Editorial Hiperuricemia e risco cardiovascular. Vitor Gil

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EDITORIAL
Vicitor Gil
linemia, vasconstrição renal, terapêutica diurética, reduzindo a excreção renal de ácido úrico ou por outro lado o
consumo de álcool, a isquemia dos tecidos e o stress oxidativo, aumentando a respectiva produção. No caso da
doença renal, também a tentativa de responsabilizar a
hiperuricémia pela nefropatia, não tem sido consistente
mesmo nos casos antes designados como “nefropatia
gotosa” em que a demonstração de cristais de ácido úrico
nos glomérulos dos doentes, por si só não explicaria a
situação, pelo carácter focal desses depósitos. Estudos
recentes usando modelos animais e cultura de células
identificaram potenciais mecanismos pelos quais o ácido
úrico poderia causar doança cardiovascular ou renal e
ensaios clínicos sugerem benefício cardiovascular e renal
com a redução dos níveis de ácido úrico. Note-se ainda a
fragilidade dos argumentos contra a aceitação do ácido
úrico como factor de risco: o grupo Framingham recusou
essa classificação porque a hiperuricemia não era independente da hipertensão. Todavia se hipoteticamente o
ácido úrico fosse causa de hipertensão e esta causasse
doença renal e vascular, dficimente seria distinguível com
independência o papel etiopatogénico do ácido úrico.
Estudos experimentais e clínicos recentes têm, efectivamente, sugerido um papel do ácido úrico elevado no
desenvolvimento de hipertensão bem como a subsequente redução dos valores tensionais em resposta ao tratamento de diminuição dos valores do ácido úrico, quer com
inibidor da xantina oxidase, quer com agente uricosúrico.
Em modelo animal, mostrou-se que a hipertensão era
devida a vasoconstrição renal mediada pelo ácido úrico,
resultando de uma redução dos nível de monóxido de azoto endotelial, com consequente activação do sistema renina-angiotensina. Este modelo encontra alguma confirmação
em humanos, pela demonstração de disfunção endotelial
e aumento da actividade da renina plasmática nestes
doentes. Um mecanismo alternativo ou adicional, o desenvolvimento de doença microvascular renal, foi igualmente
demonstrado em modelo animal. O papel da hiperuricemia na sindroma metabólica tem vindo a merecer atenção. Inicialmente atribuída a hiperinsulinemia que por si
só provoca elevação do ácido úrico por diminuição da excreção, de facto a hiperuricemia pode preceder o aparecimento de hiperinsulinemia, obesidade e diabetes. A disfunção endotelial mediada pelo ácido úrico, condicionando uma diminuição do fluxo sanguíneo responsável por
menor captação tissular da glucose, é um dos dois mecanismos propostos para explicar a possível relação de causalidade entre hiperuricemia e sindroma metabólica; o outro tem que ver com as alterações inflamatórias e oxidativas provocadas pelo ácido úrico nos adipocitos. Refira-se
que, por outro lado, o ácido úrico poderá ter propriedades
anti-oxidantes, protectoras em situações neurológicas como
a esclerose múltipla e a doença de Parkinson mas pode
funcionar como pro-oxidante e imunoestimulador.
Hiperuricemia
e risco cardiovascular
A relação entre hiperuricemia e doença cardiovascular
tem sido exaustivamente posta em evidência por variados
trabalhos desde as décadas de 50-60, embora as referências iniciais remontem aos finais do século XIX, altura em
que se especulou sobre o papel do ácido úrico na patogénese da hipertensão arterial muitas vezes presente nos gotosos; admitia-se já então que o ácido úrico tivesse efeito
vasoconstritor sobre as arteríolas renais. A associação de
hiperuricemia a multiplas situações cardiovasculares e renais - hipertensão, nefropatia (incluindo microalbuminuria
e diminuição da filtração glomerular), sindroma metabólica, apneia obstrutiva do sono, arteriopatia (carotídea, periférica e coronária), AVC e demência vascular - bem como
a marcadores de inflamação, de disfunção endotelial e de
stress oxidativo, tem alimentado a controvérsia sobre se a
hiperuricemia deva ou não ser considerada como mais um
factor de risco para doença cardiovacular, a somar aos factores de risco tradicionais. A posição de grupos como o
Framingham e da maior parte das sociedades científicas
tem sido, todavia, a de não considerarem o ácido úrico
como um factor de risco isolado, embora a ultima palavra
dependa de estudos ainda não existentes até à data, especificamente desenhados para responder a esta questão.
Inquestionável é considerar-se que, factor de risco ou não,
a hiperuricemia é um marcador inespecifico do risco cardiovascular, especialmente na hipertensão arterial mas é
verdade que várias circunstâncias muitas vezes presentes
são favorecedoras da elevação do ácido úrico no sangue.
Entre elas, a redução da filtração glomerular, a hiperinsu16
Revista Factores de Risco, Nº22 JUL-SET 2011 Pág. 16-17
sar de percentualmente o grupo BIV apresentar mais hiperuricemia. Pareceria adequado proceder a uma análise
multivariada de forma a ponderar os vários factores que
poderiam contribuir para BIV nesta população. O enquadramento etiopatogénico e fisiopatológico descrito no
texto de forma muito própria merece, em nossa opinião,
uma palavra de cautela pois os mecanismos propostos
para a putativa relação de causalidade entre hiperuricemia
e doença cérebro e cardiovascular e renal, assentam em
demonstrações experimentais ainda pouco consistentes e
não completamente aceites pela comunidade científica,
carecendo igualmente a sua verificação cabal em modelo
humano. Em artigo de revisão publicado em 2008, os autores (dos grupos de Houston, Denver e Seoul) são muito
prudentes nas suas considerações, concluindo pela necessidade de uma melhor compreensão dos mecanismos
pelos quais o ácido úrico possa estar associado a doença
cardiovascular. Os mecanismos propostos pelos autores
parecem pouco fundados em referências que neste caso
apontam mais para livros de texto do que para estudos
experimentais ou clínicos.
O artigo de Álvaro Bordalo e colaboradores traz para discussão uma temática interessante, certamente motivadora de
novas investigações nesta área mas na sua formatação actual, levanta a possibilidade de uma associação entre hiperuricemia e BIV, numa população heterogénea com doença
coronária submetida a revascularização cirurgica, não fornecendo, todavia, a evidência cientifica de tal associação.
«A posição de grupos
como o Framingham e da maior
parte das sociedades científicas
tem sido, todavia, a de não
considerarem o ácido úrico
como um factor
de risco isolado ... »
Em todos estes casos, a controvérsia continua sobre se
a hiperuricemia é apenas um marcador associado de risco
como as rugas no envelhecimento ou um agente que contribui para a etiopatogenia das situações.
O artigo publicado no presente número da Revista, de
Álvaro Bordalo e colaboradores, do grupo do Hospital de
Santa Maria, levanta a questão da associação da hiperuricemia com perturbações da condução intra-ventricular em
doentes com doença coronária submetidos a cirurgia de
revascularização. Trata-se de uma abordagem curiosa e
tanto quanto sabemos, pouco ou nada abordada na literatura. Do ponto de vista metodológico, existem importantes limitações e há uma insuficiente descrição dos parâmetros em análise. Entre muitas questões, e como meros
exemplos, como é definido o bloqueio intra-ventricular
(BIV) e como é medido? Todos os tipos de BIV são incluidos no mesmo grupo? Os doentes do grupo A (com BIV)
eram cinco anos mais velhos que os doentes sem BIV. Este
facto, por si só, pode explicar a maior prevalência de BIV.
A presença de enfarte prévio foi igualmente maior no
grupo com BIV (70 versus 57%) o que não levou os autores a associar esse facto à hiperuricemia. Além disso, outra
importante associação a BIV, que seria a disfunção ventricular esquerda ou em termos clínicos a sintomatologia de
insuficiência cardíaca não são sequer citados no artigo. A
própria definição de hiperuricemia, a opção por não distinguir géneros apesar da referência a que as mulheres eram
todas pós-menopausicas, a não opção por referenciar o
valor do ácido úrico á superfície corporal e a não inclusão
de medicação concomitante (diuréticos, aspirina) como parâmetros de análise, é também merecedor de reparos. Por
outro lado, mesmo com a crítica à respectiva definição,
uma comparação de grupos com e sem hiperuricámia
quano à presença de BIV, seria interessante. A análise
estatística é rudimentar e não suporta as conclusões ape-
Victor Gil
Professor Associado Convidado da
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Referências
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