis, Martho e Mizuguchi,
as informações hereditárias dos seres vivos, que passam de geração e
determinam os caracteres do indivíduo, são moléculas do ácido
desoxirribonucléico (DNA). As informações, moléculas de DNA, presentes em
todos os seres vivos e transmissíveis dos pais para os filhos, são denominadas
genes. (Gene = DNA) (1976, p. 163)
24
A partir dos autores supracitados, esclarece-se que os genes são moléculas de DNA e
contêm informações a partir das quais a célula produz suas proteínas. As proteínas celulares,
funcionando como enzimas ou como proteínas estruturais, determinam as características das
células e, logo, do indivíduo (1976, p. 209).
Todos os seres vivos têm capacidade de misturar seus genes com os dos outros indivíduos
e originar novos seres, com novas combinações. “A união de duas células germinativas, também
chamadas de gametas haplóides, contendo cada uma 23 cromossomos, forma um zigoto, que é
uma célula diplóide de 46 cromossomos, sendo o número normal para a espécie humana.”
(MOORE, 1991, p. 19) Imediatamente após a fecundação, o zigoto começa a dividir-se
ativamente (divisões mitóticas). Às divisões sucessivas do zigoto dá-se o nome de clivagem ou
segmentação. Dela resultam duas células filhas que recebem o nome de blastômeros (AMABIS;
MARTHO; MIZUGUCHI, 1976, p. 233). Seguindo-se as fases do desenvolvimento embrionário,
“por volta do terceiro dia, uma bola sólida de cerca de 16 blastômeros está constituída, recebendo
o nome de mórula.” (MOORE, 1991, p. 21)
Finda a primeira semana de desenvolvimento, o zigoto passou pelos estágios de mórula e
blastócito e iniciou sua implantação na mucosa uterina (SADLER, 1997, p. 23).
Varga encontra na filosofia aristotélica razões que embasam a teoria concepcionista.
Transcreve-se seu posicionamento:
A maioria dos filósofos contemporâneos, de tradição aristotélica, sustenta, no
entanto, que a forma substancial do homem, isto é, a “humaneidade” está
presente desde a concepção, porque somente a presença de uma causa
especificamente humana pode explicar os efeitos humanos do crescimento
ordenado do conceptus para a criança completamente desenvolvida, que é,
indubitavelmente, um ser humano. (2001, p. 66)
25
Entretanto, Aristóteles defendia o prazo de quarenta dias para que a alma intelectual ou
racional estivesse formada (MARTÍNEZ, 1994, p. 74), sendo que Neri adverte que em se
tratando do sexo feminino esse lapso temporal seria de aproximadamente noventa dias (2004, p.
29). Antes desse prazo, o fruto da concepção seria apenas uma massa destinada a tornar-se ser
humano.
Além das razões acima expostas, Varga defende que a vida humana é um contínuo
desenvolvimento, que inicia na concepção e prossegue até a morte, porquanto não se podem
detectar estágios separados, de modo que a sua natureza permanece sempre a mesma durante todo
o seu crescimento em direção a um ser único que se chama de homem (2001, p. 70).
Diniz é adepta da teoria sob análise, ao afirmar que
o fator determinante do momento da existência do ser humano será a concepção
[...]. O embrião humano é um ser com individualidade genética, dotado de alma
intelectiva e de instintos. Os cientistas descobriram que os genes responsáveis
pelo crescimento embrionário, denominados hox, atuam no ser humano com
grande velocidade nos primeiros dias da concepção, cumprindo a fantástica
tarefa de estabelecer a estrutura do corpo: a cabeça, os membros e os órgãos.
(2001, p. 473)
Ademais, a autora entende que o embrião, por ter carga genética, merece proteção
jurídica desde a concepção, mesmo quando não implantado ou criopreservado (2001, p. 473).
Leite comunga com a mesma teoria ao advogar que desde o primeiro momento de sua
concepção o embrião humano é ser humano, sendo que, vencidas todas as etapas, tornar-se-á
um indivíduo completo, cujo destino biológico encontra-se inscrito no DNA (1996, p. 24).
Nessa perspectiva, o embrião tem direito ao respeito à vida e à dignidade humanas desde a
26
concepção, o que impõe a limitação das experiências suscetíveis de lhe serem praticadas.
(LEITE, 1996, p. 24-25)
Meirelles entende que os caracteres que o recém-concebido leva por toda a sua vida são
determinados desde a concepção, sendo que a sua própria evolução é gerida através do genoma, o
que evidencia a individualidade do embrião desde a fusão dos gametas (2000, p. 103). Por essa
razão, a autora advoga que o embrião criopreservado merece proteção jurídica, eis que pertence à
mesma ordem das pessoas, sendo titular, por isso, do direito à vida e do valor da dignidade (2000,
p. 11; 85).
Em havendo dúvidas acerca do reconhecimento pela ordem jurídica do embrião como
pessoa, não se pode afastar a proteção constitucional ao bem jurídico vida (MEIRELLES, 2000,
p. 137), porquanto é necessário atribuir ao embrião natureza humana desde a fecundação
(MEIRELLES, 2000, p. 104).
Assegurando a proteção ao embrião in vitro, continua Meirelles, estar-se-á protegendo a
vida e dignidade comuns a todos os seres humanos (2000, p. 211-212), razão pela qual advoga
que a proteção à vida, seja ela conservada em laboratório ou implantada, apresenta-se com
titularidade difusa, atingindo, desse modo, toda a coletividade e as futuras gerações (2000, p.
201-212).
No mesmo sentido, Böhmer defende que a partir da fusão dos gametas o indivíduo está
em contínuo desenvolvimento, de modo que qualquer desvinculação do direito integral à vida e
da dignidade do início embrionário da vida tem o caráter de arbitrariedade (2002, p. 74).
Ao encontro da teoria concepcionista, Nalini entende que o embrião é sujeito de direito
com capacidade condicional e qualquer que seja sua localização, in utero ou in vitro, é tutelado
27
pelo direito (1999, p. 129-130), cujo tríplice objetivo é “assegurar sua existência; condicionar e
proteger seu livre desenvolvimento e reconhecer-lhe certos direitos na ordem civil. Essa defesa é
exercida contra todos, inclusive contra os próprios pais genéticos ou legais.” (NALINI, 1999, p.
130)
A posição dominante da Igreja Católica Romana6 defende que a fecundação marca o
momento a partir do qual o concebido deve ser tratado como pessoa humana em formação. Tratase de um momento ético.
Nesse horizonte, transcreve-se o versículo 27 do capítulo 1 de Gênesis, na descrição da
obra de Deus na criação do homem: “e criou Deus o homem à sua imagem; criou-o à imagem de
Deus, e criou-os varão e fêmea.” (Gn 1, 27). Consoante a nota explicativa ao versículo 27, “Deus
não criou o homem deixando-o sozinho; desde o início criou-os homem e mulher e sua união
constitui a primeira forma de comunicação de pessoa.” (BÍBLIA SAGRADA, 1981, p. 26)
De acordo com a nota explicativa à citação de Gênesis, pode-se concluir que a partir da
união entre homem e mulher, o fruto dela resultante é chamado de pessoa. Dworkin afirma que a
posição da Igreja Católica que atribui ao produto da concepção uma alma divina chama-se de
“doutrina da animação imediata” (2003, p. 64). Nesse viés, Mastropaolo concorda com a posição
dominante da Igreja de que a alma está presente desde a concepção (1999, p. 60). A esse respeito,
cita-se a Instrução sobre o Respeito à Vida Humana Nascente e à Dignidade da Procriação, do
Vaticano, presidida pelo Cardeal Ratzinger, hoje Papa da Igreja Católica:
O fruto da geração humana, desde o primeiro momento da sua existência, isto é,
a partir da constituição do zigoto, exige o respeito incondicional que é
6
Quanto ao aspecto teológico envolvido nas questões atinentes ao início da individualidade humana, entende-se
analisá-lo sucintamente, eis que a fixação de limites a certas práticas, a exemplo da pesquisa com embriões, do
aborto, da eutanásia etc, deveu-se e deve-se, de certo modo, a manifestações da Igreja Católica em todo o mundo,
principalmente na América Latina.
28
moralmente devido ao ser humano na sua totalidade corporal e espiritual. O ser
humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a concepção e, por
isso, desde aquele momento devem ser-lhe reconhecidos os direitos da pessoa,
entre os quais, antes de tudo, o direito inviolável à vida de cada ser humano
inocente. (DONUM VITAE, 1987, o.c. I,1)
Do exposto, desde a fecundação do óvulo existe a presença da pessoa, decorrendo “[...]
daí a inviolabilidade do direito do ser humano inocente à vida como um sinal e uma exigência da
inviolabilidade mesma da pessoa à qual o Criador concedeu o dom da vida.” (DONUM VITAE,
1987, p. 16) Para a Igreja, salvo posições divergentes, a vida humana (cujo conceito é equiparado
à pessoa), a partir da concepção, tem valor intrínseco (dignidade) e sagrado7, sendo que todos
devem se empenhar em não dispor ou sacrificar essa vida.
A vida humana “é uma realidade ética e religiosa, cuja saúde e vigor dependem de uma
integração superior da vontade humana com a vontade de Deus.” (DONUM VITAE, 1987, p. 17)
A teoria da animação imediata defende que a alma é infundida desde a concepção. Sem
embargo, a Igreja nem sempre se posicionou dessa forma perante a vida nos seus primeiros
estágios de desenvolvimento. Alertando para a existência de outra hipótese, Martínez, tomando
em consideração o pensamento de Zanotti, assinala que em duas passagens do Antigo Testamento
(nos Livros do Gênesis e Êxodo) pode-se encontrar fundamentação à teoria da animação
retardada, em que a alma era infundida quando o feto assumia forma humana. Antes de o corpo
estar formado (corpus informatum), eventual conduta contrária a esse “ser” não podia ser
tipificada como homicídio (1994, p. 73).
Consoante Ferrater Mora, um dos primeiros autores, segundo alguns, o primeiro, que
desenvolveu a noção de pessoa no pensamento cristão foi Santo Agostinho (1994, p. 2759-2760).
7
Sagrado “[...] é a qualidade excepcional – boa ou má, benéfica ou maléfica, protetora ou ameaçadora – que um ser
possui e que o separa e distingue de todos os outros [...].” (CHAUÍ, 1997, p. 298)
29
Santo Agostinho desenvolveu a noção de pessoa na obra “A Trindade”, considerada um
monumento teológico e filosófico. Por essa razão, as bases teológicas sobre o conceito de pessoa
repousam no pensamento do Santo.
Santo Agostinho equivale os termos “homem” e “pessoa” ao afirmar que “cada homem
tomado separadamente é uma pessoa humana” (1994, p. 494), eis que pessoa é termo genérico, de
modo que se pode chamar um homem de pessoa, embora haja grande diferença com as pessoas
divinas (1994, p. 248).
O homem/ pessoa criado por Deus Trindade, consoante Santo Agostinho, pode ser
sintetizado na unidade da alma e do corpo (1994, p. 149), evidenciando-se a superioridade da
alma em relação ao corpo (1994, p. 166-167).
Quanto à natureza da alma, o Santo enfatiza que é racional (1994, p. 325), porquanto o
homem foi criado à imagem de Deus não segundo a forma corpórea, mas conforme a sua alma
racional (1994, p. 376). Enfim, Santo Agostinho define a pessoa como “[...] uma substância
racional que consta de alma e corpo [...].” (1994, p. 493)
No que atine à questão central da presente investigação, necessário assinalar que Santo
Agostinho sustentou que a infusão da alma racional dá-se após iniciada a gestação, hipótese que
se dá o nome de animação retardada (1994, p. 495), o que leva a entender que retira do rol de
pessoas o óvulo fecundado in vitro e localizado no laboratório, bem como os embriões
implantados no útero nas primeiras etapas de desenvolvimento.
Consoante Ferrater Mora, Santo Tomás de Aquino manifesta a opinião de que os
indivíduos de natureza racional possuem entre as primeiras substâncias um nome que os distingue
de todas: o nome pessoa. Assim, diz-se da pessoa que é substância individual, com o fim de
30
designar o singular no gênero da substância, e agrega-se que é de natureza racional, para
demonstrar que se trata de uma substância individual da ordem das substâncias racionais. Pessoa
designa o suporte individual racional (1994, p. 2761).
Sgreccia observa que Tomás de Aquino alerta que a alma está unida ao corpo
substancialmente e não acidentalmente, sendo a alma a forma substancial do corpo (2002, p.
123). Quanto ao momento em que se dá a infusão da alma racional, Dworkin comenta que o
grande Filósofo católico do século XIII, Tomás de Aquino, afirmou categoricamente que “[...] o
feto não tem uma alma intelectual ou racional no momento em que é concebido, mas que a
adquire em algum momento posterior – quarenta dias no caso de um feto masculino, segundo a
doutrina católica tradicional, e mais tarde no caso de um feto feminino.” (2003, p. 56) Esse “mais
tarde”, consoante Lombardo, seria de oitenta dias (MARTÍNEZ, 1994, p. 74). Tomás de Aquino
aceitou a teoria aristotélica da geração, posicionando-se em defesa da teoria da animação
retardada. Antes de o termo final desse prazo, os atentados à vida do concepto não representavam
crime, eis que ainda não havia alma racional.
Somente a partir do século XVII registra-se uma prédica em favor das pessoas não
nascidas, seja o feto animado ou não, formado ou não, repudiando todo tipo de procedimentos
abortivos (MARTÍNEZ, 1994, p. 59; 75), a exemplo do que preconiza a Instrução supracitada.
Na atualidade, os pensadores católicos, em sua maioria, advogam em favor da existência
da vida humana desde o primeiro momento da concepção e visualizam o embrião como pessoa
real, completa. Nesse sentido, Varga comenta que a Declaração sobre o Aborto Internacional,
elaborada pela Sagrada Congregação da Doutrina da Fé, insiste que, embora a alma espiritual seja
infundida após a fertilização, a vida humana está presente a partir da concepção. Ainda que haja
dúvida acerca da humanidade do concepto, não é permitido pôr em perigo a vida de um ser que,
31
possivelmente, já é um ser humano com uma alma espiritual (2001, p.66). E, encerra: “a
Declaração insiste que o problema do início da vida humana não é um problema científico, mas
filosófico e ético.” (VARGA, 2001, p. 67)
Mastropaolo afirma que, embora não se concorde com as formas de reprodução assistida,
um pecado ainda mais grave seria o assassinato do fruto resultante da técnica (1999, p. 27). E
conclui, enfatizando o valor de que se reveste o embrião:
Se o embrião é corretamente considerado um homem, como o é e deve ser, não
pode atentar, de modo algum, contra sua vida. Se intervenções de caráter clínico
devem ser admitidas para o bem de sua saúde, não é possível permitir
manipulações em seu patrimônio genético com finalidades apenas experimentais
e, nem tampouco, ações que lhe tirem a vida. (1999, p. 27)
Ademais, o autor, ao advogar que o embrião tem direito à saúde e à vida, defende que a
sua dignidade exige a tutela de leis (1999, p. 51).
Mattei adverte para o fato de não se poder querer limitar a noção de embrião a um período
de tempo, com começo e fim, haja vista que é parte de um processo vital. O embrião é a
“expressão morfológica temporária” de uma só e mesma vida que começa com a fecundação e
encerra com a morte, passando por outras fases, como a do ovo fecundado, embrião, feto, recémnascido, criança, adolescente, adulto e idoso (1996, p. 47-48).
Martínez, com base no significado do vocábulo Ser, acredita que o embrião no primeiro
estágio de desenvolvimento é um ser, é uma “cosa dotada de vida” (1994, p. 78). Entretanto, a
autora adverte “[...] que esta formación celular humana, viva, sea valorativamente equiparable a
un embrión implantado, a un feto de seis meses e incluso a un sujeto adulto, importa tán solo un
forzado intento de igualar realidades ontológicamente diversas” (1994, p. 78), advogando não
32
poder haver equiparação entre embriões e fetos, visto que existem graus de proteção penal
diversos (1994, p. 97).
Quanto à necessidade de proteção dos embriões criopreservados, Martínez afirma que no
estado atual da ciência e dos avanços da biologia, “[...] luce un tanto riesgoso equiparar la
implantación - que indudablemente implica el comienzo del embarazo - con el inicio de la vida
humana, ya que [...] se deja absolutamente desprotegidos a los óvulos fecundados in vitro [...]”.
(1994, p. 84) Entretanto, a autora descarta a utilização do termo “ser humano” para referir-se ao
óvulo fecundado em seus primeiros quatorze dias de existência. Ela prefere utilizar o termo préembrião ou, de modo mais preciso, “sustancia embrionaria humana” (1994, p. 91), sendo tal
substância digna de receber proteção jurídico-penal (1994, p. 92).
Entretanto, a autora não advoga em favor do valor absoluto da substância embrionária,
que pode ceder frente a outros valores superiores:
Por el valor que la sustancia embrionaria humana posee en función de la
supervivencia de su especie merece protección específica y diferenciada, que sólo
cederá cuando exista un interés jurídico de valor superior que, teniendo
exclusivamente en mira el beneficio de la humanidad, permita que aquella sea
lesionada o destruida. (1994, p. 93)
Na mesma esteira, a citada autora ratifica que também não conspira contra a substância
embrionária as experimentações que se façam contra a mesma sempre e quando tais práticas
visem a erradicar doenças lesivas à humanidade (1994, p. 99).
Quanto ao início da vida humana, na seara do direito civil brasileiro muitos advogam que
se dá com a concepção, porquanto a partir desse momento a lei civil estende seu manto protetivo
em prol da vida embrionária. Basta ter presente o que dispõe o art. 2º do CCB/02. O que não se
33
pode olvidar é que o conceito de nascituro8 pressupõe que o concebido esteja localizado in utero,
ao encontro do que preconiza a teoria da nidação, que se verá a seguir. A possibilidade de
equiparação entre embrião criopreservado e embrião implantado no que concerne aos seus
direitos é matéria que causa discussão, sendo que até o momento, sob a perspectiva jurídica, não
existe tal equiparação9.
Singer disserta sobre o ponto de vista conservador: os conservadores chamam a atenção
para a continuidade existente entre o óvulo fecundado e a criança e desafiam os liberais a
apontarem qualquer estágio desse gradual processo que marque uma linha limítrofe de
significância moral. Os conservadores insistem que se deve conferir ao embrião o status de
criança ou fazer com que esta tenha o seu status reduzido ao de um embrião, exceto se essa linha
de fato existir (1998, p. 148).
A partir da análise de uma visão conservadora, o supracitado autor demonstra que a
doutrina do caráter sagrado da vida preconiza que:
Primeira premissa: é errado matar um ser humano inocente;
Segunda premissa: um feto humano é um ser humano inocente;
8
Conceitua-se o termo nascituro consoante De Plácido e Silva: nascituro é aquele que tem expectativa de nascer. É o
ente que está gerado ou concebido, tem existência no ventre materno, está em vida intra-uterina. Sem embargo,
como não nasceu ainda, não iniciou sua vida como pessoa. Embora o nascituro, em realidade não se tenha como
nascido, ou seja, separado do corpo materno, por uma ficção legal é tido como nascido, para que a ele se assegurem
os direitos que lhe cabem a partir da concepção. O nascituro tem-se como nascido quando se trata de garantir seus
interesses. Entretanto, para que se tenha o nascituro como titular dos direitos que lhe são reservados ainda em sua
vida intra-uterina, é necessário que nasça com vida (2002, p. 549).
9
Afora a distinção civil entre embrião criopreservado e nascituro, na esfera Penal não há que se cogitar a
equiparação ao aborto quanto aos atentados ao embrião in vitro. Vige em nosso sistema o princípio da legalidade,
inscrito no art. 5°, XXXIX da CFB/88 e art. 1º do Código Penal. Nesse sentido, Martínez esclarece: “[...] tratándose
el derecho penal de un sistema discontinuo de ilicitudes que descarta la posibilidad de toda interpretación analógica,
entiendo que, a fin de no vulnerar el principio de legalidad, debe crearse un tipo penal específico.” (1994, p. 127) Em
não havendo tipificação legal, não há razão para pleitear a equiparação, mormente quando se tratam de situações
diferentes. Assim, quanto à equiparação, bastante contestável, há um longo caminho a percorrer, visto que depende
de Lei.
34
Conclusão: logo, é errado matar um feto humano (1998, p. 159).
Essas premissas conservadoras que protegem de forma absoluta a vida fetal também
podem ser aplicadas à vida embrionária, haja vista que para os conservadores existe um ser
humano que deve ser protegido desde o momento da concepção.
Sem embargo, Singer divide humano em duas noções distintas: ser um membro da espécie
Homo sapiens e ser uma pessoa. Assim, com base em tais distinções, o autor levanta argumentos
contrários às premissas conservadoras, que são aplicados tanto a fetos como a embriões (1998, p.
160). Nesse horizonte, transcreve-se o seu pensamento:
Se “humano” for tomado como equivalente de “pessoa”, a segunda premissa do
argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é claramente falsa, pois não
se pode, plausivelmente, argumentar que o feto seja um ser humano. Por outro
lado, se “humano” for tomado apenas com o significado de “membro da espécie
Homo sapiens”, então a defesa conservadora da vida do feto tem por base uma
característica que carece de significação moral e, portanto, a primeira premissa é
falsa. (1998, p. 160)
Ademais, Singer alerta que “no existe un ‘momento’ de la concepción. La concepción de
los seres humanos es un proceso que dura unas veinticuatro horas [...] en una fase conocida como
singamia.” (1997, p. 102) De fato, a embriologia (CATALA, 2003, p. 106; MOORE, 1991, p. 1821; SADLER, 1997, p. 20-23) tem demonstrado que a fase da concepção é um processo que dura
mais ou menos 1 (um) dia. Nesse sentido, Martínez admite que o processo da fecundação dura
entre 10 e 25 horas, de modo que essa constatação cria uma dificuldade de se definir em que
momento exato pode-se sustentar que existe um novo ser (1994, p. 77).
A partir do que foi exposto acerca da teoria em tela, conclui-se que para a teoria
concepcionista a vida começa a partir da união do óvulo com o espermatozóide (concepção),
estando in vitro ou in utero, sem diferenciação no tocante aos dias de desenvolvimento, devendo
35
ser assegurado o mesmo tratamento jurídico-legal em qualquer estágio. Assim, desde o primeiro
instante da fecundação em diante, o embrião seria inocente, humano e estaria vivo, sendo que a
disposição dessa vida, independente dos argumentos invocados, não se justifica.
Em sentido contrário, há os que defendem que o início da individualidade humana não se
dá com a concepção, mas em um momento posterior, ou seja, quando feito o implante do zigoto
no útero, razão pela qual é nominada de teoria da nidação.
1.2.2 Teoria da nidação
A segunda teoria marca o início da vida apenas depois de ocorrer a nidação, isto é, quando
feito o implante do zigoto no útero materno. Nesse sentido, Catala esclarece que a segunda
semana do desenvolvimento corresponde à fase da implantação do blastócito na mucosa uterina
e, por esse motivo, é comumente denominada de nidação (2003, p. 126). O processo de
implantação inicia-se na segunda semana e chega a termo no final da mesma. A propósito,
comenta Sadler: “no fim da segunda semana o blastócito apresenta-se completamente inserido, e
a lesão na superfície da mucosa está totalmente cicatrizada.” (1997, p. 33) Ressalta-se que a
caracterização de nascituro, como referido alhures, prescinde de implantação no útero.
Transcreve-se a lição de Catala quanto à importância da nidação à gestação: nos
mamíferos, a nidação é o processo fundamental, essencial que garante o prosseguimento da
gestação, pois possibilitará ao embrião entrar em contato com o organismo materno e, assim,
receber suprimentos nutricionais (2003, p. 126). Do exposto, é a nidação que fornece condições
favoráveis ao desenvolvimento do zigoto ou do pré-embrião.
36
Dworkin, ao tratar das objeções ao aborto, as divide em duas: a objeção derivativa é
baseada no fato de que os fetos têm direitos a que todos os seres humanos têm de proteger esses
interesses, inclusive o direito de não serem mortos (2003, p. 12-13). No entanto, a principal
objeção ao aborto pode ser chamada de independente, traduzida no fato de que a vida humana
tem um valor intrínseco e sagrado, e que, portanto, deve ser respeitada desde o seu início (2003,
p. 13). “O caráter sagrado da vida humana começa quando sua vida biológica se inicia, ainda
antes de que a criatura à qual essa vida é intrínseca tenha movimento, sensação, interesses ou
direitos próprios.” (DWORKIN, 2003, p. 13)
A batalha sobre o aborto tem uma natureza quase religiosa se for travada em nome do
valor intrínseco e cósmico da vida humana, como de fato Dworkin acredita, porquanto entende
ser difícil recepcionar a idéia de que o feto tem interesses próprios, mormente o de não ser
destruído desde a concepção (2003, p. 19).
O citado autor enfatiza a dificuldade de se definir exatamente quando começa a vida
biológica de qualquer animal. Entretanto, denotando apego à teoria sob análise, posiciona-se:
Parece inegável que um embrião humano é um organismo vivo identificável ao
menos no momento em que é implantado em um útero, o que ocorre mais ou
menos quatorze dias após a concepção. Também é inegável que as células que
compõem um embrião implantado já contêm códigos biológicos que irão reger
seu desenvolvimento físico posterior. Quando uma pessoa que se opõe ao aborto
insiste em que o feto é um ser humano, é possível que esteja apenas querendo
afirmar esses fatos biológicos inegáveis. (2003, p. 29)
Do exposto, para Dworkin, a vida de um organismo teria início em torno dos quatorze
dias da concepção, o que se pode concluir que antes desse estágio não há que se falar na presença
de uma vida humana. Outrossim, o autor esclarece que na expressão “um organismo vivo” está
37
ignorando a possibilidade de que um embrião possa resultar em gêmeos, inclusive depois da
implantação no útero (2003, p. 29).
Afora os entendimentos preliminares, necessário enfatizar que toda a obra de Dworkin
centra-se na assertiva de que toda vida humana, uma vez iniciada, tem um valor intrínseco e
sagrado10 11, independente de seu valor pessoal. A preocupação e a proteção centram-se no valor
“em si” da vida humana.
Soa um tanto paradoxal defender o valor intrínseco e a inviolabilidade da vida humana
“desde o início” e não se preocupar com o momento em que se dá esse início. Nesse viés, em
que pese a questão central da obra de Dworkin não ser a de quando a vida humana inicia-se, o
autor ratifica a teoria sob análise:
O desenvolvimento fetal é um processo de criação contínuo, um processo que
mal começou no instante em que ocorre a concepção. De fato, uma vez que a
individuação genética ainda não se consumou a essa altura, poderíamos dizer
que o desenvolvimento de um ser humano com características únicas só vai
iniciar-se cerca de quatorze dias mais tarde, no momento da implantação. Depois
desta, porém, à medida que prossegue o crescimento do feto, o investimento
natural que o aborto poria a perder torna-se cada vez maior e mais significativo.
(2003, p. 123)
Noutra passagem, Dworkin afirma que “o aborto é a perda de uma vida humana que se
inicia. A morte ocorre antes que a vida tenha de fato começado.” (grifo nosso) (2003, p. 251)
Pode-se intuir a partir do autor que se o aborto (que pressupõe implantação e um mínimo de
10
Em algumas passagens, o autor prefere utilizar o termo inviolável em vez do termo sagrado.
No que concerne à sacralidade da vida, Dworkin assinala que o sagrado é intrinsecamente valioso apenas pelo fato
de existir (2003, p. 102). Ademais, “uma coisa é sagrada ou inviolável quando sua destruição deliberada desonra o
que deve ser honrado.” (2003, p. 103) O caráter sagrado reflete também a necessidade de garantir a sobrevivência da
espécie e das gerações futuras (2003, p. 106-107), sendo que a essência da sacralidade encontra-se no valor que se
atribui a um processo e não a seus resultados, considerados independentemente da forma como foram obtidos (2003,
p. 108).
11
38
desenvolvimento embrionário) não põe fim a uma vida, com muito mais razão a pesquisa e a
terapia com células-tronco embrionárias não eliminam uma vida humana.
Ao se referir às posições divergentes acerca do aborto, Dworkin comenta que tanto
liberais como conservadores, na sua maioria, acreditam que a vida de um ser humano tem valor
intrínseco12 independente da forma que assuma, inclusive a forma demasiadamente inicial de um
embrião recém-implantado (2003, p. 96). Assim, muitos conservadores ratificam a necessidade
da implantação do embrião, o que torna indefensável a teoria concepcionista.
Em que pese não ser adepto da teoria em tela, Sgreccia colaciona os argumentos dos seus
defensores: “[...] no momento da implantação o blastocisto passaria do estado de totipotência13
para o de unipotência, desenvolvendo-se desse momento em diante somente como ser humano e
somente naquele ser humano.” (2002, p. 349)
Martínez assinala que mesmo dentro da ideologia Católica existe um importante grupo de
pensadores (dentre eles: Böckle, Chiavacci, Curran, McCormick, Fuchs etc) que adere à presente
teoria, por entenderem que o importante salto qualitativo dá-se no momento da fixação do zigoto
no útero (1994, p. 79).
Berlinguer ratifica que a implantação é o evento fundamental para o desenvolvimento do
embrião, haja vista que somente depois do implante iniciam os processos morfogenéticos, que
12
O que significa dizer que a vida humana é intrinsecamente valiosa? Preliminarmente, Dworkin responde que uma
coisa é “instrumentalmente importante se seu valor depender de sua utilidade, de sua capacidade de ajudar as pessoas
a conseguir algo mais que desejam. [...] Uma coisa é subjetivamente valiosa somente para as pessoas que a desejam.
[...] Uma coisa é intrinsecamente valiosa, ao contrário, se seu valor foi independente daquilo que as pessoas
apreciam, desejam ou necessitam, ou do que é bom para elas.” (grifos do autor) (2003, p. 99). Quanto à vida humana,
o autor acredita que ela é valiosa nos três sentidos acima descritos (2003, p. 101).
13
Sgreccia esclarece os termos totipotência e unipotência: totipotência é a “possibilidade de todas as células
derivadas do zigoto exprimirem, cada uma, o programa genético completo do indivíduo, sem ser necessária a sua
integração para exprimirem tal programa. À integração, dá-se o nome de unipotência.” (2002, p. 349) Quanto à
totipotência, Martínez assinala que é outro indício destinado a demonstrar a falta de unicidade do óvulo fecundado
não implantado (1994, p. 81).
39
conduzem à diferenciação dos tecidos e órgãos. Assim, o começo da vida de um indivíduo é
imputado ao início dos processos morfogenéticos (1993, p. 41). E, o mesmo autor, inserido na
perspectiva jurídica, ressalta que os “direitos em evolução” (ou, como o direito civil brasileiro
prefere nominar, de expectativa de direitos, garantidos desde a nidação até o nascimento com
vida) estariam assegurados por força da nidação e não da concepção, visto que a fecundação não
é condição suficiente (1993, p. 42). E continua, ao evidenciar a importância de que se reveste a
nidação: “nesta fase acontece a diferenciação celular e o aparecimento dos fenômenos
imunológicos que constituem o aspecto diferenciador das outras espécies e também dos outros
indivíduos da mesma espécie.” (1993, p. 42)
Galdino e Fujita posicionam-se contrariamente à teoria concepcionista, advogando que é a
nidação que permite o crescimento ou desenvolvimento do embrião (2004, p. 58-59). Ao
mencionarem as técnicas reprodutivas em laboratório, os autores acreditam que somente com o
início do processo de nidação, ou seja, com a introdução do pré-embrião no útero da mulher e a
sua fixação completa, é que tem início a vida intra-uterina (2004, p. 58). Assim, o óvulo
fecundado em laboratório não poderia ser considerado marco inicial da vida humana, porquanto é
a nidação que garante a sobrevida e a viabilidade do ovo.
Consoante Scarparo, ao encontro da teoria sob análise, a vida humana individual teria
início somente no sétimo dia após a concepção: no momento da implantação, a célula
embrionária desenvolver-se-ia e evoluiria como um novo ser (1991, p. 42).
Martínez traz outro argumento invocado pelos defensores da teoria da nidação: fenômenos
fisiológicos provocam uma seleção natural no período compreendido entre a fecundação e a
nidação, onde somente 50% dos zigotos aderem-se ao útero materno, sendo o resto perdido. Uma
vez ocorrida a implantação, a perda reduz-se ao máximo em 20% (1994, p. 83). Isso demonstra a
40
instabilidade do embrião antes dessa data e o caráter seletivo desses abortos antes da nidação, pois
se comprovou que elevado número (que pode atingir 80%) desses óvulos fecundados abortados
são também portadores de graves patologias cromossômicas ou de malformações congênitas
(CASABONA, 1994, p. 150).
Outrossim, deixando de lado considerações estritamente biológicas, Martínez comenta
que os que defendem a teoria da nidação invocam que o zigoto implantado entra em contato com
a mãe, estabelecendo com ela uma relação de alteridade. Por esse fato, adquiriria transcendência.
Ademais, conclui no sentido de que a teoria em tela tem o atrativo de oferecer uma data
relativamente determinável a partir da qual operaria o amparo legal (1994, p. 84).
Adentrando-se na seara da proteção legal, a supracitada autora traz o conteúdo da
sentença do Tribunal Constitucional da Espanha, datado de 11 de abril de 1985.
Tal sentença estabelece que a gestação gerou um tertium existencialmente distinto da mãe
(MARTÍNEZ, 1994, p. 90). Embora a sentença seja omissa ao debater acerca do começo da vida,
o Tribunal “ha optado por la teoría de la anidación”, por força da escolha do termo “gestação” e
não “concepção” para marcar o começo da obrigação de proteção do tertium (MARTÍNEZ, 1994,
90).
Casabona observa que a Sentença do TC Espanhol (STC 53/1985), em resumo, protege a
vida do concebido desde o início da gestação, pelo fato de o nascituro encarnar um valor
fundamental, ou seja, a vida humana. Assim, o Texto Constitucional Espanhol (art. 15) protege a
vida do nascituro por força do argumento de que a vida humana é um processo que começa com a
gestação e segue até a morte, no curso da qual uma realidade biológica torna-se corpórea e
sensitiva (1994, p. 82-83).
41
A sentença do TC alemão14, de 28 de maio de 1993, também afirma a titularidade do
direito por parte do concebido (CASABONA, 1994, p. 83). Dessa sentença, Martínez extrai que
“conforme a la definición de embarazo aceptada en Alemania, tal tutela no alcanza a los primeros
trece días a contar desde la concepción.” (1994, p. 89)
Outrossim, o Código Civil da República Argentina também aceita a teoria da nidação, ao
dispor no seu art. 7015 que a vida das pessoas começa a partir da concepção no útero materno,
sendo resguardados alguns direitos a partir desse momento.
Necessário concluir que o conjunto das divisões celulares do ovo que se seguem à
fecundação e levam à formação do blastocisto não pode prosseguir além desse estágio. Assim,
para que o seu desenvolvimento continue até que o feto esteja formado, deverá haver a
implantação do blastocisto no útero.
Acerca da teoria sob análise e a diferenciação existente entre embrião localizado
intracorporeamente e extracorporeamente, posiciona-se Scarparo:
Não seria viável falar de vida enquanto o blastócito ainda não conseguiu a
nidação, o que se daria somente no sétimo dia, quando passa a ser alimentado
pela mãe. Esse monto é que marcaria a presença da vida, uma vez que ele tem
agora possibilidades de evoluir como um novo ser. E isso não é possível com o
óvulo fecundado in vitro, já que ele não tem, atualmente, qualquer viabilidade de
desenvolvimento fora do útero materno. (1991, p. 42)
14
O TC Alemão determinou claramente, em seus dois acórdãos sobre a interrupção da gravidez, que a vida em
formação encontra-se sob a proteção da Constituição e que o Estado está obrigado integralmente à sua proteção. Sem
embargo, ainda que tais acórdãos diziam respeito à gravidez após a nidação, não há argumentos que permitam
concluir que a vida antes desse estágio não devesse ser protegida (BÖHMER, 2002, p. 76).
15
O art. 70 do Código Civil Argentino dispõe que “desde la concepción en el seno materno comienza la existencia de
las personas; y antes de su nacimiento pueden adquirir algunos derechos, como si ya hubiesen nacido. Esos derechos
quedan irrevocablemente adquiridos si los concebidos en el seno materno nacieren con vida, aunque fuera por
instantes después de estar separados de su madre.”
42
Do exposto, tal teoria exclui a proteção do embrião localizado in vitro, eliminando toda
dúvida acerca da destruição de embriões obtidos in vitro e ainda não implantados no útero. Os
defensores dessa teoria não equiparam a condição do embrião in vitro à de nascituro, pelo fato de
o conceito de nascituro pressupor que o embrião esteja implantado no útero materno, conforme
visto alhures. Em sentido jurídico, o embrião criopreservado não ostenta a mesma natureza
jurídica do nascituro, de modo que a correlação entre ambos não se justifica, independente do
contexto em que é invocada.
Em meio a acirradas discussões, Casabona traz uma distinção: o autor entende que a
proteção da vida humana inicia com a gestação, e não propriamente a vida humana inicia com ela
(1994, p. 138).
Baseando-se na teoria que defende a individualização do embrião, sua singularidade
biológica, a partir da implantação no útero, Lacadena
propone separar el instante del comienzo de la vida (el de la fecundación) del
momento del comienzo de la vida humana, de cuándo habrá ya humanidad y no
sólo un conglomerado de células humanas, fijándose como factor decisivo en la
individualización, el momento en que se adquiere la categoría biológica de
individuo, la cual requiere unicidad – la calidad de ser único – y la unidad –
realidad positiva que se distingue de toda otra. (grifos do autor) (CASABONA,
1994, p. 148-149)
Contrariamente, sustentando posição que garante e protege16 o concebido, ainda que
situado in vitro, Braga posiciona-se:
16
Leite, rebatendo a teoria em tela, salienta que a vida humana inicia no exato momento da fecundação, antes,
portanto, de o ovo implantar-se no útero, eis que a nidação somente garante o prosseguimento de um processo vital já
em andamento ( 1995, p. 184).Sgreccia posiciona-se no sentido de que sem a implantação do zigoto no útero materno
não seria de vida a sorte do embrião, do mesmo modo que sem alimentação a criança não poderia sobreviver depois
do ingresso à vida extra-uterina. Sem embargo, não é a nidação que faz o embrião ser embrião, assim como não é o
leite materno que faz a criança ser uma criança (2002, p. 352).
43
Defende-se que, embora o legislador do Código Civil Brasileiro, ao estabelecer a
regulamentação jurídica do ser localizado no ventre materno, não tivesse
cogitado a hipótese da concepção extracorpórea, não há que se tratar o mesmo
ser de forma diferenciada, em razão de sua localização fora ou dentro do útero.
Acredita-se que a preocupação do legislador tenha sido a de proteger o ser
concebido desde o momento da concepção. (1999, p. 81)
Adentrando-se na esfera penal, Damásio de Jesus entende que desde a concepção o
Direito Penal protege o embrião ou feto como pessoa (2001, p. 120). Ademais, ao referir-se ao
sujeito passivo do crime de aborto, o autor comenta:
A proteção penal ocorre desde a fase em que as células germiniais se fundem,
com a resultante constituição do ovo, até aquela em que se inicia o processo de
parto. Dessa forma, embora se fale comumente que o sujeito passivo é o feto, o
Código não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto. (2001, p. 122)
Noronha, ao tratar da objetividade jurídica do crime de aborto, afirma que esta é a vida, e
essa vida é protegida desde a concepção, haja vista que o aborto significa a morte do ovo,
embrião ou feto (2001, p. 54). E esclarece:
Claro é que não se trata de vida autônoma, mas não há que se negar que durante
a gestação já existe vida. Em qualquer momento, o produto da concepção está
vivo, pois cresce e se aperfeiçoa, assimila as substâncias que lhe são fornecidas
pelo corpo materno e elimina os produtos de recusa; executa, assim, funções
típicas de vida. De qualquer modo é uma vida em formação ou elaboração.
Chame-se vida intra-uterina, fetal, feto-placental etc, a verdade é que ali existe
uma vida humana em germe. (2001, p. 55)
No tocante à objetividade jurídica no crime de aborto, Pierangeli posiciona-se no sentido
de que o bem jurídico tutelado pelo Código Penal é a vida intra-uterina desde a concepção,
harmonizando-se, desse modo, com o Código Civil (2005, p. 111). Outrossim, o autor assinala
que a vida intra-uterina (gravidez) inicia com a fecundação, dando origem ao ovo ou zigoto
(2005, p. 112).
44
A posição de Pierangeli é ratificada por Mirabete, que assim se posiciona: “a gravidez se
estende desde a concepção até o início do parto [...].” (2001, p. 791) Em continuação, Mirabete,
ao descrever o tipo objetivo do crime de aborto, corrobora as definições supracitadas,
manifestando-se no sentido de que o objeto material do delito é o zigoto, embrião ou feto, sendo
que, consoante a doutrina, a vida intra-uterina inicia-se com a concepção (2002, p. 94).
Bitencourt, ao tratar do bem jurídico tutelado no crime de aborto, entende que o “sujeito
passivo, no auto-aborto e no aborto consentido (art. 124), é o feto, ou, genericamente falando, o
produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto.” (grifos do autor) (2002, p. 157)
Sem embargo, embora pareça que defendam a teoria concepcionista, tanto civilistas como
penalistas referem-se à proteção do nascituro e não à do embrião criopreservado. E, como
referido, não há como se advogar em favor da equiparação entre ambos, na medida da
diferenciação biológica e jurídica existente entre eles.
Sucintamente, o Código Civil Brasileiro protege o nascituro como expectativa de direitos17
até que haja o nascimento18
17
19
com vida20, momento em que os direitos, taxativamente previstos
Ao encontro da posição que vê no nascituro uma expectativa de pessoa e, logo, de direitos, vide Pereira (2002, p.
145), Pontes de Miranda (1954, p. 179), Rodrigues (2002, p. 36), Serpa Lopes (1996, p. 289) e Venosa (2002, p. 159160).
18
Na concepção jurídico-civil, a personalidade “– el ser persona – significa ser sujeto de derechos y obligaciones y
de relaciones jurídicas privadas, partiendo de una concepción primordialmente patrimonialista [...], al menos en sus
orígenes.” (CASABONA, 1994, p. 144) Entende-se que a personalidade civil, como a capacidade genérica de ser
sujeito de direitos (REALE, 2002, p. 232), inicia-se do nascimento com vida, ao encontro do que preconiza a teoria
natalista. São adeptos de tal posição: Pereira (2002, p. 147), Pontes de Miranda (1954, p. 162), Rodrigues (2002, p.
35), Serpa Lopes (1996, p. 289) e Venosa (2002, p. 159-160). Contrariamente, a teoria verdadeiramente
concepcionista, na qual são adeptos Teixeira de Freitas, Clóvis Bevilácqua, Carlos de Carvalho, Planiol e França,
defende que a partir do primeiro instante da concepção o ser humano é protegido pelo Direito como se fosse pessoa
nascida, com a exceção de que os efeitos dos direitos patrimoniais ficam condicionados ao nascimento com vida.
Nesse viés, ressalta-se que a proteção conferida por França é dirigida ao nascituro (1966, p. 127-130). Logo, a
proteção aos embriões criopreservados fica a descoberto.
19
O nascimento é um processo mais ou menos longo, processo que se inicia com o começo do parto e conclui com o
total desprendimento do feto, não sendo exigido para sua configuração o corte do cordão umbilical (CASABONA,
1994, p. 156-158). A separação do recém-nascido das vísceras da mãe pode se dar por via natural ou artificial
(VENOSA, 2002, p. 159), sendo que França adverte que a perícia deve atentar para o fato de que não se trate de
aborto (1966, p. 130).
45
em lei, conferidos a ele retroagem ao momento da sua implantação no útero. Tal entendimento,
aliado à posição dos penalistas supra, conduz à conclusão de que a proteção, tanto civil quanto
penal, inicia-se a partir da implantação do zigoto, pré-embrião ou embrião (como quer se
denomine) no útero materno. Entende-se que o sentido de concepção a que os Códigos Civil e
Penal referem-se está indissociavelmente vinculado com a implantação do ovo no útero. Basta ter
presente que os citados penalistas tratam da objetividade jurídica no crime de aborto (que
pressupõe implantação no útero). Ademais, Noronha refere-se ao termo “gestação” e evidencia a
importância da relação com o corpo materno. Como se disse, gestação pressupõe nidação.
Pierangeli, por sua vez, assinala que o bem jurídico que o Código Penal tutela é a vida intrauterina, ratificando a necessidade da prova de gravidez, posição também sustentada por Mirabete
e Bitencourt.
A gravidez não é reconhecida fora do útero materno. Quando os penalistas advogam a
proteção da vida desde a concepção, essa concepção deve ser entendida como implantação, já que
se não há implantação e nidação do zigoto na parede uterina não há gestação, e sem gestação não
há gravidez, e sem gravidez não há proteção legal contra os atentados dirigidos ao embrião.
Citando Lacadena, Martínez afirma que a constatação de sinais de gravidez não é possível em
não se verificando a nidação (1994, p. 83). Outrossim, a autora traz a informação de que a
Sociedade Alemã de Ginecologia entende não haver gravidez até a completa fixação do zigoto no
20
O nascimento com vida constitui matéria de fato a ser apurada mediante perícia médico-legal. Maranhão assinala
que o fundamento básico para o início da vida extra-uterina autônoma tem sido a demonstração de que o feto
respirou, nominando de “docimasias respiratórias” as provas que visam a tal demonstração (2002, p. 201). Consoante
o autor, existem provas diretas (radiográfica, diafragmática, visual, hidrostática e epimicroscopia) e indiretas
(gastrointestinal e auricular) (2002, p. 201-202), sendo que, pelo momento, limita-se a analisar a prova mais
conhecida e praticada, razão pela qual inspira maior confiabilidade para o fim de averiguar se a criança recémnascida respirou. Tal prova é conhecida como hidrostática ou também de Galeno. Quanto a ela, Maranhão explica: o
pulmão fetal não se expandiu, mostra-se compacto e tem uma densidade de 1.09, enquanto que o que recebeu ar e se
inflou mostra-se com cavidades pneumáticas e conseqüente densidade mais baixa (0,9). Assim, se for colocado um
fragmento ou mesmo o pulmão inteiro em uma vasilha com água (densidade igual a 1,0), poder-se-á observar que o
pulmão que não respirou vai ao fundo e o que respirou flutua (2002, p. 202).
46
útero (1994, p. 83). Fragoso assinala que, para efeitos penais, a gravidez tem início com a
implantação do zigoto no endométrio, que se dá entre três a seis dias depois de ocorrida a
fertilização (1978, p. 129). Böhmer ratifica a gravidez como relação corporal entre a mulher e o
filho em formação (2002, p. 77). Barboza observa que a quase totalidade das escolas médicas e
jurídicas modernas entende que a gravidez inicia-se com a nidação, que é a implantação do zigoto
no útero da mulher (1993, p. 77). Assim, necessária a implantação completa, porquanto tal evento
garante as proteções civil e penal.
Por derradeiro, Casabona posiciona-se acerca do início da proteção jurídica:
En conclusión, hasta el momento en que concluye la anidación no debe iniciarse
la protección jurídica de la vida humana, acercándose con ello a las
observaciones de los expertos de las ciencias biomedicas, puesto que es a partir
de entonces cuando hablan de la existencia del embarazo o de la gestación, sin
perjuicio también de las discusiones científicas existentes al respecto. Con este
razonamiento no se interfiere en realidad en las manifestaciones biológicas, sino
que éstas son valoradas por el Derecho en función de la consecución de sus
propios fines. Es decir, a la comprobación de datos biológicos de relativización
se suma la de otros, que hay que reconocer de oportunidad, que determinan en el
momento actual la noción normativa del comienzo de la vida humana (1994, p.
151)
Do exposto, para haver a tutela do óvulo fecundado in vitro é necessário que a lei preveja
tal proteção. Como não há lei que equipare, não há argumentos para a defesa do embrião
criopreservado do mesmo modo que o embrião implantado. O embrião criopreservado não tem
capacidade de desenvolver-se fora do útero materno, e essa constatação impõe grandes
diferenciações jurídicas.
Embora a teoria sob análise advogue que o início da individualidade humana dar-se-ia
com a nidação, sendo que antes desse estágio o zigoto estaria fadado a não nascer, porquanto não
há desenvolvimento sem relação com o corpo feminino, excluindo, desse modo, a proteção ao
47
embrião criopreservado, eis que a nidação garante a sobrevida e a viabilidade do ovo, um grande
grupo de cientistas e sistemas jurídicos assinala que o marco inicial da vida humana deve ser
atribuído em momento posterior à nidação, a partir do décimo quinto dia após a concepção, cujos
argumentos são trazidos pela teoria genético-desenvolvimentista.
1.2.3 Teoria genético-desenvolvimentista
O desenvolvimento rápido do pré-embrião inicia-se durante a terceira semana (MOORE,
1991, p. 41). De acordo com a lição de Catala, o embrião modifica-se sobremaneira durante a
terceira semana, por força dos movimentos celulares e dos tecidos, os quais conduzem à
formação de um embrião tridérmico, isto é, formado por três folhetos primordiais (o ectoderma,
dorsal, o mesoderma, intermediário, e o endoderma, ventral). A gastrulação, ou seja, a etapa da
formação dos citados folhetos, é imprescindível à construção do corpo, a tal ponto que um grande
embriologista britânico, Wolpert, sustentou que ela, mais do que o nascimento ou a morte,
constitui o verdadeiro acontecimento importante da vida humana (2003, p. 142). Esses três
folhetos são importantíssimos, “porque é das células presentes em cada um deles que se
desenvolverão gradualmente os vários tecidos e órgãos do corpo humano.” (NERI, 2004, p. 46)
Por força da essencialidade da gastrulação no desenvolvimento da vida humana, Sadler
esclarece:
A gastrulação, o evento mais característico dos que ocorrem durante a terceira
semana, é o processo pelo qual se formam as três camadas germinativas do
48
embrião. A gastrulação se inicia com a formação da linha primitiva21 na superfície
do epiblasto embrionário. (1997, p. 35)
Do exposto, surge um termo novo a ser decifrado: a linha primitiva. Para efeito dessa
teoria, há diferentes orientações acerca do ínterim em que as pesquisas ou o descarte do embrião
seriam justificados. Existe a orientação fornecida pelo Relatório Warnock, que defende a licitude
da intervenção em embriões até o décimo quarto dia após a concepção, eis que se estaria diante
da figura do pré-embrião. Também haveria outra orientação mais elástica, que permitiria o uso de
embriões em experiências até a formação do sistema nervoso, ainda que bastante imaturo. Como
modelo de orientação desta teoria, utilizar-se-á o referencial proposto pelo Relatório Warnock.
Sgreccia comenta que os membros do Comitê Warnock22 introduziram o termo préembrião, que corresponde à fase que vai do primeiro ao décimo quarto dia após a fecundação do
óvulo23 (2002, p. 348). Assim, segundo esta teoria e os conhecimentos trazidos pela embriologia,
o “ser humano” passa por uma série de fases: zigoto, mórula, blastócito, pré-embrião, embrião,
feto e recém-nascido. Do exposto, o embrião humano, ao menos nos primeiros quatorze dias após
a concepção, não poderia, segundo a teoria sob análise, ser reconhecido como vida humana, mas
sim como um amontoado de células. Sgreccia disserta sobre os fundamentos da teoria em tela,
tomando como base o Relatório Warnock24 e a Comissão Waller:
21
Chama-se de nó primitivo a extremidade cefálica da linha primitiva (SADLER, 1997, p. 35).
Report of the Committee of inquiry into human fertilization and embriology, Inglaterra, 1984.
23
Em reunião dos Conselhos Europeus de pesquisa médica, os nove Estados presentes (Dinamarca, Finlândia,
Alemanha, Itália, Suécia, Países Baixos, Grã-Bretanha, Áustria e Bélgica) aderiram à distinção terminológica entre
pré-embrião e embrião proposta pelo Relatório Warnock. Posteriormente, Espanha aderiu à distinção (MINAHIM,
2005, p. 94). A Corte Constitucional francesa decidiu que o princípio do respeito à vida não era devido ao préembrião, permitindo, sob certas condições, que os mesmos fossem destruídos (MINAHIM, 2005, p. 99).
24
Relatório da Comissão de Pesquisa sobre Fertilização Humana e Embriologia, reunida entre os anos de 1982 e
1984 na Inglaterra, integrada por especialistas britânicos e liderada por D. Mary Warnock, filósofa moralista.
22
49
De acordo com o relatório Warnock, poder-se-ia dispor do embrião humano para
fins experimentais até o 14º dia depois da concepção, o que dá a entender
claramente que até essa data não se reconheceria o caráter humano do embrião
ou que, de qualquer modo, ele estaria subordinado à vida do adulto. O período
de 14 dias foi proposto pela primeira vez em 1979 pela Ethics Advisory Board
(DHEW), nos Estados Unidos da América, que justificou isso pelo fato de que o
14º dia corresponde ao final da implantação. Em 1984, a comissão Waller, na
Austrália, repetia: “não mais de 14 dias, pois depois desse estágio forma-se a
linha primitiva e a diferenciação do embrião é evidente”. (2002, p. 347)
O item 12 do referido Relatório dispõe que “nenhum embrião humano vivo derivado da
fertilização in vitro, tanto congelado como descongelado, deve ser mantido vivo, se não
transferido para uma mulher até quatorze dias depois da fertilização, nem deve ser usado como
objeto de pesquisa além de quatorze dias após a fertilização. Esse período de quatorze dias não
inclui o tempo no qual o embrião possa ter sido criopreservado.”25 Do exposto, o Comitê
Warnock confirmou o prazo de quinze dias26 após a concepção como início da individualidade
humana, que corresponderia ao tempo de formação da linha primitiva. Neri assinala que o
relatório permite a pesquisa tanto de embriões excedentes como os criados para fins de pesquisa,
sendo que, além do prazo de quatorze dias, são necessários o consentimento à doação e as
finalidades da experimentação (2004, p. 128). A adoção de tal posição tem permitido que alguns
sistemas jurídicos neguem a existência de vida no período anterior à formação da linha primitiva.
A linha primitiva “[...] é uma goteira que aparece no nível da parte caudal do disco
embrionário, e que se estende para a frente. [...] A linha primitiva estabelece o eixo cefalocaudal
(ou rostrocaudal) do embrião.” (CATALA, 2003, p. 142)
25
“No live human embryo derived from in vitro ferilization, whether frozen or unfrozen, may be kept alive, if not
transferred to a woman beyond fourteen days after fertilization, nor may it be used as a research subject beyond
fourteen days after fertilization. This fourteen day period does not include any time during which the embryo may
have been frozen.”
26
Minahim acredita que a definição do décimo quinto dia deu-se porque Warnock privilegiou um critério
morfológico, ou seja, a partir do prazo proposto associa-se ao fenômeno da linha primitiva um incipiente esboço dos
principais órgãos, sendo que nesse momento o embrião passaria a apresentar características morfológicas e
anatômicas da espécie humana (2005, p. 84).
50
As células do nó primitivo, ou seja, a extremidade cefálica da linha, dão origem ao
processo notocordal27 e à placa neural28 (MOORE, 1991, p. 41), de modo que um mecanismo de
alongamento axial da notocorda e da placa neural assegura o crescimento embrionário29
(CATALA, 2003, p. 150).
Zatti, citado por Sgreccia, manifesta-se: “o aparecimento da linha primitiva indicaria que
as células destinadas a constituir o embrião propriamente dito já estão diferenciadas das células
que, por sua vez, formarão os tecidos placentários e protetores.” (grifos do autor) (2002, p. 348)
Ademais, Sadler comenta que no início da terceira semana mapas podem mostrar as células que
dão origem a vários sistemas ou órgãos, tais como olhos e o esboço inicial do encéfalo (1997, p.
39). Outrossim, Sgreccia, com base no posicionamento de McLaren30, afirma que
o desenvolvimento embrional até o 14° dia seria um período de preparação,
durante o qual foram elaborados todos os sistemas protetores e nutritivos
necessários para a sustentação do futuro embrião; e somente quando os sistemas
de suporte tiverem sido estabelecidos é que poderá começar a se desenvolver o
embrião como entidade individual. (2002, p. 348)
Singer ratifica que aos quinze dias surge a primeira característica anatômica, a chamada
linha primitiva, no lugar onde, mais tarde, a coluna vertebral desenvolver-se-á (1998, p. 147).
Martínez assinala que a aparição da linha primitiva, ou seja, o aparecimento da estrutura
básica do sistema nervoso, representaria o início da existência de um indivíduo da espécie
27
A notocorda desenvolve-se a partir do processo notocordal para formar o suporte esquelético axial adulto
(MOORE, 1991, p. 41).
28
“A placa neural surge como um espessamento na linha média do ectoderma embrionário, cefalicamente ao nó
primitivo. A formação da placa neural é induzida a se formar pela notocorda em desenvolvimento e pelo
mesênquima adjacente.” (MOORE, 1991, p. 41)
29
O fato de a linha primitiva, situada na extremidade caudal do disco, continuar a fornecer novas células até o final
da quarta semana tem um significado importante para o desenvolvimento do embrião. Na porção cefálica, as
camadas germinativas começam sua diferenciação específica no meio da terceira semana, enquanto na porção caudal
a diferenciação inicia-se no fim da quarta semana. Dessa maneira, a gastrulação continua nos segmentos caudais,
enquanto as estruturas cefálicas diferenciam-se e o embrião cresce em um sentido cefalocaudal (SADLER, 1997, p.
35-39).
30
McLaren é um dos membros do Comitê Warnock.
51
humana, sendo digno de proteção jurídico-penal específica (1994, p. 100). Afinal, o embrião, ou
seja, o fruto da fecundação com mais de quatorze dias de evolução, é um sujeito de direito
(MARTÍNEZ, 1994, p. 99).
Nesse sentido, até não ser alcançado o estágio de embrião, o pré-embrião31 poderá ser
utilizado em pesquisas científicas com cunho não terapêutico (sem benefício algum ao mesmo),
ser descartado, doado, criopreservado etc. Enfim, seu destino é traçado pelos seus genitores,
mediante o consentimento livre e informado.
Os defensores dessa teoria visualizam no embrião um antes e um depois: antes dos quinze
dias de concepção o embrião seria apenas um amontoado de células; a partir desse prazo seria
considerado ser humano, em fase demasiadamente primitiva.
Na discussão acerca do início da vida humana e da teoria sob análise, Singer cita o Padre
Ford, teólogo moralista católico:
Ford llegó a la conclusión de que, mientras todavía es posible la división en
gemelos, el racismo de células no constituye un organismo individual. Por tanto,
la vida de un individuo humano no comienza en la concepción, sino unos catorce
días más tarde, cuando ya no existe possibilidad de que se divida. Su ideia no ha
sido ratificada por ningún organismo eclesiástico oficial, pero tampoco ha sido
condenada. (1997, p. 101)
A razão para essa posição é que existem casos em que o zigoto desdobra-se em partes
idênticas, formando gêmeos monozigóticos. Este é o único caso possível de identidade genética
entre dois indivíduos humanos (CASABONA, 1994, p. 149). Essa possibilidade pode prolongarse até o décimo quarto dia após a concepção, pelo que alguns adeptos entendem que até essa fase
não existe a presença de uma vida pertencente à natureza humana (MEIRELLES, 2000, p. 120).
31
Braga sustenta que as divisões entre pré-embrião e embrião são arbitrárias, de modo que a proteção à vida
embrionária deve se iniciar a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, independente de sua localização
(1999, p. 74-75). E conclui: “[...] para a sua proteção pouco importa o embrião ter 1 ou 20 dias de existência, ter sido
concebido intra ou extracorporeamente [...].” (1999, p. 75)
52
Esses dados genéticos e biológicos mostram que nesse período de configuração do
embrião ocorrem ou podem ocorrer fenômenos capazes de uma indiferenciação, que conduzem à
dificuldade de saber se existe uma só forma de vida humana ou duas, observação que não pode
ser irrelevante para o Direito (CASABONA, 1994, p. 149).
A partir da constatação de que a formação de gêmeos idênticos pode ocorrer até o décimo
quarto dia após a fecundação, Varga comenta:
[...] segundo alguns, os fatos da divisão e da recombinação provam que o óvulo
fecundado não é uma pessoa humana, porque a incomunicabilidade individual é
a nota essencial do ser pessoal. Um zigoto que se desdobra em duas pessoas ou
dois zigotos que se podem combinar em um não são irrevogavelmente
individuais e, assim, não podem ser considerados pessoas humanas. (2001, p.
69)
Quanto à conclusão a que Ford chegou, Singer manifesta-se: no que se refere a quando
começa uma vida humana, pode ser que Ford esteja certo, eis que em torno dos quinze dias após
a concepção, uma vez que já não existe a possibilidade de que o embrião divida-se em gêmeos,
existe um ser humano individual que está vivo. No entanto, ainda que Ford tenha razão, isso não
diz nada acerca da transcendência ética da existência de um ser humano individual, nem sobre se
é justificável o aborto depois desse momento (1997, p. 111).
Assim, não se pode entender claramente a posição de Singer. Entretanto, em outra obra,
esclarece que por volta do décimo quarto dia depois da fertilização, mais tempo do que os
embriões humanos podem ser mantidos vivos fora do corpo, o embrião pode dividir-se em dois
ou mais embriões com carga genética idêntica, levando à formação de gêmeos idênticos, de modo
que antes do estágio de quinze dias da fecundação não se pode saber com certeza se o embrião é
o precursor de um ou de dois indivíduos (1998, p. 166).
53
Para corroborar a teoria genético-desenvolvimentista, em que pesem suas posições serem
demasiadamente utilitaristas, Singer posiciona-se definitivamente:
O absurdo decorre do fato de pensarmos no embrião como um indivíduo num
momento em que ele não passa de um aglomerado de células. Desse modo,
enquanto não estiver superada a possibilidade da criação de gêmeos, será ainda
mais difícil sustentar que o embrião é um ser humano, em qualquer sentido
moralmente significativo, do que sustentar que o feto é um ser humano num
sentido moralmente significativo. Isso oferece um fundamento para as leis e
regulamentos da Inglaterra e de vários outros países que permitem a realização
de experiências com embriões até os 14 dias depois da fertilização. Mas, pelas
razões já apresentadas, isso ainda constitui um limite desnecessariamente
restritivo. (SINGER, 1998, p. 167)
Consoante menção na última frase do parágrafo anterior, o limite de quatorze dias,
embora importante para sustentar a tese de que o embrião é um ser humano a partir desse
momento, constitui um limite desnecessariamente restritivo, já que mesmo depois desse lapso
temporal o citado autor defende a disposição da vida humana: basta analisar seus argumentos
quando do estudo da teoria utilitarista. O que Singer parece querer advogar é que antes dos
quinze dias após a fertilização não há que se falar na possível existência de uma vida humana.
De outra banda, Martínez estabelece algumas críticas sobre as posições da Igreja: a autora
afirma que nos documentos emitidos pela Santa Sé confundem-se unicidade genética (presente
desde a concepção) e unicidade no desenvolvimento (constatável uma vez formada a linha
primitiva). Essa distinção justifica-se por força da existência de formações patológicas (1994, p.
78). Existem malformações naturais que possuem a composição genética da espécie, porém
jamais darão lugar a um novo ser humano. Exemplo disso é a chamada “mola hidatídica”, bem
como o tumor chamado de “teratoma” (MARTÍNEZ, 1994, p. 86-87).
Enfim, para a teoria genético-desenvolvimentista a individualidade humana tem seu
marco inicial com a formação da linha primitiva, traduzida no plano construtivo do pré-embrião,
54
que se forma a partir do décimo quinto dia após a fecundação, sendo que até esse prazo o préembrião é considerado apenas um amontoado de células indiferenciadas. Ademais, o prazo de
quinze dias marca a impossibilidade de o pré-embrião dividir-se em dois ou mais indivíduos
(gêmeos monozigóticos). Do exposto, tal teoria exclui a proteção jurídica aos embriões
criopreservados, porquanto não atingem in vitro o estágio de quinze dias.
Entretanto, há os que entendem que entre as teorias concepcionista e genéticodesenvolvimentista, pode-se advogar em favor da teoria da potencialidade de pessoa, traduzida
no sentido de que o embrião constrói, progressivamente, seu estatuto pessoal completo, visto que
o código genético já estaria presente desde a concepção.
1.2.4 Teoria da potencialidade de pessoa
Entre as teorias concepcionista e genético-desenvolvimentista surgiu uma corrente
eclética a qual imagina o embrião em termos de “potencialidade real de pessoa”, destinado a
tornar-se tal durante seu desenvolvimento progressivo.
Bernard assinala que o óvulo fecundado contém em potência todos os tecidos da futura
pessoa, a exemplo do coração, fígado e sistema nervoso (1994, p. 121). Para o autor, a teoria
assegura que desde o momento da concepção encontram-se no genoma do ser as condições
necessárias para o seu desenvolvimento biológico. Ainda que insuficientes, tais condições são
necessárias, o que vem a significar que desde a concepção existe a potencialidade e a virtualidade
de uma pessoa (1994, p. 161-162). Ao encontro da posição de Bernard, Lepargneur posiciona-se
que a primazia da pessoa, a correlativa proteção de sua dignidade e a garantia de respeito ao ser
55
humano desde o início de sua vida evidenciam a subjacente noção de pessoa potencial para
definir o embrião (1996b, p. 41- 42).
Martínez cita Roxin, que conclui: o embrião não é uma vida independente, mas também
não é um nada. É “una persona en potencia con todos sus atributos, cuya vida, por ello, debe ser
respetada y promovida.” (1994, p. 88)
Nesse viés, Pegoraro entende que o embrião é pessoa potencial. Se não for cerceado seu
desenvolvimento será uma pessoa, mas ainda não o é, embora esta constatação não retire o seu
caráter de vida, de pertencente à espécie humana. Nesta fase, o embrião já tem formado o seu
código genético (2002, p. 121).
Acerca da teoria em tela, posiciona-se Leite:
Sem classificar o embrião na categoria humana, nem tampouco negar sua
possibilidade de tornar-se humano, esta tendência visualiza no embrião um
estatuto específico. O embrião humano é dotado, desde o primeiro momento de
sua existência, de autonomia, mas que não é humana, como pretende a corrente
concepcionista, nem biológica, como querem os desenvolvimentistas, mas uma
autonomia embrionária. (1996, p. 27)
Dessa forma, o embrião humano não é considerado pessoa, mas não é negada a
possibilidade da existência de futura pessoa. Tampouco seria um amontoado de células. Fácil é
concluir que para essa teoria, o desenvolvimento do embrião é progressivo e, na medida do seu
desenvolvimento, vai construindo um estatuto humano completo.
Pode-se vislumbrar nessa teoria a responsabilidade dos pais que não se esgota na mera
concepção, nem na criação biológica desse novo ser humano, mas que se aperfeiçoa no direito e
no dever de gerar o embrião de forma responsável, priorizando o processo de gravidez como
determinador da humanidade (LEITE, 1996, p. 28-29).
56
A partir de uma perspectiva dos direitos naturais e contrariando a posição que vê no
embrião apenas um aglomerado de células, Fukuyama manifesta-se a favor da teoria:
Um embrião pode carecer de algumas das características humanas básicas que
um recém-nascido possui, mas não é um mero grupo de células ou tecidos como
outro qualquer, porque tem o potencial de se tornar um ser humano pleno. [...]
Isso implica que, embora se possa atribuir a um embrião um status moral inferior
ao de uma criança em seus primeiros meses, ele tem um status moral mais
elevado que outros tipos de células ou tecidos com que os cientistas trabalham.
(grifo do autor) (2003, p. 184)
Nesse viés, Fukuyama entende que existem diferentes estágios da vida humana, que
começa com um aglomerado de moléculas orgânicas até possuir consciência, razão, capacidade
de escolha moral e emoções subjetivas (2003, p. 184). E conclui, ao enfatizar a necessidade do
estabelecimento de restrições ao uso de células-tronco embrionárias:
Se juntarmos esses fatos – que um embrião tem um status moral situado em
algum ponto entre o de um bebê e o de outros grupos de células ou tecidos, que a
transformação do embrião em algo com status mais elevado é um processo
misterioso –, eles sugerem que, se vamos fazer coisas como colher célulastronco de embriões, deveríamos impor limites e restrições a essa atividade para
assegurar que ela não se torne um precedente para outros usos de nascituros com
tecnologia mais arrojada. (2003, p. 184)
Junges concorda que o embrião não é ainda pessoa humana, assim como não o é o bebê
recém-nascido e a criança antes do uso da racionalidade, de modo que o mesmo não tem vida
humana plena (1999, p. 136). Entretanto, sustenta que é inegável o fato de que é um ser humano
vivo, porquanto a sua vida está projetada para ser humana plena, e desenvolver-se-á a partir das
suas características potenciais intrínsecas sem nenhum salto qualitativo como vida humana (1999,
p. 137). Nesse sentido, esclarece:
Por isso, pode-se dizer que o embrião, desde o primeiro momento, tem
personeidade (estruturas antropológicas para tornar-se pessoa), mas ainda não
pessoalidade (as estruturas ainda não foram levadas à expressão, enquanto
57
sujeito). Em outras palavras, já é estruturalmente pessoa, embora não o seja
atualizadamente, porque a estrutura pessoal ainda não se desenvolveu
plenamente, mas está programada para isso. O desenrolar da estrutura humana
será levado a cabo, se não for interrompido. (1999, p. 137)
Fácil concluir que Junges32 acredita não haver um fenômeno posterior capaz de tornar
humano o que não o era: é a potencialidade presente desde a concepção que conduziria o
desenvolvimento da vida humana. Como conclusão, o autor posiciona-se sobre o respeito devido
ao embrião:
O embrião não é ainda uma pessoa humana em plenitude, mas pertence à espécie
humana e tem todas as potencialidades para tornar-se pessoa. Nesse sentido, ele
é “ascrito” à humanidade e merece solidariedade ontológica por sua proximidade
e identificação com a espécie humana e, por isso, atribui-se a ele a dignidade
pessoal. Portanto, exige o respeito devido a quem tem dignidade pessoal. (1999,
p. 152-153)
Quanto à referida proteção, sob a justificativa da dignidade pessoal, será objeto de análise
no capítulo subseqüente.
Sem embargo de essa nova corrente ter o intuito de buscar um meio termo entre as teorias
concepcionista e genético-desenvolvimentista, Sgreccia advoga que o embrião, mesmo que se
encontre numa fase particular de sua existência, na qual a forma humana não é ainda expressa do
mesmo modo como se pensa e se vê, não é uma simples potência, mas, ao contrário, substância
viva e individualizada (2002, p. 365).
A teoria sob análise não oferece uma orientação segura do momento a partir do qual o
embrião deixa de ter uma autonomia meramente biológica e passa a ostentar o estatuto humano
completo ou pessoal. Resta questionar qual a natureza do embrião nesse ínterim em que não se
32
Para maiores esclarecimentos acerca da posição de Junges quanto à potencialidade inscrita no embrião, vide
especialmente páginas 106 a 109 da obra sob análise.
58
visualiza a presença de um ser humano pleno, quando ainda não se sabem quais são os limites
temporais desse ínterim.
Singer, ao tratar das questões atinentes à proteção fetal, aborda tanto as características
reais do feto como as potenciais. Quanto a estas, o argumento um pouco menos conservador pode
ser colocado da seguinte forma:
Primeira premissa: é errado matar um ser humano em potencial;
Segunda premissa: um feto humano é um ser humano em potencial;
Conclusão: logo, é errado matar um feto humano (1998, p. 162).
A partir das citadas premissas, Singer conclui com base na teoria em tela: não se pode
negar que o feto é um ser humano em potencial, tanto se a referência for a membro da espécie
homo sapiens ou a uma pessoa, de modo que aquele que mata um feto humano está ceifando uma
vida e privando o mundo de um futuro ser racional e autoconsciente (1998, p. 162).
No entanto, alertando para uma necessária diferenciação quanto à atribuição de direitos,
adverte: “o príncipe Charles é rei da Inglaterra em potencial, mas, no momento, não tem os
direitos de um rei.” (SINGER, 1998, p. 163)
Em várias oportunidades, Engelhardt questiona-se a respeito de entidades como embriões,
fetos e bebês, que têm possibilidade de tornarem-se agentes morais (pessoas). O autor é taxativo
ao afirmar que não se poderia lançar mão da noção de potencialidade para argumentar que tais
seres humanos são pessoas em potencial e que, por isso, precisam ter os mesmos direitos e
posição que as pessoas em sentido estrito (1998, p. 179). E continua: “se os fetos são apenas
pessoas em potencial, eles não têm os direitos das pessoas.” (1998, p. 179) Assim, o argumento
59
plausível a ser utilizado é que eles não têm potencialidade, mas probabilidade de tornarem-se
pessoas (ENGELHARDT, 1998, p. 180).
Quanto à possibilidade de que as premissas da potencialidade sejam aplicadas ao embrião,
Singer comenta:
Hay dos serios inconvenientes en considerar el hecho de que el embrión tiene el
potencial para convertir-se en un ser humano con razón suficiente para preservar
su vida. El hecho de que el embrión tenga determinado potencial no significa
que podamos perjudicarle, en el sentido que podemos perjudicar a un ser que
tiene necesidades y deseos o puede sufrir. Lo que significa realmente, si el
embrión no realiza ese potencial, es que no vendrá al mundo un ser humano
concreto. (1997, p. 104)
Em continuação, o autor questiona: se comumente afirma-se que há um prejuízo quando
um embrião é destruído, porque o mesmo perde seu potencial, por que não se deveria dizer o
mesmo do espermatozóide e do óvulo? Em ambos os casos, existe a possibilidade de que se
transformem em uma nova vida humana, conclui (1997, p. 105).
A partir dos que entendem haver analogia entre os argumentos contrários ao aborto e os
dirigidos à eliminação de embriões in vitro, Singer posiciona-se: os dois argumentos contra o
aborto (feto é ser humano ou feto é ser humano em potencial) não se aplicam ao caso do embrião
criopreservado, como se poderia pensar (1998, p. 166). E conclui seu raciocínio: “assim, não é
por pertencer à espécie Homo sapiens que um embrião vai ser considerado um ser humano em
qualquer sentido moralmente relevante.” (1998, p. 166)
Em outra passagem, Singer adverte que a potencialidade não parece ser um conceito da
lógica do tudo ou nada. Assim, a diferença entre embrião criopreservado e embrião implantado é
60
uma diferença de grau, associada à probabilidade33 de transformação em uma pessoa (1998, p.
170).
Do exposto, entende-se que a tese da potencialidade de pessoa, traduzida no sentido de
que o óvulo fecundado contém em seu código genético potencialmente todos os tecidos da futura
pessoa e que se tornará uma pessoa no decorrer do seu desenvolvimento progressivo, em não
havendo cerceamento desse desenvolvimento, não parece responder à situação do embrião in
vitro. Essa questão será aprofundada no último capítulo da presente dissertação.
Considerando que nenhuma das teorias abordadas anteriormente seja aceita como
paradigma no sentido de identificar o instante a partir do qual deve operar a proteção jurídica à
vida humana, há os que advogam em favor da total disponibilidade do embrião, eis que a ele não
se deveria respeito e proteção. A teoria utilitarista vem ao encontro desse pensamento e os seus
fundamentos serão colacionados a seguir.
1.2.5 Teoria utilitarista34
Pode-se sintetizar o cerne da presente teoria no sentido da total disponibilidade do
embrião, haja vista que visualiza no mesmo apenas uma coisa. Nesse viés, cita-se Sureau: a
concepção do “embrião-coisa” consiste em considerar o conjunto de células que o compõe como
33
Probabilidade é expressão que se refere a uma estimativa estatística, a uma avaliação de freqüência (MINAHIM,
2005, p. 86).
34
Citando Mateo, Meirelles conceitua utilitarismo: “doutrina do século XIX, atribuída a Bentham e Mill, ao
utilitarismo determinada atividade seria considerada eticamente correta e aceitável se as suas conseqüências fossem
predominantemente benéficas, uma vez comparadas aos malefícios causados aos valores atingidos.” (2000, p. 162) A
autora assinala que o utilitarismo científico vê no homem um objeto ou um meio de alcançar determinados resultados
(2000, p. 162) e que consoante suas bases só é possível atribuir direitos a quem tenha capacidade de fruir e de sofrer.
Desse ponto de vista não teriam direitos os embriões humanos enquanto privados de sistema nervoso (2000, p. 8990).
61
dependente totalmente do organismo da mãe. Essa idéia implica “coisificação” desse grupo
celular, que é mais forte do que com relação a outros componentes do corpo humano, como se
tais células fossem consideradas mais como tumores do que como tecidos sãos (1996, p. 12).
Os defensores dessa teoria não visualizam qualquer valor ou qualidade ética no embrião,
sendo que a ele não se deve respeito nem ao menos compatível ao seu nível de desenvolvimento.
Como fonte esclarecedora, citam-se Barchifontaine e Pessini:
A teoria utilitarista coloca no mesmo nível todas as espécies, incluindo a espécie
humana. O ser humano diferencia-se dos outros quando se torna consciente
(persona) e capaz de manifestar seus desejos. [...] Para esta teoria, o embrião
humano não passa de um material biológico que não faz jus a qualquer
tratamento especial em relação aos embriões das outras espécies. (2002, p. 72)
Em que pese a dificuldade de se enquadrar posições de autores a uma das teorias citadas,
a posição de Singer amolda-se à teoria sob análise, a partir dos argumentos já colacionados e os
que se seguem. Singer contesta que a autoconsciência e a autonomia sejam as características que
identificam os seres humanos:
Existem seres humanos com deficiências mentais que podemos considerar
menos autoconscientes ou autônomos do que muitos animais. Se usarmos essas
características para colocar um abismo entre os seres humanos e outros animais,
estaremos colocando esses seres humanos menos capazes do outro lado do
abismo; e, se o abismo for usado para marcar uma diferença de status moral,
então esses seres humanos teriam o status moral de animais, e não de seres
humanos. (1998, p. 85)
Singer sugere que se a vida humana tem um valor ou um direito especial a ser protegido,
ela os tem na medida em que a maior parte dos seres humanos são pessoas. Sem embargo, se
62
alguns animais também são pessoas35, as suas vidas devem ter o mesmo valor especial, ou o
mesmo direito à proteção (1998, p. 126). E prossegue:
Alguns animais não-humanos parecem ser racionais e conscientes de si,
concebendo-se como seres distintos que possuem um passado e um futuro.
Quando assim for, ou, até onde sabemos quando assim possa ser, as razões
contra tirar-lhes a vida são fortes, tão fortes quanto as que dizem respeito à
eliminação de seres humanos com deficiências mentais permanentes num nível
mental semelhante. (1998, p. 141)
A partir da necessidade de atribuição de direitos e proteção aos animais, principalmente
sob a justificativa de que alguns são pessoas, com tudo o que essa conclusão venha a implicar,
Singer posiciona-se:
No podemos otorgar justificadamente más protección a la vida de un ser humano
de la que otorgamos a un animal no humano se el ser humano ocupa un puesto
inferior al del animal en cualquier escala posible de características relacionadas
con él. [...] El derecho a la vida no es un derecho exclusivo de los miembros de
la especie Homo sapiens, es [...] un derecho que poseen, apropiadamente, las
personas. Ni todos los miembros de la especie Homo sapiens son personas y ni
todas las personas son miembros de la especie Homo sapiens. (1997, p. 202)
Em que pese não ser uma comparação muito popular, o citado autor afirma que os ratos
são mais conscientes de seu meio e mais capazes de responder de forma intencionada e complexa
a coisas que gostam ou não do que um feto de dez ou até mesmo de trinta e duas semanas de
gestação (1997, p. 205). Em outra obra, Singer assinala que o porco e a galinha, demasiadamente
ridicularizada, estão bem à frente do feto em qualquer dos estágios de gestação (1998, p. 161). E
continua: “por ora, será suficiente dizer que, enquanto a capacidade de existir dor não existir, um
aborto põe fim a uma existência que não tem valor intrínseco algum.” (grifo do autor) (1998, p.
161)
35
Singer fornece uma descrição de pessoa bastante peculiar, em que alarga o conceito de pessoa a animais nãohumanos, a exemplo do gorila Koko (1997, p. 180).
63
Considerando que Singer entende que os fetos não têm direito algum à vida e nem ao
menos interesse algum por ela (1998, p. 173), muito mais essa posição aplica-se ao embrião
criopreservado. Também entende que o feto não sente dor (ao menos nunca se comprovou o
contrário). E, entendendo-se que o embrião não sente dor alguma ao ser utilizado (destruído) em
pesquisa e terapia, a legitimidade para a sua destruição parece ainda mais evidente.
Em continuação, o supracitado autor afirma que a vida de um feto (e, mais claramente
ainda, a de um embrião) não tem maior valor que a vida de um animal em um estágio semelhante
de racionalidade, autoconsciência, capacidade de sentir etc. Ademais, como embriões, fetos e
bebês recém-nascidos não são pessoas, nenhum deles tem o mesmo direito à vida que uma pessoa
(1998, p. 178).
Ao encontro da posição de Singer, Engelhardt entende que embriões e fetos não são
membros da comunidade moral, mas objetos de sua beneficência, e, ainda, afirma que eles não
têm a importante vida interior dos mamíferos adultos (1998, p. 181).
Engelhardt diferencia vida pessoal, titular das características da racionalidade,
autoconsciência e preocupação com o merecimento de acusação e elogio, da vida meramente
biológica (que se inicia com a atividade cerebral) (1998, p.174), de modo que a distinção entre
seres humanos e pessoas terá importantes conseqüências na forma como uma bioética secular
tratará a vida pessoal versus a vida humana biológica (1998, p. 175).
Sucintamente, o autor diferencia pessoa em sentido estrito e em sentido social, a partir das
seguintes considerações: Engelhardt atribui à pessoa em sentido estrito a qualidade de ser agente
moral, em contraposição a um sentido social de pessoa a quem quase todos os direitos das
pessoas em sentido estrito são atribuídos, como é o caso das crianças pequenas, dos idosos, dos
retardados e dementes que jamais serão pessoas, bem como os seres humanos em coma
64
permanente e grave. Para ser pessoa, é necessário ser agente moral (1998, p. 292-293). E
continua: “não é a mera vida biológica o interesse moral central. Um corpo humano que só pode
funcionar biologicamente, sem uma vida mental interior, não sustenta um agente moral.”(1998, p.
293)
Depreende-se que Engelhardt e a sua bioética secular não estão preocupados com o início
da vida humana, mas o momento em que os seres humanos tornam-se pessoas, porquanto a
bioética preocupa-se com a pessoa e não com a mera vida biológica. Assim, concluindo-se que
não existe a presença de uma pessoa na figura do embrião, não haveria interesse algum em
proteger a vida embrionária.
Outras posições do autor serão transcritas no capítulo subseqüente, quando da análise da
autonomia, como conceito e princípio.
Do exposto, a teoria sob análise prega a total disponibilidade do embrião, visto que o
equivale à coisa, sendo que os seus defensores não visualizam qualquer valor ou qualidade ética
no embrião humano. Este não passaria de um material biológico que não faz jus a qualquer
tratamento especial em relação aos embriões das outras espécies. Alguns advogam, inclusive, a
supremacia da vida animal frente à embrionária.
Afora as teorias trazidas, existem outras que se prestam a analisar a partir de que
momento inicia uma nova vida humana ou sua necessária proteção jurídica. Nesse viés, limitarse-á a apresentar sucintos argumentos de cada teoria.
1.2.6 Outras teorias: breves considerações
65
A primeira delas é chamada de teoria do sistema nervoso e cerebral36, eis que seus adeptos
posicionam-se no sentido de advogar o começo de uma nova vida humana a partir do critério de
vida cerebral em simetria com a morte cerebral37. Na medida da “aceitação” científica da morte
cerebral38 como critério determinador da morte de uma pessoa, pesquisadores, a partir de uma
aplicação analógica, passaram a se questionar se o início da vida humana também não deveria ser
determinado através desse critério. Nos dizeres de Meirelles, trata-se da aplicação do critério da
morte em sentido inverso (2000, p. 129).
Ao encontro da teoria supra, posiciona-se Engelhardt: “um corpo com morte total do
cérebro, ou com morte de todo o cérebro, exceto de sua base, não suporta uma vida mental, e
menos ainda a vida como pessoa.” (1998, p. 293) A atenção volta-se para o cérebro como
provedor dos sentimentos e da consciência, já que a vida mental é sustentada por ele (1998, p.
294), donde se afirma que quando não há cérebro não há pessoa (1998, p. 300). Sem embargo, na
visão de Engelhardt, a existência da atividade cerebral não bastaria para se afirmar que se está
diante de uma pessoa, como agente moral39, de modo que o início da atividade cerebral marcaria
o começo de uma vida puramente biológica, vida esta que o autor não se preocupa em preservar,
mormente quando se tratam de embriões.
36
Singer, citando o especialista em bioética, o alemão Sass, comenta: “[...] se aceptamos que la muerte cerebral
señala el fin de la vida, también deberíamos aceptar que los primeros signos de vida cerebral señalan su comienzo.
Por tanto, propone crear algo análogo al comité sobre la Muerte Cerebral de Harvard para elaborar los detalles de los
criterios y los métodos de demonstrar que hay el tipo de vida cerebral necesario.” (1997, p. 109)
37
Martínez assinala que o fim da vida ocorre quando há falta de atividade do encéfalo (1994, p. 86), tido como eixo e
centro da consciência, o que impede o exercício de funções essenciais para expressão da natureza humana
(MINAHIM, 2005, p. 209). O eletroencefalograma (EEG) continua sendo, em princípio, um método adequado no
caso de morte cerebral, sendo obrigatória a sua realização em todos os supostos doadores de órgãos, para fins de
“prueba paraclínica acreditativa de la existencia de actividad eléctrica cerebral.” (CASABONA, 1994, p. 170)
38
Quanto às críticas ao critério da morte cerebral como, efetivamente, marco final da vida humana, vide Fukuyama
(2003, p. 170-171) e Singer (1997, p. 38-47; 60). Nesse sentido, Minahim questiona: “se alguém cujo coração bate
ritmicamente, respira, pode até concluir uma gestação, está morta e pode doar seus órgãos, quando é que uma pessoa
está viva?” (2005, p. 75)
39
Quanto à noção de pessoa, bem como as distinções estabelecidas entre pessoa em sentido estrito e social, vide
argumentos do autor nas páginas 173 a 175, 188 e 291 a 293 da obra sob análise.
66
Não há um critério40 universal acerca do momento em que a atividade cerebral surge no
embrião ou no feto, como pressuposto à proteção da vida humana, sendo que muitos autores, a
exemplo de Varga (2001, p. 42), posicionam-se contrariamente à teoria em tela.
De outra banda, a teoria da consciência41 preconiza que o início da vida humana dar-se-ia
a partir dos primeiros sinais de consciência no embrião. Para o filósofo Searle a consciência seria,
resumidamente, um conjunto de “sentimentos subjetivos42”. (FUKUYAMA, 2003, p. 175)
Considerando que Fukuyama não cita, a partir de Searle, quais seriam os tais sentimentos
subjetivos, entende-se que estão vinculados às emoções humanas, aos sentimentos de medo,
felicidade, prazer, esperança, dor, tristeza etc. Nesse horizonte, Fukuyama estabelece uma relação
entre as emoções e o valor da dignidade, já que as primeiras seriam a fonte dos valores humanos:
40
Singer entende que a atividade cerebral surge a partir de finais da décima semana depois da concepção, já que é
nesse momento que ocorre a integração neuro-neuronal na zona cortical (1997, p. 110). Contrariamente, Sgreccia,
citando Goldening, comenta que para os que defendem o início da vida através do critério cerebral, a vida seria um
espectro contínuo que se iniciaria na oitava semana de gestação e terminaria com a morte cerebral (2002, p. 349). No
mesmo sentido, Martínez assinala que a atividade elétrica do cérebro começa a ser registrada por volta da oitava
semana de gestação (1994, p. 85). Entretanto, a autora afirma que Monod, principal defensor dessa teoria, sustenta
que a partir do quarto mês de gestação pode-se detectar eletroencefalograficamente a atividade do sistema nervoso
central, diretamente ligada à possibilidade de possuir consciência (1994, p. 85). Dworkin posiciona-se
diferentemente quanto ao início da atividade cerebral: na verdade, trata de quando o cérebro está desenvolvido. O
autor, abordando a questão de se o feto sente ou não dor, afirma que causar dor a um feto possuidor de um sistema
nervoso suficientemente desenvolvido também vai de encontro aos seus interesses, sugerindo que a atividade elétrica
do cérebro surge no tronco cerebral do feto por volta do sétimo mês após a concepção, o que já garante movimentos
reflexos a partir desse momento (2003, p. 21). Quanto ao momento em que o feto é capaz de sentir dor, Dworkin
conclui, citando Flower: por volta da trigésima semana após a fecundação, a atividade elétrica cortical torna-se mais
complexa e, através do eletroencefalograma, os períodos de vigília podem ser distinguidos dos de sono. Assim, nesse
momento é que a atividade elétrica do cérebro começa a demonstrar padrões intermitentes semelhantes a alguns dos
encontrados em pessoas normais (2003, p. 23). A partir da existência de pluralidade de critérios, Singer posiciona-se:
“puesto que la elección entre estos diferentes criterios de vida cerebral sin duda es ética y no científica, se podría
decir que, sea cual sea el criterio que elijamos, éste no marca el comienzo de la vida humana, aunque se podría
considerar un útil indicador de cuando una vida en desarrollo alcanza por primera vez el tipo de estatus moral que
exige que se la proteja de determinados modos.” (1997, p. 110)
41
Os fundamentos pró e contra a teoria da consciência podem ser visualizados a partir de Fukuyama (2003, p. 174179) e Singer (1998, p. 152; 174).
42
A questão que mais causa inquietação não é atinente à descrição de quais seriam os sentimentos subjetivos que
caracterizam a consciência e tampouco o que pode ser entendido por “emoções humanas” e a sua extensão como
possível fonte de valores humanos, mas a de compreender como as emoções ganharam existência na biologia
humana, ou seja, a de saber a partir de que momento poder-se-ia dizer que a consciência emerge no ser humano (seja
feto ou pessoa desenvolvida). E essa indagação, sem sombra de dúvida, não dispõe de respostas seguras. Singer
sugere que se estabeleça o limite na décima oitava semana de gestação como o momento em que o cérebro torna-se
capaz de receber os sinais necessários à consciência (1998, p. 174).
67
Pois é a gama caracteristicamente humana de emoções que produz os propósitos,
as metas, objetivos, vontades, necessidades, desejos, medos e aversões do
homem, sendo, portanto, a fonte dos valores humanos. Muitos apontariam a
razão e a escolha moral humanas como as características humanas singulares
mais importantes que dão dignidade à nossa espécie, mas eu contestaria que a
posse da plena gama emocional humana é pelo menos igualmente importante, se
não mais. (2003, p. 177)
Contrariamente, a teoria da viabilidade43 baseia-se no raciocínio de que o feto poderia
sobreviver fora do ventre44, sendo esse o marco do início da vida, uma vida humana independente
da mãe.
Finalmente, em que pese a existência de outras teorias, os liberais entendem, a partir da
dificuldade de demonstrarem a existência de uma linha divisória moralmente significante entre
um embrião e um bebê recém-nascido, que o nascimento45 é a mais visível das possíveis linhas
divisórias e a que melhor se ajusta à sua argumentação. O argumento é, nos dizeres de Minahim,
que, uma vez surgida a aparência diferenciada dos seus genitores, o ser vivo tem seu início
43
Os argumentos favoráveis e contrários à teoria da viabilidade podem ser extraídos de: Casabona (1994, p. 139),
Dworkin (2003, p. 236), Mantovani (2002, p. 191), Martínez (1994, p. 100), Noronha (2001, p. 57), Pierangeli
(2005, p. 111), Singer (1997, p. 107-108) (1998, p. 108; 150-151) e Varga (2001, p. 68), especialmente. A maioria
dos penalistas entende não ser exigível a viabilidade fetal. A título exemplificativo, citam-se Noronha (2001, p. 57) e
Pierangeli (2005, p. 111).
44
Não há orientação uniforme acerca do prazo de viabilidade, visto que ele depende, também, do acesso da mulher
grávida a um centro médico moderno, concluindo-se que o estado em que o feto pode viver fora do corpo da mãe
varia conforme o estado da tecnologia médica. A título meramente ilustrativo, Singer assinala que existem casos de
bebês que nasceram com 24 ou 25 semanas e não apresentaram lesões graves (1998, p. 108; 150). Nesse horizonte,
Martínez afirma que o feto viável, isto é, “que ha alcanzado un grado tal de desarrollo que puede sobrevivir fuera del
caustro materno, aproximadamente, a los cinco meses y medio de gestación.” (1994, p. 100) Mantovani corrobora
que os progressos da ciência e da técnica médicas antecipam cada vez mais a capacidade de vida autônoma até vinte
semanas depois da concepção (2002, p. 191). Do exposto, considerando que a garantia de viabilidade depende das
condições oferecidas, não só pela medicina, mas também pelas condições do país e a situação econômica de quem
busca por tecnologia de ponta na tentativa de garantir a sobrevida do recém-nascido, conclui-se que a viabilidade de
vida fora do útero depende tanto de fatores individuais como externos.
45
Quanto à fundamentação da teoria do nascimento e a necessidade ou não de proteger a vida antes desse estágio,
vide especialmente: Habermas (2004, p. 46), Minahim (2005, p. 68-69), Singer (1998, p. 149; 179-183) e Varga
(2001, p. 68). Quanto ao início da personalidade civil, como a capacidade genérica de ser sujeito de direitos, vide
posição majoritária, defendida pela teoria natalista, no sentido de que se inicia do nascimento com vida, com a
ressalva de que a Lei resguarda os direitos do nascituro desde a concepção. Ao encontro de tal posição citam-se:
Pereira (2002, p. 147), Pontes de Miranda (1954, p. 162), Rodrigues (2002, p. 35), Serpa Lopes (1996, p. 289) e
Venosa (2002, p. 159-160).
68
determinado e, logo, identificável (2005, p. 68). Habermas afirma que ninguém duvida do valor
intrínseco da vida humana antes do nascimento. Sem embargo, a necessidade de proteger a vida
nesse estágio não encontra uma expressão racionalmente aceitável para todas as pessoas, nem
mesmo na religião (2004, p. 46).
Pelas teorias colacionadas no presente capítulo, constata-se uma irredutível diversidade de
opiniões acerca do marco inicial da individualidade humana e, logo, da proteção jurídica
estendida à vida humana. Tal situação deve-se ao fato de que em se tratando do início da proteção
jurídica à vida humana é sempre difícil fixar limites, parâmetros, marcos. O consenso é
impossível de ser obtido, enquanto se deseja viver em sociedades pluralistas e democráticas,
porquanto nenhum dos lados está disposto a ceder aos argumentos opositores.
De outra banda, além da invocação de um autêntico direito à vida, grande parcela da
população e da comunidade científica obstaculiza ou tenta retardar o uso de células-tronco
embrionárias na pesquisa e terapia sob o fundamento de que a dignidade dos embriões seria
gravemente violada. Por tal razão, a presente investigação ingressa na análise conceitual e
principiológica da dignidade da pessoa humana, com o intuito de avaliar a possibilidade ou não
de afronta à dignidade. Outrossim, existem resistências quanto à extensão da autonomia,
manifestada através do consentimento livre e esclarecido, conferida aos genitores na deliberação
acerca da permissão do uso de embriões na pesquisa e terapia com células-tronco. Nesse viés,
analisar-se-ão o conceito de autonomia e sua compreensão enquanto princípio bioético do
respeito à autonomia.
69
2
DIGNIDADE
E
AUTONOMIA:
UMA
ANÁLISE
CONCEITUAL
E
PRINCIPIOLÓGICA
Vários segmentos da sociedade têm se manifestado contrariamente à utilização de célulastronco embrionárias na pesquisa e terapia sob a justificativa de que tal fato implica grave ofensa à
dignidade dos embriões, tornando, assim, tais práticas antiéticas e contrárias ao Direito. Em
grande medida, a filosofia, o Direito, a bioética, a religião e a política centram-se na questão da
dignidade humana e no desejo de reconhecimento com que ela se relaciona, posto que cada vez
mais as pessoas invocam sua dignidade e reivindicam que a ordem jurídica a reconheça. Nesse
viés, limitar-se-á a analisar o conceito filosófico de dignidade, o conteúdo e princípio jurídicoconstitucional da noção de dignidade, bem como a dignidade da pessoa humana a partir do
critério da “ascrição”. De outra banda, grande parcela da sociedade e da comunidade científica
tem questionado acerca do poder exercido pelos genitores na deliberação acerca do uso de
células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia. Assim, a análise da autonomia, como conceito
e princípio, justifica-se, na medida da tentativa de se encontrarem argumentos que possam servir
de indicativos à construção de diretrizes acerca dessa temática tão instigante.
70
2.1 Conceito filosófico de dignidade da pessoa humana
Por ser uma noção bastante antiga, muito se fala sobre dignidade e pouco entendimento se
tem sobre o seu conceito/ conteúdo ou real alcance, embora se tenha presente que a realidade da
pessoa humana, como individualidade valiosa em si mesma, elevou ao primeiro plano o
sentimento de relevância da dignidade humana.
Canto-Sperber, ao tratar das origens da noção de dignidade humana, assinala que nas
sociedades européias aristocráticas e estratificadas socialmente a dignidade era reconhecida às
pessoas em virtude da função pública que ocupavam, ou pelo fato de pertencerem à nobreza,
ocuparem cargo eclesiástico ou desempenharem alguma profissão venerável (2003, p. 441).
Assim, a dignidade significava cargo, honraria, título ou postura diante de determinada situação
ou pessoa. O termo exprimia a posição social superior.
Enfatizando a necessidade de apreender o sentido da dignidade, o significado, Sarlet
atribui ao cristianismo as bases para o conceito da dignidade, ao sustentar que o cristianismo
extraiu a conseqüência de que o ser humano, não se restringindo apenas aos cristãos, é titular de
um valor intrínseco e que, por isso, não pode ser transformado em mero instrumento ou objeto
para quaisquer fins arbitrários (2004, p. 29-30).
De onde provém a dignidade? Fukuyama responde que para os cristãos a dignidade ou o
Fator X, como prefere nominar, tem origem em Deus (2003, p. 159).
Sob a perspectiva da Igreja Católica, a dignidade é interpretada como uma decorrência da
ontologia da pessoa, ser criado à imagem de Deus, conforme a revelação bíblica (Gn, 1, 27). O
pensamento da Igreja, salvo exceções, reza que a partir do momento da concepção já se está
71
perante a presença de uma pessoa, juntamente com o valor da dignidade. É Deus quem revestiria
o ser humano de dignidade. A partir da idéia de que os Judeus, cristãos e muçulmanos acreditam
que o homem foi criado à imagem de Deus, Fukuyama comenta que
para os cristãos, em particular, isso tem importantes implicações para a
dignidade humana. Há uma distinção nítida entre criação humana e não humana:
só os seres humanos têm capacidade de escolha moral, livre-arbítrio e fé, uma
capacidade que lhes confere um status moral mais elevado que o do resto da
criação animal. (2003, p. 99)
Seguramente, na Bíblia não é encontrado um conceito de dignidade, mas uma concepção
de ser humano, como dotado de valor intrínseco, que serviu de base à construção e
reconhecimento dessa mesma dignidade.
Sarlet, citando Herdegen, traz o pensamento de Santo Tomás de Aquino quanto ao
fundamento da noção de dignidade:
Com efeito, no pensamento de Tomás de Aquino restou afirmada a noção de
que a dignidade encontra seu fundamento na circunstância de que o ser humano
foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas também radica na capacidade de
autodeterminação inerente à natureza humana, de tal sorte que, por força de sua
dignidade, o ser humano, sendo livre por natureza, existe em função de sua
própria vontade. (2004, p. 31)
Sem embargo, supondo-se que a pessoa não seja cristã, existe alguma base para acreditar
que os seres humanos têm direito a uma dignidade especial? Fukuyama responde que o mais
notável esforço para criar uma base filosófica para a dignidade humana tenha sido o de Kant, que
sustentou que a dignidade era fundada na capacidade humana de escolha moral, querendo
manifestar a posição de que todas as pessoas são igualmente capazes de agir ou não segundo uma
lei moral (2003, p. 159).
72
Canto-Sperber comenta que a dignidade estabeleceu sua influência e desenvolveu-se,
principalmente, no pensamento estóico e na filosofia do Iluminismo46 (2003, p. 440). Sarlet
assinala que nos séculos XVII e, principalmente, XVIII, marcados pelo pensamento jusnaturalista
(que baseava sua força na crença ilimitada na razão humana – auge das idéias iluministas), a
concepção da dignidade da pessoa humana passou por um processo de “racionalização e
laicização”, em que pese a manutenção da noção fundamental da igualdade de todos os homens
em dignidade e liberdade (2004, p. 32). Assim, a dignidade passa a referir-se a uma condição
inerente à pessoa, conceito que ainda ostenta.
A autodeterminação inerente a todos os seres racionais, como um dos fundamentos da
dignidade no pensamento de Tomás de Aquino, aliada ao novo processo de racionalização,
encontra reflexo na teoria de Kant, que fundamenta a dignidade na autonomia da pessoa, no
caráter racional, iniciando-se a fase de abandono do fundamento da dignidade em Deus. Kant
teria sido o precursor e mais aclamado expoente da tentativa de criar uma base filosófica da
dignidade. Ele pode ser considerado o Filósofo da dignidade.
Inicialmente, Kant distingue os conceitos de pessoa e coisa:
O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional47, existe como fim em si
mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo
46
Meirelles, citando Caenegem, conceitua iluminismo como um movimento fundado na razão humana e que se
caracterizou pela postura crítica ao regime instituído nos séculos precedentes, entre os quais a desigualdade diante da
lei e a exclusão da participação popular em temas políticos (2000, p. 44).
47
Consoante Chauí, a palavra razão (do latim ratio e do grego logos) na cultura ocidental é entendida, na origem,
como a capacidade de pensar e dizer as coisas tais como são. A razão é uma maneira de organizar a realidade pela
qual esta se torna compreensível (1997, p. 59). Em continuação, a autora descreve sucintamente o pensamento de
Kant acerca da razão. Para o filósofo, “a razão é uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. Essa estrutura
(e não os conteúdos) é que é universal, a mesma para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares. Essa
estrutura é inata, isto é, não é adquirida através da experiência. Por ser inata e não depender da experiência para
existir, a razão é, do ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência.” (CHAUÍ, 1997, p. 78) Assim, para
Kant a razão vem antes da experiência, sendo independente dela. De outra banda, Chauí assinala que em Kant “[...]
a estrutura da razão é inata e universal, enquanto os conteúdos são empíricos e podem variar no tempo e no espaço,
podendo transformarem-se com novas experiências e mesmo revelarem-se falsos, graças a experiências novas.”
(1997, p. 78) E, por fim, a autora salienta que, para Kant, a razão é uma estrutura da consciência (1997, p. 82).
73
contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como
nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como fim. [...] Os seres cuja existência depende, não em
verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres
irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas,
ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os
distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser
empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo
o arbítrio ( e é um objecto do respeito) [...]. (grifos do autor) (1986, p. 68)
Do exposto, o filósofo encontra na racionalidade o elemento incondicional do valor
absoluto do ser pessoal. A idéia de fim e não de meio é a raiz do valor absoluto da pessoa, como
chave da fundamentação ética kantiana. Tendo-se bem presente que a pessoa é um fim em si
mesma, “os seus fins têm de ser quanto possível os meus, para aquela idéia poder exercer em
mim toda a sua eficácia.” (grifos do autor) (KANT, 1986, p. 71)
Se há um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que respeita à vontade
humana, então
o fundamento deste princípio é: a natureza racional existe como fim em si. [...] o
imperativo prático será, pois, o seguinte: age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. (grifos do autor)
(KANT, 1986, p. 69)
Kant assinala que o conceito segundo o qual todo ser racional deve considerar-se como
legislador universal por todas as máximas da sua vontade, com o fim de julgar-se a si mesmo e às
suas ações, conduz a um outro conceito que lhe é vinculado, chamado de reino dos fins (1986, p.
75). Assim: “[...] aquilo, porém, que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser
um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo,
isto é, dignidade.” (grifo do autor) (KANT, 1986, p. 77)
74
A titularidade da dignidade frente a todos os seres naturais tem como conseqüência
imediata a necessidade de tomar sempre as suas máximas do ponto de vista de si mesmo e, ao
mesmo tempo, também do ponto de vista de todos os outros seres racionais, como legisladores,
razão pela qual também se chamam de pessoas (KANT, 1986, p. 81).
Assim, a pessoa (diga-se, toda pessoa) é fim em si mesma porque não tem preço, mas
dignidade, e não pode ser usada como meio para alcançar outros fins. Ao defender o caráter
racional, fica afastado o poder religioso como fundamento da dignidade. Quanto ao sentido de
legislador, Canto-Sperber esclarece que a partir da “vontade legisladora”, que se insere no valor
da dignidade, as pessoas, como agentes morais, são dotadas de uma disposição profunda para
reconhecer a autoridade da lei moral, sendo que tal vontade está relacionada com o bem comum.
Outrossim, em termos atuais, tal vontade pode ser denominada de consciência (2003, 441- 442).
Enfatizando a noção clássica de dignidade, Sarlet tece considerações:
[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e
inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele
não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de
determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a
dignidade. Esta [...] pode ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida,
não podendo, contudo (no sentido ora empregado), ser criada, concedida ou
retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como
algo que lhe é inerente. (2004, p. 41- 42)
Nesse viés, Casabona ratifica que a dignidade da pessoa implica determinada concepção
do ser humano e supõe o reconhecimento de sua qualidade de ser humano, pelo mero fato de sêlo (1994, p. 44). Considerando que a noção kantiana de dignidade, pelo fato de alcançar todas as
pessoas, afasta-se de suas noções primitivas, baseadas em distinções sociais convencionais,
Canto-Sperber comenta que o status social não é relevante, de modo que a doutrina kantiana
atribui a cada pessoa um valor essencial, independentemente de seu mérito individual e de sua
75
posição social (2003, p. 441). Ademais, por força do imperativo categórico kantiano descrito
acima, no sentido de que “qualquer” pessoa deve ser tratada como fim, evidencia-se que a
dignidade é um valor de que são titulares todas as pessoas, incluindo aquelas que praticam ações
indignas. Logo, não deve haver diferenciações quanto a diferentes condutas praticadas pelas
pessoas: o valor da dignidade permanece o mesmo. Nesse viés, Casabona assinala que é a
dignidade que confere ao homem superioridade em relação aos animais, plantas e coisas e
assegura a igualdade em relação aos demais seres humanos (1994, p. 44). “Esa doble proyección
de superioridad/ igualdad la posee todo ser humano con independencia de sus circunstancias
personales e sociales [...], de sus capacidades físicas o mentales [...] y de su propia conducta [...]”
(CASABONA, 1994, p. 44-45). Assim, a dignidade humana admite atos dignos e indignos e,
sendo valor inerente à pessoa humana, não pode ser objeto de desconsideração mesmo àquelas
pessoas que praticam as condutas mais indignas e infames, a exemplo do que defende Dworkin,
ao enfatizar que os condenados presos, em que pese a gravidade do crime, têm direito à dignidade
na punição que lhes for aplicada (2003, p. 334). Nesse horizonte, bem concluem as palavras de
Minahim, ao afirmar que o fato de o ser humano ser tomado como eixo do sistema jurídico deve
significar que o respeito a ele conferido deverá ultrapassar as crenças e moralidades, sob pena de
todo o discurso não passar de mera retórica (2005, p. 46).
A dignidade, consoante bases defendidas por Kant, é a característica inerente à
moralidade, haja vista que esta é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em
si mesmo, eis que só por força dela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins (1986,
p. 77-78). O reino dos fins a que o filósofo refere-se é o reino dos fins racionais. Enfatizando a
razão, Gómez Pin posiciona-se:
76
La dignidad esencial (aquella de la que derivan todas las manifestaciones
particulares de la misma y que revelan de inmediato las actitudes que, respecto
a tal o cual circunstancia concreta, cabe indisociablemente tachar de
improcedentes o indecentes) reside en la adecuación del espíritu a un referente
moral porque racional; racional en el sentido de matriz y condición de
posibilidad del funcionamiento cabal de las faculdades constitutivas de lo
humano. (grifos do autor) (1995, p. 19-20)
A dignidade Kantiana seria um valor acima de qualquer preço, visto que não permite
equivalente. Ela “nunca poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que
tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade.” (KANT, 1986, p.78) Com tal
afirmação, Kant leva a entender que a dignidade é um valor intrínseco da pessoa que a sobrepõe a
qualquer medida ou critério de fixação de preço. A dignidade não é valor que possa ser medido,
substituído, apreçado ou avaliado segundo critérios econômicos, haja vista que é fim. Por ser a
dignidade um valor invariável, Canto-Sperber conclui que “a dignidade é um valor incondicional
e incomparável, enquanto o preço é um valor condicional e comparativo.” (2003, p. 442)
Gómez Pin, ao tratar da dignidade como axioma e esclarecendo o que deve ser entendido
como valor, ratifica que o valor da dignidade não é suscetível de intercâmbio:
Pues la dignidad se vincula efectivamente a axioma, a través de la connotación
de valor presente en ambos conceptos. Valor, ciertamente, en un sentido sui
generis bien diferente del usual que (como marcado por las operaciones
bursátiles) se asocia a algo intercambiable por un equivalente y por
conseguiente no susceptible de racional intercambio. (grifos do autor) (1995, p.
19)
Kant busca um fundamento à dignidade e o encontra na autonomia:
[...] pois coisa alguma tem outro valor senão aquele que a lei lhe confere. A
própria legislação, porém, que determina todo o valor, tem que ter exactamente
por isso uma dignidade, quer dizer, um valor incondicional, incomparável, cuja
avaliação, que qualquer ser racional sobre ele faça, só a palavra respeito pode
exprimir convenientemente. Autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da
natureza humana e de toda natureza racional. (grifos do autor) (1986, p. 79)
77
Do exposto, a autonomia kantiana48 seria uma qualidade encontrada apenas em seres
racionais, ou seja, o agente racional é uma pessoa dotada de autonomia. Casabona ratifica que
“[...] su condición de ser racional implica su autonomía moral [...].” (grifos do autor) (1994, p.
45) Isso significa que a liberdade é inerente à dignidade da pessoa, de modo que o homem é
senhor de si mesmo, a exemplo do que preconiza Kant (CASABONA, 1994, p. 45).
Enfim, Kant defende que somente as pessoas têm dignidade, já que somente elas têm
livre-arbítrio (diga-se, autonomia), e disso decorre a conclusão de que as pessoas devem ser
tratadas como fins (nisso consiste sua dignidade, seu valor absoluto), sendo que não devem ter
sua dignidade restringida por fins de valor relativo ou arbitrário. A concepção kantiana da
dignidade afasta qualquer espécie de disponibilização/ instrumentalização da pessoa humana. A
dignidade seria violada sempre que a pessoa fosse tratada como coisa, quando perde o status de
sujeito para ser objeto. Quando o Estado reduz a pessoa a meio, tal como se deu no nazismo,
notadamente, ela perde o respeito à sua dignidade e torna-se objeto. Embora difícil definir o
âmbito de proteção da dignidade humana, fácil é perceber os casos em que há efetiva violação.
Sarlet, ao referir-se à autonomia da pessoa como fundamento da dignidade a partir da
matriz kantiana, assinala que ela deve ser entendida abstratamente. Veja-se:
Importa, contudo, ter presente a circunstância de que esta liberdade (autonomia)
é considerada em abstrato, como sendo a capacidade potencial que cada ser
humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva
realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o
absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de grave deficiência mental)
possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e
mentalmente capaz. ( 2004, p. 45)
48
Para que não se caia na mácula da repetição, a noção de autonomia em sentido kantiano será tratada ao final do
presente capítulo.
78
Nesse horizonte, Casabona observa que “la dignidad ha sido puesta en ocasiones por
delante de la propia vida, sobre todo en el contexto de la proximidad de la muerte, como derecho
a una muerte digna.” (1994, p. 46)
O que será discutido em momento oportuno é se a autonomia pode ser reduzida à
abstratividade ou se continua mantendo o sentido clássico da autodeterminação efetiva.
A partir da base Kantiana de dignidade como valor absoluto, Bellino traz sua colaboração,
ratificando as bases já expostas:
Os próprios valores não são entidades
fundados e exprimem a relacionalidade
valores que se remetem a um sentido
exigência de uma referência ao que aqui
referem à existência da pessoa humana
dignidade. (1997, p. 183)
abstratas, mas são ontologicamente
onto-axiológica do ser humano. Há
último. Estes se manifestam com a
existe de não relativo na relação e se
como valor irredutível em si, como
Nesse viés, Lepargneur afirma que atualmente é mais exato subscrever a distinção entre as
coisas, que têm preço, e as pessoas, que não têm preço, mas dignidade. O ser que se reveste de
dignidade não se comercializa. A dignidade é o valor próprio do ser humano enquanto sujeito
moral, isto é, autônomo e responsável (1996a, p.177).
Enfim, a par do pensamento kantiano, não se pretende discutir se a concepção do filósofo
acerca da dignidade humana é um ideal inatingível ou uma fonte de dilemas: o importante é
apreender o seu sentido (como valor absoluto e sem equivalente) e os seus titulares (toda pessoa).
Questão de envergadura na obra de Habermas é a que se refere à dignidade humana versus
a dignidade da vida humana. Adentrando-se na temática referente aos embriões, o argumento de
que os mesmos desfrutam desde a concepção de dignidade humana é questão que depende de
necessária discussão se o objetivo a que se almeja é “chegar a um acordo político sobre essas
79
questões fundamentais, levando em conta o que é constitucionalmente exigido quanto ao
pluralismo ideológico da nossa sociedade.” (HABERMAS, 2004, p. 41) As posições defendidas
por conservadores e liberais, em matérias que tratam da proteção ou não do óvulo fecundado,
irradiam seus resultados quando se discutem questões atinentes à dignidade dessa “vida”.
Habermas assinala que a dignidade, entendida em sentido moral e jurídico, está ligada às
relações dos membros que dirigem uns aos outros ordens e proibições intersubjetivamente
reconhecidas (2004, p. 47). E esclarece:
Ela não é uma propriedade que se pode “possuir” por natureza, como a
inteligência ou os olhos azuis. Ela marca, antes, aquela “intangibilidade” que só
pode ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco
e no relacionamento igualitário entre as pessoas. (2004, p. 47)
Com tal afirmação, Habermas defende que a dignidade não é um valor que se tem desde o
início, porquanto se fundamenta nas relações entre as pessoas. Pelo que se percebe, o termo
“intangibilidade” resulta das relações interpessoais marcadas pelo respeito e consideração
recíprocos, de modo que se denota que o requisito identificador da dignidade em Habermas
encontra-se no sentido de relação interpessoal e não como valor inerente à natureza humana49.
Enfatizando a perspectiva relacional, o autor comenta que “apenas na esfera pública de
uma comunidade lingüística é que o ser natural se transforma ao mesmo tempo em indivíduo e
em pessoa dotada de razão.” (2004, p. 49)
Fukuyama ratifica a necessidade da relação entre os seres humanos ao afirmar que
“partilhamos uma humanidade comum que permite a todo ser humano se comunicar
49
Habermas tem como pressuposto o conceito de natureza humana. Por não ser objeto do presente trabalho, não será
analisado o conceito supracitado.
80
potencialmente com todos os demais seres humanos no planeta e entrar numa relação moral com
eles.” (2003, p. 23)
Situação diversa é aquela em que não se está diante de uma pessoa, nos moldes em que
comumente se vê e se reconhece, com o exercício das habilidades físicas e mentais. Quanto à
proteção dessa vida e a relação com a dignidade, Habermas posiciona-se:
[...] a vida pré-pessoal, anterior a um estágio em que se pode atribuir a ela o
papel destinado a uma segunda pessoa, a quem se pode dirigir a palavra, também
conserva um valor integral para a totalidade de uma forma de vida eticamente
constituída. Nesse sentido, dá-se a distinção entre a dignidade da vida humana e
a dignidade humana garantida juridicamente a toda pessoa [...]. (2004, p. 51)
Junges, enfatizando a concepção de que a dignidade é valor inerente à pessoa
individualmente considerada, como indivíduo único e insubstituível, assinala que a dignidade
humana não se refere a uma natureza abstrata, mas a seres históricos e concretos (1999, p. 111).
Habermas entende que a dignidade não pode ser entendida como um bem50, sob pena de
justificar possível instrumentalização. Nesse viés, ao adentrar na temática referente aos embriões,
esclarece:
A utilização restritiva do conceito da dignidade humana permite que a
necessidade de proteger o embrião – não só porque ele precisa dessa proteção,
mas também porque é digno dela – seja avaliada como um bem, o que abre uma
brecha para a instrumentalização da vida humana e para o esvaziamento do
sentido categórico de exigências morais. (2004, p. 53)
50
Böckle traz a distinção entre bem e valor, com o fim precípuo de se evitar equívocos e perseguir o rigor no uso da
linguagem ética. A partir do autor, o bem é definido como uma realidade pré-moral, eis que existe independente da
ação e da vontade humanas. Nesse sentido, a vida, a saúde, a procriação, a propriedade, entre outros, são bens prémorais. Contrariamente, o valor é uma qualidade objetiva do agir humano e só existe enquanto tal. A moralidade é
inerente ao valor e, por isso, não se pode ir de encontro a um valor. A justiça, a honestidade, a solidariedade, a
fidelidade etc podem ser identificadas como qualidades da ação e da vontade humana. Quanto à possível hierarquia,
esta só existe em relação aos bens, mas não entre os valores. Parece, por exemplo, que a vida humana vale mais do
que a procriação e, principalmente, a propriedade. A idéia de hierarquia está vinculada à possibilidade de haver ou
não conflitos entre bens ou entre valores. Podem ocorrer conflitos entre bens (vida versus outra vida) ou entre bens e
valores (vida versus solidariedade), mas nunca haverá conflito entre valores. Quanto a estes, existem urgências,
necessidades (1984, p. 253-257).
81
Dworkin, ao tratar da dignidade, limita-se a analisá-la de um modo mais restrito, ou seja,
a partir da idéia de que “[...] todas as pessoas têm o direito de não ser vítimas da indignidade, de
não ser tratadas de um modo que, em sua cultura ou comunidade, se entende como demonstração
de desrespeito.” (grifo do autor) (2003, p. 334)
O autor sugere que o direito de uma pessoa a ser tratada com dignidade51 “é o direito de
que os outros reconheçam seus verdadeiros interesses críticos: que reconheçam que ela é o tipo
de criatura cuja posição moral torna intrínseca e objetivamente importante o modo como sua vida
transcorre.” (2003, p. 337) Dworkin conclui que a dignidade é um aspecto central do valor
examinado em sua obra, ou seja, o valor intrínseco da vida humana, de modo que a dignidade é
traduzida no respeito ao valor/ inviolabilidade inerente a toda vida humana (2003, p. 337-338).
Em sua teoria, Dworkin reporta-se diretamente à doutrina de Kant, defendendo que as
pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância distintiva de
suas próprias vidas, sendo que nesse sentido de tratamento a dignidade não é uma questão de
convenção. Transcreve-se seu posicionamento:
O fato de entender que a dignidade significa reconhecer os interesses críticos de
uma pessoa, como coisa distinta de fomentar esses interesses, nos proporciona
uma leitura útil do princípio kantiano segundo o qual as pessoas devem ser
tratadas como fins, nunca simplesmente como meios. Assim compreendido,
esse princípio não exige que as pessoas nunca sejam colocadas em desvantagem
com o objetivo de oferecer vantagens a outras, mas sim que nunca sejam
tratadas de maneira que se negue a evidente importância de suas próprias vidas.
[...] Em certo sentido, a dignidade é uma questão de convenção, uma vez que
são diferentes os sistemas de gestos e tabus aos quais as sociedades recorrem
para traçar os limites entre desvantagem e indignidade. Mas o direito que todas
as pessoas têm – o de que a sociedade em que vivem reconheça a importância
de suas vidas e que a expresse não importa em que linguagem – não constitui,
em si, uma questão de convenção. (2003, p. 338-339)
51
De forma genérica, Dworkin acredita que o direito à dignidade é mais urgente e fundamental do que o direito à
beneficência que, na visão do autor, é somente um direito do paciente de que todos os recursos disponíveis sejam
utilizados em seu favor (2003, p. 334).
82
Junges sustenta que a dignidade não admite privilégios em seu significado, porquanto
“não é um atributo outorgado, mas uma qualidade inerente, enquanto ser humano; é um a priori
ético comum a todos os humanos. A dignidade é uma qualidade axiológica que não admite mais
ou menos.” (1999, p. 111-112)
Denota-se que a dignidade no sentido delineado por Junges não é somente aplicável às
pessoas, mas a todos os seres humanos, simplesmente por pertencerem ao gênero humano, não
sendo exigido nenhum requisito adicional. E conclui:
Em sua significação práxica, a categoria ética de dignidade tem uma orientação
preferencial para aqueles cuja dignidade humana está desfigurada ou diminuída
na sua expressão. Nesse sentido, ajuda, por um lado, a corrigir possíveis
reducionismos aos quais o ser humano pode ser submetido; por outro, a orientar
a ação para a meta da humanização. (1999, p. 112)
Percebe-se a preocupação do autor em reconhecer a dignidade a seres humanos que não
detêm capacidades físicas e mentais tidas como presentes em pessoas ditas “normais”.
Fukuyama elabora sua própria tese acerca da dignidade humana, concluindo que a
essência humana, representada pelo valor da dignidade, pode ser chamada de “Fator X”, que na
visão do autor significa “[...] que quando despimos uma pessoa de todas as suas características
contingentes e acidentais resta sob isso uma qualidade humana essencial que é merecedora de
certo nível mínimo de respeito – chamêmo-lo Fator X.” (2003, p. 158)
A questão que mais causa dissensos e discussões ao longo da história humana refere-se ao
círculo dos seres ao qual pode ser reconhecida a dignidade, ou o Fator X52.
52
“[...] hoje, para os que acreditam na igualdade liberal, o Fator X traça uma nítida linha vermelha em torno de toda
a raça humana e exige igualdade de respeito para todos os que estão no interior, atribuindo, porém, um nível mais
baixo de dignidade aos que ficam fora das raias. O Fator X é a essência humana, o significado mais básico do que é
ser humano. Se todos os seres humanos são, de fato, iguais em dignidade, X deve ser alguma característica
universalmente possuída por eles.” (FUKUYAMA, 2003, p. 159)
83
Nesse sentido, Dworkin traz à lume a tormentosa questão de se os pacientes demenciados
têm direito à dignidade como algo inato ou se a preocupação das pessoas por sua dignidade é
fruto de mero sentimentalismo (2003, p. 334-335). O autor, demonstrando a dificuldade de se
explicar um direito ao tratamento com dignidade às pessoas dementes, ou nos casos em que já
perderam sua capacidade de autodeterminação, posiciona-se: “o fato de continuar sendo uma
pessoa e de o valor geral de sua vida continuar tendo importância intrínseca são verdades que
pesam decisivamente em favor de seu direito à dignidade.” (2003, p. 339-340)
Mas, afinal, questiona Fukuyama, existiria dignidade humana desvinculada das origens
cristãs ou kantianas? O autor acredita que há um meio de defender o conceito de dignidade
humana contra seus detratores que seja compatível com a ciência natural moderna, mas que,
também, faça justiça ao significado da especificidade humana (2003, p. 169). Enfatizando a
relação partes-todo inerente à complexidade humana, posiciona-se:
Se o que nos dá dignidade e um status moral mais elevado que o de outras
criaturas vivas está relacionado ao fato de sermos todos complexos em vez da
soma de partes simples, fica claro que não há nenhuma resposta simples para a
pergunta: que é o Fator X? Isto é, o Fator X não pode ser reduzido à posse de
escolha moral, ou razão, ou linguagem, ou sociabilidade, ou sensibilidade, ou
emoções53, ou consciência, ou qualquer outra qualidade que tenha sido proposta
como base da dignidade humana. São todas essas qualidades combinando-se
num todo humano que constitui o Fator X. Cada membro da espécie humana
possui uma dotação genética que lhe permite tornar-se um ser humano integral,
uma dotação que distingue um ser humano em essência de outros tipos de
criaturas. (2003, p. 179-180)
53
Fukuyama estabelece uma relação entre as emoções e o valor da dignidade, já que as primeiras seriam a fonte dos
valores humanos: “pois é a gama caracteristicamente humana de emoções que produz os propósitos, as metas,
objetivos, vontades, necessidades, desejos, medos e aversões do homem, sendo, portanto, a fonte dos valores
humanos. Muitos apontariam a razão e a escolha moral humanas como as características humanas singulares mais
importantes que dão dignidade à nossa espécie, mas eu contestaria que a posse da plena gama emocional humana é
pelo menos igualmente importante, se não mais.” (2003, p. 177)
84
Assim, o Fator X não pode ser constituído por certa qualidade específica, mas pela
interação entre elas, eis que nenhuma das qualidades essenciais mencionadas como fundamento
da dignidade humana pode existir na ausência das outras.
Os entendimentos acerca do alcance da noção de dignidade, a partir dos argumentos
colacionados no presente item, aos embriões criopreservados serão apresentados no capítulo final
da presente dissertação.
As bases dos direitos humanos estão alicerçadas no respeito à dignidade da pessoa
humana, razão pela qual urge analisar o conteúdo jurídico da noção de dignidade, a fim de que se
possa apreender o seu sentido e extensão.
2.2 Conteúdo jurídico-constitucional da noção de dignidade da pessoa humana
Noção ou conceito bastante antigos, a dignidade desenvolveu-se dialética e
sociopoliticamente, difundindo-se em âmbito nacional e internacional, especialmente na
modernidade, através da elaboração dos chamados direitos do homem, que, quase na totalidade,
refletem concretamente o que a dignidade da pessoa hoje significa. Por exemplo, rejeita a
escravidão que não causava contrariedade no século XVI. Em que pese a possibilidade de
exemplificação dos casos em que a dignidade é ferida, impossível explicitá-los taxativamente.
Sarlet assinala que, mais do que nunca, a dignidade da pessoa humana continua a ocupar
um lugar central no pensamento filosófico, jurídico e político (2005, p. 114), “[...] do que dá
conta a sua qualificação como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo número de
85
ordens constitucionais, pelo menos para os que nutrem a pretensão de constituírem um Estado
Democrático de Direito54.” (SARLET, 2004, p. 38)
A compreensão do conteúdo e significado da dignidade da pessoa humana no Direito é
tema polêmico que tem originado intensas discussões, na medida das controvérsias que pairam
sobre o termo. O que existe, de fato, é uma dificuldade de se definir claramente ou
satisfatoriamente o significado da dignidade, visto que não se pode almejar uma conceituação
genérica consensualmente aceita e a delimitação exata do âmbito de proteção da mesma. A
dificuldade “decorre certamente (ao menos também) da circunstância de que se cuida de conceito
de contornos vagos e imprecisos [...].” (SARLET, 2004, p. 39) Entretanto, uma conceituação
aberta da dignidade impõe-se, na medida em que o fechamento vai de encontro com a diversidade
e a pluralidade de valores inerentes à sociedade atual. Outrossim, Rocha adverte para o fato de
não se poder ignorar a “ambigüidade e a porosidade” do princípio da dignidade, haja vista que
este é “elemento em construção permanente mesmo em seu conteúdo” (1999, p. 24). No entanto,
em que pese a dificuldade de se definir seu conceito, isso não constitui fato impeditivo para que
possam ser apontadas as violações contrárias à dignidade na prática social.
Resgatando a matriz kantiana, Sarlet assinala que a doutrina jurídica de maior
expressividade, tanto em âmbito nacional como internacional, ainda hoje parece identificar as
bases de uma fundamentação e de uma conceituação da dignidade da pessoa humana a partir do
pensamento kantiano (2004, p. 34).
54
Canotilho posiciona-se no sentido de que se o princípio do Estado de direito revelou-se como uma linha entre
Estados que têm uma Constituição e Estados que não têm, isso não significa que o Estado Constitucional deva
apenas ser considerado um Estado de direito. Assim, o Estado tem que se estruturar como Estado de direito
democrático, ou seja, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo (2003, p. 97-98). Ao Estado democrático,
continua Canotilho, estaria vinculada a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício democrático do
poder, haja vista que o poder é legitimado pela liberdade democrática (2003, p. 99). Nesse viés, defende que o
princípio da soberania popular é uma das vigas mestras do Estado Constitucional (2003, p. 97). Assim sendo, o
referido princípio, “concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados, serve de ‘charneira’ entre o
‘Estado de direito’ e o ‘Estado democrático’.” ( 2003, p. 100)
86
Sem embargo, desconsiderando-se que a dignidade seja exclusivamente um valor intrínseco
à pessoa, como uma qualidade inata, Dworkin, ao defender a existência de um direito das pessoas
de não serem vítimas de indignidade, refere que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios
padrões e convenções a respeito do que constitui esta indignidade, critérios que variam conforme
a época e o local (2003, p. 334). Nessa direção, há quem sustente que a dignidade “[...] possui
também um sentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em
seu todo, razão pela qual a dimensão natural e a dimensão cultural da dignidade da pessoa se
complementam e interagem mutuamente.” (SARLET, 2005, p.117). Com isso, o autor quer
demonstrar outra faceta da dignidade, inserida em sua dimensão histórico-cultural.
Vem à tona a questão da diversidade cultural55 como fator determinante da
reprovabilidade ou não de certas condutas atentatórias à dignidade. No entanto, não é objeto do
presente trabalho a discussão acerca da implicação da cultura na aplicação alargada ou não da
noção da dignidade da pessoa humana, considerando que a maioria das culturas possui suas
próprias concepções de dignidade e a maneira peculiar de protegê-la ou não diante dos casos em
concreto, porquanto a valoração consiste no juízo feito sobre a importância que é outorgada à
dignidade pelo grupo social em determinada cultura.
Para o Direito, a manifestação imediata da dignidade encontra-se na proibição de
tratamento desumano ou degradante, junto ao direito à integridade física e moral, bem como os
de liberdade, igualdade, não discriminação etc (CASABONA, 1994, p. 67). Nesse sentido,
[...] não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba
necessariamente o respeito e a proteção da integridade física do indivíduo, do
que decorrem a proibição da pena de morte, da tortura, das penas de cunho
55
Lepargneur, passando por alto o exame de o que exige a dignidade em cada cultura, entende que, de forma
genérica, uma pessoa ou sua conduta é digna quando segue os ditados da racionalidade ou os princípios da moral
vigente no lugar (1996a, p. 178).
87
corporal, utilização da pessoa humana para experiências científicas,
estabelecimento de normas para os transplantes de órgãos etc. (SARLET, 2004,
p. 58)
Outrossim, o autor alarga seu discurso aos casos em que as condições mínimas de uma
existência digna não forem asseguradas, onde não há limitação do poder, onde a autonomia, a
igualdade e os direitos fundamentais não forem assegurados, de modo que nesses casos e em
outros não haverá lugar à dignidade da pessoa humana e esta será apenas considerada objeto de
arbítrio e injustiças (SARLET, 2005, p. 120). Ademais, em nome da dignidade, não podem ser
toleradas as perseguições por motivo de religião, sexo, raça etc, a escravidão, dentre outros.
Por todos os argumentos colacionados por Sarlet, o autor sugere um conceito jurídico de
dignidade da pessoa humana, assim descrito:
[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
(grifos do autor) (2004, p. 59-60)
Silva descreve o conteúdo e o alcance da dignidade humana, enfatizando que ela, por ser
valor supremo, atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais56 da pessoa, partindo-se do
direito à vida. Disso resulta que as normas constitucionais relativas às ordens econômica, social,
56
Canotilho distingue direitos humanos dos fundamentais. Os primeiros seriam direitos válidos para todos os povos
e em todos os tempos, porquanto são inerentes à própria natureza humana (disso decorre o caráter inviolável,
temporal e universal desses direitos). Diferentemente, os direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Em última análise, os direitos fundamentais seriam
os direitos objetivamente vigentes em determinada ordem jurídica concreta (2003, p. 393). Bonavides conclui que os
direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais (2004, p. 560). Moraes utiliza a
nomenclatura direitos humanos fundamentais para designar o “conjunto institucionalizado de direitos e garantias do
ser humano que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do
poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.”
(2005, p. 21)
88
cultural, educacional e, notadamente, o direito à intimidade, à honra, à imagem etc, funcionam
como indicadores do vasto conteúdo abarcado pelo conceito de dignidade (2005, p. 105),
pensamento também comungado por Moraes (2005, p. 48).
Ao lançar mão da Constituição da República Portuguesa anotada, Silva comenta acerca da
amplitude do conceito de dignidade da pessoa humana:
Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos
fundamentais [...], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma
densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo
reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais
tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para
construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se
trate de garantir as bases da existência humana. (2005, p. 105)
Sucintamente, o conceito de dignidade defendido por Silva exige o reconhecimento e
proteção dos direitos fundamentais de todas as gerações. Assim, consoante o autor, pode ser
deduzido que se não forem reconhecidos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, a
própria dignidade estará sendo negada.
Moraes, ao afirmar que a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República
Federativa do Brasil, é inerente às personalidades humanas, preceitua:
A dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias57
fundamentais [...] Esse fundamento afasta a idéia do predomínio das concepções
57
Canotilho comenta que as clássicas garantias são, rigorosamente, também direitos (2003, p. 396), “embora muitas
vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de protecção dos direitos. As garantias traduziam-se quer no direito
dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a protecção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios
processuais adequados a essa finalidade [...]” (grifos do autor) (2003, p. 396). Bonavides observa que existe garantia
sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjugar (2004, p. 525). E
continua: “a garantia – meio de defesa – se coloca então diante do direito, mas com este não se deve confundir.”
(2004, p. 526) Outrossim, afirma que o fracasso da garantia não significa a inexistência do direito e, do mesmo
modo, a suspensão de garantias não significa supressão de direitos (2004, p. 527). Enfim, Bonavides entende que os
direitos representam certos bens, sendo que as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens, ou seja, os
direitos são principais e as garantias, acessórias (2004, p. 528).
89
transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A
dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e
que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas,
constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve
assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações
ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a
necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
(grifos do autor) (2004, p. 52)
Em outra obra, Moraes assinala que o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana apresenta dupla concepção, a saber:
Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao
próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar,
estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios
semelhantes. [...] A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a
três princípios do direito romano: honestere vivere (viver honestamente),
alterum non laedere (não prejudicar ninguém) e suum cuique tribuere (dê a
cada um o que lhe é devido). (2005, p. 48-49)
Ferraz, ao defender a correlação dignidade – direito fundamental, considera que o
reconhecimento da dignidade humana sofre atentados diários e degradações, evidenciando-se
uma luta permanente que perpassa toda a história da humanidade e que assinala ora animados
progressos, ora dolorosos recuos (1991, p. 20).
Tal fato parece significar que, por força da abstração da noção de dignidade da pessoa
humana, muitas vezes acaba sendo mera carta de intenções. Não basta apenas elevar em nível
constitucional o princípio da dignidade, mas é necessário ações positivas do Estado em prol da
garantia efetiva da mesma e repressão contra os abusos. Assim, imprescindível que, com base na
Constituição, implementem-se leis infraconstitucionais com vistas à proteção efetiva da dignidade.
90
A partir de algumas noções acerca do conteúdo da dignidade da pessoa humana, passa-se
a analisar a dignidade como princípio jurídico, eis que a mesma foi elevada a princípio
fundamental, fundamento do Estado Democrático de Direito da República brasileira.
2.2.1 O princípio jurídico-constitucional da dignidade da pessoa humana
Como referido alhures, a noção de dignidade tem origens remotas. Sem embargo, a
positivação do princípio da dignidade da pessoa humana é relativamente recente58. Rocha, ao
enfatizar que Auschwitz pode ser considerado o berço da dignidade humana, como princípiomatriz do direito contemporâneo, comenta: “[...] tendo o homem produzido o Holocausto, não
havia como ele deixar de produzir os anticorpos jurídicos contra a praga da degradação da pessoa
por outras que podem destruí-la ao chegar ao poder.” (1999, p. 29) Assim, a dignidade passa a ser
princípio/ valor supremo e fundamental no pós-guerra.
A citada autora, qualificando a dignidade da pessoa humana como princípio matricial do
constitucionalismo contemporâneo, assinala que o princípio da dignidade passou a fazer-se valer
em todos os ramos do Direito, passando a ser princípio e fim do Direito contemporaneamente
produzido, sendo observado tanto em nível nacional como internacional (1999, p. 24).
58
De modo geral, pela importância do papel desempenhado no respeito integral à pessoa, a dignidade passou a ser
incluída na maioria dos tratados e convênios internacionais, bem como passou a ser reconhecida expressamente na
maioria das Constituições, ressalvados os casos das Constituições Alemã de 1919, da Portuguesa de 1933 e da
Irlandesa de 1937, a partir dos desastres humanos da Segunda Guerra Mundial provocados pela odiosa experiência
nazista, após a Carta das Nações Unidas, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada pela
ONU, de 1948. Esses dados são extraídos de Canotilho (2003, p. 225-226), Nunes (2002, p. 25-26; 48), Rocha (1999,
p. 29) e Sarlet (2004, p. 62) (2005, p. 111).
91
No Brasil, de forma inédita, a dignidade foi elevada a princípio fundamental, como
fundamento do Estado Democrático de Direito59, nos termos do qual se estrutura a República
Federativa do Brasil, consoante o art. 1º, III, CFB/88, e, logo, integrando o direito positivo60
vigente.
Quando se pretende traçar diretrizes a partir de princípios constitucionais, merecem ser
colacionadas algumas considerações acerca dos mesmos.
Quanto aos princípios, existem várias teorias61 destinadas a explicá-los. Por não ser objeto
da presente investigação a análise de cada uma delas, traz-se, de forma sumária, a teoria
defendida por Dworkin, principalmente.
Dworkin defende que os juristas, quando raciocinam ou debatem a respeito de direitos e
obrigações jurídicas, recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas como princípios,
políticas62 e outros tipos (2002, p. 36). De maneira genérica, o autor utiliza o termo princípio para
indicar o conjunto de padrões diferentes das regras jurídicas (2002, p. 36). De forma restrita,
princípio é “um padrão que deve ser observado não porque vá promover ou assegurar uma
situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de
justiça, eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade.” (2002, p. 36)
59
Dworkin comenta que “uma das precondições da democracia legítima encontra-se na exigência de que o governo
trate todos os cidadãos como iguais e respeite suas liberdades fundamentais e sua dignidade.” (grifos do autor) (2003,
p. 172) Outrossim, observa que a democracia é exigida por todos porque a dignidade é honrada por todos. Uma
Constituição que permita que a maioria negue a liberdade de consciência será inimiga da democracia, jamais sua
criadora (DWORKIN, 2003, p. 343).
60
Consoante Nader, Direito positivo é o institucionalizado pelo Estado. É a ordem jurídica obrigatória em
determinado lugar e tempo, distinguindo-se do Direito natural (2004, p. 77). Ferraz Júnior esclarece que para que
haja a caracterização do Direito positivo não é necessário que seja escrito, haja vista que as normas costumeiras, que
se manifestam pela oralidade, constituem também Direito positivo (2003, p. 72). Outrossim, Nader assinala que a
positividade e a vigência interdependem-se (2004, p. 78).
61
Uma das teorias de grande expressão é a desenvolvida por Robert Alexy em sua obra Teoría de los derechos
fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002.
62
Dworkin denomina política o tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, geralmente relacionado à
melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (2002, p. 36).
92
Sinteticamente, Dworkin entende que, genericamente, princípios não são regras. As regras
e princípios jurídicos distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são
válidas ou inválidas, aplicáveis pela lógica do “tudo-ou-nada”. Regras podem ter exceções, o que
não ocorrem com os princípios, que não apresentam conseqüências jurídicas automáticas quando
as condições são dadas (2002, p. 39-41). Eles não são suscetíveis de enumeração. “Ao
afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for
relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que
inclina numa ou noutra direção.” (DWORKIN, 2002, p. 42)
Dworkin defende a necessidade de os princípios serem tratados como Direito
(ordenamento jurídico como sistema aberto, composto por regras e princípios), abandonando,
assim, a doutrina positivista63e reconhecendo a possibilidade de que tanto a enorme gama de
princípios, que constituem o suporte axiológico, quanto uma regra positivamente estabelecida
têm o poder de impor obrigação legal e criar direitos. Outrossim, os princípios expressam a
maioria dos direitos fundamentais.
Bonavides atribui um defeito aos conceitos de princípios que omitem o traço
qualitativamente mais importante à sua caracterização, qual seja, o traço da normatividade (2004,
p. 257). O supracitado autor, enfatizando a força positiva incontrastável dos princípios gerais do
Direito no corpo das Constituições (2004, p. 258-259), assinala que
todo discurso normativo tem que colocar, portanto, em seu raio de abrangência
os princípios, aos quais se vinculam. Os princípios espargem claridade sobre o
entendimento das questões jurídicas, por mais complicadas que estas sejam no
interior de um sistema de normas. (2004, p. 259)
63
Argumenta Dworkin que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um
único teste fundamental para o direito força a ignorar os papéis importantes desempenhados por outros tipos de
padrões que não são regras jurídicas (2002, p. 36).
93
Bonavides aceita e leciona a idéia de que não cabem mais distinções entre normas e
princípios, uma vez que norma é gênero que congrega como espécies as regras e os princípios, o
que, por conseqüência, importa em que estes são dotados de normatividade (2004, p. 288).
Nunes enfatiza que os princípios são as vigas mestras do sistema jurídico64 (2002, p. 37),
visto que guiam e condicionam a interpretação das normas jurídicas em geral (2002, p. 38), e
devem ser obedecidos, porquanto os princípios constitucionais dão estrutura e coesão ao “edifício
jurídico” (2002, p. 37). Segundo o autor, “é como se o sistema jurídico [...] fosse um tecido
costurado sobre os princípios. Ou, dizendo de outro modo, a colcha de retalhos de normas postas
está assentada neles. Se essa colcha fosse, por um motivo qualquer, retirada, eles estariam lá, sob
ela.” (2002, p. 23) Com isso, o autor não quer afirmar que os princípios são os últimos a serem
invocados na decisão da lide, mas que são aquilo que resta quando não há norma alguma para o
caso em concreto (2002, p. 23).
Quanto ao conflito de regras versus regras e princípios versus princípios, Dworkin
posiciona-se: os princípios possuem dimensão de peso ou importância que as regras não têm.
Quando conflitam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta o valor relativo de
cada um. De outra banda, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra no seu papel
de regulação social, de modo que quando estão em conflito uma suplanta a outra, eis que uma
delas não pode ser válida (2002, p. 42-43). Do exposto, os princípios não são absolutos, sendo
que não se poderia sustentar a priori uma hierarquia jurídica entre eles. Na teoria de Dworkin, os
princípios não têm um peso diferente, já que sua aplicação não é predeterminada: trata-se de
aplicá-los ou não diante do caso em concreto. É a decisão judicial, no caso concreto, que tem o
poder de excepcionar ou não determinado princípio. Assim, o princípio da dignidade pode ser
64
Nunes define sistema jurídico como sendo o conjunto de princípios e normas (2002, p. 33).
94
relativizado no confronto com outro princípio (aqui, não se pode aplicar a tese do “tudo ou nada”
das regras, tese que Dworkin combate duramente).
Quanto à possível relativização, Sarlet comenta que a expressiva maioria da doutrina65
advoga que a dignidade constitui um bem jurídico absoluto, inalienável, irrenunciável, intangível
e inviolável (2004, p. 125-126). A jurisprudência66 pátria, por sua vez, é cada vez mais farta ao
invocar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana como paradigma de decisão
em uma ou outra direção. Sem embargo, Sarlet alerta para o fato de que ninguém será capaz de
negar que a todo momento a dignidade da pessoa humana é violada e desprotegida, fruto ou do
aumento assustador da violência contra a pessoa, ou da carência social, econômica e cultural e
grave comprometimento de uma “existência com sabor de humanidade.” (2004, p. 126) E essas
colocações apontam para o sentido da violabilidade da dignidade pessoal. E, conclui: “[...] a
dignidade, ainda que não se a trate como espelho no qual todos vêem o que desejam,
inevitavelmente já está sujeita a uma relativização [...].”(2004, p. 128-129)
Ademais, Sarlet adverte que não se pode advogar a intangibilidade do princípio da
dignidade da pessoa humana, haja vista que pela sistemática da Constituição brasileira (art. 60, §
4º) apenas são vedadas propostas e emendas tendentes a abolir as chamadas “cláusulas pétreas”,
de modo que a intangibilidade do princípio poderia ser sustentada no sentido de que a dignidade é
a última fronteira contra toda ingerência externa (2005, p. 124). Outrossim, embora reconheça a
possibilidade da relativização67 da dignidade, por força de sua dimensão relacional e
65
Nunes defende que a dignidade é plena, absoluta, não podendo ser vítima de argumentos que a relativizem. É
princípio absoluto, não variável segundo se duvide do sentido de bem e mal ou de acordo com o momento histórico
(2002, p. 46). Nesse viés, o citado autor afirma que a dignidade da pessoa humana é a estrela máxima do universo
principiológico (2002, p. 56).
66
Vide obra de Nunes (2002, p. 87-116), onde é colacionada uma seleção de decisões judiciais de várias áreas do
sistema jurídico nacional que se pautam no princípio supracitado.
67
Quanto à relativização da dignidade, vide Farias (1996, p. 53 e ss).
95
intersubjetiva, e possíveis restrições, ratifica que a dignidade é um valor/ qualidade inerente à
pessoa, o que a torna titular de uma pretensão de respeito e proteção (SARLET, 2004, p. 137).
Em suma, de forma abstrata, o texto constitucional possibilita certa tensão conflitiva entre
vários princípios, sendo que no caso concreto entende-se que o ato decisório deverá privilegiar
um ou vários princípios em detrimento de outros.
Bonavides, equiparando os princípios a valores68, assinala que os primeiros possuem
superioridade (formal e material) e hegemonia na pirâmide normativa, sendo compreendidos e
equiparados com valores e, nesse sentido, afirma que as regras vigem e os princípios valem, valor
este que se expressa em diferentes graus (2004, p. 288). E ratifica a importância de que se
revestem os princípios nos ordenamentos jurídicos:
A importância vital que os princípios assumem para os ordenamentos jurídicos
se torna cada vez mais evidente, sobretudo se lhes examinarmos a função e
presença no corpo das Constituições contemporâneas, onde aparecem como os
pontos axiológicos de mais alto destaque e prestígio com que fundamentar na
Hermenêutica dos tribunais a legitimidade dos preceitos da ordem
constitucional. (2004, p. 289)
Do exposto, Bonavides entende que os princípios gerais do direito69 saltaram dos
Códigos, onde possuíam função meramente suplementar, para as Constituições, tornando-se as
normas supremas do ordenamento, servindo para avaliar e fundamentar todos os conteúdos
68
Contrariamente, Nunes advoga que princípio e valor não têm o mesmo conteúdo, pois são termos distintos. Vejase a distinção a partir do autor: “[...] enquanto o valor é sempre um relativo, na medida em que ‘vale’, isto é, aponta
para uma relação, o princípio se impõe como um absoluto, como algo que não comporta qualquer espécie de
relativização. O princípio é, assim, um axioma inexorável [...]. Não é possível afastá-lo, portanto. O valor sofre toda
a influência de componente histórico, geográfico, pessoal, social, local etc. e acaba se impondo mediante um
comando de poder que estabelece regras de interpretação – jurídicas ou não. Por isso, há muitos valores e são
indeterminadas as possibilidades de deles falar. Eles variarão na proporção da variação do tempo e do espaço, na
relação com a própria história corriqueira dos indivíduos. O princípio, não. Uma vez constatado, impõe-se sem
alternativa de variação.” (2002, p. 05)
69
Em várias passagens, Bonavides menciona que os princípios constitucionais são os princípios gerais do direito
postos na Carta Maior.
96
normativos (2004, p. 289-290), tendo sido convertidos em “norma normarum, ou seja, a norma
das normas.” (2004, p. 290)
Sarlet assinala que pelo fato de a Constituição brasileira ter sido a primeira a prever um
título próprio destinado aos princípios fundamentais, situados antes dos direitos fundamentais, o
Constituinte manifestou a intenção de outorgar a eles a qualidade de normas embasadoras e
informativas de toda a ordem constitucional, inclusive das normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais, que integram, juntamente com os princípios fundamentais, o que se pode
denominar de núcleo essencial da Constituição material70 brasileira. Igualmente de forma inédita
na Constituição foi o reconhecimento do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana
(2005, p. 110-111), entendido como “elemento que confere unidade e legitimidade a uma
determinada ordem constitucional.” (SARLET, 2004, p. 77)
Afinal, o que é ou que sentido tem uma República baseada na dignidade da pessoa
humana?
A resposta deve tomar em consideração o princípio material subjacente à ideia
de dignidade da pessoa humana. Trata-se do princípio antrópico que acolhe a
ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico della Mirandola71), ou
seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu
próprio projecto espiritual [...]. (grifos do autor) (CANOTILHO, 2003, p. 225)
70
Quanto ao conteúdo, a Constituição divide-se em material e formal. Silva esclarece a divisão: “a Constituição
material é concebida em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro, identifica-se com a organização total do
Estado, com regime político. No segundo, designa as normas constitucionais escritas ou costumeiras, inseridas ou
não num documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos
fundamentais. Neste caso, a Constituição só se refere à matéria essencialmente constitucional; [...] a Constituição
formal é o peculiar modo de existir do Estado, reduzido, sob forma escrita, a um documento solenemente
estabelecido pelo poder constituinte e somente modificável por processos e formalidades especiais pela própria
estabelecidos.” (2005, p. 40-41)
71
Sarlet comenta que a concepção de dignidade de inspiração cristã e estóica (dignidade como qualidade inerente ao
ser humano e que, por isso, o distinguia das demais criaturas) continuou a ser sustentada durante a Idade Média por
Tomás de Aquino e depois, no limiar da Idade Moderna, pelo humanista italiano Pico della Mirandola, que sustentou
ser a racionalidade, como qualidade peculiar inerente ao ser humano, aquilo que lhe possibilita construir sua
existência e o próprio destino de forma livre e independente (2005, p. 113-114).
97
Em continuação, Canotilho assinala que diante das atrocidades cometidas contra os seres
humanos, principalmente com o nazismo, a escravidão, a inquisição, genocídios étnicos etc, a
dignidade da pessoa humana, como base da República, notadamente a Portuguesa (2003, p. 225),
significa
o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e
fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é
uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os
aparelhos político-organizatórios. A compreensão da dignidade da pessoa
humana associada à ideia de homo noumenon justificará a conformação
constitucional da República Portuguesa onde é proibida a pena de morte [...] e a
prisão perpétua [...]. A pessoa ao serviço da qual está a República também pode
cooperar na República, na medida em que a pessoa é alguém que pode assumir
a condição de cidadão, ou seja, um membro normal e plenamente cooperante ao
longo da sua vida. Por último, a dignidade da pessoa humana exprime a
abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pautada
pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico. O expresso
reconhecimento da dignidade da pessoa humana, como núcleo essencial da
República, significará, assim, o contrário de “verdades” ou “fixismos”
políticos, religiosos ou filosóficos. (grifos do autor) (CANOTILHO, 2003, p.
225-226)
Ao encontro do que leciona Canotilho, Sarlet afirma que o Constituinte, ao reconhecer a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,
reconheceu de forma expressa que o Estado existe em função da pessoa humana, e não a pessoa
em função do Estado, porquanto a pessoa constitui a finalidade precípua e não objeto da atividade
estatal. (2005, p. 113)
Silva não concorda que a dignidade humana seja considerada princípio constitucional, já
que ela é muito mais do que princípio jurídico. Autor advoga que a dignidade deve ser entendida
como valor supremo e fundante de toda a ordem jurídica, social e política, base de toda a vida
nacional (1998, p. 91-92).
98
Por não ser objeto do presente trabalho a discussão acerca de ser a dignidade um princípio
fundamental do Estado Democrático de Direito ou um valor, limita-se a assinalar que,
independente da nomenclatura que se dê ao termo (porque princípio e valor não são termos
excludentes), a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada e protegida contra atos
atentatórios ao seu amplo espectro conceitual.
Enfatizando a positivação constitucional, ressalta-se que a dignidade da pessoa humana é
objeto de expressa previsão no texto constitucional mesmo em outros capítulos. Como exemplo,
citam-se os artigos 3º, IV; 4°, II; 170 caput; 226, § 7° e 227, caput, CFB/88.
Imperioso não olvidar que a previsão da dignidade da pessoa humana, como princípio ou
como valor, pela ordem jurídico-constitucional não equivale, seguramente, à sua concessão, mas
apenas reconhecimento do valor intrínseco da pessoa. Nesse horizonte, considerando que a
dignidade compete a todos os homens, sem distinção de raça, cor, sexo, posição social e religião,
Honnefelder posiciona-se:
Por isso, a dignidade humana deve ser vista como algo que pertence igualmente
a todos aqueles que são considerados membros do gênero humano – e isso
significa: a todos aqueles que têm disposições para ser sujeitos. O respeito é
reconhecimento, não concessão. [...] A partir do exposto, a dignidade não é
fundamentada pela vida, mas pelo fato de que essa vida possui a “forma de
desenvolvimento de um sujeito”. (1998, p. 93-94)
Certo é que o citado autor estende a aplicação do respeito à dignidade a todos os membros
do gênero humano e não apenas às pessoas, posição um tanto contestável para a compreensão do
tema objeto desse estudo – os embriões criopreservados. No entanto, a idéia de reconhecimento
da dignidade e não concessão parece ter validade geral. Nesse sentido, Sarlet ratifica o
pensamento de que a dignidade deve ser reconhecida e não concedida (2004, p. 41-42).
99
Entende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana poderia integrar o conteúdo
dos direitos fundamentais (como norma de direitos fundamentais), ou melhor, que existe uma
conexão entre ambos, porquanto se comunga da idéia de que os direitos e garantias fundamentais
não somente estão restritos ao art. 5º e Título II da Carta Magna, mas espalhados por toda a
Constituição, sentido em que Canotilho nomina de “direitos fundamentais dispersos” (2003, p.
405), consoante se depreende do art. 5°, § 2°, CFB/88.
Poder-se-ia até mesmo advogar que, por força da abertura material dos direitos
fundamentais72, os mesmos podem ter base infraconstitucional. Os direitos fundamentais são
direitos de conceito aberto, para cunhar o termo “cláusula aberta” proposto por Canotilho (2003,
p. 404), dada a impossibilidade de descrever no Título II (e até mesmo na Constituição) todos os
direitos fundamentais. Assim, entende-se que o art. 5° e o Título II da Constituição brasileira não
são taxativos, de modo que o rol de direitos e garantias fundamentais pode ser ampliado. Quando
o art. 5º, § 2º, CFB/88 dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”73 74, parece deixar claro que os
72
Além da clássica distinção entre direitos humanos e fundamentais, Canotilho, com base na Constituição
Portuguesa, propõe a diferença entre direitos fundamentais formalmente constitucionais e direitos fundamentais sem
assento constitucional. Os primeiros seriam os direitos consagrados e reconhecidos pela Constituição; os outros,
também chamados de direitos materialmente fundamentais, são reconhecidos e protegidos por normas não
constitucionais, ou seja, constantes das leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional (2003, p. 403). Por se
tratar de uma norma aberta, abrangeria, para além das positivações concretas, “todas as possibilidades de ‘direitos’
que se propõem no horizonte da acção humana. Daí que os autores se refiram também aqui ao princípio da não
identificação ou da cláusula aberta.” (grifos do autor) (CANOTILHO, 2003, p. 404). O problema reside na
dificuldade de se identificar quais seriam os direitos materialmente fundamentais. No Brasil, a distinção trazida por
Canotilho pode ser fundamentada no art. 5°, § 2° da Constituição Pátria, em que pesem as divergências doutrinárias
acerca do tema.
73
Sarlet alerta que os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios (art. 5º, § 2º) são posições
jurídicas material e formalmente fundamentais fora do Título II, deduzidos do regime e dos princípios fundamentais
da Constituição, ou seja, os previstos nos artigos 1º a 4º da Magna Carta. Outrossim, o autor comenta que se
poderiam criar novos direitos fundamentais com apoio em qualquer outra disposição da Constituição, embora revele
a pouca utilidade da ampliação do catálogo (2005, p. 108).
74
Farias manifesta-se no sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana cumpre também função
legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados
internacionais, estabelecendo uma relação direta com o art. 5º, § 2º da Constituição (1996, p. 54).
100
direitos não se encontram somente no Título II, mas desorganizados em toda a Constituição.
Outrossim, a Constituição é clara ao fazer menção aos princípios implícitos e os decorrentes de
tratados e convenções internacionais como integrantes do catálogo de direitos e garantias (não
escritos) constitucionais. E, a dignidade da pessoa não é princípio implícito, mas explícito.
Casabona assinala que todos os poderes públicos são obrigados a respeitar/ proteger a
dignidade, eis que ela “constituye un minimum invulnerable que todo estatuto jurídico debe
asegurar; es decir, se trata de una norma constitucional obligatoria.” (1994, p. 68)
Nesse viés, Sarlet não nega que os direitos à vida, à igualdade e à liberdade correspondem
diretamente às exigências da dignidade75 da pessoa humana (2005, p. 108). Entretanto, não
comunga com a posição que sustenta um autêntico “direito fundamental76 à dignidade” (2004, p.
69), embora entenda que do princípio da dignidade da pessoa humana poderão ser deduzidas
posições jurídico-fundamentais autônomas, ou seja, sem qualquer referência direta a outro direito
fundamental, a exemplo do previsto no art. 5º, § 2º, da CFB/88 (2005, p. 121), advogando que os
direitos e garantias fundamentais são inerentes à dignidade (2004, p. 95), ou melhor, que são
concretizações das exigências do princípio da dignidade (2004, p. 103).
Quanto à relação dignidade – direitos fundamentais77, Casabona posiciona-se:
[...] suele reconocerce que la mayor parte de los derechos fundamentales
presentan un contenido nucléico referido a la dignidad de la persona [...]. Por
tanto, la dignidad puede ser lesionada a través de o en conexión con la agresión
75
A indissociável vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais constitui, certamente,
um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo (SARLET, 2004, p. 25).
76
Quanto ao “direito à dignidade”, sustenta Delpérée: “o conceito de dignidade humana repousa na base de todos os
direitos fundamentais (civis, políticos ou sociais). Consagra, assim, a Constituição em favor do homem um direito de
resistência. Cada indivíduo possui uma capacidade de liberdade. Ele está em condições de orientar a sua própria
vida. Ele é por si só depositário e responsável do sentido de sua existência. Certamente, na prática, ele suporta, como
qualquer um, pressões e influências. No entanto, nenhuma autoridade tem o dever de lhe impor, por meio de
constrangimento, o sentido que ele espera dar à sua existência.” (1999, p. 160)
77
O Tribunal Constitucional Espanhol (STC 53/1985) destacou a estreita vinculação existente entre a dignidade
humana e o direito à vida, e sua particular e comum posição em relação com os demais direitos fundamentais
(CASABONA, 1994, p. 69).
101
de alguno de los concretos derechos fundamentales, sin que, sin embargo, toda
lesión a los mismos implique necesariamente también la de la dignidad. (1994,
p. 67-68)
Ao encontro do pensamento supra, Sarlet alerta que a posição que sustenta que “todos” os
direitos fundamentais encontram sua sede no princípio da dignidade e de que este pode ser tido
como elemento comum à matéria dos direitos fundamentais precisa ser enfrentada com certa
reserva. Nesse sentido, e é aí que reside a maior crítica do autor, existem dúvidas fundadas de que
certos direitos fundamentais possuem um conteúdo diretamente fundado no valor da dignidade da
pessoa. A título exemplificativo, cita o art. 5º, incisos XVIII (criação de associações), XXI
(legitimidade das associações para representarem seus filiados judicial ou extrajudicialmente),
XXV, XXVIII, XXIX, XXXI e XXXVIII, bem como o art. 7º, incisos XI (participação do
trabalhador nos lucros da empresa), XXVI (reconhecimento das convenções e acordos coletivos
de trabalho) e XXIX (2005, p. 110). Assim, não se poderia sustentar uma estreita vinculação
entre o princípio da dignidade e todos os direitos fundamentais, embora não seja difícil “[...]
perceber que, com algum esforço argumentativo, tudo o que consta no texto constitucional pode –
ao menos de forma indireta – ser reconduzido ao valor da dignidade da pessoa humana.”
(SARLET, 2005, p. 127)
Rocha posiciona-se no sentido de que a dignidade da pessoa humana é a “base de todas
as definições e de todos os caminhos interpretativos dos direitos fundamentais.” (1999, p. 31)
Outrossim, Nunes advoga que a dignidade da pessoa humana é o principal direito fundamental
constitucionalmente garantido, sendo o último arcabouço da guarida dos direitos individuais
(2002, p. 45).
Se for entendido que existe conexão entre a dignidade da pessoa humana e os direitos
fundamentais, a violação de um direito fundamental ofenderá diretamente a dignidade da pessoa.
102
Embora não se constitua em objeto nuclear da presente investigação a discussão atinente a
se o princípio da dignidade da pessoa humana é norma (ou não) de direito fundamental e a
questão de saber se os direitos fundamentais encontram fundamento na dignidade da pessoa
humana ou vice-versa, estas não poderiam passar despercebidas e, portanto, merecem esse
sumário registro.
Como referido alhures, o ordenamento jurídico reconhece a dignidade da pessoa humana a
todos os que ostentam essa condição. Entretanto, no caso de haver dúvidas acerca da existência
de uma pessoa, alguns advogam em favor da atribuição de dignidade, a exemplo do que
preconiza a teoria da “ascrição”.
2.3 A dignidade da pessoa humana a partir do critério da “ascrição”
As grandes controvérsias éticas suscitadas pela pesquisa e terapia com células-tronco
embrionárias podem constituir ameaças à dignidade não de seres humanos adultos normais (digase, pessoas), mas daqueles que não possuem todas as características comumente aceitas de
pessoa, ou seja, daqueles que não detêm capacidades definidas como identificadoras da pessoa.
Considerando que a análise dos argumentos quanto ao conceito de dignidade poderá levar
à conclusão de que o valor da dignidade é inerente às pessoas, e considerando que se poderá
chegar à conclusão de que o embrião criopreservado não é pessoa, então a dignidade não seria um
valor de que se reveste o embrião. Do exposto, há os que entendem que se deve lançar mão da
teoria da “ascrição”, para fins de atribuir dignidade a seres humanos num estado peculiar de
desenvolvimento onde não se pode afirmar a existência de uma pessoa.
103
Lepargneur inverte a tradição cristã de que a dignidade é uma decorrência da pessoa para
enfatizar que é o reconhecimento cultural da dignidade de um ser que lhe faz atribuir a
qualificação de pessoa, com todo o respeito que este conceito implica (1996a, p.178).
Em continuação, Lepargneur alerta que existe carência de coerência em muitos
comentários sobre dignidade78, haja vista que seus autores não direcionam sua atenção ao
fenômeno conhecido como ascrição (do inglês ascription, atribuição, imputação) e que o autor
define como “atribuição por extensão de uma qualificação eminente” (1996a, p.179). O processo
da ascrição é definido como o “[...] alargamento das propriedades da dignidade da pessoa
plenamente consciente e idealmente autônoma a seres inferiorizados pela idade, pela doença ou
por qualquer outro condicionamento desvalorativo.” (LEPARGNEUR, 1996a, p.183) E continua:
O conceito-chave é a pessoa; a fim de prestigiar a pessoa como sujeito moral, os
discursos apresentam-na como ser consciente, livre, razoável, responsável. São
atribuições que convêm à pessoa adulta plenamente realizada, mas que,
obviamente, não se aplicam diretamente ao feto, ao louco ou ao doente
comatoso. Ora, a moral moderna, nas suas melhores expressões, reivindica
dignidade pessoal também para o feto (até certo ponto), para o louco, para o
comatoso. (1996a, p.179)
Nesse sentido, necessário entender, a partir de Lepargneur, o que significa ascrição e o
seu interesse insubstituível no caso da definição de pessoa.
Pessoa, resumidamente, é o indivíduo consciente, dotado de corpo, razão e
vontade, autônomo e responsável. [...] É óbvio que, nem o embrião, nem sequer
o feto, nem o louco que perdeu, de vez, o uso da razão e do juízo, nem o
comatoso em fase final, responde a esta definição de pessoa. Então, a pergunta é:
em virtude do que podemos atribuir dignidade pessoal a esses seres que não se
enquadram na definição comum e admitida da pessoa? A resposta da ciência
atual é: pela “ascrição”, isto é, pela atribuição de certa dignidade pessoal,
outorgada criteriosamente, a seres que julgamos merecedores dela, pela
proximidade que intuímos desfrutar conosco, apesar de eles não satisfazerem os
critérios da definição clássica da pessoa [...]. A “ascrição” não resulta de uma
78
Dignidade é o valor próprio do ser humano na sua irradiação social, enquanto sujeito moral, isto é, autônomo e
responsável (LEPARGNEUR, 1996a, p. 178).
104
decisão individual, mas de um juízo comunitário, cultural (do ethos), que admite
o mais ou menos, porque toda participação admite o mais ou menos. (1996b, p.44)
A partir da afirmação de que muitas pessoas resistem em admitir que haja dignidade no
embrião, no feto ou no doente comatoso, o referido autor realça que o processo da ascrição, ou
seja, a atribuição da dignidade pessoal, em algum grau, a seres imperfeitos, mas relacionados
com o paradigma pessoal, é um processo cultural, não arbitrário, mas relativo e condicionado
(1996a, p.184). Assim, a atribuição de dignidade ao embrião ou ao feto não é muito primitiva,
nem universal, já que umbilicalmente interligada com o pluralismo ideológico.
Por força da teoria da ascrição, a dignidade humana não deve ser encarada como um valor
ou princípio inerente somente às pessoas, mas a outras formas de vida humana nas quais pairam
dúvidas acerca de se a presença da pessoa pode ser afirmada. Esse seria o típico caso dos
embriões e fetos. Nesse sentido, posiciona-se Pegoraro: “no universo, cada ser deve ser
respeitado eticamente em seu nível de existência. Cada ser da natureza tem dignidade ética
própria, intrínseca e independente das decisões humanas.” (2002, p. 50)
Sarlet posiciona-se no sentido de que, para além das concepções que sustentam ser a
dignidade uma qualidade exclusiva da pessoa humana, por serem sujeitas à crítica de um
antropocentrismo, poder-se-á sempre sustentar a dignidade da vida de um modo geral, mormente
numa época em que o reconhecimento da tutela do meio ambiente constitui forte indício de que
não somente a vida humana é objeto de proteção (2004, p. 34-35). Em que pese o autor não ter
mencionado a situação do embrião criopreservado, em nota de rodapé o mesmo entende que o
embrião encontra-se protegido na sua dignidade, sendo que esta alcançaria a pessoa inclusive
após a sua morte (2004, p. 45).
105
Aproxima-se da teoria da ascrição, embora com ela evidentemente não se confunda, o
pensamento de Honnefelder quanto ao entendimento do respeito à dignidade humana. Nesse
horizonte, posiciona-se:
Pois se pode respeitar aquela dignidade, que cabe a cada pessoa enquanto
indivíduo, mas o respeito pode referir-se também à dignidade própria da
natureza do gênero humano79, e ele se pode referir finalmente ao que
entendemos quando falamos de uma vida humanamente digna. No primeiro
caso, a dignidade refere-se ao sujeito individual, no segundo caso, à sua própria
natureza genérica, no terceiro caso, à vida bem-sucedida [...]. (1998, p. 93)
No primeiro sentido, o autor esclarece que a dignidade é dirigida a toda pessoa, sem
mediações, na medida em que ela é um ser-sujeito-ético individual, isto é, um ser racional e
determinado por ações livres (1998, p. 93). No segundo sentido, pode-se falar da dignidade que
cabe mediatamente à natureza genérica orgânica do homem (1998, p. 104), concluindo com a
formulação de Kant de que a síntese do respeito pela dignidade consiste na máxima de nunca usar
o ser humano como meio, mas sempre como fim80 (1998, p. 94). O problema é que o respeito à
dignidade exige, primeiramente, reconhecimento por parte da ordem jurídica. Se o
reconhecimento estiver restrito às pessoas, resta discutir acerca da possibilidade de “atribuir”,
“conceder” dignidade a seres que não são pessoas, por força de sua natureza genérica humana.
Como citado alhures, o supracitado autor (1998, p. 94) enfatiza a potencialidade de todos
os membros do gênero humano para serem sujeitos e, em havendo a potencialidade, impõe-se o
reconhecimento da dignidade.
79
A referência ao gênero humano, como segundo critério, não resulta do ser-sujeito (pessoa), mas da condição
humana, da natureza do ser vivo, que é portador desse ser-sujeito (HONNEFELDER, 1998, p. 96).
80
Consoante Honnefelder, deve ser vista como violação fundamental da dignidade qualquer sujeição exclusiva do
homem a fins heterogêneos (1998, p. 95). Nesse viés, a valoração por parte de terceiros de uma vida como digna ou
não de ser vivida constitui igualmente infração à dignidade da pessoa (1998, p. 98). Se a autolegislação for o
fundamento do respeito à dignidade humana, então a pesquisa que destrói embriões também deve ser vista como
violação à dignidade, que cabe à natureza genérica humana, conclui o autor (1998, p. 99).
106
A questão da (não) potencialidade do embrião criopreservado para ser sujeito de direito
será analisada no capítulo subseqüente.
Abandonando-se os delineamentos acerca da dignidade humana, entendida como valor
inerente a toda pessoa, independentemente de sua condição peculiar, e que, por tal razão, não
pode ser instrumentalizada para quaisquer fins, de modo que cabe ao ordenamento jurídico
reconhecê-la, eis que é princípio fundante do Estado Democrático de Direito, em que pese
relativizável frente a outros princípios ou direitos, adentra-se no campo da análise do conceito e
princípio da autonomia, os quais servirão, juntamente com as teorias apresentadas no primeiro
capítulo, como nortes a algumas posições assumidas no presente trabalho.
2.4 Autonomia: como conceito e princípio
Assim como a dignidade, muitas vozes evocam o respeito pela autonomia do sujeito
como limitador de certas práticas e técnicas, notadamente quando esta autonomia estiver
diminuída ou, simplesmente, inexistir. No contexto da presente investigação, a resposta a que se
visa a lograr é se a autonomia dos genitores do embrião deve ser respeitada quando da utilização
de células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia, ou se deve prevalecer o direito à vida e
dignidade embrionárias (se for entendido que a vida deva ser tutelada pela ordem jurídica e o
valor da dignidade reconhecido). Na mesma direção, imperioso analisar as possíveis tomadas de
posição quanto ao embate entre os princípios da beneficência (inerente ao embrião) e autonomia
(inerente aos genitores).
107
2.4.1 O conceito de autonomia e sua compreensão enquanto princípio81 bioético do respeito
à autonomia
Certamente, não há um conceito universal de autonomia que seja capaz de fornecer
respostas seguras aos problemas levantados pela biotecnologia. Entretanto, em que pese a
dificuldade, inicia-se a análise do conceito de autonomia em Kant, porquanto se entende que a
filosofia kantiana é a base do princípio do respeito à autonomia.
Na esteira do que foi referido alhures, Kant afirma que a autonomia é o fundamento da
dignidade da natureza humana e de toda natureza racional. Outrossim, o filósofo assinala que a
autonomia da vontade é considerada princípio supremo da moralidade82, visto que está na base da
moralidade (1986, p. 79). E conceitua autonomia nos seguintes moldes:
Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças a qual ela é para si
mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). [...] o
citado princípio da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira
se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que
este imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta
autonomia. (1986, p. 85)
Assim, a ação que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que com
ela for discordante é proibida (KANT, 1986, p. 84).
Kant parece querer demonstrar que agir moralmente é agir racionalmente. Basta levar em
consideração a noção de imperativo categórico para chegar a esta conclusão. O conceito de
81
Almeida entende que o conceito de autonomia deve ser distinguido do princípio da autonomia. Em essência, o
princípio da autonomia é o requisito moral do respeito pela autonomia dos outros (1996, p. 58).
82
Lepargneur esclarece que a moral kantiana não se reduz a uma ética da intenção, eis que leva em consideração as
decorrências previsíveis da ação ou da omissão. É uma moral realista no sentido em que Kant percebeu que a questão
moral é essencialmente a de saber o que fazer aqui e agora. É tipicamente uma moral personalista, embora
condicionada pela cultura da época (1996a, p. 182).
108
imperativo categórico é assim descrito: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (1986, p. 59) Com tal imperativo, Kant quer
dizer que as decisões que o indivíduo toma a respeito de si mesmo são as mesmas tomadas em
relação aos outros, ou seja, não faças a outrem o que não queres que te faças.
Pelo exposto, a racionalidade é necessária à ação moral, sendo que a noção de dever moral
só é aplicável a seres racionais. Nesse aspecto, o autor assinala que o dever tem de valer a todos
os seres racionais, porque são os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo (1986, p.
46), de modo que os deveres morais também se incluiriam nessa restrição, haja vista que “todos
os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão [...]. Leis morais
devem valer para todo ser racional em geral.” (KANT, 1986, p. 46) Assim, o exercício da
autonomia deve estar em conformidade com o imperativo categórico da consciência moral.
No mesmo sentido, Lepargneur advoga que a autonomia do ser livre, pensante e
responsável é a raiz da dignidade pessoal, concluindo que a dignidade é um atributo do sujeito
moral, enquanto moral. Outrossim, salienta que a noção fundamental da moral kantiana é a
autonomia da pessoa que produz, mediante sua razão prática, a norma que vai nortear sua ação
(1996a, p. 180).
Kant é filho das luzes. Logo, a racionalidade está na base de sua teoria. A autonomia está
ligada ao exercício da racionalidade83.
Em suma, Kant defende que o respeito à autonomia provém do reconhecimento de que
todas as pessoas têm valor intrínseco absoluto e de que todas têm capacidade de determinar o
próprio destino (pessoas como autolegisladoras de si mesmas). Desrespeitar a autonomia de uma
83
Almeida, enfatizando a racionalidade como corolário do conceito de autonomia, entende que “[...] a autonomia é a
capacidade de pensar, decidir e agir, com base em tal pensamento e decisão, de modo livre e independente.” (grifos
do autor) (1996, p. 57) A autonomia é o poder de autodeliberação do homem, enquanto possuído de razão. Assim, a
autonomia expressa-se através de uma deliberação racional (ALMEIDA, 1996, p. 65)
109
pessoa é tratá-la como meio, é colocá-la a serviço dos outros, desconsiderando os objetivos da
própria pessoa. Esse desrespeito configura violação moral fundamental, já que as pessoas são fins
em si mesmas e não meios para alcançar este ou aquele objetivo.
Ao abordar a questão acerca da existência ou não de autonomia nos casos de pessoas com
demência grave, Dworkin afirma que existe um consenso geral de que as pessoas adultas
detentoras de “competência84 normal” têm direito à autonomia, ou seja, o direito de, por si
mesmas, tomar decisões relevantes para a definição de suas próprias vidas (2003, p. 315). Assim,
a autonomia tem a finalidade de proteger a capacidade da pessoa (DWORKIN, 2003, p. 320).
Pode-se concluir que, em não havendo capacidade, a autonomia perde o objeto de proteção.
O entendimento de Dworkin traduz-se no sentido de que a autonomia não está
necessariamente comprometida com a beneficência ou com os interesses da pessoa, ao sustentar
que “a autonomia exige que permitamos que uma pessoa detenha o controle de sua própria vida,
mesmo quando se comportar de um modo que, para ela própria, não estaria de modo algum de
acordo com os seus interesses.” (2003, p. 318) O exemplo trazido pelo autor é no caso dos
fumantes: a maior parte deles sabe que fumar não está dentre seus interesses fundamentais, mas
apesar dessa constatação não deixam de fumar (2003, p. 318).
Minahim assinala que a autonomia tem sua correspondência na liberdade, embora tal
valor, ainda que presente em muitos sistemas jurídicos, apresentasse significações diferenciadas.
O exemplo trazido pela autora é que nas sociedades escravagistas, a autonomia era apenas
concebida no seu aspecto interno, significando o poder que o indivíduo teria sobre si mesmo de
não vir a ser vencido pela matéria (2005, p. 40).
84
Dworkin entende que a competência, no sentido que a pressupõe o direito à autonomia, diz respeito à capacidade
de agir com base em preferências originais, na percepção da natureza das coisas, nas convicções pessoais ou no
sentido da própria identidade (2003, p. 321).
110
A liberdade é um dos valores máximos do ser humano, razão pela qual em todas as épocas
tem-se dado muita ênfase a ela. Quanto ao conflito entre o direito à vida e a liberdade, Casabona
observa que na atualidade “la importancia de este derecho a la vida se comprende fácilmente,
puesto que en él se sustentan todos los demás derechos.” (1994, p. 28) Entretanto, adverte, em
ocasiões especiais, este direito é posposto em favor de outros direitos tidos como superiores, a
exemplo do que ocorre, especialmente, com a liberdade e a dignidade da pessoa (1994, p. 28), a
ponto de se poder sustentar que o princípio de liberdade e autonomia é o núcleo de todos os
direitos humanos (1994, p. 37).
Barchinfontaine e Pessini, já na perspectiva da bioética85 86, afirmam que a reflexão ética
principialista norte-americana, em sua origem, estava preocupada com o controle social da
85
De modo geral, a bioética nasceu como forma de reflexão a partir dos novos poderes que a medicina moderna
adquiriu, empreendendo uma contínua tentativa de resolver problemas suscitados pelos progressos da biologia e da
medicina. Pegoraro afirma que do ponto de vista histórico a bioética surge de uma corrente de pensamento
preocupada com três grandes temas: 1- quanto às descobertas tecnocientíficas: nem tudo o que é cientificamente
possível é eticamente aceitável e bom para a vida; 2- a preocupação com a preservação do meio ambiente; 3- a
relação da tecnociência com as três formas de vida (2002, p. 77). Consoante Barreto (1999, p. 397), Brauner (2002,
p. 95), Correia (1996, p. 32), Minahim (2005, p. 30), Barchifontaine e Pessini (2002, p. 15-25), Sgreccia (2002, p.
25) e Xavier (2000, p. 219), a origem da bioética também pode ser atribuída à experimentação com humanos,
principalmente na segunda guerra mundial, que resultou no Código de Nuremberg, e também ao emprego da
crescente tecnologia na prática médica, visto que a sociedade começou a questionar sobre os limites éticos que
deveriam imperar na atividade tecnocientífica. O termo bioética foi empregado pela primeira vez pelo oncologista e
biólogo norte-americano Van Rennsselder Potter, em sua obra Bioethics: bridge to the future (Bioética: uma ponte
para o futuro), publicada em 1971.
86
Devido à amplitude do termo bioética, surge o problema de sua definição, problema que até hoje parece não estar
suficientemente solucionado. Consoante os autores pesquisados, dentre eles destacam-se Barboza (2000, p. 209),
Barreto (1999, p. 390), Correia (1996, p. 33), Diniz (2001,p. 10), Barchifontaine e Pessini (2002, p. 49-50), Sgreccia
(2002, p. 43), Vieira (1999, p. 15) e Xavier (2000, p. 218), a Encyclopedia of bioethics, organizada por Warren
Reich, definiu, em 1978, a bioética como um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética),
como sendo “o estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, enquanto
examinada à luz dos valores e princípios morais”. Em 1995, por ocasião da segunda edição da Enciclopédia, não
houve referência aos valores e princípios morais, passando a considerá-la como “o estudo sistemático das dimensões
morais das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto
interdisciplinar”. Barchifontaine comenta: “o conceito de bioética será entendido como um grito pelo resgate da
dignidade da pessoa humana em face aos progressos técnico-científicos na área da saúde, bem como em face às
condições de vida sócio-econômico-políticas, através de um diálogo multiprofissional, multidisciplinar e pluralista.”
(1996, p. 164) Bernard entende que a bioética deve conciliar dois deveres: a proteção da coletividade e a proteção e
o respeito a cada pessoa (1994, p. 58). Pegoraro posiciona-se no sentido de que a bioética é uma subárea da filosofia:
a bioética “é, na verdade, a ética filosófica que se especializou em acompanhar o progresso e os problemas éticos da
genética, da biomedicina, da biosfera e dos ecossistemas.” (2002, p. 15) Minahim entende que a bioética constitui
importante espaço de conexão entre o direito, a moral e a religião, preenchendo, através de seus princípios, vazios
normativos (2005, p. 30).
111
pesquisa em seres humanos, pelo caráter público dos interesses envolvidos, tendo em vista as
atrocidades cometidas contra os mesmos, como, por exemplo, a injeção de células cancerosas
vivas em idosos (2002, p. 44). A criação de uma Comissão pelo Congresso dos Estados Unidos
da América, chamada National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical
and Behavioral Research87, com a participação de filósofos e teólogos, da qual resultou o
Relatório Belmont, foi uma tentativa de aliviar os escândalos que insurgiam na opinião pública
após o conhecimento dos abusos praticados88.
Iniciados os trabalhos em 1974, quatro anos após publicou a referida comissão o
chamado Informe Belmont, contendo três princípios: a) o da autonomia [...] b) o
da beneficência [...] c) o da justiça [...]. A esses três princípios Tom L.
Beauchamp e James F. Childress89 acrescentaram outro, em obra publicada em
1979, o da não-maleficência [...]. (grifos da autora) (BARBOZA, 2000, p. 211)
Em sua obra “Princípios de ética biomédica”, Beauchamp e Childress empregam o
conceito de autonomia no intuito de examinar a tomada de decisão no cuidado da saúde, na
tentativa de identificar aquilo que é protegido pelas regras do consentimento informado, recusa
informada, veracidade e confidencialidade (2002, p.137).
Adentrando-se na perspectiva principiológica, em que pese a autonomia não apresentar
um conceito universal em diferentes áreas do conhecimento, o princípio da autonomia, “que
deriva do grego autós (próprio) e nomos (lei, norma), significa o autogoverno da pessoa,
autodeterminação de seu destino, liberdade de tomar decisões que digam respeito à sua vida e
saúde física.” (PEGORARO, 2002, p. 106) Para Casabona, o princípio da autonomia significa “el
87
Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental.
Esses dados foram extraídos de Barboza (2000, p. 211), Barreto (1999, p. 398), Diniz (2001, p. 14), Minahim
(2005, p. 31), Pegoraro (2002, p. 102), Barchifontaine e Pessini (2002, p. 44-45), Sgreccia (2002, p. 166) e Vieira
(1999, p. 19).
89
Pegoraro assinala que Beauchamp e Childress, em sua obra Biomedical Ethics, deram dimensão universal aos três
primeiros princípios. O referencial teórico proposto pelos autores serviu de base para o que se denominou de
principialismo (2002, p. 103).
88
112
reconocimiento de la libre-autónoma-decisión individual sobre sus propios intereses siempre que
no afecte a los intereses de un tercero, o el respeto a la posibilidad de adopción por los sujetos de
decisiones racionales no constreñidas.” (1994, p. 42)
A autonomia, ou também chamada de princípio do respeito às pessoas, engloba ao menos
duas convicções éticas: 1) as pessoas devem ser tratadas com autonomia; 2) devem ser protegidas
as pessoas cuja autonomia está diminuída (BARCHIFONTAINE; PESSINI, 2002, p. 45).
O princípio da autonomia tem como exigência que o profissional da saúde respeite a
vontade do paciente, ou de seu representante legal, levando em consideração, na medida do
possível, seus valores morais e crenças religiosas (DINIZ, 2001, p. 15). Tal princípio “[...] referese ao respeito devido aos direitos fundamentais do homem, inclusive o da auto-determinação [...].
(SGRECCIA, 2002, p. 167)
Quanto às razões que levaram ao surgimento do princípio da autonomia, Junges comenta:
Os paciente não aceitavam mais serem entregues nas mãos dos médicos como
se fossem crianças. A própria palavra “paciente” aponta para esta realidade.
Não queriam mais ser objetos da beneficência médica e começaram a exigir
uma participação ativa no diagnóstico e no prognóstico. Por isso, emergiu a
exigência do consentimento informado. (1999, p. 41)
De fato, o que se exige com o respeito ao princípio da autonomia é a superação do
paternalismo médico no sentido clássico, ou seja, aquele que considera o paciente como uma
criança diante da qual é necessário ter uma atitude beneficente. Reconhecer a autonomia do
paciente é reconhecer seu direito de autogoverno, visto que a idéia de supremacia dos interesses
do médico não mais se justifica. Nesse viés, Brauner assinala que ambos, médico e paciente,
devem compartilhar as decisões no gozo pleno de seus direitos, de modo que o paciente deve ter
o poder de decidir o que é melhor para si e buscar a concordância do seu médico (2002, p. 99).
113
Junges elenca três condições que determinam a competência para emitir juízos
autônomos: 1) capacidade de tomar decisões, tendo por fundamento motivos racionais; 2)
capacidade de atingir resultados razoáveis através de decisões; 3) capacidade de tomar a decisão
de fato (1999, p. 44).
Engelhardt utiliza em seu modelo libertário dois princípios bioéticos: o da autonomia,
traduzido no consentimento, e o da beneficência, alertando para o fato de que há uma tensão
fundamental entre respeitar a liberdade e garantir o melhor interesse para as pessoas, o que, em
última análise, traduz o conflito entre os dois princípios supracitados (1998, p. 132). O caráter
desses princípios “reflete a circunstância de que são princípios para resolver disputas morais entre
indivíduos que não compartilham uma visão moral comum” (ENGELHARDT, 1998, p. 157), que
o autor denomina em sua obra de “estranhos morais”.
Como primeira consideração, Engelhardt prioriza o princípio do consentimento frente ao
da beneficência, pelo fato de este princípio não ser exigido para a coerência do mundo moral ou
da bioética (1998, p. 134-135), de modo que se podem praticar condutas não-beneficentes sem
entrar em conflito com a mínima noção de moralidade, o que demonstra que o princípio da
beneficência não é tão imperioso (1998, p. 135).
O princípio do consentimento é traduzido na idéia de que os pacientes não podem ser
usados como meios, enquanto o da beneficência albergaria objetivos mais concretos
(ENGELHARDT, 1998, p. 140). A idéia de autonomia em Engelhardt coloca o agente moral no
centro da referência ética, como o faz Kant.
O princípio do consentimento constitui pressuposto necessário à solução de disputas
morais entre estranhos com autoridade moral e para sustentar um mínimo de linguagem ética
secular de elogio e acusação (ENGELHARDT, 1998, p. 141). Assim,
114
o princípio do consentimento expressa a circunstância de que a autoridade para
resolver disputas morais em uma sociedade pluralista, secular, só pode ser
obtida a partir do acordo dos participantes, já que não deriva de argumentos
racionais ou da crença comum. Portanto, a permissão ou o consentimento é a
origem da autoridade, e o respeito ao direito dos participantes de consentir é a
condição necessária para a possibilidade de uma comunidade moral.
(ENGELHARDT, 1998, p. 158)
Esse princípio pode mostrar que questões controvertidas, como a pesquisa com célulastronco e a eutanásia, não podem se proibidas com autoridade moral, mas, por outro lado, não teria
o poder de mostrar que seria bom pagar pelos embriões utilizados ou incentivar a eutanásia.
Quase a totalidade das teorias da autonomia atenta a duas condições primordiais: 1- a
liberdade, ou seja, independência de influências controladoras; 2- a qualidade do agente, ou seja,
este tem que ter capacidade de agir intencionalmente (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.
138). Quanto à capacidade de agir intencionalmente, os autores afirmam que uma pessoa com
autonomia reduzida é, ao menos em algum aspecto, controlada por outros ou incapaz de deliberar
ou agir com base em seus desejos e planos (2002, p. 138).
Nesse viés, a partir da análise das condições da ação autônoma, Beauchamp e Childress
concluem que pode haver graus de autonomia90, consoante a satisfação (total ou parcial) de duas
das condições abaixo citadas (2002, p. 140). Transcrevem-se os argumentos:
Analisamos a ação autônoma em termos dos agentes normais que agem (1)
intencionalmente, (2) com entendimento e (3) sem influências controladoras
que determinem sua ação. A primeira destas condições da autonomia não é uma
questão de grau. Os atos são ou intencionais ou não-intencionais [...] Em
contraposição, as condições do entendimento e da ausência de influências
controladoras podem ambas ser satisfeitas de modo mais ou menos completo.
(2002, p. 140)
90
Ao encontro do que afirmam Beauchamp e Childress, Almeida comenta que, por motivos óbvios, a autonomia é
uma característica que as pessoas certamente possuem em variados graus (1996, p. 58). Outrossim, enfatizando a
relatividade da autonomia, ratifica que aspectos biológicos e fatores sócio-ambientais moldam, expandem e limitam
a autonomia individual (1996, p. 65).
115
Seria um contra-senso reivindicar que as decisões dos pacientes devam ser integralmente
autônomas: há que se ter presente que a conduta ativa dessas pessoas dificilmente ou nunca é
inteiramente autônoma, por força de sua peculiar condição, da influência dos fármacos e
transtornos ocasionados pela doença.
A partir da constatação de casos de autonomia reduzida, Casabona observa que haverá
conflito para o reconhecimento desse princípio quando na situação concreta a capacidade de
autonomia deverá ser negada, a exemplo dos menores, deficientes mentais, pessoas sob coação,
ou outra situação semelhante que permita duvidar seriamente sobre a existência de autonomia
(1994, p. 43). Na mesma direção, Junges ratifica que o princípio da autonomia não tem uma
aplicação de extensão máxima, eis que não alberga as pessoas que não têm condições para uma
ação autônoma, porquanto tais pessoas são incapazes, ou sofrem coerção, e podem ser exploradas
por outros, a exemplo das crianças, suicidas potenciais, dependentes de drogas, excepcionais etc
(1999, p. 44). A pergunta que se faz nestes casos e em outros é quem estaria autorizado a decidir?
Como resposta, Beauchamp e Childress assinalam que do próprio princípio da autonomia extraise a maneira de como tomar decisões de substituição quando uma pessoa não tiver autonomia
suficiente para realizar a ação de que se trate (2002, p. 138). Por força do fato de que pessoas
irremediavelmente não-autônomas não têm direito ao respeito por característica que não
possuem, sendo necessária uma decisão substituta, Beauchamp e Childress esclarecem que
o princípio não deve se aplicar a pessoas que não podem agir de forma
suficientemente autônoma (e que não podem se tornar autônomas), pois elas são
imaturas, inaptas, ignorantes, coagidas ou exploradas. Crianças, indivíduos
irracionalmente suicidas e dependentes de drogas são exemplos típicos disso.
(2002, p. 145)
116
Evidentemente, o princípio da autonomia não pode ser aplicado para pacientes dementes
ou com psicoses agudas, ou também nos casos em que há incapacidade de manifestar o próprio
consentimento, tais como pacientes em coma e menores (SGRECCIA, 2002, p. 167).
Em que pese Beauchamp, Childress e Sgreccia não mencionarem a figura de embriões e
fetos, percebe-se que estes são os seres que menos dispõem de autonomia, ou melhor, que não
dispõem de grau algum de autonomia, independente do sentido invocado.
Como fonte esclarecedora, Barchinfontaine e Pessini afirmam que o conceito de
autonomia do relatório Belmont, como tradução do princípio da autonomia em sentido bioético,
não é o Kantiano, da pessoa como autolegisladora, mas um conceito segundo o qual uma ação
seria autônoma se tiver por pressuposto o consentimento informado, manifestado a partir do
fornecimento de uma quantidade suficiente de informação para que o paciente seja capaz de
decidir razoavelmente (2002, p. 46). Do exposto, a autonomia de uma pessoa pode ser traduzida
através do seu consentimento livre e informado.
Nesse horizonte, Beauchamp e Childress alertam que o princípio do respeito à autonomia
pode ser estabelecido nas formas negativa e positiva. Na forma negativa, o princípio pode ser
sintetizado na máxima de que as ações não devem ser subordinadas a pressões controladoras de
terceiros. As exigências positivas do princípio podem ser traduzidas na obrigação de tratamento
respeitoso na revelação de informações e encorajamento da decisão autônoma (2002, p. 143-144).
O consentimento informado e expresso é o modelo básico da autonomia na saúde, na
política e em outros contextos (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 146). Existem outras
117
formas de consentimento, tais como o tácito91 e o presumido, que não serão objeto de análise, eis
que não se aplicam à doação de embriões para a pesquisa científica.
A importância da análise do consentimento livre e informado é atribuída ao fato de que a
Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005) exige, no art. 5º, § 1º, o
consentimento dos genitores para a utilização de embriões nos casos previstos em lei.
Beauchamp e Childress entendem que o consentimento informado é dividido em dois
componentes: o de informação e o de consentimento. Este se refere à concordância voluntária do
indivíduo que se submeterá a um procedimento, pesquisa etc; aquele se refere à revelação da
informação e à compreensão daquilo que é revelado (2002, p. 165). Assim, exige-se fornecimento
de informação completa. A deficiência implica responsabilidade do médico em relação aos danos
provenientes da intervenção, ainda que tenha agido de forma correta tecnicamente, ou que o dano
derive de risco inerente a qualquer prática médica.
Transcreve-se o pensamento de Habermas no tocante às questões relativas ao
consentimento, ou melhor, à falta dele, em todas as implicações levantadas pelo autor na pesquisa
com células-tronco embrionárias. Quanto a essa problemática, tece considerações:
O ônus normativo da prova recai sobre o direito de antecipar um consentimento
que não pode ser obtido no momento. No caso de uma intervenção terapêutica
no embrião, esse consentimento poderia, na melhor das hipóteses, ser ratificado
a posteriori (o que, no caso de se evitar preventivamente o nascimento, jamais
ocorrerá). (2004, p. 61)
91
A título meramente ilustrativo, quanto à possibilidade de um “consentimento tácito”, Habermas posiciona-se: “em
todo caso, um suposto consenso só pode ser evocado em caso de prevenção de um mal indubitavelmente extremo,
que, como é de esperar, é rejeitado por todos.” (grifo do autor) (2004, p. 61) Assim, somente em relação à negação
do mal maior é que se poderia esperar um amplo consenso.
118
Da citação supra, depreende-se que Habermas enfatiza que certas decisões tomadas pelos
genitores podem ser ratificadas pelos filhos, posteriormente. Sem embargo, no caso da pesquisa e
terapia com células-tronco embrionárias, por inexistir a finalidade reprodutiva, a decisão é
unilateral e inapelável, não havendo possibilidade de reconsideração.
Para o autor, existe correlação entre a impossibilidade de manifestar o consentimento e a
instrumentalização. Aquela seria o pressuposto desta (2004, p. 94-95). Intui-se com base em
Habermas que a pesquisa que não tem finalidade reprodutiva aniquila qualquer possibilidade de
consentimento, haja vista que sem nascimento aquele jamais poderá ser validado.
A partir de interrogantes acerca da necessidade ou não de proteção a seres com autonomia
reduzida, Habermas posiciona-se no sentido de que se pode enfatizar a função simbólica da
proteção dos embriões humanos para todos os que não podem proteger a si mesmos e que, por
isso mesmo, não podem defender a si próprios (2004, p. 132).
Em meio ao conflito de liberdades e interesses, Habermas entende que a autonomia dos
pais deve ser relativizada, ao dispor que “a liberdade eugênica dos pais tem a ressalva de não
poder colidir com a liberdade ética dos filhos.” (2004, p. 67) Salienta-se que o sentido aqui
exposto pelo autor não diz respeito às pesquisas e terapias, mas a intervenções eugênicas.
Enfim, muitos advogam no sentido de impedir que a autonomia dos genitores irradie seus
efeitos contrariamente aos interesses do embrião. Nesse sentido, como atribuir aos genitores dos
embriões o poder de decidir acerca da utilização para fins de pesquisa e terapia, que conduzem à
destruição dos mesmos? A questão posta resume-se na nebulosa discussão de saber se a vida do
embrião criopreservado merece proteção jurídica e se o valor da dignidade merece ser
reconhecido ou atribuído. Se a resposta à questão for negativa, algumas respostas, sempre
119
relativas, poderão ser fornecidas a algumas das indagações levantadas em meio ao turbilhão
provocado pelas inovações biotecnológicas na área da pesquisa com embriões.
Sem embargo, não faltam argumentos em favor da legitimidade do consentimento dos
genitores para que os embriões sejam utilizados na pesquisa científica. Nessa direção, posicionase Engelhardt: “em moralidade secular geral, são as pessoas que atribuem valor aos zigotos, aos
embriões ou aos fetos. Aqueles que produzem ou procriam o zigoto, o embrião ou o feto têm o
direito primordial de fazer a determinação definitiva de seu valor.” (1998, p. 310) E continua o
autor:
Consideramos o caso de experimentação fetal não-terapêutica realizada com a
permissão dos progenitores imediatos do feto, e com razoável certeza de que o
feto será destruído se for ferido, ao invés de se permitir que continue se
desenvolvendo. Quanto mais útil for a pesquisa, tanto mais fácil será considerar
esta realização, em termos seculares gerais, um ato benéfico e justificado, apesar
dos julgamentos adversos que provocará em muitas pessoas. (1998, p. 334-335)
Outrossim, há os que sustentam que a beneficência92 do embrião sobrepõe-se à
autonomia dos pais. Quanto ao conflito entre beneficência e autonomia, enfatizando a influência
exercida atualmente pela autonomia, Beauchamp e Childress comentam:
A principal obrigação do médico é a de agir pelo benefício médico do paciente
e não a de promover a decisão autônoma. Contudo, os direitos de autonomia
tornaram-se tão influentes que hoje é difícil encontrar defesas claras dos
modelos tradicionais da beneficência médica. (2002, p. 296)
Quanto à prioridade do consentimento frente à beneficência, cita-se Engelhardt:
92
Para Barboza, o princípio da beneficência traduz-se na obrigação de não causar dano, extremar os benefícios e
minimizar os riscos (2000, p. 211), pensamento também comungado por Correia (1996, p. 39). Tal princípio baseiase na tradição hipocrática de que o profissional da saúde só pode usar o tratamento para o bem e nunca para fazer o
mal ou praticar injustiças (DINIZ, 2001, p. 16), razão pela qual Pegoraro posiciona-se no sentido de que o princípio
da beneficência pode ser traduzido na idéia de “sempre pensar no benefício do paciente. Não prejudicar o paciente ou
o primun non nocere de Hipócrates.” (2002, p. 98)
120
O princípio da beneficência reflete a circunstância de que as preocupações
morais compreendem procurar os bens e evitar os prejuízos. Como essas
disputas podem ser resolvidas nas sociedades pluralistas seculares apenas por
meio de um recurso ao princípio do consentimento, tal princípio é
conceitualmente anterior ao princípio da beneficência. (1998, p. 159-160)
Visando a dar maior consistência à posição supra, Beauchamp e Childress afirmam que a
capacidade é determinada não porque os melhores interesses da pessoa estão sendo protegidos,
mas pelo fato de uma pessoa ter a habilidade de decidir autonomamente (2002, p. 161).
Por fim, há que se atentar que o princípio do respeito à autonomia não é absoluto, mas
tem validade prima facie (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 145) Na verdade, todos os
quatro princípios bioéticos são prima facie, isto é, não absolutos. Isso significa que eles obrigam
enquanto não entrem em conflito entre si, caso em que deverão ser hierarquizados diante do caso
em concreto, na medida da necessidade de proteção de determinado interesse específico.
No capítulo subseqüente serão apresentadas as possibilidades acerca do uso de célulastronco embrionárias na pesquisa e terapia e as implicações com o princípio do respeito à
autonomia, bem como a (não) priorização do princípio da autonomia frente à beneficência.
Sob a perspectiva jurídica, Minahim assinala que a autodeterminação da pessoa, o que lhe
outorga individualidade, tem como conseqüência a noção de diferentes níveis de determinação,
de modo que o Direito leva em consideração essa distinção através dos institutos da capacidade e
da imputabilidade, impondo conseqüências jurídicas diferenciadas àqueles que têm autonomia
reduzida, por força da idade, inteligência insuficiente etc (2005, p. 40).
Reale esclarece que a “personalidade do homem situa-se como ser autônomo, conferindolhe dimensão de natureza moral. No plano jurídico a personalidade é isto: a capacidade genérica
121
de ser sujeito de direitos, o que é expressão de sua autonomia moral.” (grifos do autor) (2002, p.
232)
Ao encontro da posição supracitada, Pereira enfatiza que toda pessoa é dotada de
personalidade, eis que é o sujeito das relações jurídicas (2002, p. 142). Entretanto, assinala que a
personalidade não depende da consciência ou da vontade do indivíduo. Assim, os recémnascidos, os loucos e os enfermos são pessoas e, por isso, dotados de personalidade (2002, p.
142), posicionamento também comungado por Venosa (2002, p. 147).
Ainda que se entenda que todas as pessoas, independente de suas qualidades físicas ou
mentais, têm personalidade desde o nascimento com vida, consoante defende a teoria natalista,
não há que se olvidar que a capacidade93 não é conceito correlato à personalidade, isto é,
[...] nem todos, porém, dispõem de igual capacidade jurídica, isto é, têm igual
possibilidade de exercer certos atos e por eles serem responsáveis. A capacidade
pressupõe certas condições de fato que possibilitam o exercício de direitos.
Assim, por exemplo, a criança não é capaz, e o demente também carece de
capacidade. (REALE, 2002, p. 232)
Do mesmo modo, Venosa afirma que a capacidade é elemento, atributo do conceito de
personalidade, porquanto confere o limite, a medida da personalidade (2002, p. 148). Outrossim,
o autor assinala que a personalidade não deve ser entendida como um direito, mas como um
conceito sobre o qual se apóiam os direitos (2002, p. 149).
93
A distinção entre personalidade e capacidade pode assim ser traduzida consoante França: a personalidade é a
qualidade inerente à pessoa. De outra banda, a capacidade pode sofrer modificações profundas e em muitos casos
deixar de existir. No entanto, essas modificações ou essa falta de capacidade não afetam a personalidade, que
continua existindo (1966, p. 131). Em continuação, o autor classifica que, do ponto de vista da natureza, a
capacidade pode ser de direito ou de fato (1966, p. 132). Capacidade de direito é aquela inerente a todo homem, pelo
fato de ser pessoa (art. 2º, CCB/02), e capacidade de fato ou de exercício é a aptidão para pessoalmente o indivíduo
adquirir direitos e contrair obrigações (VENOSA, 2002, p. 148). França classifica que, a partir do critério da
extensão, a incapacidade pode ser relativa ou absoluta (1966, p. 133).
122
Em sentido jurídico, os casos em que inexiste autonomia ou esta é reduzida estão
vinculados à representação e à assistência, respectivamente. Nesse sentido, o art. 3º do Código
Civil Brasileiro dispõe que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida
civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não
tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa
transitória, não puderem exprimir sua vontade.” Por serem absolutamente94 incapazes, ou seja,
por haver impossibilidade absoluta de a pessoa exercer por si os atos da vida civil, serão
representados por seus pais, tutores ou curadores. Os relativamente incapazes95, por sua vez,
serão assistidos por seus pais, tutores ou curadores, consoante prescreve o art. 8º do Código de
Processo Civil.
As situações supra demonstram a falta de capacidade do sujeito em conduzir a sua vida de
forma autônoma, razão pela qual o ordenamento jurídico supre a falta mediante os institutos da
assistência e da representação.
O que não pode ser olvidado é que quando o Direito Pátrio estabelece que os menores de
dezesseis anos são representados por seus pais, tutores ou curadores, seguramente se está tratando
com a vida humana, com toda a proteção que é outorgada pelo Direito. Assim, se os argumentos
colacionados no primeiro capítulo do presente trabalho levarem à conclusão de que a proteção
jurídica não deve ser estendida ao embrião criopreservado, logo não há que se indagar acerca da
representação: não haveria direitos a serem protegidos, a exemplo dos direitos a que fazem jus os
absolutamente incapazes.
94
Consoante Diniz, “a incapacidade será absoluta quando houver proibição total do exercício do direito pelo incapaz,
acarretando, em caso de violação do preceito, a nulidade do ato (art. 166, I, CC). Logo, os absolutamente incapazes
têm direitos, porém não podem exercê-los direta ou pessoalmente, devendo ser representados.” (2005, p. 149)
95
O art. 4º do Código Civil Brasileiro dispõe que “são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os
exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os
que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental
completo; IV – os pródigos.”
123
Em suma, a autonomia, como conceito e princípio, deve ser entendida no sentido da
capacidade da pessoa de determinar o próprio destino (pessoas como autolegisladoras),
expressando-se, desse modo, através de uma deliberação racional, livre e independente de
pressões externas. Em sentido bioético, o princípio da autonomia é traduzido na idéia de que uma
ação seria autônoma se tiver por pressuposto o consentimento livre e informado, manifestado a
partir do fornecimento de uma quantidade suficiente de informação para que o paciente seja
capaz de decidir razoavelmente e isento de qualquer tipo de coação física ou psicológica.
Considerando que nem todas as pessoas são autônomas, aquelas cuja autonomia está diminuída
devem ser protegidas através das chamadas decisões de substituição.
A partir de todos os argumentos colacionados nos capítulos antecedente e presente, serão
trazidos no capítulo subseqüente alguns conceitos, aplicações, prós e contras referentes à
pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, bem como apresentados alguns
entendimentos acerca da legitimidade ou não do uso de embriões nas referidas pesquisa e terapia.
124
3 PONDERAÇÕES ACERCA DA LEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DE CÉLULASTRONCO EMBRIONÁRIAS NA PESQUISA E TERAPIA
A presente investigação tem por finalidade discutir, tomando-se em consideração as
teorias acerca do início da individualidade humana, apresentadas no primeiro capítulo, a noção de
dignidade da pessoa humana, nos seus sentidos filosófico-jurídico, bem como o conceito e a
extensão da autonomia, abordados no capítulo segundo, a (i)legitimidade da pesquisa e terapia
com células-tronco embrionárias. Para que essa análise seja ampla o bastante para o fim a que se
pretende, imperioso, preliminarmente, analisar alguns conceitos técnicos e aplicações das célulastronco, bem como apresentar argumentos favoráveis e contrários ao uso de células-tronco
embrionárias na pesquisa e terapia.
3.1 Conceitos e aplicações das células-tronco na pesquisa e terapia
Uma das mais polêmicas possibilidades de destino a ser dado aos embriões excedentes é a
doação para a pesquisa científica, mormente quando veio à tona a possibilidade de pesquisa e
terapia com células-tronco embrionárias. Os projetos de leis existentes no país sobre Reprodução
Assistida (atualmente são treze) não são unânimes quanto à possibilidade de pesquisa científica
125
envolvendo embriões. Também em nível internacional não existe orientação uniforme acerca da
permissibilidade96 da pesquisa.
No Brasil, a regulamentação adveio da nova Lei de Biossegurança97, que no seu art. 5º
dispõe sobre a permissão da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias: “é permitida,
para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões
humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento,
atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis98; ou II – sejam embriões
congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na
data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data do
congelamento.” O parágrafo primeiro do presente artigo exige o consentimento dos genitores
para utilização dos embriões criopreservados em qualquer caso. Quanto ao consentimento, o art.
66 do Decreto nº 5.591/05 estabelece que “os genitores que doarem, para fins de pesquisa ou
terapia, células-tronco embrionárias humanas obtidas em conformidade com o disposto neste
96
Determinados países, a exemplo dos Estados Unidos, Suécia, Coréia do Sul, Índia, Cingapura, Israel, Reino Unido,
Espanha e Irã permitem a pesquisa com células-tronco embrionárias (WEISS, 2005, p. 65). Neri acrescenta
Austrália, Japão e Finlândia (2004, p. 125).
97
A Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005) regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art.
225 da CFB/88, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam
organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança –
CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de
Biossegurança – PNB, revoga a Lei nº 8.974/95, a Medida Provisória nº 2.191-9/01 e os arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16
da Lei nº 10.814/03. A CTNBio tem poder normativo e é incumbida de propor a Política Nacional de Biossegurança,
bem como de fiscalizar sua aplicação, além de definir as condutas ilícitas.
98
O Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de 2005, que regulamenta dispositivos da Lei nº 11.105/05, conceitua, no
seu art. 3º, XIII, embriões inviáveis como sendo “aqueles com alterações genéticas comprovadas por diagnóstico pré
implantacional, conforme normas específicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, que tiveram seu
desenvolvimento interrompido por ausência espontânea de clivagem após período superior a vinte e quatro horas a
partir da fertilização in vitro, ou com alterações morfológicas que comprometam o pleno desenvolvimento do
embrião.” Consoante o art. 2º da portaria n° 2.526, de 21 de dezembro de 2005, do Ministério da Saúde, que dispõe
sobre a informação de dados necessários à identificação de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro,
“entende-se por diagnóstico pré-implantacional as técnicas que avaliam a possibilidade de presença/ ocorrência de
doenças genéticas, direcionadas pela história clínica dos indivíduos cujos gametas originaram o embrião”. O
conceito de viabilidade deve ser biológico, ou seja, deve tratar-se de embrião que não tem condições físicas,
estruturais de desenvolver-se in utero, para o fim de atingir os estágios de desenvolvimento posteriores (MINAHIM,
2005, p. 162).
126
Capítulo, deverão assinar Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme norma
específica do Ministério da Saúde.” A portaria n° 2.526/05, do Ministério da Saúde, no seu art.
3º, dispõe que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido referido no Decreto supra deve: “Iprever a destinação para fins de pesquisa e/ ou terapia das células-tronco embrionárias; e IIgarantir o sigilo dos dados genéticos dos doadores de embriões e de gametas. Parágrafo único. O
Termo de que trata o caput deste artigo deve ser elaborado em duas vias pelas instituições que
exercem atividades que envolvam o congelamento e armazenamento de embriões humanos, e
assinado pelos genitores, sendo uma das vias arquivada pela instituição e a outra destinada aos
genitores.”
A avaliação das questões de ordem ética está prevista no parágrafo segundo do art. 5°, o
qual determina que “instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia
com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e
aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.”
A Lei em epígrafe conceitua células-tronco embrionárias no art. 3º, XI, como sendo
“células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido
de um organismo.” Assim, as células-tronco embrionárias têm a capacidade de constituir
qualquer tipo de célula, eis que seu genoma contém instruções para a integralidade das estruturas
e funções que deverão desempenhar durante todo o ciclo da vida (MINAHIM, 2005, p. 160). Esta
é uma capacidade especial, visto que as demais células geralmente só podem fazer parte de um
tecido específico (por exemplo: células epiteliais só podem originar pele). Minahim assinala que
o poder de tais células de transformarem-se em quaisquer dos futuros tecidos do ser, e nesse
127
sentido são chamadas de pluripotentes99, acendeu a cobiça dos cientistas, aumentando a
esperança em enfermos incuráveis (2005, p. 161).
A liberação da pesquisa e terapia em células-tronco embrionárias, em que pesem os riscos
científicos serem pouco ou nada conhecidos pela população comum, foi colocada como uma
questão imprescindível, no sentido de se evitar a morte de pessoas sujeitas a tratamentos
convencionais que já não representam êxito.
Na atualidade, por força da capacidade acima descrita, a atenção de inúmeros cientistas do
mundo inteiro voltou-se às pesquisas e terapias com tais células, porquanto têm o poder de
funcionar como células substitutas em tecidos lesionados ou doentes, com o fim de tratar lesões e
doenças, como nos casos de Alzheimer, Mal de Parkinson100, esclerose múltipla, esclerose lateral
amiotrófica, várias formas de paralisia cerebral, lesões na medula espinhal, doenças renais,
cardíacas, hepáticas e neuromusculares, diabetes101, bem como doenças do sangue, a exemplo da
99
Neri define célula-tronco como “uma célula capaz de, em seu processo contínuo de replicação, dar lugar a uma
progênie de células cada vez mais diferenciadas e especializadas.” (2004, p. 41- 42) A diferenciação é o resultado do
conjunto dos processos que levam ao aparecimento de funções especializadas em células originariamente iguais entre
si (NERI, 2004, p. 38). Células-tronco totipotentes são “capazes, todas juntas, ou em grupos, ou cada uma separada
das outras, de produzir tudo o que serve para o sucessivo desenvolvimento do organismo” (NERI, 2004, p. 43),
sendo que a perda da totipotência (quando o óvulo fecundado está no estágio de oito células) começa com a
formação da mórula, quando o zigoto conta com cerca de 16 células (NERI, 2004, p. 43). No estágio de blastocisto o
óvulo fecundado assume a forma de bexiga, contendo em geral de 100 a 140 células (NERI, 2004, p. 44). Nesse
estágio, continua o autor, as células passam a ser pluripotentes, ou seja, “capazes de dar origem a todos os tecidos
que comporão o organismo adulto, mas que sozinhas não seriam capazes de produzir esse organismo, porque não são
mais capazes de dar lugar ao trofoblasto, essencial para o desenvolvimento [...]” (2004, p. 45), havendo, pois,
diferença entre totipotência (capacidade de produzir o organismo) e pluripotência (capacidade de produzir todos os
tecidos do organismo, mas não o próprio organismo). Células-tronco multipotentes são as que surgem por volta do
décimo quarto dia (formação da linha primitiva). A diferença é que tais células estão destinadas a formar muitos
tipos de tecido, mas não mais todos os tecidos, como ocorre com as pluripotentes, conclui o autor (2004, p. 46- 47).
100
No caso do Mal de Parkinson, onde há progressiva danificação das células de uma região do cérebro, as células
injetadas no cérebro do paciente fundiram-se com aquelas que perderam a função de liberar dopamina, possibilitando
sua restauração (MINAHIM, 2005, p. 161). A altíssima capacidade de proliferação das células-tronco embrionárias
promete resolver o problema da quantidade de material que pode ser implantado, sendo que no caso do cérebro não
existe o problema da rejeição (NERI, 2004, p. 91).
101
Existem dois tipos de diabetes: a do tipo I é aquela chamada de insulino-dependente; a do tipo II é a não- insulinodependente. A do tipo I é “provocada pela destruição, por causas ainda não bem conhecidas, de grupos de células
esparsas no pâncreas, conhecidas como ilhotas de Langerhans, que têm a tarefa de produzir insulina.” (NERI, 2004,
p. 97) Assim, o objetivo dos pesquisadores é conseguir que as células-tronco embrionárias transformem-se em
células pancreáticas que produzem insulina (WEISS, 2005, p. 55).
128
leucemia. Além dos bons resultados no tratamento de doenças, mormente as do sistema nervoso,
cujo número de pessoas afetadas está em crescimento contínuo, Neri acrescenta que graças às
células-tronco existe a possibilidade de construir medicamentos mais seguros e mais eficazes,
pois terão em vista fornecer ao organismo unicamente aquilo que ele tem necessidade, sendo que
graças à farmacogenética pode-se administrar esses medicamentos na dose certa e ao paciente
certo (2004, p. 85). Outrossim, as células-tronco têm aplicação em doenças dos órgãos internos,
sendo que no futuro será possível a criação de órgãos inteiros em laboratório, o que já foi
realizado com animais, podendo resolver o problema da necessidade de transplantes (NERI,
2004, p. 95). Ademais, muitos cientistas estão convencidos de que a pesquisa poderá tratar
doenças como muitas formas de câncer e até a AIDS, de modo que já existem pesquisas em
andamento nesse sentido (NERI, 2004, p. 102).
Consoante Böhmer, existem diferentes usos das células-tronco, sendo necessário
diferenciar entre: “1- o Tissue Engineering, segundo o qual o tecido do terceiro que recebe
células-tronco irá modelar órgãos para substituição; 2- a visão de gerar órgãos substitutivos a
partir de células, e, finalmente, 3- as diversas formas de terapia celular.” (2002, p. 81)
Como referido, as células-tronco embrionárias têm o potencial de formar todos os tecidos
humanos. Elas podem ser retiradas de:
a) pré-embriões excedentes. De acordo com a Lei de Biossegurança, exige-se que esses
embriões estejam criopreservados. Böhmer observa que para poder obter células-tronco
embrionárias nessas condições, o embrião precisa desenvolver-se in vitro até atingir a fase de
blastocisto (2002, p. 83), ou seja, o estágio de cinco ou seis dias, momento em que sua
composição já conta com 100 a 150 células (MINAHIM, 2005, p. 160). Remove-se a massa
celular interna dos embriões nesse estágio com o fim de criar as linhagens. A razão é que até esse
129
prazo as células ainda não estão diferenciadas. Nesse horizonte, Martínez ratifica que até o
momento em que o pré-embrião ou substância embrionária, como prefere nominar, alcance a fase
de blástula todas as suas células são totipotentes (1994, p. 125).
b) pela técnica de clonagem terapêutica102
103
. A Lei sob análise conceitua esse tipo de
técnica como sendo a clonagem com a finalidade de produção de células-tronco embrionárias
para utilização terapêutica (art. 3º, X). O procedimento da técnica de clonagem terapêutica é
assim descrito:
Agora se tenta obter células de embriões produzidos por clonagem terapêutica,
na qual o núcleo de uma célula epitelial, por exemplo, é introduzido em um
óvulo cujo núcleo original foi removido. Em ambos os casos, após cinco dias
transfere-se a massa celular do embrião, com suas 40 e tantas preciosas célulastronco, para um recipiente com células nutrientes. Ali se reproduzem. A seguir,
são transferidas a outros recipientes. Depois, se as células originais se dividiram
em milhões de células saudáveis que ainda não se tornaram especializadas, elas
são consideradas linhagem de células-tronco embrionárias – capazes de
reproduzir-se ad infinitum. (WEISS, 2005, p. 54)
O objetivo da técnica, então, é retirar células-tronco do embrião produzido. Nos dizeres de
Zatz (www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/10/69.htm), a grande vantagem é que, ao
transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo, esse novo óvulo ao
102
Weiss entende que a clonagem terapêutica é terminantemente proibida pela nova Lei de Biossegurança, consoante
previsão no art. 6º, IV (2005, p. 64). Contrariamente, Minahim posiciona-se no sentido de que a proibição da Lei
refere-se à clonagem reprodutiva e não à terapêutica, pois se presume que as células-tronco serão geradas de outras
células de embriões já existentes e criopreservados há mais de três anos e não de embriões gerados para esta
finalidade (2005, p. 139). Inclusive, a autora cita que, além do Brasil, países como Japão, Israel, Coréia, Indonésia,
Portugal, China, Cuba e África do Sul manifestam-se em favor da clonagem terapêutica (2005, p. 142), ratificando
que a clonagem proibida pela Lei é a que visa a gerar um indivíduo (2005, p. 143). Sem embargo, a autora assinala
que, pelo fato de essa posição violar todos os interesses e valores tutelados pela Lei em epígrafe, a criação de
embriões para servir de material biológico disponível deve ser interpretada como o próprio crime de clonagem (2005,
p. 173).
103
Tanto alguns defensores da pesquisa com células-tronco embrionárias humanas quanto céticos partem do
princípio de que a aplicação das terapias baseadas nesse tipo de células não será possível sem a clonagem
terapêutica, visto que as células-tronco de terceiros seriam rejeitadas pelo organismo (BÖHMER, 2002, p. 81-82).
Nesse viés, Neri observa que, em teoria, é evidente que essa técnica permitiria conjugar as vantagens das células
embrionárias com as vantagens das células adultas, ou seja, a quase ilimitada disponibilidade com a compatibilidade
com o doador do núcleo (2004, p. 72).
130
dividir-se gera, em laboratório, células potencialmente capazes de produzir qualquer tecido e
órgãos humanos e, com isso, pode auxiliar no tratamento de doenças fatais. Essa nova técnica
abre perspectivas para futuros tratamentos, haja vista que hoje só é possível cultivar em
laboratório células com as mesmas características do tecido de onde foram retiradas, conclui.
A clonagem terapêutica não pode ser confundida com a clonagem reprodutiva. Esta pode
ser definida como a reprodução de dois ou mais indivíduos geneticamente idênticos, a exemplo
da ovelha Dolly, trazida a público em 21 de fevereiro de 1997. Tecnicamente, esse tipo de
clonagem consiste na “[...] transferência do núcleo de uma célula somática a uma célula-ovo
fecundada e desnucleada.” (grifos do autor) (MANTOVANI, 2002, p. 190) A questão que se
levanta é, na visão de Carvalho, a capacidade da vida de gerar um organismo adulto completo a
partir de uma única célula (2001, p. 26-27). Assim, se a gravidez chegar a termo nascerá um
indivíduo com a mesma bagagem genética do indivíduo doador do núcleo da célula.
A distinção fundamental entre as duas formas de clonagem reside na finalidade com que
são utilizadas. Minahim esclarece que a diferença entre as duas deve-se ao fato de que na
clonagem reprodutiva o zigoto, quando atingir o estágio de mórula, deve ser implantado no útero
para que se desenvolva, visando ao nascimento (2005, p. 141). Assim, para evitar a clonagem
reprodutiva basta proibir a transferência para o útero de embriões produzidos mediante clonagem
terapêutica.
As células-tronco não são somente retiradas de embriões, eis que existem as adultas que
são encontradas em vários órgãos e tecidos (como sangue, medula óssea, fígado, polpa dentárea
etc) de crianças e adultos, e também no cordão umbilical e na placenta.
Quanto à possibilidade de retirada de células-tronco adultas para fins de pesquisa e
terapia, pesquisadores têm entendido e demonstrado que as adultas são menos potentes que as
131
retiradas de embriões, visto que estas podem transformar-se em qualquer célula do corpo e, logo,
em vários tipos de tecidos e órgãos humanos, em que pesem os desafios enfrentados pelos
cientistas quanto a este último aspecto. Nessa direção, cita-se Weiss: “ao contrário das célulastronco adultas, que aparentemente dispõem de repertórios limitados, as tronco extraídas de
embriões são mais versáteis – elas são ‘pluripotentes’, ou seja, podem transformar-se em todos os
tipos de células do corpo.” (2005, p. 57) Assim, as células-tronco adultas são multipotentes, já
que têm o potencial de diferenciação inferior ao das células pluripotentes, sendo que podem ser
encontradas em tecidos fetais (MINAHIM, 2005, p. 161). Neri elenca quatro razões justificadoras
da preferência pelas células-tronco embrionárias em relação às adultas: 1) as células-tronco
adultas estão presentes nos tecidos em quantidades mínimas; 2) alia-se à raridade a reduzida
capacidade de proliferação, especialmente se comparada à quase ilimitada das células-tronco
embrionárias; 3) as adultas poderiam conter anomalias genéricas causadas pela exposição a
fatores poluentes ou por erros no processo normal de replicação celular no decurso da vida, o que
as torna inadequadas para fins terapêuticos; 4) grande parte das doenças tem componente
genético que, em alguns casos, é a causa da doença. Qual o sentido, questiona o autor, de
reimplantar células que contêm o defeito genético que predispõe ou mesmo causa a doença que se
quer tratar? (2004, p. 59 – 60) Outro problema é a coleta das células-tronco adultas, que, exige,
quase na totalidade, intervenções invasivas para serem recolhidas, a exemplo das localizadas no
cérebro.
Enfim, pesquisadores entrevistados pela National Gegraphic Brasil observam que as
células-tronco coletadas de tecidos de adultos são mais restritas que as embrionárias em seu
potencial de desenvolvimento e capacidade de proliferação, sendo estas mais promissoras
(WEISS, 2005, p. 55). E isso se deve “[...] não só graças ao fato de poderem estar disponíveis em
132
quantidades ilimitadas, mas, sobretudo, graças ao fato de se prestarem melhor, pelo menos em
perspectiva, a um uso padronizado, como deveria ser o terapêutico.” (NERI, 2004, p. 60)
Minahim ressalta que alguns insistem no uso de células do próprio paciente, com o fim de
evitar a rejeição pelo sistema imunológico das células transplantadas, que pode gerar, inclusive,
tumores (2005, p. 162). De todo modo, a maior limitação quando usadas células-tronco da
própria pessoa é que não serviriam para portadores de doenças genéticas, visto que o defeito está
presente em todas as células daquela pessoa, apesar de só se expressar em tecidos específicos.
Apresentados alguns conceitos técnicos e as aplicações terapêuticas das células-tronco
embrionárias, bem como razões justificadoras da preferência das células-tronco embrionárias em
comparação às adultas, passa-se a transcrever alguns argumentos contrários e favoráveis à
utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia.
3.2 Prós e contras ao uso de células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia
A pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, mesmo apresentando controvérsias
sob os pontos de vista ético, religioso e jurídico, trazem a promessa de novas terapias médicas, a
cura de enfermidades, o prolongamento da vida, a mitigação do sofrimento etc. A discussão não
deve centrar-se apenas nos órgãos especializados incumbidos da realização da pesquisa, eis que a
sociedade tem que ser esclarecida sobre as possíveis conseqüências, negativas ou positivas, da
utilização de células-tronco embrionárias. Há que se ter presente, também, que no embate entre
diferentes posições dificilmente um dos lados é capaz de oferecer um argumento que o outro
possa aceitar sem resistência, e, no contexto da pluralidade, não podia ser diferente.
133
A discussão ética quanto à utilização de células-tronco de embriões, seja os chamados
excedentes ou os produzidos mediante clonagem terapêutica, está intrinsecamente interligada
com a nebulosa questão do instante no qual se quer atribuir ao conjunto de células o direito à vida
e, junto com ele, o respeito à dignidade, com todas as suas implicações. A razão é que durante o
processo de obtenção de células-tronco pluripotentes, os pré-embriões ou embriões, como quer se
denomine, são destruídos. Afinal, alguns questionam, poderiam ser utilizados ou criados
embriões com o fim específico de produzir “tratamentos” contra graves doenças, citadas alhures?
Poderiam ser abandonadas as finalidades reprodutivas?
Por força da complexidade das questões surgidas com a destruição de embriões para uso
terapêutico, Minahim assinala que há duas ordens de verdades possíveis quanto ao tema: 1) é
justo o sacrifício de uma vida potencial para regenerar uma outra que se perde; 2) é injusta a
exterminação de seres que não podem consentir e cuja destruição implica autorização para a
instrumentalização da vida (2005, p. 214-215).
De Böhmer chega a informação de que o presidente da Sociedade Alemã para a Pesquisa
enfatizou que ninguém pode afirmar que o trabalho com células-tronco seria desnecessário. A
autora, por sua vez, não pretende contradizê-lo, mas alerta que o que importa não é saber se a
pesquisa, envolta em questões éticas tão sérias, é desnecessária, mas se é tão imperativamente
necessária (2002, p. 79).
Vários segmentos da sociedade, alguns dos quais comandados pela Igreja Católica, têm
assumido uma posição contrária à pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, alegando
que o início da vida humana ocorre no momento da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, ao
encontro do que preconiza a teoria concepcionista, tornando, assim, a pesquisa e terapia
injustificáveis e antiéticas, por ofenderem o direito à vida e o respeito à dignidade. Assim, tais
134
técnicas constituiriam assassinato, um atentado à “sacralidade” e à “inviolabilidade” da vida
humana. Outra argumentação é a de que se estaria abrindo a possibilidade de produção de
embriões humanos para servirem como fonte de células-tronco, com possibilidade de
comercialização dos mesmos, isto é, possível envolvimento econômico na obtenção de célulastronco embrionárias, em que pese a tendência mundial em proibir a comercialização de embriões.
Além das questões atinentes ao estatuto do embrião, à preservação da sua vida e
dignidade, Neri traz outros dois argumentos contrários, sendo o primeiro dirigido ao sistema
norte-americano:
O primeiro, traduzido no argumento do uso correto dos fundos públicos, é que os referidos
fundos têm origem nas taxas pagas pelos cidadãos norte-americanos e, portanto, não é justo usálos para financiar pesquisas que uma parte deles considera moralmente viciadas e de cujos
benefícios, quando estiverem disponíveis, esses cidadãos não poderão usufruir (2004, p. 154).
Como resposta ao primeiro argumento, o autor a sintetiza na seguinte afirmação: “é como
se eu decidisse que certa hortaliça não deva ser consumida e pretendesse que fosse extirpada de
todas as hortas: eu sou livre de não comer aquela hortaliça, mas são livres os outros de tê-la à
disposição, se quiserem comê-la.” (2004, p. 158)
O segundo argumento (o da equivalência científica) é que haveria desperdício de dinheiro,
visto que os mesmos resultados podem ser obtidos através da pesquisa com células-tronco adultas
(NERI, 2004, p. 154). A Declaração sobre a produção e sobre o uso científico e terapêutico das
células germinais embrionárias humanas, emitida pela Pontifícia Academia para a Vida, dispõe
que a pesquisa e a utilização de células-tronco embrionárias, além de moralmente viciadas, são
um caminho não necessário, pois os mesmos resultados podem ser obtidos com a utilização de
células adultas (NERI, 2004, p. 159). Quanto a este argumento, Neri já demonstrou que as
135
embrionárias são mais promissoras e elencou quatro fundamentos que favorecem a preferência
por elas, concluindo no sentido de que os cientistas sérios hesitam em sustentar que haja
equivalência entre células-tronco adultas e embrionárias (2004, p. 161).
Em se tratando da perspectiva da Igreja católica, existem diferentes visões sobre a
pesquisa com células-tronco, fruto da falta de consenso sobre o estatuto do embrião.
Pellegrino, conhecido estudioso da bioética, posiciona-se no sentido de que a Igreja
Católica “opõe-se à retirada de células de embriões e de fetos abortados porque ambos os casos
implicam cumplicidade direta ou indireta na interrupção de uma vida humana, para a qual a
Igreja reivindica uma proteção absoluta desde o momento da concepção.” (NERI, 2004, p. 178)
O Vaticano já se manifestou no sentido de que considera a pesquisa com células-tronco um ato de
extrema imoralidade. Essa posição é a mais difundida na área católica, sendo compartilhada,
inclusive, por muitos cientistas e filósofos.
A Instrução sobre o Respeito à Vida Humana Nascente e à Dignidade da Procriação prevê
que são consideradas lícitas as intervenções no embrião que “sejam orientadas para a melhoria de
suas condições de saúde e sobrevivência individual.” (DONUM VITAE, 1987, p. 22) Isso quer
dizer que as intervenções no embrião só serão consideradas lícitas quando respeitarem a vida e a
integridade do mesmo e que tenham por objetivo a salvaguarda ou a sua cura. Martínez, ao
referir-se à Instrução, assinala que a mesma tacha de imoral a produção de embriões humanos
destinados a servirem de material biológico disponível (1994, p. 106).
Contrariamente, para a teóloga Farley, que se declara a favor da pesquisa com célulastronco embrionárias, um número crescente de teólogos moralistas não considera o embrião
humano em seus primeiros estágios como uma entidade individualizada e que possa ser
identificada como pessoa (NERI, 2004, p. 179).
136
Em suma, os diferentes posicionamentos acerca da permissibilidade ou não do uso de
células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia devem-se ao fato de que não existe documento
oficial da Igreja Católica que fixe o momento em que há a infusão da alma racional no corpo de
modo dogmático, razão pela qual existiram e ainda existem na tradição católica diferentes
concepções a respeito do momento em que o ser humano torna-se pessoa.
Embora não haja referência direta à utilização de células-tronco embrionárias, Martínez
traz o pensamento de Mantovani, o qual considera ilícita a experimentação com pré-embriões in
vitro com qualquer objetivo diferente da implantação, postulando a inclusão, como delitos contra
as pessoas, de novas figuras penais destinadas a incriminar essas condutas (1994, p. 107).
Ademais, os defensores contrários à pesquisa afirmam que o bem da coletividade não
pode ser obtido a partir da morte de seres humanos, mesmo que ainda em fase incipiente de
desenvolvimento. Quanto à referência ao bem coletivo, Habermas posiciona-se:
A referência ao bem coletivo de métodos de cura, que possivelmente poderiam
ser desenvolvidos, encobre a circunstância de uma instrumentalização
incompatível com a atitude clínica. Obviamente, o uso de embriões
exclusivamente para pesquisa não pode ser justificado sob o ponto de vista
clínico da cura, pois este é talhado para o trato terapêutico com a segunda
pessoa. (2004, p. 97)
A segunda pessoa é o embrião, que se nascesse poderia exercer todas as habilidades.
Quanto à possibilidade de cura, Böhmer assinala: “entre o embrião e a mãe existe uma
relação condicionante, inexistente entre o embrião e o doente grave que espera obter a cura por
meio da terapia com células-tronco.” (2002, p. 78) Por isso, a autora entende ser impossível
comparar o direito à vida do embrião às expectativas de cura (2002, p. 78).
137
Nesse viés, Sgreccia ratifica que o embrião, sendo viável ou não, não deve ser tratado
como cobaia, e por esse motivo considera imoral a experimentação, ainda que tenha como intuito
final favorecer a pesquisa para buscar a cura de doenças da humanidade, haja vista que a parte
não deve ser sacrificada pelo todo (2002, p. 552).
Goldim (www.bioetica.ufrgs.br/celtron.htm) cita interrogantes éticas envolvidas na área
da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias: é adequado utilizar embriões produzidos
para fins reprodutivos e não utilizados, cujos prazos de utilização foram ultrapassados, para gerar
células-tronco embrionárias? É aceitável produzir embriões humanos sem finalidade reprodutiva
apenas para produzir células-tronco? A justificativa da necessidade de desenvolver novas terapias
está acima da vida dos embriões produzidos para este fim? Por que não incentivar as pesquisas
utilizando células-tronco adultas, que têm demonstrado bom potencial? É justo criar expectativa
para pacientes e familiares sobre a possibilidade de uso terapêutico de células que não foram
testadas em experimentos básicos?
Contrariamente à pesquisa com células-tronco, Habermas manifesta-se:
[...] ela exige a princípio uma atitude instrumentalizadora em relação ao
“conjunto de células embrionárias”. No laboratório, o tratamento experimental e
que “consome” embriões não visa absolutamente a um nascimento possível. [...]
essa prática de pesquisa exige um tratamento reificante em relação à vida
humana pré-pessoal e, por conseguinte, a mesma atitude caracterizada pelas
práticas eugênicas. (2004, p. 132)
E continua: “do ponto de vista moral, não há uma diferença significativa se os embriões
utilizados para fins de pesquisa forem produzidos para os fins dessa instrumentalização.”
(HABERMAS, 2004, p. 133)
No sentido do problema da eliminação de embriões excedentes na pesquisa científica,
comenta Beiguelman:
138
Estamos caminhando para um mundo no qual a sociedade pode ter uma política
de reprodução que permitirá eliminar os que constituem uma “sobrecarga”. Mas
quem determinará o que constitui uma “sobrecarga”? Quais os critérios que
servirão para estabelecer quais os genes bons e quais os maus? Como impedir
que toda essa tecnologia da engenharia genética seja usada e abusada por um
sistema ideológico determinado? (1996, p. 123)
Quanto aos possíveis interesses, Anjos adverte que seria ingenuidade pensar que os
avanços científicos na área da biotecnologia mantenham-se dentro das balizas idealistas e
humanitárias de cientistas e escapem ao jogo de interesses e de poder que impera na sociedade
(1996, p. 135), sociedade esta que, pela avidez por lucros e busca pelo progresso ilimitado, pode
conduzir à depreciação do bem da vida e do valor da dignidade humanas.
Aderindo à posição que garante proteção ao embrião desde a concepção, cita-se Diniz: “o
diagnóstico pré-natal e a intervenção em embrião humano só seriam lícitos para salvaguardar a
sua cura em caso de ser portador de moléstia hereditária ou para melhorar a condição de sua
saúde.” (2001, p. 480)
Em resumo, Böhmer (2002, p. 84) assinala que a pesquisa com células-tronco
embrionárias humanas envolve muitos problemas, por alguns motivos: 1) ainda não se sabe se as
promessas de cura esperadas com a pesquisa poderão ser concretizadas; 2) essa pesquisa está
essencialmente ligada à eliminação de embriões; 3) até o momento não houve suficiente reflexão
acerca da influência das decisões sobre a política de incentivo à pesquisa quanto ao entendimento
dos valores fundamentais.
Entretanto, ao final, inserida no sistema alemão, a autora traz o pensamento de
Kempermann: “a ciência alemã não é tanto prejudicada pelo excesso de ética como o é pelas
deficiências estruturais existentes há décadas no cenário da pesquisa.” (2002, p. 85) Assim,
139
muitas vezes, o que inviabiliza ou entrava as pesquisas e terapias com células-tronco
embrionárias não é propriamente a ética e sim problemas estruturais.
Os que defendem a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapias
baseiam-se no raciocínio de que o embrião não passa de um aglomerado de células
indiferenciadas e que, por essa razão, não pode ser considerado vida humana, assim como uma
semente não é uma árvore. Em se tratando de visões morais divergentes, Neri entende que a
posição mais difundida no debate é aquela que defende que o embrião não é pessoa desde a
formação do zigoto, mas adquire esse status num momento seguinte: com a implantação no útero;
quando se forma a linha primitiva104; quando se forma o esboço do cérebro etc. Além do limite
temporal, essa concepção exige que as finalidades da experimentação sejam de grande
importância (respeito da vida humana ameaçada por graves doenças e sofrimentos) e não
alcançáveis por outros caminhos. Essa posição encontra consenso tanto na área das éticas de
fundamento religioso como na área das éticas laicas (2004, p. 172-174). Outrossim, os defensores
invocam que o bem social, que será útil para muitas pessoas na cura105 de algumas enfermidades,
sobrepõe-se ao de uma “expectativa de vida”, levando em consideração a situação do embrião em
fases iniciais de desenvolvimento. Nesse viés, Beck-Gernsheim constata que ninguém almeja a
doença e o sofrimento. Por esse motivo, a saúde situa-se entre os desejos prioritários das pessoas,
tendo-se convertido em valor central na modernidade (1998, p. 252), até mesmo numa
perspectiva laboral, da qual dependem as chances no mercado de trabalho (1998, p. 254).
Ademais, a melhora da saúde, o prolongamento da vida com qualidade e a mitigação do
104
Considerável parcela de cientistas não reconhece o status de seres humanos para os embriões em estágios iniciais
de desenvolvimento, tanto que muitos aceitam a denominação de pré-embrião, proposta no Relatório Warnock, em
1984, como visto alhures.
105
Não existe um critério unânime acerca do significado da cura, que seja delimitável e determinável claramente
quanto ao seu conteúdo (BECK-GERNSHEIM, 1998, p. 260). Assim, por força do desenvolvimento da técnica, a
natureza da cura, consoante a autora, é pouco nítida e plurívoca, de modo que as conseqüências secundárias acabam
por desenvolver uma dinâmica própria (1998, p. 274).
140
sofrimento, possibilitados pelos novos avanços, têm que ser levados em consideração. Para os
adeptos, a pesquisa e a terapia não são tidas somente como aceitas, mas recomendáveis.
De certo modo, a consciência humana, as leis, a humanidade, a religião e a ética tendem a
condenar a pesquisa em suas diversas formas, mas ela se faz e se fará indispensável ao progresso
da ciência médica para o bem da humanidade.
Sob o aspecto científico, Neri entende que todas as pesquisas com células-tronco, sejam
embrionárias ou adultas, são extremamente interessantes e devem ser encorajadas (2004, p. 107).
E continua: “é desejável, pois, que o setor avance com pesquisas sem limites, e isso significa que,
se as promessas forem mantidas, a medicina do futuro terá à disposição um amplo arsenal de
armas para combater grande parte das doenças que afligem a humanidade.” (2004, p. 108) E
conclui no sentido da liberação da pesquisa:
[...] a posição mais difundida na comunidade científica é a que exige que se
leve adiante a pesquisa em todos os setores, pois é esse o único modo de atingir
o mais rápido possível aqueles resultados que permitirão passar à fase da
aplicação clínica. [...] Estamos falando de pesquisas que, se espera, possam ter
um impacto decisivo contra o sofrimento e as doenças. O fator tempo é um
fator moral: quem tenta retardá-lo ou obstaculizar a pesquisa deve ter
consciência de que assume uma gravíssima responsabilidade em relação a
milhões de pessoas. (2004, p. 165)
Há que se ter presente que a responsabilidade não é somente assumida em relação às
pessoas já acometidas pela doença, mas também em relação às futuras gerações, que poderão ser
beneficiadas pela aplicação de células-tronco embrionárias em novas terapias.
Uma das principais aplicações da terapia com células-tronco seria em doenças crônicodegenerativas ligadas ao envelhecimento do organismo, porquanto há uma perda de
funcionalidade dos órgãos causada pela destruição das células que compõem os tecidos (NERI,
2004, p. 56; 60). Isso se deve ao fato de que com o gradual aumento da expectativa de vida
141
populacional, por força do aumento da qualidade de vida e do avanço da medicina na área de
tratamentos e novas terapias, pode-se prever que haja um aumento considerável na ocorrência
dessas doenças na população.
Engelhardt é um dos adeptos da utilização de embriões em pesquisa científica, e vai além,
pois a admite com fetos. “Em moralidade secular geral, são as pessoas que atribuem valor aos
zigotos, aos embriões ou aos fetos. Aqueles que produzem ou procriam o zigoto, o embrião ou o
feto têm o direito primordial de fazer a determinação definitiva de seu valor.” (ENGELHARDT,
1998, p. 310) E continua:
Consideramos o caso de experimentação fetal não-terapêutica realizada com a
permissão dos progenitores imediatos do feto, e com razoável certeza de que o
feto será destruído se for ferido, ao invés de se permitir que continue se
desenvolvendo. Quanto mais útil for a pesquisa, tanto mais fácil será considerar
esta realização, em termos seculares gerais, um ato benéfico e justificado, apesar
dos julgamentos adversos que provocará em muitas pessoas. (1998, p. 334-335)
O supracitado autor entende não ser possível proibir a geração de fetos como fontes de
órgãos ou tecidos particulares, bem como aqueles gerados por meio de pagamento, haja vista que
os mesmos não são considerados pessoas em sentido estrito (1998, p. 335-336). Afinal de contas,
a “medicina centra-se na pessoa; não tem como objetivo o mero prolongamento da vida
biológica” (ENGELHARDT, 1998, p. 341), relembrando que, consoante visto no primeiro
capítulo, a vida biológica na posição do autor tem seu marco inicial com os primeiros sinais de
atividade cerebral.
A par das posições contrárias e favoráveis, constata-se uma acirrada diversidade de
opiniões acerca da utilização de células-tronco embrionárias devido ao fato de que, de um lado,
alguns defendem o respeito pela vida e dignidade embrionárias desde o primeiro instante da
concepção, estando o embrião in vitro ou in utero, e, de outro, muitos sustentam que o bem da
142
humanidade, traduzido na cura de doenças, prolongamento da vida com qualidade e mitigação do
sofrimento, deve ser priorizado frente ao embrião criopreservado, entendido como um aglomerado
de células indiferenciadas que não faz jus à proteção jurídica, sendo legítima a sua utilização.
Por todo o exposto, passa-se a transcrever alguns entendimentos que sintetizam o
problema enfrentado no presente trabalho.
3.3 A pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias: entre a legitimidade e a restrição
A partir de todos os argumentos colacionados neste capítulo e nos outros que o
antecederam, pode-se, sem pretensão de certeza e validade, estabelecer algumas conclusões a
respeito do problema formulado na presente investigação. Afinal, com base nas teorias acerca do
início da vida humana, na dignidade e na autonomia é possível legitimar a pesquisa e terapia com
células-tronco embrionárias?
Da análise das teorias acerca do início da individualidade humana, qual delas seria a mais
aceitável para fins de determinar o instante em que uma nova vida começa, ou melhor, para
decidir a partir de que momento corresponde sua proteção jurídica?
A par de todas as teorias expostas, em que pese a quase impossibilidade de se determinar
o início da individualidade humana, porquanto ela não surge de gênese espontânea, mas é
caracterizada pela continuidade, entende-se que a proteção legal à vida puramente biológica e não
pessoal dar-se-ia a partir do décimo quinto dia após a concepção, consoante as bases defendidas
pela teoria genético-desenvolvimentista. A simples união de gametas (óvulo e espermatozóide)
não constitui fenômeno bastante para que disso resulte um ser humano digno de proteção. Assim,
143
parece que o início da vida não se identifica com a concepção, eis que não existe um “momento”
exato em que se dá a concepção: o que existe, de fato, é um processo que, consoante
entendimento, nos primeiros quatorze dias não deve ser levado em conta para efeito de alimentar
a tese de que já existe vida a ser tutelada, visto que se vislumbra apenas um amontoado de
células. Entretanto, depois de ultrapassados os quatorze dias forma-se a linha primitiva e, logo, a
diferenciação impõe-se, ao encontro do que dispõe o Relatório Warnock. A gastrulação, que se
inicia com a formação da linha primitiva, indica o aparecimento de todos os sistemas de suporte
necessários ao desenvolvimento do ser que se forma, de modo que a etapa da formação dos
folhetos primordiais é importantíssima, porque é das células presentes em cada um deles que se
desenvolverão os diferentes tecidos e órgãos do corpo humano, incluindo o aparecimento da
estrutura básica do sistema nervoso.
Assim, entende-se que a formação de tal linha marca o início da existência de um ser da
espécie humana, sendo digno de proteção jurídica (civil-penal) específica, eis que, ultrapassados
os quatorze dias da concepção, passaria a ser sujeito de direitos, mormente o de não ser destruído.
Adentrando-se na perspectiva teológica, até mesmo grandes pensadores católicos, a
exemplo de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, não se posicionam em favor da teoria da
animação imediata. Como visto, Santo Agostinho sustenta que a infusão da alma racional dá-se
depois de iniciada a gestação, hipótese que se dá o nome de animação retardada, o que leva a
entender que retira do rol de seres humanos o embrião in vitro, bem como os embriões
implantados no útero em estágios iniciais de desenvolvimento. Ressalta-se que para a Igreja
Católica a configuração de ser humano/ pessoa prescinde da alma: o corpo não basta. Santo Tomás
de Aquino, por seu turno, defendeu categoricamente que o feto não tem uma alma racional no
momento da concepção, mas que a adquire quarenta dias no caso de um feto masculino e oitenta
144
dias no caso de um feto feminino, por força da adoção da teoria aristotélica da criação. Assim, em
que pese a posição dominante da Igreja Católica continuar sendo a da animação imediata, não há
que se olvidar que grandes pensadores sustentam a animação retardada, já que a recepção da alma
racional, como marco inicial da vida humana e requisito identificador da pessoa, nem sempre
coincide com a concepção. E, se existem fundadas dúvidas de que o embrião é vida humana na
perspectiva Católica, muito mais haverá em se tratando do viés científico.
O aparecimento da linha primitiva é sinal de que se formou e começou a existir um
embrião propriamente dito e humano, sendo que até o décimo quarto dia após a concepção se está
perante a figura do pré-embrião, ou seja, o fruto da concepção destinado a tornar-se titular da
proteção jurídica. A partir do Relatório Warnock e dos argumentos levantados pelos
embriologistas citados no capítulo primeiro, conclui-se que o aparecimento da linha primitiva
(que é o plano construtivo do pré-embrião) é o marco identificador de que se formou a
identidade, a individualidade, não tendo significado defender a presença de um verdadeiro ser
humano antes desse estágio. É a individualidade/ identidade que traduz a possibilidade de
identificação do ser durante toda a sua vida, o que permite diferenciá-lo de qualquer outro.
Martínez posiciona-se no sentido de que a teoria genético-desenvolvimentista tem o
atrativo de oferecer uma data relativamente determinável a partir da qual operaria o amparo legal
(1994, p. 84), ratificando que o surgimento da linha primitiva, ou seja, o aparecimento da
estrutura básica do sistema nervoso, representaria o início da existência de um indivíduo da
espécie humana, sendo digno de proteção jurídico-penal específica (1994, p. 100). Afinal, o
embrião, ou seja, o fruto da fecundação com mais de quatorze dias de evolução, é um sujeito de
direito (MARTÍNEZ, 1994, p. 99).
145
Outrossim, não há que se olvidar que até o décimo quarto dia depois da fertilização (mais
tempo do que, até hoje, os embriões humanos foram mantidos vivos fora do corpo humano), o
embrião pode separar-se em dois ou mais embriões geneticamente idênticos, o que leva à
formação de gêmeos idênticos. Assim, quando se depara com um pré-embrião em estágio anterior
a esse ponto, não se pode saber ao certo se o que se está vendo é o precursor de um ou de dois
indivíduos. Do exposto, a formação da linha primitiva, aliada à certeza de que o zigoto não se
dividirá em dois ou mais, ratifica que o início da vida merecedora de proteção pode ser atribuído
a esse momento. Dentro dos quatorze dias desde a concepção, o pré-embrião poderia ser utilizado
na pesquisa e terapia com quaisquer fins, haja vista que é considerado um aglomerado de células,
ou melhor, desconhece-se a individualidade humana antes desse tempo.
Por outro lado, ressalta-se que a definição do início da vida a partir do critério
concepcionista é discricionária, porquanto não se pode determinar exatamente em que momento
deu-se a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. A fecundação não é sumariamente
instantânea; ela se revela num processo complexo, sendo difícil definir com clareza o momento
exato em que se dá. A idéia de edificação progressiva do ser acaba derrubando por terra a noção
de instantaneidade, por muitos sustentada para a caracterização de ser humano a partir do
momento da fecundação. Ademais, como visto, para os concepcionistas o embrião é considerado
uma criança. Sem embargo, necessário estabelecer a seguinte analogia: o embrião é considerado
uma criança da mesma forma que uma semente é uma árvore. Seguramente, os argumentos que
sustentam que a semente é uma árvore e que o embrião é uma criança não nascida são
demasiadamente frágeis para serem tidos como paradigmas de decisão.
Em meio a críticas à teoria concepcionista, Casabona observa que “se ha descubierto que
genéticamente durante el proceso inicial del cigoto éste no posee todavía toda la información
146
necesaria para el proceso embriogenético que determinará las características biológicas del futuro
individuo [...].” (1994, p. 149) Nesse viés, cita a lição de Bedate e Cefalo: considerando que a
única diferença entre um zigoto e uma célula epitelial é a existência de informação molecular que
gera o começo da embriogênesis, tem-se que definir o substrato biológico de qualquer exemplo
de vida humana pessoal em termos que expressem a capacidade de dar informação, juntamente
com o conteúdo dessa informação. Aquele potencial de capacidade informativa é adquirido com
o tempo, por meio da interação com outras moléculas. No processo de diferenciação, o embrião
interage com a mãe, não havendo nenhuma dúvida de que ambos os sistemas biológicos trocam
informação (1994, p. 149).
Adentrando-se na problemática do aborto, Dworkin comenta que as excludentes de
ilicitude geralmente são admitidas até mesmo pelos conservadores, o que demonstra o caráter
relativo da proteção fetal (2003, p. 43-43). Ademais, o autor assinala que “os católicos praticantes
não poderiam aceitar as exceções que, em sua maioria, aceitam, se realmente acreditassem que o
feto é uma pessoa com direito à vida a partir do momento da concepção.” (2003, p. 65) A
conclusão que se impõe é que, com muito mais razão, a proteção à “vida” embrionária não tem
caráter absoluto, mormente quando a situação do embrião criopreservado frente à do feto é
completamente diferente sob o aspecto protetivo. Nesse sentido, como visto no primeiro capítulo,
Martínez adverte para o fato de não se poder equiparar pré-embriões com embriões e fetos (1994,
p. 78). Embora a autora defenda a proteção do pré-embrião ou, como prefere, da substância
humana embrionária ratifica que a figura do embrião surge com o aparecimento da linha
primitiva, ou seja, a partir do décimo quinto dia de evolução. É isso que caracteriza a unicidade
do desenvolvimento (1994, p. 142). Ademais, nem mesmo a pessoa tem proteção absoluta de sua
vida, haja vista que a proteção resta relativizada frente a situações que justificam a morte, tais
147
como a legítima defesa, a pena de morte, dentre outras. Assim, “a intangibilidade da vida deve
ser entendida de forma relativa, porque, algumas vezes, há uma tolerância quanto a certos ataques
que ela sofre, seja por motivos de política criminal, seja em razão de incertezas de natureza
científica e axiológica.” (MINAHIM, 2005, p. 70) Do exposto, por que não legitimar a pesquisa
e terapia com células-tronco embrionárias se a Carta Constitucional (art. 5º, XLVII, “a”) permite
a pena de morte em caso de guerra declarada? Por que não legitimá-las, mormente quando se
denota a relativização do direito à vida frente a outros valores?
Dworkin afirma que “o aborto é a perda de uma vida humana que se inicia. A morte
ocorre antes que a vida tenha de fato começado.” (grifo nosso) (2003, p. 251) Como visto, o
aborto pressupõe que o embrião já esteja implantado no útero. Logo, com muito mais razão, a
pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias não põem fim a uma vida, eis que ainda não
há implantação do embrião no útero.
A Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, quando se refere ao
diagnóstico e tratamento de pré-embriões, estabelece no item 3 que “o tempo máximo de
desenvolvimento de pré-embriões ‘in vitro’ será de 14 dias”. Tal disposição parece delinear uma
postura tendente a diferenciar pré-embrião de embrião, com o objetivo precípuo de legitimar a
utilização dos pré-embriões nos mais diversos experimentos.
Os argumentos favoráveis à adoção da teoria genético-desenvolvimentista foram tratados
no primeiro capítulo, sendo que a partir desse instante utilizar-se-á o termo pré-embrião para
designar o zigoto que se encontra criopreservado e aquele que, embora implantado no útero, não
atingiu o estágio de quinze dias após a concepção.
Entende-se não haver diferenciação quanto à localização do embrião (in vitro ou in utero).
Explica-se: a teoria genético-desenvolvimentista parece receber maior aceitação quando se tratam
148
de pré-embriões criopreservados, na medida em que se sabe que o pré-embrião nessa condição
não tem capacidade de desenvolver-se fora do útero materno, de modo que a fresco pereceria
rapidamente e, por isso, nem ao menos conseguiria atingir o estágio de quinze dias. Quanto ao
zigoto implantado, em que pesem posicionamentos divergentes, entende-se que a teoria genéticodesenvolvimentista também se aplica a esses casos, sendo que até quatorze dias após a
fecundação os genitores poderiam decidir livremente acerca do destino a ser dado ao préembrião. O certo é que quando a mãe dá-se conta de seu estado gravídico, geralmente os quatorze
dias já foram ultrapassados e, portanto, a punição aos atentados à vida do embrião impõe-se.
Ultrapassados os quatorze dias, pode-se construir uma base jurídica protetiva gradual dessa vida,
considerando os diferentes níveis de desenvolvimento da existência humana: a punição aos
atentados à vida inicia-se pelas penas do aborto, passando pelas do infanticídio e somente depois
às do homicídio. Nunes salienta que “o Direito postula pela vida, luta pela sua manutenção e
dignidade. Onde não há vida, não há direito.” (2002, p. 61)
Do exposto, entende-se adotar a teoria da nidação aliada à teoria genéticodesenvolvimentista como marco do início da proteção legal de uma nova vida humana.
Berlinguer, questionando se cada tipo de célula que se reproduz tem direitos próprios, cita
Palmarini:
A nossa razão e a biologia nos dizem que se eu cultivo in vitro uma célula
humana e faço derivar desta uma linhagem celular que durará talvez dezenas de
anos, eu não estou fazendo nada ao indivíduo ao qual aquela célula pertence
inicialmente [...] Mesmo as miríades de células humanas, retiradas do baço, da
medula, do sangue, de vários tumores e cultivadas nos laboratórios do mundo
inteiro com imensos benefícios para a ciência pura e para a medicina, são
inteiramente humanas do ponto de vista biológico, mas não são corpos, não
formam um indivíduo. Em outras palavras, não se pode “identificar uma célula,
ou um conjunto de células, com um corpo-indivíduo e depois este com uma
pessoa”. (grifo do autor) (1993, p. 41)
149
A conclusão que se extrai da citação acima é que as duas células que se juntam (óvulo e
espermatozóide) devem apenas ser consideradas expectativas de vida humana, não se podendo
falar em ser humano e muito menos pessoa. Outrossim, necessário relembrar a lição trazida por
Martínez, no sentido de que nos documentos emitidos pela Santa Sé confundem-se unicidade
genética (presente desde a concepção) e unicidade no desenvolvimento (constatável uma vez
formada a linha primitiva). Essa distinção justifica-se por força da existência de formações
patológicas que possuem a composição genética da espécie, porém jamais darão lugar a um ser
humano. São exemplos, a chamada “mola hidatídica”, bem como o tumor chamado de
“teratoma”. Do exposto, advoga-se que a vida merecedora do amparo da ordem jurídica não se
limita a um mero aglomerado de células.
Sob o manto de se pretender tutelar os interesses do pré-embrião in vitro, não se pode
recorrer a interpretações extensivas das categorias de nascituro e muito menos de pessoa natural.
O valor da pessoa humana, que informa todo o ordenamento jurídico, não se estende, a partir de
uma interpretação analógica, a todos os seres humanos e muito menos aos que não atingiram o
status de seres humanos plenos, como é o caso dos pré-embriões mantidos em laboratório. Não é
possível o ingresso do pré-embrião criopreservado no sistema jurídico que tem no nascituro uma
expectativa de direitos (sob a condição de nascer com vida) e na pessoa o sujeito de direitos e
obrigações. Se o nascituro é ente despersonalizado, muito mais o será o pré-embrião congelado.
Não se poderia deixar de enfatizar a análise da teoria da potencialidade de pessoa, pela
aceitação que vem recebendo. Poder-se-ia até aceitar a tese de que embriões e fetos têm a
possibilidade de se tornarem pessoas: se não houver um ato intencional ou natural que imponha
fim a essa vida, ela se desenvolverá até o ponto em que se poderá dizer, então, que a pessoa
150
humana está formada. Sem embargo, em se tratando de pré-embriões criopreservados, a situação
muda completamente de figura.
O que parece restar claro é que, na perspectiva dessa teoria, a idéia de pessoa em potencial
não se aplica, de forma alguma, ao pré-embrião criopreservado, na medida em que este não tem
meios e capacidade de desenvolver-se fora do útero a fim de construir seu próprio estatuto
humano completo. Assim, ou o pré-embrião é transferido ao útero materno e aí inicia a fantástica
interação entre mãe e filho que o faz desenvolver-se, haja vista que a tecnociência não evoluiu a
ponto de viabilizar uma gestação em útero artificial, ou ele é simplesmente jogado no “ralo”, pois
a “fresco” pereceria rapidamente. Na verdade, essa teoria não deveria referir-se à potencialidade
de pessoa, mas deveria reconhecer no pré-embrião in vitro “um ser humano potencial”. O que se
pode buscar nesse contexto é uma mera autonomia embrionária e não pessoal. Pode-se visualizar
na capacidade meramente biológica do pré-embrião a possibilidade de, vencidas as etapas iniciais
de desenvolvimento, vir a tornar-se um ser humano digno de proteção jurídica específica.
A individualidade é expressão da capacidade, de modo que, em não havendo a
implantação no útero, juntamente com a formação da linha primitiva, a constituição do ser até o
nascimento resta prejudicada. Em verdade, não haverá nascimento.
Leite, ao advogar em favor da potencialidade de pessoa, atribui dever aos pais de gerar o
embrião de forma responsável, priorizando, assim, o processo de “gravidez” como “determinador
da humanidade”. Como insistentemente referido no primeiro capítulo, necessário implantação no
útero para que o estado gravídico reste configurado. Logo, até mesmo a posição de Leite não
albergaria a situação dos pré-embriões criopreservados. Ademais, o autor enfatiza a gravidez
como determinante do início da vida humana (é isso que parece dever ser entendido como
humanidade), posição que, mais uma vez, exclui a tutela aos pré-embriões in vitro.
151
Enquanto o embrião implantado no útero materno tem a possibilidade de tornar-se uma
criança, a menos que ocorra um ato humano ou um empecilho natural que interrompa o seu
desenvolvimento, o pré-embrião criopreservado só se transformará em uma criança se os
genitores manifestarem o desejo de implantação, ou se deliberarem acerca da doação a outro
casal, ou mulher. Do exposto, o pré-embrião criopreservado jamais terá a perspectiva de realizar
o seu potencial (“ativar” habilidades tais como movimento, racionalidade, consciência de si,
sentido de relação etc) enquanto não for implantado. Ratifica-se que a proteção do embrião devese à conjunção entre as teorias da nidação e a genético-desenvolvimentista, ou seja, o préembrião criopreservado só será digno de proteção legal se houver implantação no útero seguida
da superação do prazo de quatorze dias após a concepção.
Nesse contexto, podem ser dirigidas críticas à posição de Fukuyama de que o embrião tem
o potencial de se tornar um ser humano pleno, conforme posicionamento no primeiro capítulo do
presente trabalho. Quando o autor enfatiza que existem diferentes estágios de desenvolvimento da
vida humana, entende que essa vida começa com um aglomerado de moléculas orgânicas para
depois possuir consciência, razão, capacidade de escolha moral e emoções. Logo, em não
havendo possibilidade de desenvolvimento do pré-embrião criopreservado (até que haja
implantação no útero), a conclusão que se impõe é que o mesmo deve apenas ser considerado um
aglomerado de moléculas orgânicas (como descreveu o autor). Assim, o entendimento de
Fukuyama pode servir para o caso de embriões implantados, mas jamais aos pré-embriões
mantidos em laboratório.
Junges advoga em favor da teoria da potencialidade da pessoa, posicionando-se no sentido
de que o embrião já é estruturalmente pessoa, embora não o seja atualizadamente, porquanto a
estrutura pessoal ainda não se desenvolveu plenamente, mas está programada para isso. Sem
152
embargo, os argumentos contra a teoria em tela, especificamente quanto ao pré-embrião
criopreservado, aplicam-se às suas posições, mormente quando conclui que “o desenrolar da
estrutura humana será levado a cabo, se não for interrompido.” (JUNGES, 1999, p. 137) Assim,
em não havendo possibilidade de desenvolver a estrutura humana (como ocorre com os préembriões criopreservados antes da implantação), não há que se falar em potencialidade, nem de
ser humano digno de proteção e muito menos de pessoa. Para corroborar, Junges assinala que a
potencialidade aparece na falta de autonomia e comunicação do embrião (1999, p. 108).
Singer está certo ao advertir que o príncipe Charles é rei da Inglaterra em potencial, mas,
no momento, não tem os direitos de um rei. Essa afirmação poderia ser aplicada a fetos,
entendendo-se que os mesmos são pessoas em potenciais (no futuro, podem se transformar em
seres racionais e autoconscientes, se não houver um ato deliberado que atente contra suas vidas),
mas não são titulares dos direitos a que fazem jus as pessoas. No entanto, quanto ao pré-embrião
criopreservado, nem mesmo esse argumento se aplica. Basta ter presente que Singer adverte que se
o embrião não realiza o potencial, jamais virá ao mundo um ser humano concreto (1997, p. 104).
Como referido, Engelhardt é taxativo ao afirmar que não se poderia lançar mão da noção
de potencialidade para argumentar que embriões, fetos e bebês são pessoas em potencial e que,
por isso, precisam ter os mesmos direitos e posição que as pessoas em sentido estrito. Engelhardt
entende que nem ao menos os bebês têm potencialidade para se tornarem pessoas. Com muito
mais razão, essa assertiva aplica-se aos pré-embriões criopreservados.
Ainda que se entenda que o feto é pessoa em potencial, seguramente todos os argumentos
não se aplicam ao pré-embrião criopreservado: a eliminação de um pré-embrião in vitro não priva
o mundo de um ser racional e consciente de si mesmo (ainda que em potencial).
153
O óvulo fecundado in vitro não tem a mesma relevância jurídica e moral que um embrião
em processo de desenvolvimento in utero. Isso porque a possibilidade de sua integração à
comunidade como uma pessoa plena é mais distante, dependendo de atos externos (ato médico de
implantação, recepção pela mulher, inexistência de eliminação natural etc). Enfim, potencial é
uma realidade que não existe.
Todos esses argumentos parecem querer demonstrar o porquê da necessidade de
diferenciação quanto à proteção de uma “vida” e de uma “expectativa de vida”. Todos os pontos
de vista expostos pelos doutrinadores que defendem que o óvulo fecundado já marcaria o início
de uma vida humana estão fadados ao insucesso, porquanto só há um ser humano em estágio
primário após quatorze dias da concepção. Logo, a utilização de pré-embriões criopreservados
não pode contar com fundadas resistências.
Finalmente, ainda que alguns segmentos da sociedade manifestem a opinião de que a
teoria genético-desenvolvimentista não deve ser aceita como marco de proteção de uma nova
vida individual e insistam em advogar favoravelmente ao marco conceptivo, não se pode
desconsiderar que sem a implantação do ovo no útero (nidação) não há que se falar em vida
humana digna de proteção jurídica. Assim, o óvulo fecundado em laboratório não pode ser
considerado como marco inicial da vida humana, porquanto é a nidação que garante a sobrevida e
a viabilidade do ovo. Basta ter presente como funciona o Dispositivo Intra-Uterino, como
mecanismo de controle de natalidade: o efeito é acelerar a passagem do ovo pela trompa ou
“operar impediendo la fijación del produto de la fecundación en el útero.” (MARTÍNEZ, 1994, p.
98) Casabona esclarece que alguns desses métodos têm dupla função: impedem a fecundação ou
a implantação do ovo se já houvera fecundação (1994, p. 151). Assim, impõe-se aceitar a posição
doutrinária que estabelece a necessidade de implantação no útero para que reste caracterizada a
154
gravidez. Contrariamente, o uso de tal dispositivo e de determinadas pílulas, a exemplo da do
“dia seguinte”, que graças à sua ação impede a implantação do óvulo fecundado, deveriam ser
tipificados como crime de aborto, mas não o são, já que são considerados anticoncepcionais.
Martínez legitima tais práticas, visto que as leis da natureza admitem o controle da natalidade
como técnica de subsistência (1994, p. 98).
Ao encontro da teoria da nidação, traz-se o pensamento de Dworkin. Como visto no
primeiro capítulo, o autor defende o valor intrínseco e a inviolabilidade da vida humana desde o
seu “início”. Entretanto, para que possa ser assegurado o valor intrínseco e inviolável da vida
humana há que se chegar a uma resposta de quando começa essa vida (em que pese Dworkin
insistir em que esta não é a questão central da discussão proposta). Nesse viés, Dworkin fornece
fortes indicativos de que antes de quatorze dias da concepção não há que se falar em vida
humana. O autor concorda, como referido alhures, que a individualidade genética do feto se
estabelece se o mesmo é implantado com êxito no útero, geralmente depois de mais ou menos
quatorze dias a partir da concepção. Do exposto, se não existiriam razões para impedir o aborto
na fase que vai até os quatorze dias, por não haver ofensa ao valor intrínseco da vida humana,
como justificar a proibição da utilização de células-tronco embrionárias? Como defender que
existe “vida” a ser tutelada no pré-embrião antes de o mesmo ser implantado no útero?
Reportando-se aos argumentos de Martínez e Casabona, antes dos quatorze dias da
concepção cerca de 50% dos óvulos fecundados são perdidos em abortos espontâneos, sendo que
uma vez ocorrida a implantação, por volta do final da segunda semana após a concepção, a perda
reduz-se ao máximo em 20%. Diante de tal constatação, surgem fundadas dúvidas acerca da
existência de vida humana na fase de desenvolvimento que se segue até o final da implantação,
que, aliás, coincide com o início da formação da linha primitiva. Do exposto, questiona-se: se a
155
própria natureza encarrega-se de eliminar considerável número de óvulos fecundados, por que
cercear a atividade tecnocientífica quanto à utilização dos pré-embriões criopreservados, que
jamais atingirão o estágio de quatorze dias?
Em meio a acirradas discussões, Casabona traz uma distinção: o autor entende que a
proteção da vida humana inicia com a gestação, e não propriamente a vida humana inicia com ela
(1994, p. 138).
Entende-se que a Carta Magna (art. 5°, caput) garante o direito à vida, como direito
intangível e inviolável, a partir da implantação, da nidação, já que é omissa ao prever a proteção
desde o momento da concepção. De outra banda, poder-se-ia, também, sustentar a teoria natalista
e permitir o aborto, porquanto não há a presença de pessoa. Quanto à nidação, como marco da
individualidade humana, vide os argumentos colacionados em favor da teoria no primeiro
capítulo, ressaltando-se que sob a ótica jurídico-civil a proteção é conferida ao nascituro, ou seja,
aquele ser que se encontra intra-uterinamente.
Outra das questões-chave do presente trabalho diz respeito à dignidade da pessoa humana,
eis que vários segmentos da sociedade têm se manifestado contrariamente à utilização de célulastronco embrionárias em pesquisas e terapias sob a alegação de que tais práticas constituiriam
ofensas à vida e à dignidade humanas, principalmente. A partir da adoção da teoria genéticodesenvolvimentista como marco inicial de proteção jurídica da vida humana, a primeira alegação
não encontra fundamento. Resta analisar se a invocação do respeito à dignidade é motivo bastante
para se posicionar contrariamente à referida utilização.
O Filósofo da dignidade, Kant, quando disserta acerca da dignidade, é claro ao afirmar
que ela é um valor inerente às pessoas (sujeitos racionais e autolegisladores; fins em si mesmos e
156
não meios). Assim, a pessoa é fim em si mesma porque não tem preço, mas dignidade, e não
pode ser usada como meio para alcançar quaisquer fins.
Mas, afinal, quem é esse Ser a quem se chama de pessoa? Existe a possibilidade de
equiparação entre pessoa, nascituro e pré-embrião in vitro?
De forma bastante sucinta, em todos os sentidos do termo “pessoa”, não há argumentos
que forcem à tomada de posição em prol da equiparação pessoa-nascituro e muito menos pessoapré-embrião criopreservado, exceto na perspectiva da Igreja Católica, com algumas exceções,
como referido alhures, e na concepção ontológico-personalista, defendida por Sgreccia (a
equiparação deve-se ao fato da formação Católica do autor: atenta-se que Elio Sgreccia é
Arcebispo na Itália). E, no atual contexto de pluralidade, parece que as tendências-limite devem
ser suavizadas, já que não se pretende extingui-las.
Pegoraro sustenta que com a noção de pessoa em Santo Agostinho houve a primeira
absolutização da pessoa, na medida em que esta seria absolutamente independente do mundo
(2002, p. 59). E, questionando acerca da diferença existente entre esta nova maneira de ver o
homem como existência e a definição clássica de pessoa como substância individual, conclui: “a
pessoa como ser-individual é uma substância dada e plena desde a concepção; como serrelacional, a pessoa é, ontologicamente, aberta à convivência com o mundo.” (2002, p. 69)
A noção de pessoa como relação, que permaneceu na teologia, perdeu-se para a filosofia.
A respeito da pessoa humana prevaleceu a definição de Boécio (PEGORARO, 2002, p. 55).
Barchifontaine e Pessini afirmam que o conceito de pessoa em Boécio, como um indivíduo
subsistente numa natureza racional, é metafísico e foi elaborado na Idade Média pelos pensadores
cristãos (2002, p. 67). Como a definição de Boécio traz dois elementos caracterizadores, Pegoraro
os conceitua da seguinte forma: “indivíduo significa não-dividido (indivisum) de si: cada
157
individualidade é uma e única e distinta de todas as outras. Subsistência: cada indivíduo
subsistente é uma substância à qual aderem as realidades acidentais.” (2002, p. 60-61) O conceito
de substância “[...] deve ser entendido em sentido dinâmico: ela é centro de atividade, de
movimento e de tensão, particularmente no ser vivo e no ser vivo dotado de razão.” (SGRECCIA,
2002, p. 130)
O conceito de pessoa em Boécio enfatiza o requisito da racionalidade, imperante por
séculos desde sua formulação. Quanto à racionalidade, Casabona observa que o deficiente mental
não pode atuar conforme a razão, ao menos atualmente (1994, p. 143). Do exposto, entende-se
não se poder atribuir a embriões a característica da racionalidade, haja vista que nem mesmo
bebês recém-nascidos ostentam tal característica. Seria por demais arbitrário atribuir
racionalidade aos pré-embriões criopreservados, quando em tal situação até mesmo certos
animais apresentam muito mais capacidade, sentido de meio e inteligência.
Em continuação, Pegoraro assinala que ao longo de dois milênios vigorou o conceito de
pessoa como substância pensante, individual e auto-suficiente, conduzindo à dupla absolutização
do homem: uma teológica (com Santo Agostinho) e outra filosófica (com Kant) (2002, p. 63).
Consciente da necessidade de se alterar o conceito de pessoa, haja vista a existência de
convicções morais e éticas pluralistas, Pegoraro indica que a resposta pode ter sido dada pela
fenomenologia, que elaborou uma concepção de homem como ser re-lacional (2002, p. 63-64). A
pessoa, consoante o autor, é existência formada por um processo de relações que começa no seio
materno, amplia-se na família, na cultura e na política, ao longo de toda a existência (2002, p.
64). Nesse viés, Pegoraro disserta que a pessoa não é simplesmente um fato biológico, nem uma
substância dada plenamente desde a concepção. Para a fenomenologia, o ser humano nunca acaba
de se construir, eis que é sempre um vir-a-ser (2002, p. 64). “A pessoa, como existência
158
relacional e potencial, transcende sua realidade psicossomática pela abertura aos outros, ao
mundo natural e tecnocientífico.”(PEGORARO, 2002, p. 56)
Enfim, Pegoraro posiciona-se acerca do conceito de pessoa e sua relação com a dignidade
humana:
A pessoa é um ser aberto ao mundo, não só porque é capaz de entendê-lo, mas
também porque é um ser carente, necessitado, incompleto que vai se completar
na convivência com todos os outros seres naturais e artificiais produzidos pela
tecnociência. Eis o que faz a dignidade humana. A pessoa é insubstituível
porque é o único ser portador da luz da inteligência e da liberdade [...].
Insubstituível e sempre inegociável, por isso a pessoa é a referência central da
ética, princípio vivo da ética cósmica, isto é, abrangente de todos as realidades.
(2002, p. 26-27)
Com tal posição, percebe-se que os requisitos identificadores não se aplicam ao préembrião criopreservado, tampouco ao nascituro ou ao feto, mormente quando se evidenciam os
sentidos de relação, inteligência e liberdade.
Ao encontro do acima exposto, enfatizando o aspecto relacional como elemento
caracterizador da pessoa, Casabona esclarece:
El concepto de persona, de persona moral, en cuanto ser pensante y conjunto de
predicados de diferente contenido [...] ha de favorecer una mejor captación
global del hombre como ser vivo en su individualidad, identidad y autenticidad
y como ser trascendental en relación con otros seres. (1994, p. 147)
Nesse viés, Bellino posiciona-se no sentido de que a pessoa não se reduz a um dado
biológico, enfatizando o processo de relação. Transcreve-se seu pensamento:
Sendo pessoa o volume total do homem (corpo, psique, espírito) e sendo seu
estatuto onto-axiológico relacional, não é só o momento biológico que confere o
estatuto da pessoa, mas um ato de vontade explícita de um você. É no contexto
das relações, no ser querido, desejado, amado pelo outro que se personaliza o ser
humano. O respeito e a dignidade não são só fundados em algumas peculiaridades
159
características das quais é dotado o ser vivo (homem ou animal), mas, sobretudo,
sobre o valor atribuído por quem o ama e que o deseja e que estabeleceu com ele
uma relação. Não só é preciso postular o valor intrínseco do ser, do mundo, da
pessoa – se o ser não tivesse um valor, quer dizer, não tivesse uma razão e um
sentido, seria só um nada, porque não teria nem mesmo a razão de ser – , mas é
preciso também o reconhecimento desse valor [...]. (1997, p. 135)
Denota-se que Bellino não defende a equivalência entre os termos “homem” e “pessoa” e
enfatiza o processo de relações para a personalização do ser humano. Ademais, entende que o
valor que se dá à vida (seja do homem ou da pessoa) provém de quem a ama e de quem
estabeleceu com essa vida uma relação. Se a relação é pressuposto necessário à personalização,
então o valor da vida da pessoa também é atribuído por quem ama e deseja essa pessoa. E, no
plano da presente investigação, há que se salientar que pré-embriões in vitro não estabelecem
relação alguma com a mãe ou com a sociedade, eis que, para efeitos legais e biológicos, não são
considerados nascituros. Assim, como o próprio autor afirma, os genitores, ou seja, os que
poderiam amá-lo, têm o poder de valorar essa vida, vida essa que, se de fato merecer proteção,
embora com isso não se concorde, não pode ser equiparada à vida de uma pessoa, porquanto não
se vislumbra a existência de uma pessoa.
Posição semelhante é a adotada por Minahim, ao sustentar que ser pessoa demanda a
possibilidade de consciência de si próprio e do mundo onde vive, e com o qual é capaz de
estabelecer relações (2005 p. 212).
Dworkin, ao refletir acerca do aborto, posiciona-se no sentido de que os fetos não são
pessoas constitucionais106, pois se acaso fossem os estados “devem” proibir o aborto em algumas
circunstâncias (2003, p. 151-152). E completa: “se o feto é uma pessoa a partir do momento de
106
A Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos determina que nenhum estado negará a nenhuma
pessoa a igual proteção da Lei. Com base nessa Emenda, Dworkin conclui que o feto não pode ser tratado como
pessoa à luz da Constituição norte-americana (2003, p. 151).
160
sua concepção, o estado não teria nenhuma justificação para permitir o aborto em termos gerais e
proibir que, em circunstâncias fatais, os bebês fossem mortos ou abandonados.” (2003, p. 153)
Há que se ter presente que a conclusão de que fetos não são pessoas aplica-se com muito mais
razão aos pré-embriões, notadamente os criopreservados.
Em sentido jurídico, como visto quando da análise da teoria da nidação, conclui-se que a
figura da pessoa só surge a partir do nascimento com vida, ao encontro do que preconiza a teoria
natalista, não existindo equiparação entre nascituro e pessoa e muito menos entre pré-embrião
criopreservado e pessoa, visto que tampouco existe equiparação entre nascituro e pré-embrião in
vitro quanto à proteção dos seus direitos.
Um pré-embrião não tem os mesmos direitos que um feto de três meses, assim como esse
feto não tem os mesmos de um recém-nascido. Isso demonstra que são poucas as legislações que
protegem os pré-embriões criopreservados, sendo que algumas permitem o aborto em situações e
prazos pré-definidos e são raríssimas as que não tipificam como crime o infanticídio. Tais
observações demonstram que as obrigações morais e a tutela jurídica não podem ser as mesmas
em se tratando de situações completamente diferentes.
Não se advoga em favor da unicidade conceitual entre ser humano e pessoa, pois não há
que se olvidar que a vida humana é portadora de dois sentidos: o pessoal e o biológico. A pessoa
é muito mais do que um indivíduo biologicamente considerado, eis que se diferencia sob o
prisma do seu valor (plano axiológico), sendo portadora de valores que cabe ao Direito avaliar e
proteger, não desconsiderando a tutela que é estendida ao nascituro. Nesse sentido, Bernard
afirma que a noção de pessoa não pode ser reduzida a um dado biológico (1994, p. 158-159). Do
exposto, quem detém o sentido pessoal também é titular do biológico; entretanto, a recíproca não
é verdadeira, visto que, em certos casos, o vínculo entre ambos os sentidos poderá não existir.
161
A difícil e complexa discussão acerca da extensão do conceito de pessoa não comporta
maior argumentação, porquanto se entendeu não existir nem ao menos vida biológica a ser
tutelada no pré-embrião congelado. O que se visa a demonstrar é quem são os titulares do valor
da dignidade.
Retornando-se à noção de dignidade em Kant, necessário concluir que o termo “pessoa”
está umbilicalmente interligado ao exercício da racionalidade. Como referido, a racionalidade é a
base de toda a teoria kantiana. Basta ter presente que para Kant as pessoas e, de modo geral, todo
“ser racional” devem ser considerados como fins em si mesmos e não como meios para este ou
aquele objetivo. Logo, pode-se concluir que quem não exerce o atributo da racionalidade não é
considerado pessoa e não tem valor absoluto como fim em si mesmo (e nisso consiste sua
dignidade).
Ainda que se possa advogar que a razão é estrutura inata, isto é, que não é adquirida
através da experiência, há que se ter presente que Kant entende que a razão é a estrutura da
consciência. Logo, embora alguns defendam que a pessoa estaria presente muito antes do
nascimento, enfatiza-se a inexistência de consciência, ainda que demasiadamente primitiva, no
pré-embrião criopreservado e, em geral, nas primeiras etapas de desenvolvimento do zigoto.
Certo é que a racionalidade, como manifestação de capacidades e funções físicas e mentais, não é
da ótica do tudo ou nada, visto que manifestável em graus máximos, em alguns casos, e mínimos,
noutros. No entanto, a mínima manifestação não aparece no pré-embrião congelado, já que não
tem capacidade de ativar a sua racionalidade, ainda que de forma incipiente. Ademais, deve ser
levado em consideração o termo utilizado por Kant: o filósofo refere-se às “ações”, ou seja, que a
pessoa, tanto em suas ações como nas que se dirigem contra ela, deve ser tratada como fim e
nunca como meio. Do exposto, parece não se poder sustentar que o sentido de ação, vinculado à
162
idéia de conduta positiva, molda-se à peculiar situação dos pré-embriões criopreservados. Parece
que essa constatação não só exclui embriões, mas também fetos, seres humanos em coma,
deficientes graves e irreversíveis etc, porquanto nesses casos peculiares o sentido de ação ou
ainda não existe, ou se perdeu.
A dignidade Kantiana seria um valor acima de qualquer preço. Pode-se extrair do respeito
pela dignidade humana individual somente a proibição de usar a pessoa apenas como meio.
Assim, conclui-se que a dignidade em sentido kantiano é atribuível a seres racionais autônomos,
autolegisladores, com valor absoluto frente a outros seres, ou seja, é um valor inerente às pessoas.
Pode-se estabelecer o seguinte silogismo:
1ª premissa: a dignidade, fundamentada na autonomia, é um valor inerente às pessoas;
2ª premissa: pré-embriões não são pessoas e tampouco são autônomos;
Conclusão: logo, pré-embriões não são titulares do valor da dignidade, eis que lhes faltam
os requisitos que fundamentam a dignidade.
Do exposto, é a personalidade que dá aos homens a sua dignidade, que os distingue das
coisas e lhes torna pessoas. Portanto, a noção de ser humano antecede a de pessoa.
Lepargneur afirma que a dignidade sempre se relacionou com o conceito de pessoa
(1996a, p. 177). Logo, entende-se que em não havendo pessoa, o valor da dignidade resta sem
titularidade.
Como visto alhures, Dworkin sugere que o direito de uma “pessoa” a ser tratada com
dignidade “é o direito de que os outros reconheçam seus verdadeiros interesses críticos: que
reconheçam que ela é o tipo de criatura cuja posição moral torna intrínseca e objetivamente
importante o modo como sua vida transcorre.” (2003, p. 337) O autor conclui que a dignidade é
163
um aspecto central do valor examinado em toda a sua obra, ou seja, a importância ou valor
intrínseco de qualquer vida humana. A crítica que se pode estabelecer é que, além de o autor
enfatizar o termo “pessoa” como titular do direito à dignidade, o mesmo não atribui o início da
vida humana com a concepção, mas somente em torno de quatorze dias depois da concepção.
Logo, antes desse lapso temporal não se poderia defender a importância intrínseca e a
inviolabilidade da vida humana, como bases da dignidade. Ademais, pergunta-se: o pré-embrião
criopreservado é o tipo de criatura cuja posição moral torna intrínseca e objetivamente importante
o modo como sua “vida” transcorre, mormente quando os genitores não têm interesse em
implantá-lo para o fim de gerar uma vida plena? As únicas pessoas que poderiam entender que a
“vida” do pré-embrião tem um valor intrínseco a ser preservado são os genitores e, no caso de
haver o consentimento para que o pré-embrião seja utilizado, não há que se indagar acerca da
importância intrínseca daquele “ser”. A decisão sobre tal importância pertence aos genitores.
Ainda que se entenda que assiste razão a Dworkin de que a dignidade está vinculada
diretamente ao valor intrínseco da vida humana (e não propriamente da pessoa humana), vale
lembrar que não há “vida para ser vivida com dignidade” no pré-embrião criopreservado, se o
mesmo não for implantado no útero. Não há que se preocupar em proteger o valor intrínseco da
vida quando ela se reduz em mera expectativa. Se for admitida a vinculação dignidade-vida, em
não havendo vida não há dignidade e, logo, a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa
e terapia não viola o bem da vida e o valor da dignidade tutelados pela Constituição Federal.
Embora Dworkin advogue em favor da garantia de um direito à dignidade aos pacientes
demenciados graves, sob a alegação de os mesmos ainda não terem perdido o status de pessoa,
não menciona a situação dos pré-embriões criopreservados. Diante de tal lacuna, entende-se ser o
caso típico de “algo” que nunca adquiriu consciência ou capacidade de autodeterminação, de
164
modo que tais pré-embriões não estariam incluídos no rol de seres humanos ao qual a dignidade
deve ser reconhecida.
Por derradeiro, Dworkin reporta-se ao princípio kantiano segundo o qual as pessoas
devem ser tratadas como fins, nunca simplesmente como meios, querendo manifestar a posição
de que as pessoas nunca sejam tratadas de forma que se negue a importância evidente de suas
próprias vidas. A teoria de Kant é a que mais se amolda à posição que estabelece uma relação
entre pessoa e racionalidade, autolegislação. Assim, não se concorda que, a partir do princípio
kantiano supra, se possa alargar o discurso aos casos onde, evidentemente, não se pode sustentar
a existência de uma pessoa e nem ao menos de uma vida digna de proteção jurídica. Não se trata
de convenção, mas de distinção valorativa: de um lado, há uma pessoa; de outro, uma expectativa
de vida humana plena.
Habermas, ao posicionar-se acerca da dignidade, entende que ela não é valor inerente à
natureza humana e enfatiza o processo de relação. Nesse viés, o autor afirma que a dignidade não
é uma propriedade que se pode possuir por natureza, como a inteligência ou os olhos azuis. Ela
marca aquela intangibilidade que só pode ter um significado nas relações interpessoais de
reconhecimento recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas, conclui o autor.
Entende-se que o termo “intangibilidade” resulta das relações interpessoais marcadas pelo
respeito e consideração recíprocos, sendo que a dignidade no sentido proposto por Habermas não
seria um valor inerente à pessoa, num sentido individualista kantiano, mas deve ser compreendida
a partir de uma perspectiva relacional, que estabelece um vínculo (ligação) entre as pessoas.
Considerando que Habermas esteja certo ao enfatizar as relações como fundamento da
dignidade, a pergunta que emerge é: qual a relação, vínculo existente entre o pré-embrião
165
criopreservado e o seu entorno, notadamente quando os genitores não têm interesse na
implantação? A resposta mais adequada parece ser a de que não há relação alguma.
No entanto, Habermas diferencia “dignidade da vida humana” da “dignidade humana”,
garantida juridicamente a toda pessoa, e manifesta-se no sentido de que a vida humana prépessoal também desfruta de dignidade e exige respeito. Há que se ter presente que o autor não
identifica a partir de que momento a vida pré-pessoal é titular de dignidade, não se podendo
alargar o discurso à peculiar situação do pré-embrião criopreservado.
Beck questiona se a ética da genética humana é uma ética sem sujeito. Mas, o que seria
uma ética sem sujeito? O autor responde: “na minha opinião, ela é um quadrado redondo, um
baio preto, pois o que está no centro são justamente as substâncias, que não apresentam nenhuma
qualidade de sujeito.” (1998, p. 46)
Em continuação, Beck indaga se a ética, que tradicionalmente pressupõe um sujeito, pode
ser efetivamente aplicada às questões da genética humana (1998, p. 47). Embora não forneça
indicativos de resposta, no viés da presente investigação a ética aponta para o sentido da
dignidade humana e a necessidade do seu reconhecimento. A dignidade tem como titular o
sujeito, a pessoa, embora alguns defendam o seu alargamento ao gênero humano. Beck afirma
que a ética sem sujeito não existe, eis que as substâncias, desprovidas da qualidade de sujeito,
ocupam posição central. Poder-se-ia sustentar que a condição dos pré-embriões in vitro, traduzida
em um aglomerado de células indiferenciadas, amolda-se às substâncias a que o autor refere-se.
Do exposto, não se advoga que os imperativos éticos, mormente o do respeito pelo valor da
dignidade, devam ser dirigidos ao pré-embrião mantido em laboratório, porquanto não é sujeito e
não tem a potencialidade de ser sujeito, enquanto não for implantado no útero.
166
A posição de Habermas no tocante à necessidade de “atribuir” um grau de dignidade a
seres que não são pessoas vem ao encontro da “ascrição” proposta por Lepargneur. Entende-se
que ambas as teorias acertariam se tentassem atribuir um grau de respeito a seres humanos que
não são pessoas, porque pertencem à natureza humana, mas falham na tentativa de atribuir
dignidade ao pré-embrião congelado. Defende-se ser compatível atribuir certo grau de respeito (e
não a extensão da dignidade como valor inerente às pessoas) aos embriões implantados (com a
ressalva dos quinze dias de concepção) e fetos, mas não aos criopreservados. Se aquele que
detém dignidade jamais pode ser utilizado como meio, então o aborto não poderia ser permitido
em qualquer situação, visto que a dignidade do embrião não pode estar subordinada ao livre
arbítrio da mãe. A dignidade não é valor que deva ser “atribuído”: as pessoas têm dignidade pelo
fato de serem pessoas e não pelo fato de uma teoria ter atribuído dignidade a elas. A dignidade
não admite mais ou menos, não é proporcional, é um valor que se tem ou não. E, pré-embriões
não são titulares desse valor: a pesquisa e terapia podem convertê-los em meios. Ademais, o
reconhecimento jurídico da dignidade não é compatível com a potencialidade de pessoa: a noção
de dignidade própria e diferenciada da pessoa somente e necessariamente é da pessoa (real).
Como a teoria da ascrição foi abordada no presente trabalho a partir de Lepargneur,
necessário tecer algumas considerações. Consoante visto, o autor insiste em atribuir dignidade a
seres que não ostentam as características de pessoa. Sem embargo, defende, como o faz Kant, que
a autonomia é o fundamento da dignidade. Outrossim, em diversas passagens, o autor enfatiza o
exercício da racionalidade como espelho da dignidade, por assim dizer. Veja-se: “a dignidade
serve para pôr em ação o nosso atributo natural mais eminente, a razão, até para corrigir as falhas
de outros componentes da natureza, de nossa natureza.” (1996a, p. 188)
167
Como argumentado alhures, o pré-embrião criopreservado não é racional em qualquer
sentido invocado, visto que nem mesmo o embrião e o feto o são.
A ordem jurídico-positiva apenas reconhece a dignidade como qualidade intrínseca da
pessoa humana, como princípio fundamental, como dado essencial da construção jurídiconormativa, mas não a concede. Do exposto, o ordenamento jurídico não pode “conceder”, ou
“atribuir”, ou “constituir” a dignidade pessoal a seres que não são titulares dessa qualidade. Fruto
de larga evolução, o reconhecimento da pessoa como sujeito de dignidade e titular de direitos
inatos, inalienáveis e imprescritíveis é elemento fundante da ordem jurídica brasileira atual,
sendo que o Estado e a comunidade científica devem respeito.
Ainda que a teoria da ascrição seja interessante, há que se ter presente que a mesma é uma
construção teórica de alguns pensadores pela aproximação que muitos intuem com a “vida” nos
primeiros estágios de desenvolvimento e, pelo fato de ser uma construção, jamais conferirá a
extensão que detém a dignidade enquanto valor que identifica a pessoa como tal. Ademais, se
fosse “atribuída” dignidade aos embriões, com muito mais razão essa mesma dignidade deveria
ser atribuída aos animais, notadamente os superiores, pelo exercício de certas habilidades e
características “humanas” que não são visualizadas no pré-embrião, a exemplo do que preconiza
a tese de Singer107, baseada na atribuição de direitos aos animais e críticas ao especismo108.
Assim, a teoria da ascrição nada mais é do que uma pálida tentativa de atribuir dignidade
a seres que efetivamente não a possuem.
107
SINGER, Peter. Ética prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Vide p. 65150, especialmente.
________. Repensar la vida y la muerte: el derrumbe de nuestra ética tradicional. Trad. Yolanda Fontal Rueda.
Barcelona: Paidós, 1997. Vide p. 179-205, especialmente.
108
Consoante Singer, o especismo visa a atribuir maior peso aos interesses dos membros de sua própria espécie e
menos aos interesses dos que pertencem a outras espécies (1998, p. 68).
168
Não se comunga com o pensamento dominante da Igreja Católica quanto ao conceito de
pessoa e tampouco quanto à correlação que estabelece com o valor da dignidade. Assim, a posição
que sustenta a necessidade do reconhecimento da dignidade da pessoa em todo ser humano, indo
da concepção à morte, como um ser com consciência, de corpo e alma, não parece ser aceitável, a
menos que se recorra à teoria da ascrição, com todas as objeções que se apresentaram à mesma.
Consoante Fukuyama, o Fator X, que reflete o valor da dignidade humana, está
relacionado com a própria complexidade e as interações complexas de características
singularmente humanas, como a escolha moral, a razão e a gama de emoções normais partilhadas
pelos seres humanos. Assim, com base na interação dessas características, o autor baseia a sua
noção de dignidade. Mas, então, pergunta-se: essa complexidade humana existe no pré-embrião
criopreservado? A resposta é seguramente negativa. Considerando que embriões e fetos não
dispõem nem ao menos das características humanas citadas pelo autor, haja vista que são
incapazes de fazer escolhas, não exercem o atributo da racionalidade e não são passíveis de
vivenciar qualquer tipo de emoção (seja boa ou má), porquanto isso só é possível após o
nascimento, muito menos haverá relação entre características inexistentes.
Como visto alhures, Fukuyama comenta que a prolongada discussão da dignidade humana
pretende responder à seguinte pergunta: o que é que se quer proteger contra quaisquer avanços
futuros na biotecnologia? A resposta é: queremos proteger toda a extensão de nossas naturezas
complexas, evoluídas, conclui o autor. Como referido, não há natureza complexa e muito menos
evoluída no pré-embrião. Logo, a posição de Fukuyama vem ratificar que a dignidade, ou, então,
o Fator X, é um valor inerente às pessoas, sendo que os pré-embriões não são pessoas e nem ao
menos a tese da potencialidade aplica-se aos criopreservados.
169
Ainda que Sarlet defenda que o embrião encontra-se protegido em sua dignidade, parece
que a sua posição vai de encontro com a própria noção de dignidade, insistentemente referida
como valor inerente a toda “pessoa”, reportando-se à noção clássica da dignidade kantiana. E, ao
se analisar o conceito de pessoa em sentido kantiano, seguramente não se pode estabelecer
correlação com os embriões e muito menos com os pré-embriões. Ademais, Sarlet refere que a
autonomia, como fundamento da dignidade kantiana, é considerada em abstrato, como sendo a
capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo
da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto. Consoante referido, pré-embriões
criopreservados não têm a capacidade potencial a que Sarlet refere-se, a menos que haja
implantação, desenvolvimento dessa vida e nascimento. As conclusões acerca da autonomia serão
tomadas ao final do presente capítulo.
Em vários momentos, Sarlet emprega como equivalentes os termos “pessoa” e “ser
humano”. Para isso, basta reportar-se ao conceito jurídico de dignidade proposto pelo autor, em
que mescla os dois termos com a intenção clara de proteger a dignidade da vida humana em um
estágio em que não se pode vislumbrar a presença de uma pessoa. Se tais termos forem
entendidos como sinônimos, então se poderia defender que a dignidade é a qualidade intrínseca e
distintiva reconhecida em cada ser humano. Sem embargo, defende-se que o termo “ser humano”,
titular de proteção jurídica, é aplicável no caso de embriões implantados há mais de quatorze dias
da concepção, mas jamais aos pré-embriões criopreservados. É possível utilizar o mesmo
raciocínio para dirigir algumas críticas ao pensamento de Junges, quando o mesmo defende a
dignidade como valor inerente ao ser humano.
170
Minahim traz o pensamento de Zypries, Ministra da Justiça alemã, que declara, mesmo
inserida em um sistema jurídico que proíbe a pesquisa com células-tronco embrionárias e, de
modo geral, todas as pesquisas com embriões:
Enquanto o embrião se encontra na proveta, falta-lhe uma condição essencial
para que possa desenvolver-se, por si mesmo, como um ser humano ou até se
transformar num ser humano. A possibilidade, meramente abstrata, de que ele
continue se desenvolvendo neste sentido não basta, na minha opinião, para que
lhe seja reconhecida dignidade humana. (2005, p. 98)
Ademais, não há que se olvidar que o sentido de pessoa na perspectiva jurídico-civil está
umbilicalmente interligado com a personalidade e esta, conforme defende a teoria de maior
expressão, inicia do nascimento com vida. Assim, quando a Constituição Federal109 consagra o
princípio da dignidade da “pessoa” humana como fundamento do Estado Democrático de Direito
parece não se referir à dignidade como valor lato sensu, mas apenas strictu sensu, como valor a
que faz jus a pessoa ou, quiçá, o nascituro, mas não pré-embriões. Ter-se-ia que modificar o
próprio sentido do termo pessoa para que o valor da dignidade albergasse outros estágios da vida
humana.
Em que pesem os argumentos acima colacionados, Sarlet admite, em suas considerações
finais, que a dignidade da pessoa humana está ligada à própria condição humana e, portanto,
trata-se do valor intrínseco reconhecido às pessoas no âmbito das suas “relações intersubjetivas”
(2004, p. 143), a exemplo do que prega Habermas, o que derruba por terra a tentativa de alargar a
proteção da dignidade à vida em estágios em que não se pode defender a presença de uma pessoa.
109
Sarlet, alertando para o fato de não se poder confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade
humana (da humanidade), haja vista que a dignidade constitui valor da pessoa considerada individualmente e não de
um ser abstrato ou ideal, afirma que a Constituição Brasileira acolheu a distinção supra, consagrando o princípio da
dignidade da “pessoa” humana e não da dignidade humana entre os seus princípios fundamentais (2005, p. 118).
171
Se for entendido que a dignidade é um valor que atrai ou fundamenta todos os direitos
fundamentais, em não havendo dignidade não há mais nenhum direito a fazer valer, principalmente
o direito à vida. Parte-se da idéia de que o acessório não sobrevive sem o principal.
Nunes afirma que a dignidade nasce com a pessoa, sendo inerente à sua essência (2002, p.
49). E ratifica: “a dignidade humana é um valor preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem
dignidade só pelo fato já de ser pessoa.” (2002, p. 52) Conclui-se que a pessoa é digna pelo
simples fato de ser pessoa, não sendo exigido nenhum requisito adicional. Rocha conceitua
dignidade como sendo o “coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana.” (1999, p. 32)
Muitas das reflexões filosóficas sobre a pessoa humana desde a Antigüidade tiveram seu
ápice na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e confirmada pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem da ONU110, de 1948. Após a Segunda Guerra Mundial, a
pessoa passou a ser considerada como portadora de interesses próprios, em âmbito nacional e
internacional, e não mais como mero objeto de utilidade do Estado. O progressivo
reconhecimento dos direitos humanos no direito internacional fez surgir um grande princípio
constitucional da ordem internacional: a dignidade de toda pessoa. Nesse sentido, o respeito pela
dignidade humana é freqüentemente entendido como uma tentativa de pôr em prática os direitos
do homem, bem como os previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Atenta-se
ao que dispõe a parte inicial do preâmbulo111 e art. 1º da referida Declaração: “todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns
110
Em 9 de dezembro de 1975, a Organização das Nações Unidas proclamou, também, a Declaração dos Direitos das
Pessoas Deficientes, dispondo em seu art. 3° que “as pessoas deficientes têm direito inerente de respeito por sua
dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências,
têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito
de desfrutar uma vida decente, tão normal e plena quanto possível.”
111
A parte inicial do preâmbulo é assim enunciada: “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a
todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo;”
172
para com os outros em espírito e fraternidade.” Quando a Declaração enfatiza os atributos da
razão e consciência vem ao encontro das premissas da doutrina kantiana no que concerne à
dignidade e, como visto, somente as pessoas são portadoras das características da racionalidade e
consciência. Embora o art. 1º da Declaração refira-se a “homens”, há que se entender como
sinônimo de “pessoas”. Seguramente, a Declaração dos Direitos do Homem não se fundamenta
nos conhecimentos da embriologia para proclamar que os homens nascem iguais em direitos.
Assim, o elemento essencial da dignidade da pessoa humana parece continuar residindo na
autonomia e no direito de autodeterminação de toda pessoa, ao encontro do que defende Kant.
Como referido por Rocha, a inserção do princípio da dignidade da pessoa humana nos
sistemas constitucionais positivos, com o sentido em que agora é ele concebido, tem como
pressupostos a integridade e a inviolabilidade da pessoa humana pensada em sua dimensão
absoluta, muito além da mera existência biológica (ROCHA, 1999, p. 30).
O Estado deverá ter como meta permanente a proteção e a efetivação de uma vida com
dignidade para todos, haja vista que o próprio princípio da dignidade impõe limites à atuação
estatal. Sem embargo, em não havendo dignidade, o dever desaparece, sendo que as entidades
privadas (mormente as vinculadas às atividades tecnocientíficas) também se isentam desse dever.
Do exposto, embora seja possível identificar um movimento no sentido de assegurar o
respeito à dignidade humana a pré-embriões, embriões e fetos, a análise conjunta dos argumentos
colacionados no presente e nos outros capítulos tende a conduzir à conclusão de que a dignidade
é valor cujo titular é a pessoa. Embora se reconheçam respeito e proteção ao nascituro, insiste-se
que o pré-embrião in vitro não é titular da proteção jurídica e do valor da dignidade humana.
Por derradeiro, a autonomia dos genitores é legítima para o fim de determinar o destino
dos pré-embriões excedentes, que, como afirmado, conduz à eliminação dos mesmos quando
173
utilizados na pesquisa e terapia? Em todos os sentidos de autonomia, desde Kant, passando pela
bioética até o sentido jurídico, não se encontrou fundamentação capaz de sustentar a posição de
que os pré-embriões têm direitos a preservar frente à autonomia dos genitores.
Kant advoga que a autonomia é o fundamento da dignidade humana; logo, em não
havendo autonomia (porque o pré-embrião não é autolegislador, não possui livre arbítrio)
tampouco há dignidade: pré-embriões podem ser utilizados como meios para objetivos alheios.
Dworkin entende que os pacientes gravemente demenciados não têm qualquer direito à
autonomia, nem mesmo invocando a concepção mais plausível, que tem por base a integridade
(2003, p. 322). Embora as situações evidentemente não se confundam, não há dúvidas de que
também não há no pré-embrião ou no embrião. Tampouco se poderia invocar a autonomia futura
de uma “futura pessoa”, quando essa futura pessoa é apenas um pré-embrião criopreservado.
Quando se analisou o princípio do respeito à autonomia em sentido bioético, questionouse acerca do conflito entre os princípios da beneficência e autonomia e a possível priorização de
um frente ao outro. O modelo tradicional de beneficência pode ser traduzido na máxima de ajudar
o paciente ou, ao menos, não causar dano a ele (não-maleficência). Sem embargo, em se tratando
da priorização da beneficência112 do pré-embrião frente à autonomia dos genitores parece que não
há beneficência a ser garantida, ou seja, não existem interesses fundamentais a serem protegidos.
Atenta-se para a seguinte situação: em não existindo nenhum projeto parental por parte dos
genitores e também inexistindo intenção por parte deles de doar esse(s) pré-embrião(ões)
criopreservado(s) a algum casal ou usuária infértil, qual é o interesse fundamental do pré-embrião
criopreservado? Qual é o benefício a ser priorizado? Será que o melhor interesse do pré-embrião
112
Consoante Dworkin, a beneficência pode ser entendida como o direito a que as decisões do paciente sejam
tomadas tendo em vista proteger seus interesses fundamentais (2003, p. 320). Outrossim, o autor ratifica que quando
se confia uma pessoa aos cuidados ou à tutela de outra, a primeira teria um direito à beneficência, ou seja, “um
direito a que a segunda tome decisões que favoreçam seus interesses fundamentais.” (2003, p. 326)
174
seria o desaparecimento natural por perda de sua capacidade de desenvolvimento, eis que o
mesmo não poderá ficar criopreservado eternamente? Parece que deixar que o pré-embrião
desapareça por perda da capacidade de desenvolvimento não significa garantir seus interesses e,
logo, sua beneficência. A única beneficência a ser priorizada seria no caso de existir projeto
parental ou intenção de doar o pré-embrião para a satisfação do direito de procriar. Se inexistir
quaisquer dessas intenções (porque a responsabilidade dos pais não os obriga a implantar o préembrião e tampouco doá-lo), a autonomia dos genitores deve ser priorizada.
A partir da importância de que se reveste o princípio da autonomia nas atuais sociedades
democráticas, Casabona assinala que se pode sustentar que o princípio de liberdade e autonomia é
o núcleo de todos os direitos humanos (1994, p. 37).
Concorda-se que “pessoas” com autonomia reduzida devem ser protegidas contra
atentados que possam lhes afetar a vida, a integridade física, a dignidade etc. Entretanto, em se
tratando de pré-embriões, comunga-se com Engelhardt de que são os genitores quem atribuem
valor ao embrião (seja positivo ou negativo). Ademais, não há que se olvidar da beneficência em
relação à humanidade quanto ao uso de pré-embriões na pesquisa e terapia com células-tronco,
inserida no contexto da cura de doenças, prolongamento da vida e mitigação do sofrimento. Criar
barreiras intransponíveis ao uso de pré-embriões na pesquisa é atravancar o avanço da ciência,
com todos os prejuízos e retrocessos que isso representa. Nesse viés, a proteção à saúde, como
direito fundamental, tem sede Constitucional: trata-se de direito social (art. 6°, caput, CFB/88).
Outrossim, no art. 196, a Carta Magna define a saúde como direito de todos e dever do Estado,
garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação. O art. 199, § 4°, CFB/88, por seu turno, prevê que a lei disporá acerca das condições
e requisitos facilitadores da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de
175
transplante, pesquisa e tratamento. Ademais, a Declaração dos Direitos Humanos e da
Organização Mundial da Saúde (OMS), fundamentada no direito do cidadão à saúde e na
obrigação do Estado na sua promoção, centra-se na preocupação com a conservação, proteção e
melhoria da vida humana. Logo, toda posição que vem de encontro à promoção, proteção e
recuperação da saúde deve ser analisada com reservas e, de certo modo, desencorajada.
Ainda que não se trate propriamente do embate entre autonomia e beneficência, Casabona
traz o conflito entre a sacralidade e a qualidade da vida humana: embora apresente variantes, o
princípio da qualidade da vida, em síntese, parte da idéia de que a santidade113
es un valor relativo, y como tal sólo existe mientras se mantenga en la persona
un cierto nivel de “calidad”, o no excluida a priori de toda ponderación de
intereses, centrados en la capacidad del individuo de sostener autoexperiencia y
relación o comunicación con los demás, o de asumir los propios actos. (1994, p.
41)
Quanto ao conflito supra, Junges, referindo-se à vida antes do nascimento, posiciona-se:
“lutar pela defesa da vida intra-uterina e não se interessar, ao mesmo tempo, pelas condições em
que viverá esse ser, uma vez nascido, é uma contradição e incoerência.” (1999, p. 114) Nesse
viés, evidenciando a preocupação com as condições de vivência digna, o autor conclui: “a
sacralidade ou a qualidade da vida não são dois princípios que se excluem.” (1999, p. 115)
Do mesmo modo, entende-se que defender a vida do pré-embrião in vitro e deixar que ele
perca a capacidade de desenvolvimento (pereça) pelo excesso de prazo de criopreservação,
quando não há nenhum projeto parental, é uma contradição e incoerência, principalmente se
forem levados em consideração os benefícios possibilitados pela aplicação de células-tronco
113
O princípio da santidade vincula-se a uma concepção biológica da vida humana como processo físico-biológico,
sem consideração a eventuais deficiências físicas nem às concretas capacidades humanas, e é o que, geralmente,
serve de referência principal ou exclusiva ao Direito (CASABONA, 1994, p. 40).
176
embrionárias na melhoria da saúde humana em geral, notadamente no tratamento de doenças hoje
incuráveis. Esses motivos constituem razões bastantes para tornar a pesquisa ética e
juridicamente aceitável.
Voltando-se à análise da autonomia, Varga afirma que “fetos não podem manifestar seu
consentimento porque desconhecem o objeto de seu consentimento.” (2001, p. 70) E, com muito
mais razão, esta assertiva aplica-se aos pré-embriões e embriões.
Pré-embriões criopreservados não têm direitos e autonomia a fazer valer contra seus
genitores. Aqueles não são capazes de atos ou ligações afetivas que lhe poderiam atribuir valor. A
valoração e o destino a ser dado aos mesmos dependem diretamente de quem é responsável por
eles. Enfim, os genitores (como pessoas autônomas114) são os juízes finais. Sem embargo, não se
quer afirmar que a liberdade dos genitores seja ilimitada. A partir do momento em que se
entendeu iniciar a proteção à vida de um novo ser humano, a autonomia dos pais resta limitada às
normas legais proibitivas: se atentarem contrariamente à vida embrionária após o décimo quarto
dia
da concepção, então terão praticado a conduta típica e ilícita prevista na lei penal,
considerando não estarem amparados por uma das excludentes de ilicitude previstas no Código
Penal (art. 128, I e II). Entretanto, não pode ser excluída a possibilidade de a lei penal ser revista,
sendo permitidas outras excludentes de ilicitude, além das já previstas.
114
A única autonomia a ser perquirida é a dos genitores. A essencialidade do consentimento implica a capacidade de
manifestá-lo, de modo que os genitores devem ter a liberdade de escolha e conhecimento suficiente do assunto para
tomar sua decisão. O consentimento obtido legitima, fundamenta a prática e poderá ser utilizado para a comprovação
da declaração de vontade dos genitores em havendo demanda judicial. Por isso, não pode estar eivado de vícios.
Assim, para que reste garantida a liberdade do consentimento, os genitores não podem sofrer coação física/ moral,
pressões ou quaisquer constrangimentos que os forcem a uma tomada de posição. Enfim, em não havendo autonomia
por parte dos mesmos, o consentimento que delibera acerca da doação do pré-embrião para utilização em pesquisa e
terapia com células-tronco não pode ser validado. Beauchamp e Childress entendem que a escolha autônoma não
deve ser entendida como capacidade de governar, mas o ato de governar de fato (2002, p. 138). Essa assertiva pode
ser explicada da seguinte maneira: mesmo as pessoas com capacidade de autogoverno (autônomas) falham em
governar a si mesmas por força de restrições temporárias devidas à doença, à ignorância, coerção etc (diga-se: a
autonomia não é absoluta, haja vista que o ser humano depara-se sempre com situações que a limitam ou a tornam
elástica). Seguindo-se essa ótica de pensamento, algumas pessoas que em regra não são autônomas podem tomar
algumas decisões autônomas. Entretanto, pré-embriões não são autônomos em nenhum sentido invocado.
177
Certo é que em se tratando de pré-embriões criopreservados, que não atingem fora do
útero o estágio de quinze dias, entende-se que a autonomia dos pais poderá ser exercida de forma
ampla, atendendo-se a limitações impostas pela nova Lei de Biossegurança, notadamente no que
concerne à vedação da comercialização de embriões e à clonagem.
Martínez contraria os que defendem o direito absoluto dos genitores sobre o material
genético (1994, p. 94), sendo ilegítima a deliberação dos mesmos acerca da venda ou destruição
dos embriões excedentes (1994, p. 95), eis que a humanidade é a verdadeira titular do interesse
em obter uma tutela efetiva e plena dos pré-embriões (1994, p. 96).
Em continuação, Martínez advoga em favor do prazo de cinco anos de criopreservação
para que os genitores tenham poder de decidir sobre o destino dos pré-embriões. Assim, passados
os cinco anos sem que haja implantação no útero ou doação para que outra mulher a utilize, a
substância embrionária humana fica à disposição do centro médico, podendo ser utilizada para
quaisquer fins, haja vista que não poderá ser implantada depois desse lapso temporal (1994, p.
141). “Superado un plazo prudencial, se la destina a outro objetivo igualmente valioso para la
titular del bien jurídico” (MARTÍNEZ, 1994, p. 141), que é a humanidade.
Entretanto, no caso de os genitores não manifestarem interesse em implantar esses préembriões e tampouco doá-los a outra mulher ou casal, Martinez defende que a autonomia dos
pais deve ser respeitada e poderiam ser realizados experimentos sobre os pré-embriões.
Transcreve-se seu posicionamento:
Estimamos que su voluntad debe respetarse, bastando en el caso el simple
expediente de que renuncien por escrito al plazo de cinco años, manifestando
expresamente su oposición a todo intento de transferencia de los preembriones.
En este caso la substancia embrionaria humana quedaría automáticamente en
poder del equipo médico, con la posibilidad de ser manipulada. (1994, p. 142)
178
Essa seria a opção mais coerente e mais adequada consoante a autora. Nesse viés,
Martínez legitima a manipulação genética de pré-embriões que tenham como principal objetivo
desenvolver tarefas de investigação (1994, p. 142) “[...] para la calidad de vida o la supervivencia
de la especie humana, siempre y cuando la substancia embrionaria humana objeto de la
experimentación no sea transferida a un útero femenino, no alterándose, de tal forma, el
patrimonio genético de la especie.” (1994, p. 214) Os objetivos pelos quais a autora legitima o
uso de pré-embriões moldam-se perfeitamente à pesquisa e terapia com células-tronco
embrionárias, porquanto trazem promessas de grandes benefícios à humanidade, na cura de
doenças e prolongamento da vida com qualidade. Fortalecer a autonomia dos genitores é
imperioso, quando se pretende viabilizar benefícios e qualidade à saúde pública.
Casabona também entende que a vida em formação merece alta valoração por parte da
comunidade, já que esta é a titular do bem jurídico dessa vida (1994, p. 80). Voltando-se aos
argumentos do autor, a defesa da vida dar-se-ia após a ocorrência da nidação. Quanto a possíveis
experimentos sobre o embrião, o autor sugere algumas orientações: 1- se o embrião encontra-se
fora do útero poder-se-ia aceitar experimentações sempre que se tratar da obtenção de
conhecimentos científicos importantes não disponíveis por outros procedimentos e se tenha
efetuado uma prévia investigação mediante a utilização de animais; 2- veda a criação de embriões
in vitro com fins de investigação ou, mais precisamente, com fins distintos ao da procriação
(1994, p. 389). Com base no autor, intui-se que a pesquisa e terapia com células-tronco podem
ser legitimadas, porquanto visam a obter importantíssimos conhecimentos científicos.
Outrossim, Minahim alerta acerca da relativização na sociedade contemporânea da
proteção do direito penal ao bem jurídico vida, que se manifestava de forma absoluta, por força
da emergência de novos valores, a exemplo da liberdade de escolha. O ser humano em formação
179
é alcançado por essa relativização, exigindo-se a inserção de novas terminologias, como a de préembriões, ser que não é titular das qualidades de pessoa e, logo, não tem garantidos os mesmos
direitos (2005, p. 213). Nesse horizonte, há que se ter presente que mesmo que se entenda haver
dignidade e vida no pré-embrião criopreservado, o princípio da dignidade e o direito fundamental
à vida não são absolutos. Eles podem ser relativizados frente a outros direitos fundamentais, a
exemplo da liberdade científica e do desenvolvimento da saúde.
Entretanto, ainda que se afirme a liberdade dos genitores para decidir acerca da permissão
para que os pré-embriões in vitro sejam utilizados em pesquisa e terapia, soa um tanto estranha a
conclusão de que o pré-embrião criopreservado é equiparado a uma coisa. A pergunta que se faz
é: embora se entenda que o pré-embrião congelado não tem direito à proteção jurídica de sua
condição, traduzida na expectativa de vida plena, e o reconhecimento do valor da dignidade,
pode-se entender que se trata de uma coisa, a ser utilizada consoante os mais diversos interesses?
Kant afirma que os seres cuja existência depende, não da nossa vontade, mas da natureza, têm
apenas um valor relativo como meios e, por isso, são chamados de coisas. Assim, quando um
casal ou uma mulher busca uma clínica de fertilização e consegue fecundar alguns óvulos,
realizando seu desejo de perpetuar a espécie, aqueles que porventura não forem implantados são
fruto da vontade daqueles que os desejaram, vontade racional e dirigida a um fim. Entende-se que
os genitores, para que se evite afirmar que se está perante uma coisa, devem utilizar todos os
expedientes na tentativa de utilizar os pré-embriões para fins de gerar uma nova vida ou, então,
doar a uma usuária infértil. Somente no caso de não manifestarem desejo na primeira alternativa,
ou não obterem êxito na segunda, a disposição do pré-embrião torna-se justificável. Sem
embargo, não há como se defender que o pré-embrião seja ser humano merecedor da tutela
180
jurídica, de modo que se poderia advogar, para o fim de evitar a coisificação, em favor da
existência de um tertium entre a coisa e o ser humano digno de proteção.
Do exposto, considerando que a vida e a dignidade humanas são tuteladas, por que o lapso
temporal de criopreservação deve ser determinante para efeito de legitimar a pesquisa e terapia
com células-tronco, porquanto se entendeu não haver vida a ser protegida e tampouco dignidade a
ser reconhecida no pré-embrião in vitro? Assim, o prazo de criopreservação para que os préembriões possam ser utilizados pode ser reduzido, em comparação ao limite imposto pela Lei de
Biossegurança (art. 5º). Entende-se estabelecer o limite de 1 (um) ano de criopreservação, sendo
que após esse lapso temporal, e não havendo interesse na implantação ou doação, a disposição do
pré-embrião seria legítima. Os embriões in vitro pertencem a um projeto de parentalidade,
enquanto houver interesse em levar a termo esse projeto. Poder-se-ia utilizar a lição de Minahim,
que observa que após decorrido o prazo de criopreservação sem a manifestação dos genitores, os
embriões tornam-se normativamente inviáveis (2005, p. 163). Enfatiza-se que o estabelecimento
de um prazo mínimo para que o mesmo possa ser utilizado em pesquisa diz respeito à possibilidade
de esse pré-embrião poder satisfazer o desejo de reprodução de outra mulher ou casal.
Por outro lado, não é possível que se deixe de lado a fé e as posições da Igreja Católica
quando se discutem os rumos da humanidade, mormente quando se deparam com questões
atinentes à possível disposição da vida inocente. Ocorre que a fé e as posições radicais da Igreja
têm sido largamente utilizadas como inibidoras dos avanços científicos, eis que a todo momento a
religião é acusada de dogmatismo, atraso e intolerância. Almejar que ambos os lados adotem
também a perspectiva do outro e, assim, estabeleçam-se bases de cooperação entre diferentes
posições é seguramente difícil. Considerando que os argumentos de que existe vida humana plena
no pré-embrião criopreservado não parecem que devam ser levados em consideração para o fim
181
de se advogar em favor da proteção jurídica, tem-se que as posições da Igreja Católica não
constituem elemento essencial na tomada de posição quanto à legitimidade ou não da pesquisa e
terapia com células-tronco embrionárias. Ademais, enfatizando a pluralidade de pensamentos,
Martínez assinala que a voz oficial da Igreja Católica, por meio de relevantes pensadores, hoje
exibe uma postura muito mais aberta, apoiando, em geral, os novos procedimentos e destaca os
benefícios obtidos pela humanidade através do desenvolvimento de técnicas experimentais (1994,
p. 60). Outrossim, em uma cultura orientada pelo princípio da legalidade, o argumento de que a
pesquisa e a terapia com células-tronco embrionárias são pecados, porque ofendem a sacralidade
e a inviolabilidade da vida humana, não pode contar como razão bastante para torná-las um crime
em qualquer situação, independente até mesmo do prazo de criopreservação.
Por fim, enfatizando-se a pluralidade de opiniões acerca da proteção jurídica ao embrião
criopreservado, o reconhecimento de sua dignidade e a legitimidade do seu uso na pesquisa e
terapia, Beck, lembrando Giddens, atenta para o fato de que se está lidando com dilemas, isto é,
com “decisões indecidíveis”, que são aquelas nas quais cada decisão possível pode ser avaliada
como sendo moralmente condenável ou moralmente boa, dependendo do ângulo em que é
analisada, de modo que sempre se deve optar por decisões que, sob determinados pontos de vista,
aparentem ser ao mesmo tempo boas e ruins (1998, p. 56-57).
Nesse horizonte, a posição favorável à legitimidade do uso de células-tronco embrionárias
é, ao mesmo tempo, boa, eis que associada à cura de doenças, ao prolongamento da vida com
qualidade e ao desenvolvimento da saúde, e, aparentemente, ruim, visto que muitos advogam em
favor da proteção à vida desde a concepção e o reconhecimento do valor da dignidade aos préembriões congelados, tornando, assim, a pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias
inadmissível, ética e juridicamente.
182
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A par das teorias acerca do início da vida humana apresentadas no capítulo primeiro,
constata-se que impera uma irredutível diversidade de opiniões sobre o marco inicial da
individualidade humana e, logo, da proteção jurídica estendida à vida humana. Em que pese o
consenso ser impossível de ser obtido, porquanto nenhum dos lados está disposto a ceder aos
argumentos opositores, entende-se que a vida merecedora de proteção jurídica inicia-se a partir
do décimo quinto dia após a concepção, ao encontro do que preconiza a teoria genéticodesenvolvimentista.
De outra banda, além da invocação de um autêntico direito à vida, grande parcela da
população e da comunidade científica obstaculiza ou tenta retardar o uso de células-tronco
embrionárias na pesquisa e terapia sob o fundamento de que a dignidade dos embriões seria
gravemente violada. A dignidade humana expressa-se como valor inerente a toda pessoa,
independentemente de sua condição peculiar, e que, por tal razão, não pode ser instrumentalizada
para quaisquer fins, de modo que cabe ao ordenamento jurídico reconhecê-la, eis que é princípio
fundante do Estado Democrático de Direito, embora relativizável frente a outros princípios ou
direitos. Nesse viés, entende-se que, pelo fato de o pré-embrião criopreservado não poder ser
equiparado à pessoa, não é titular do valor da dignidade e tampouco se aceita que a ele seja
183
“atribuída” a dignidade da pessoa humana, sendo que a partir de tal entendimento o mesmo
poderia ser utilizado como meio para interesses alheios, mormente os de cunho humanitário.
Quanto à resposta ao problema investigado, pela análise de todos os argumentos
colacionados no presente trabalho, entende-se que a regulamentação trazida pela nova Lei de
Biossegurança vem ao encontro das conclusões a que se chegaram neste trabalho, ou seja, a de
que é legítima a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa e terapia. A referida Lei,
ao estabelecer no seu art. 5° a possibilidade de pesquisa e terapia com células-tronco
embrionárias, sob as condições de que sejam embriões inviáveis ou sejam embriões congelados
há três anos ou mais, veio restringir as possibilidades de intervenção nos pré-embriões. Se estes
são inviáveis não há que se criar óbices à pesquisa, não havendo dúvida acerca da legitimidade do
uso dos mesmos. Ademais, salvo raras exceções, as leis da natureza encarregam-se de eliminar
um pré-embrião inviável se for implantado no útero, representando uma forma de seleção natural.
Quanto ao limite de três anos, acredita-se que o intento da Lei em fixá-lo baseou-se no fato de
que, com o passar do tempo, as características iniciais dos pré-embriões vão se perdendo e, assim,
essa perda poderia prejudicar ou até mesmo impedir o desenvolvimento deles caso fossem
implantados, na medida em que a porcentagem de sucesso, que já é pequena, diminui
drasticamente. Sem embargo, pelos entendimentos tomados nesse trabalho, a pesquisa e terapia
com células-tronco embrionárias podem ser legitimadas independentemente de serem préembriões congelados até a data da publicação da Lei em epígrafe. Assim, considerando que os
genitores não tenham interesse na implantação ou na doação do(s) pré-embrião(ões), poder-seia(m) utilizá-lo(s) observando-se o prazo de 1 (um) ano de criopreservação. O pré-embrião in vitro
não tem capacidade de desenvolvimento, independentemente do tempo em que fica congelado, de
modo que as suas “qualidades” não aumentam, nem diminuem com o passar do tempo.
184
Não se pretende sacralizar a “vida” dos pré-embriões criopreservados, porquanto se
entendeu não haver vida digna de proteção jurídica, pela ausência de características
identificadoras da individualidade humana. O homem não pode atravancar o progresso científico
sem justificativas plausíveis, sendo que a alegada ofensa ao valor da dignidade e a um “legítimo”
direito à vida aos embriões criopreservados parece não ser uma delas.
Na tentativa de vencer as doenças, a pesquisa deve avançar de forma constante e
responsável. No campo da terapia com células-tronco embrionárias, imperioso relembrar que ela
alimenta a esperança de milhões de pessoas que sofrem transtornos provocados pela doença,
inseridas num contexto deficitário de saúde, onde pairam constantes incertezas acerca do
“amanhã”. Necessário assegurar às pessoas acometidas pela doença o gozo dos benefícios
prometidos pela pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, visto que as finalidades
terapêuticas representam um dos fins fundamentais da medicina: curar as pessoas de modo mais
eficaz possível. Caso contrário, necessário estar conscientizado da gravíssima responsabilidade
assumida ao tentar retardar ou impedir essas novas técnicas.
A ciência não é a priori boa ou má, sendo que o benefício ou malefício que dela possa
advir é fruto da aplicação que lhe for dada. Assim, a ciência não é nefasta, mas aquilo que os
cientistas podem fazer com ela pode configurar extrema perversidade. Tudo leva a crer que a
utilização de células-tronco embrionárias trará grandes benefícios à humanidade, notadamente às
pessoas acometidas pela doença, muitas vezes letais ou incapacitantes, e novas promessas para o
futuro que se aproxima, eis que as gerações futuras podem ser as grandes beneficiárias do
implemento de novas terapias nessa área.
A idéia de que a ciência não é em si mesma boa ou má parece ter aceitabilidade universal,
ou seja, válida em todos os tempos e lugares, notadamente quando não ofende o bem da vida e o
185
valor da dignidade humanas. A história negra da humanidade mostrou que muitos seres humanos
foram suprimidos por serem considerados diferentes, inconvenientes ou irrelevantes. Esse não é o
caso dos pré-embriões criopreservados, que, simplesmente, não são seres humanos plenos.
Sem embargo, para que se evite a sumária eliminação dos excedentes na pesquisa e
terapia, o prazo de um ano de criopreservação é suficiente: nem para frente no limite da
tecnociência, nem para trás no sentido da perda do compromisso dos casais ou mulheres que
buscam satisfazer o desejo da procriação mediante a técnica da fecundação in vitro. Os objetivos
reprodutivos perquiridos devem contar com certa ponderação. Insiste-se que o estabelecimento de
um prazo mínimo para que o pré-embrião possa ser utilizado não diz respeito à proteção de uma
“vida” que é “mera expectativa”, mas diz respeito mais à possibilidade de esse pré-embrião poder
satisfazer o desejo de reprodução. De fato, o objeto de proteção não se centra no pré-embrião.
Seguramente, o Direito deve intervir no campo da biotecnologia para o fim de proteger o
ser humano dos possíveis excessos nessa área, preservando, do mesmo modo, a liberdade
científica. Como se entende pela não proteção jurídica ao pré-embrião, advoga-se que no caso da
pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, o Direito deve priorizar a liberdade científica
e a promoção, proteção e recuperação da saúde frente à tutela do mesmo. Imperioso assegurar e
fortalecer a autonomia dos genitores quando se visa ao bem da humanidade e das futuras gerações.
Outras posições podem ser sustentadas, porque em se tratando do início da proteção
jurídica à vida humana é sempre difícil e perigoso fixar limites: a ciência não pode determinar
com certeza uma passagem do “nada” à “humanidade”, visto que as fronteiras são fluidas.
Advoga-se em favor da teoria genético-desenvolvimentista ou, na melhor das hipóteses, da teoria
da nidação, e da liberdade da pesquisa, mas não há como defender categoricamente em que
momento se determina a identidade humana. Seria demasiadamente ousado pretender o contrário,
186
considerando que a dificuldade é sentida, inclusive, pelos cientistas. No mesmo sentido, quanto à
titularidade do valor da dignidade, imperioso concluir acerca da relatividade das posições
assumidas, conclusão, aliás, que se estende à extensão da autonomia conferida aos genitores na
disposição dos pré-embriões excedentes. O fato de essas matérias encontrarem-se em constante
pauta de discussão evidencia a falta de uniformidade nessa área.
Ratifica-se que a atual sociedade é pluralista. Sendo conduzida pela diversidade, há que se
ter presente que a invocação de razões a favor ou contra determinadas práticas e técnicas deve
contar com uma aceitabilidade meramente parcial. Isso significa que ninguém deve renunciar às
crenças morais e religiosas individuais, não enquanto se deseja viver em sociedades laicas,
democráticas e pluralistas que respeitem as diferentes visões e culturas.
Enfim, pelo fato de as pesquisas e terapias com células-tronco embrionárias encontraremse ainda em estágio inicial, os resultados prometidos serão comprovados (ou não) ao longo do
tempo. Uma vez comprovados os resultados positivos das terapias, visto que o caminho é
promissor, evidencia-se a importância dessas conquistas para os países que foram pioneiros em
autorizá-las, sendo necessário, entretanto, monitorar cuidadosamente a aplicação da técnica, a fim
de que sejam evitados excessos nesses novos experimentos, a exemplo do que ocorre com a
possível comercialização de embriões para extração de células-tronco, a divulgação de resultados
de pesquisa falsos e a venda de produtos sem comprovação médico-científica, aproveitando-se do
desespero de pacientes ou de seus entes queridos.
Como referido, a tecnociência não é em si mesma ruim, de modo que o mau uso dela pode
gerar conseqüências imprevisíveis (risco do desenvolvimento) e, até certo ponto, nefastas. Em
última análise, nessa área de latente discussão, a ousadia e a responsabilidade precisam ser
conjugadas, ratificando-se, nesse viés, a importância exercida pelo controle social.
187
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