INTRODUÇÃO UMA ÉTICA PARA O CORPO Danilo Di Manno de

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CIDADANIA
ÉTICA PARA O CORPO
E EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA
Danilo Di Manno de Almeida
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xistiria alguma relação entre as extintas disciplinas
Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB),
Educação Moral e Cívica (EMC) ou mesmo Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e a mais recente Ética e Cidadania (EC)? Esta pergunta é importante porque devemos estar sempre atentos às metamorfoses do poder político
e das políticas educacionais que o seguem. Há simples continuidade entre Ética e Cidadania e OSPB/EMC ou trata-se aí
de ruptura? Se a alternativa é ruptura, a questão é: que grau
de ruptura?
Quero arriscar duas hipóteses. Em primeiro lugar, que a
disciplina EC traz nela, simultaneamente, a continuidade e a
ruptura com EPB e EMC e, em segundo lugar, que tanto a
idéia de continuísmo como a de ruptura com os ideais das extintas disciplinas não poderão ser encontradas na simples nomenclatura do novo título, mas em decisões ético-políticas que
antecedem a decisão de mudar o título e que acompanham a
execução da disciplina.
Inicialmente, sabemos que há argumentos para as duas
possibilidades. Quanto ao continuísmo, há, sem dúvida, uma
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expectativa de que EC tenha os mesmos efeitos que OSPB e EMC,
quer dizer, desmobilizar politicamente os que se ocupam dos
assuntos (instituições, docentes e alunos), por meio de longas e
complicadas discussões éticas (veremos mais à frente que o mais
apropriado seria dizer discussões moralizantes).
Quanto ao argumento da ruptura, é preciso render tributo
às lutas empreendidas pelos movimentos políticos (de trabalhadores, sem-terra, lideranças intelectuais e políticas, artistas, para citar
alguns), pois a disciplina EC traz as marcas de significativas conquistas ético-políticas e educacionais. Neste caso, a memória da
pressão que essas manifestações e práticas exerceram e continuam a exercer sobre os poderes e as ideologias estabelecidos
serviria para mostrar a ilusão daqueles que pensam que EC resulta de uma concessão espontânea ou é fruto de progressivas
políticas educacionais dos “dominantes”.
Qualquer que seja a idéia – de continuísmo ou de ruptura –, a passagem das antigas OSPB/EMC à atual EC não
é paralela à passagem do regime ditatorial à chamada democracia atual no Brasil. Nada é cristalino aqui, visto que a
disciplina EC assumiu várias “figuras”, podendo ser caracterizada de várias maneiras, pelo menos: (a) marca renovada
e continuada de um projeto político-educacional antigo; (b)
emblema de uma luta e de uma conquista contra o continuísmo de projetos opressivos e ditatoriais da sociedade brasileira; (c) signo de uma “moral bem comportada” própria à
economia e à política neoliberais; (d) símbolo de uma “modernização” das instituições educacionais que encontram na
tecnologia, de um lado, e na ética, de outro, grandes trunfos
de suas estratégias mercadológicas.
I. ÉTICA E MORAL
Há muita divergência quanto à conceituação dos termos
“ética” e “moral”, de maneira que uma acaba recobrindo o
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campo da outra. Assim, questões sobre o “bem”, o “mal”, o
“comportamento”, o “correto”, o “verdadeiro” aparecem ora
atribuídas às discussões éticas, ora às discussões morais. Podemos separar ética e moral? Vou partir da idéia de que a separação não só é possível, como também é fundamental distinguir
ética de moral, se quisermos garantir o exercício crítico e transformador da disciplina Ética e Cidadania.
Alguns motivos por que a distinção é realmente fundamental:
Antes da moral, a ética – Em primeiro lugar, pode-se
afirmar a anterioridade da ética em relação à moral, como propõe o filósofo Paul Ricoeur. Com isso, a ética fica ligada à
esfera do desejo (desejo de ser e o esforço para existir), reservando à moral o espaço da lei, das normas. A ética é definida
como uma perspectiva que “visa a verdadeira vida com e para
com o outro nas instituições justas”.1 Este dado é importante
porque permite estreitar as relações entre ética e liberdade, colocando esta última no ponto de partida da ética. A liberdade
diz respeito à posição e não à sua possessão por uma pessoa.
A ética serve para descrever a pessoa em seu movimento de
tomada de posse da liberdade. Ricoeur põe em destaque a
opção humana de percorrer esse trajeto de liberdade. Posso
construir a liberdade no momento em que desenho seu “rosto”,
através das obras e de minhas ações. Cada um de nós está
posicionado entre um poder-ser e um ser-dado, entre um fazer
e um fato.2 A ética é entendida, então, como uma “odisséia da
liberdade”, pela qual cada um de nós se “atualiza” num processo aberto e sem fim de conquista da liberdade.
1. O si-mesmo como um outro, p. 211.
2. The problem of foundation of moral philosophy, p. 177. Estou omitindo os outros dois elementos da ética: o “outro” e a “instituição”. Quero apenas acentuar as relações estreitas entre ética e liberdade.
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A moral aparece num segundo momento. Ela se explica
somente por causa da violência. E vai se caracterizar pelos
imperativos da Lei, pelas normas e pela obrigação. É como se,
diante do desejo positivo da ética, fosse colocada a interdição
negativa da moral.3
Em Ricoeur, a ética continua sendo decisiva porque se
trata de estabelecer regras de convivência entre os seres humanos, estabelecendo normas e obrigações mútuas por meio
de instituições justas, sem perder do horizonte o princípio
ético da liberdade. Por outro lado, as discussões sobre os valores, as normas e as obrigações têm como pano de fundo a
liberdade ética, que apela incessantemente para que os valores sejam bons, as normas justas, as obrigações eqüitativas.
A ética que nega a moral opressora – Um segundo motivo por que é fundamental distinguir ética de moral está
dado por E. Dussel. Para este autor, a Moral pertence à ordem
das condutas, ações, das normas em vigor, estabelecidas, dominantes e hegemônicas. De fato, o que vale dizer “a totalidade
prática de relações reais, históricas e concretas de sociedades
realmente existentes”. Assim, existe, por exemplo, uma moral
asteca, grega, brasileira, européia. Os princípios morais têm
como característica uma certa unanimidade, pois são “normas,
projetos ou valores em vigor, sempre aceitos por todos”.4
Quanto à ética, esta tem como caraterística a independência à “totalidade prática” identificadora da moral. Ao contrário
das morais, que são numerosas (sistemas históricos, de culturas,
de classes sociais, de etnias, morais setoriais), relativas, históricas
e transcendentais, a ética é “una e absoluta”. Princípios éticos,
3. P. Ricoeur. Entretien. In: AESCHLIMANN, Jean-Christophe (org.) Éthique et
responsabilité. Paul Ricoeur, p. 16.
4. Éthique de la libération, p. 149.
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como, por exemplo, “liberta o oprimido!”, “são válidos por
todas as épocas” (para “toda situação histórica possível”); são
princípios que não perderam seu caráter histórico “concretos e,
entretanto, não relativos”. Através desses princípios, a ética vai
de encontro à moral vigente, exige, obriga e normatiza a negação da conduta opressiva. Em outros termos, “ela nega a validade da norma moral que justifica a opressão”.5
A importância dessa visão de ética é a de enfrentar a
moral, questionando-a a partir de princípios éticos de libertação histórica, econômica, política etc. A ética anuncia uma
libertação humana contra a dominação histórica por que passam os povos; deixa-nos em estado de alerta contra a unanimidade dos costumes e a aceitação geral não questionadora
de valores hegemônicos e dominantes.
O abuso da ética – A diferenciação entre ética e moral serve-nos para pôr em destaque um “abuso” 6 nos termos
ética e moral. De fato, discursos denominados “éticos” são
fachada para a eternização de valores hegemônicos identificados à “ditadura do grande capital”. Trata-se da “ditadura
da grande burguesia” que “determina as principais características do Estado ditatorial”, 7 explicando não somente seu
advento, mas também seu sucesso contínuo, depois de o
“regime autoritário” ter passado.
A “inflação” do termo ética não livra sequer a disciplina Ética
e Cidadania de estar sendo veiculada “sem crítica”, acolhendo
5. Ibid., p. 150.
6. Ver o interessante artigo de Roberto Romano “Contra o abuso da ética e da
moral”, Educação e sociedade, ano XXII, nº 76, p. 94-105, outubro 2001, no
qual traduz o verbete “Moral” da Enciclopédia de D’Alembert e Diderot. Limitome muito mais à concordância de que há uma inflação nos termos ética e moral, mas não entro na discussão direta deste artigo instigante.
7. Para utilizar o título do livro de Octavio Ianni, A ditadura do grande capital,
p. 1.
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no interior dela essa “maré montante de palavras vazias que
encobrem práticas perfeitamente imorais e opostas à ética”.8
Como disciplina que aparece com a “abertura” política do Brasil
e é estimulada num clima político-econômico neoliberal, ela não
está livre de incorporar e de dar continuidade à “ditadura do
grande capital”. Assim, fica a possibilidade de ela servir de fachada para encobrir, por trás dos belos propósitos educacionais do
governo e das instituições de ensino, um projeto de continuidade
de um mesmo modelo que abusa não somente dos termos, mas
também dos cidadãos brasileiros.
O abuso do termo ética/moral é de “segundo grau” e denota outro ainda mais anti-ético e mortal, que é o abuso de
corpos empobrecidos e vitimados graças a um regime ditatorial
político-econômico que orienta as políticas educacionais do país.
A força heurística da ética – Um último motivo para
a distinção se deve à própria nomenclatura da disciplina em
questão “Ética e cidadania” – não se trata de “Moral e Cidadania”. Por isso é importante que estejam bem demarcados os
limites e os benefícios da primeira nomenclatura. O que acabo
de expor sobre a importância da distinção entre ética e cidadania já sugere que não basta mencionar a expressão-chave
“Ética e Cidadania” para que luzes se acendam sobre essa
disciplina. Permanece aí um problema que se decide não na
nomenclatura, mas nas intenções e na execução mesma da
disciplina, quer dizer, numa política educacional que a concebe e na práxis educativa que se instaura a partir dessa política.
Não há por que estranhar que alguns esperem desta disciplina
a “restauração” dos bons costumes, o ensino de boas maneiras de relacionamento humano, regras de conduta cívica. Em
outras palavras, espera-se que EC atualize EPB, que atualizava
8. R. Romano, art.cit., p. 94.
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EMC. Neste caso, EC ficaria presa às possibilidades dadas
pela moral hegemônica.
No entanto, a meu ver, a disciplina cumpre sua função
ética à medida que, em primeiro lugar, começa pelas distinções fundamentais entre “ética” e “moral”, para se diferenciar
de todo projeto de moralização ou – o que dá no mesmo – de
consagração de valores estabelecidos. Se a disciplina se limita
a “consertar” ou a “reformar” o estado estabelecido das coisas, lançará mão de sua liberdade criativa. Em segundo lugar,
é necessário um espírito crítico relativo às políticas de implementação da disciplina que consiste em questionar os interesses de sua criação e de sua manutenção. Quanto à sua criação, não há como apagar a imagem de seus antepassados –
seja pela continuidade seja pela ruptura em relação às disciplinas que fizeram as vezes da “moralidade”, como EPB, por
exemplo. É sintomática a esperança de que EC desempenhe o
mesmo papel daquelas. Quanto à sua manutenção, a questão
diz respeito à investigação dos motivos de sua proliferação e
de sua importante referência em regimes ditos democráticos.
Enfim, manter a distinção entre ética e moral é importante
para que se coloque em evidência a força heurística da palavra “ética”, quer dizer, a sua força de descoberta na invenção
e na resolução de problemas postos nas situações morais em
que vivemos.
II. MORAL: SÃO OS HÁBITOS QUE VENCERAM
Se, de fato, é importante diferenciar ética e moral, como
conceituá-las? Da ética já tivemos várias indicações. Pretendo
aqui colocar os dois termos numa relação mais direta, reconhecendo, simultaneamente, algumas razões da confusão e os
benefícios da distinção.
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Ethos e mores – Esclarece alguma coisa o fato de saber que mores é a tradução em língua latina da palavra grega
ethos? Morale é aquilo que é relativo aos costumes. No ponto
de concordância entre ethos e mores (costumes) estão dadas,
em parte, alguns motivos para a distinção.
Vamos, rapidamente, começar pela ética. O grego tem
duas maneiras de grafar a palavra ethos. O éthos (com épsilon
inicial) refere-se ao comportamento que resulta de uma repetição constante dos mesmos atos – é a partir daí que se pode
opor o habitual ao natural (physis). Neste caso, o hábito é
uma disposição permanente para agir de uma certa maneira,
o que vai aproximar éthos de hexis (hábito), que tem o significado de possessão estável.9 Guardemos este ponto, crucial
para o que segue.
O êthos (com inicial eta) designa, por sua vez, a morada,
a casa do homem; há um sentido de lugar, de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor. A referência física da
palavra indica justamente que, a partir do éthos, o espaço do
mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis,
que é o reino da necessidade, é rompido pela abertura do espaço humano do êthos, no qual irão se inscrever os costumes,
os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações.10
Sem entrar nas complicações a que a discussão pode
nos convidar, notemos, em especial, a relação entre a ética
e os hábitos ou costumes. Efetivamente, a partir da tradução
latina de ethos, pode-se afirmar que a ética e a moral têm
“origem na mesma realidade humana” dos costumes.11 Se o
ethos pode ser considerado como uma certa forma de hábito
9. Sigo aqui Lima Vaz, Ética e cultura. p. 11-16.
10. Lima Vaz, Ibid., p. 13.
11. R.Romano, art. cit., p. 94.
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(hexis) ou costume, isto significa que a distinção entre um dos
sentidos de ethos e mores é, sem dúvida, muito tênue. Os
latinos traduziram ethos por mores (costumes) porque, de
fato, aquilo que se repete constantemente acaba por ser
dominar e caracterizar qualquer coisa, estabelecendo-se, por
aí, a relação entre ethos e caráter.12
O ethos indica uma maneira (constante) de habitar porque se trata de um habitar que pode ser caracterizado por
uma mesma e repetida maneira. Ora, o ethos não é a moral
no sentido que a entendemos hoje, ou seja, um conjunto de
normas, valores etc. O ethos designa, antes, o lugar onde
esses costumes tomam forma; revela a maneira como uma
pessoa ou uma coletividade se acostuma a viver ali. De um
ponto de vista da subjetividade, a ética indica a capacidade
humana de produzir hábitos, de estabelecer costumes, de se
acostumar a algum lugar.
O que são os hábitos? São aqueles traços repetitivos de
nossas ações ou de nosso modo de estar num certo lugar. Por
serem repetitivos, são chamados de hábitos e indicam uma certa
característica nossa – um caráter. Deste modo, tiremos a conclusão: moral são os hábitos ou costumes que venceram. São os
hábitos ou costumes que alcançaram unanimidade, aceitação
coletiva, que identificam determinados grupos e suas ações.
Assim, o ethos produz os hábitos. Dentre os hábitos produzidos,
instituídos, há aqueles que serão objeto de um consenso, de
uma aceitação geral – por meio do convencimento, da força,
da violência, da tradição (não importa aqui). Os hábitos que
venceram passaram a dominar.
12. Mas isso não precisa levar diretamente à conclusão de que a ética é a ciência
do caráter – ver F. Imbert. A questão da ética no campo educativo, p. 14-15.
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Para expor isso de maneira ilustrativa (com a finalidade
de explicar, não denotando necessariamente uma seqüência
temporal), tem-se:
Isso tudo nos leva a uma constatação bem simples, mas
fundamental para que a disciplina EC não seja um lugar acadêmico reprodutor de valores estabelecidos pela moralidade vigente.
Podemos eleger o termo ética como privilegiado para enfatizar a
força heurística de invenção de novos hábitos e intervenção nos
hábitos vencedores; da possibilidade de instituir novos hábitos,
vem aquela de criar outros costumes e visualizar as relações
humanas não necessariamente na perspectiva da relação “vencedores/vencidos”. Viver eticamente seria – para fazer alusão a
Descartes em seu Discurso do método – viver “morais provisórias”,
contra a idéia da necessidade de uma Moral única, conservadora
dos valores supremos da humanidade e coisas assim. Com efeito,
por que novos hábitos teriam de se impor e se tornar vencedores,
morais absolutas, verdades intransponíveis? Ora, a história da
humanidade tem sido história de dominação, de imposição de
valores exclusivistas. A perspectiva de uma vida ética, quer dizer,
na liberdade de produção e intervenção nos hábitos vigentes, é
fruto mais da imaginação ética. É pouco provável que ela consiga
lugar “ao sol”, mas é pouco provável também que a Moral “reine
ETHOS
HÁBITOS
MORAL
HÁBITOS QUE VENCERAM
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absolutamente” enquanto a imaginação não for eliminada pela
violência moralizante da sociedade.
Por causa da imaginação, os hábitos vigentes não são
tomados como imutáveis e desde sempre instituídos – muito
menos “naturais”, quer dizer, segundo a natureza humana. A
imaginação põe em evidência o caráter dissimulador das
morais dominantes, seu aspecto circunstancial, histórico e
condicionado. Assim, os grandes discursos, feitos em nome da
ética e de acordo com seus vícios de dominação e de opressão moralizante, aparecem como pano de fundo da história
moral do mundo.
Contudo, se EC é a oportunidade de dar lugar à imaginação, é também o lugar de conservar as imagens consagradas de uma moral imutável. Disto não escapa a disciplina nem
nós que a estudamos e investigamos o campo.
Se isso acontece com a ética, o que ocorre com a “cidadania”?
III. ÉTICA E CIDADANIA
De acordo com o que vimos acima, a cidadania vai ser
“localizada” no campo dos hábitos. A cidadania é originada do
termo grego pólis (Cidade). Assim, a cidadania denota a condição habitacional dos cidadãos, os seus costumes, a maneira
de se posicionar na Cidade. Denota uma geografia dos corpos,
como veremos. A pólis é o lugar em que os hábitos entram em
conflito... Falar de cidadania é falar do lugar dos hábitos: lugar
em que hábitos vencedores se impõem como os únicos possíveis
e tentam massacrar e eliminar a insurgência de outros hábitos.
É falar também do lugar onde novos hábitos querem se impor,
porque novas decisões éticas estão sendo tomadas a todo
momento. A Moral dominante recusa-se a ser transformada e a
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assistir indiferentemente à introdução de outros hábitos e, por aí,
a possibilidade de surgimento de outras moralidades. Do ponto
de vista ético, talvez seja mais próprio dizer “morais dominantes”
ou “morais em estado de dominação”, pois são muitos os hábitos que vencem: hábitos econômicos, hábitos sociais, hábitos
educacionais, hábitos trabalhistas, hábitos de lazer etc. Os hábitos têm um caráter de coletividade e, por isso, fazem ver o
cara(cter) dessas comunidades. Por este motivo, quando falamos
em “cidadania”, não falamos de uma evidência, pois aqueles
que querem manter as “morais em vigor” exercem a cidadania;
de igual modo, a luta por novos hábitos é também exercício da
cidadania. A “cidadania” não é um termo neutro. Se podemos
fazer da cidadania um símbolo de luta contra as morais dominantes, então, terá de sê-lo ao preço de vinculá-la à ética e
dizer cidadania ética, quer dizer, voltada para a instituição de
novos hábitos, de novas possibilidades.
Visto que maneiras diferentes de habitar são possíveis, a
cidadania traduz um espaço de conflito de hábitos e, portanto,
convive com a violência (nível moral, para Ricoeur). Não que
a cidadania pertença à moral, ocorre apenas que ela tem sido
apropriada ultimamente como tema privilegiado das “morais
dominantes”. Da mesma forma que a ética é usada e abusada, assim o é a cidadania. O tema da cidadania por ele
mesmo não é símbolo de transformação. Vai depender das decisões políticas e éticas para que seu uso não caia no vazio
das palavras-fetiços.
Mas, estaria a ética livre de um discurso de dominação?
Por que excluí-la daí? Porque à ética cabe ativar a cidadania,
mostrando o seu uso moralizante. A ética é usada aqui como
um termoheurístico que tem a capacidade de ressignificar as
coisas e de criar novos hábitos. Por isso, se ocorre à ética
tomar a forma dominadora, é porque ela já caiu nas garras
das “morais dominantes” e de ética não tem senão a aparência. Aparência ética.
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Aqui nós voltamos ao ponto de partida. Qual a aparência
ética da disciplina Ética e Cidadania. O que ela reflete das antigas EPB/EMC/OSPB?
IV. O PROJETO DE MORALIZAÇÃO
E SUA APARÊNCIA ÉTICA
Voltemos aos problemas iniciais: há motivos para dizer que
EC é uma continuação das extintas EPB/EMC/OSPB, da mesma
forma, para afirmar que ela pode representar uma ruptura. A
idéia de um continuísmo é mais “natural”, esperada; enquanto
a argumentação em favor da possibilidade de ruptura entre EC
e EPB/EMC/OSPB exige um grande esforço teórico e a clareza
das decisões político-educacionais.
As metamorfoses do continuísmo – Vou mostrar
brevemente que há razões suficientes para afirmar o continuísmo entre EPB e EC, com um só exemplo.
Um lembrete histórico: a EPB tornou-se disciplina obrigatória nos cursos superiores do Brasil a partir do final da década
de 1960 (Decreto-Lei nº 869, de 12/9/69), com o objetivo de
restaurar a EMC. A disciplina EC começou a aparecer nos
currículos das universidades a partir da década de 1990. O
contexto do país mudou, houve reconfiguração política, mas
permanece uma base comum, ou melhor, um projeto comum
de “moralização”, quer dizer, de preservação de modelo e de
fins bem claros.
Para exemplificar o continuísmo, vou destacar de um livro da época 13 a questão da Segurança Nacional. O autor
13. Francisco L. Lopes (org). Estudos dos problemas brasileiros. Rio de Janeiro:
Renes, 1971.
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diz: “Para a consecução ou manutenção dos Objetivos Nacionais é necessário que o Estado proporcione à Nação certo
grau de garantia, através de ações políticas, econômicas,
psicossociais e militares, contra antagonismos existentes ou em
potencial”.14 Objetivava-se combater as idéias marxistas, sendo
os antagonistas na ocasião os comunistas, vistos como promotores da extinção do Estado e que, por isso, podiam ser identificados pela “prática da subversão” e de “insurreições“.15 Mas
havia outros objetivos a ser alcançados pela disciplina EPB, a
saber: evitar a especialização (por meio de uma visão mais
ampla baseada numa “pedagogia integral”) e favorecer a “formação do caráter”. O papel fundamental de EPB era, portanto, promover uma “educação integral” baseada no “reconhecimento de todos os valores humanos e no respeito à hierarquia desses valores”. 16
E é justamente ao Estado que se quer assegurar as vantagens da concentração do poder político como nota essencial de
sua existência.17 Do ponto de vista daqueles que pensavam em
favor deste Estado, não há por que chamar o período de “ditadura militar”; no máximo se concede “regime autoritário”, sendo
que a autoridade é louvada. Com efeito, acreditava-se que todo
esse empreendimento, em acordo com a república democrática,
era marcado por uma abertura do processo político a todos os
cidadãos “iguais em direitos, e partícipes na formação e funcionamento do poder do Estado”.18
14. Francisco de Souza Brasil, “Campo da Segurança Nacional”. In: Francisco L.
Lopes. org. Estudos dos problemas brasileiros, p. 309.
15. Francisco de Souza Brasil, art. cit., p. 319.
16. Francisco Leme Lopes, Apresentação. In: Estudos dos problemas brasileiros,
p. 9.
17. Carlos Alberto Menezes Direito. O campo social in: EPB , p. 126.
18. Ibid., p. 143.
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Transição democrática? – Dizem: “o mundo mudou,
o Brasil deixou a ditadura e passou à democracia”. Do ponto de
vista mundial, crê-se que passamos por transições institucionais
(pluralismo político, princípio geral do direito, economia de
mercado) e transição cultural (mudança de mentalidades, atitudes, valores e relações sociais)19 . Contra o que lutava a situação
no Brasil da ditadura? Contra a idéia de uma abolição do Estado. Todas as estratégias empregadas durante o “regime ditatorial” para evitar a abolição do Estado levaram a política econômica brasileira a abraçar o Mercado. Aqui, em especial, não
houve transição. Houve, sim, aperfeiçoamento do capitalismo,
que foi abraçado de maneira ainda mais cerrada. Continuamos
na “ditadura do grande capital”.
Estamos aprendendo, a duras penas, que a marca de
nosso tempo é o domínio do Mercado. Domínio do Mercado
e diminuição do papel intervencionista do Estado na sociedade,
é isto que caracteriza o neoliberalismo. Ora, o que, por causa
de sua aparência aterrorizante de insurreição, o comunismo
não conseguiu, o Mercado realizou – pela sedução de suas
promessas. Resulta daí: o que EPB executava no Estado contra
a sua subversão, EC pode estar executando numa sociedade
regulada pelo Mercado. Assim, se EPB atentava para a preservação do Estado através da Segurança Nacional, EC pode
estar servindo para assegurar a vitória do Mercado, visto que
seus objetivos mais gerais podem estar limitados a assegurar
que cada cidadão trabalhe na melhora deste modelo. A preocupação com desenvolvimento do caráter, com progressão
nas maneiras de administrar as divergências humanas que
surgem dentro deste modelo, descarta qualquer incentivo de
19. César Birzea, A educação num mundo em transição: entre o pós-comunismo e
o pós-modernismo In: Luis Albala-Bertrand (org.). Cidadania e educação, p. 74.
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trabalhar pela sua transformação. Razão por que EC pode
gerar e estimular a proliferação do “politicamente correto”, que
é, também, economicamente correto, quer dizer, economicamente de acordo com o modelo existente. Modelo que se
anuncia único.
Quais são as intenções mais profundas? Melhorar o modelo existente (marca de uma moral neoliberal, hegemônica e
totalitária)? Defender simplesmente a participação democrática
sem modificação desses hábitos dominantes não é garantir a
cidadania, mas pressupor esta e não outra cidade (democrática). Exercer a cidadania pode ser definido como “participar
democraticamente da pólis”, participar, portanto, daquilo que
já-está-dado, discutir a partir daí.
V. PROJETOS DE TRANSFORMAÇÃO:
ÉTICA E EDUCAÇÃO
Espero ter mostrado a importância da distinção entre ética
e moral. É por este viés que o potencial da ética pode ativar
a disciplina EC, fazendo desta um espaço de construção de
idéias que sejam elas mesmas testemunhos do exercício de
uma cidadania ética. É a ocasião de mudar os hábitos de
pensar sempre da mesma maneira as mesmas coisas e instituir
outros hábitos: pensar a partir de um não-dado, inventar hipoteticamente outras inserções cidadãs. Por isso, a cidadania
ética pode levar à decisão da não-inserção e ser caracterizada
pelo rompimento com esse modelo econômico-político e pela
recusa a participar dele, por causa do desacordo com suas
estruturas injustas. Assim, a cidadania não parte obrigatoriamente de um já-dado, mas apresenta novas possibilidades de
um ainda-não-dado, cidadania como utopia, exercício de uma
imaginação cidadã. A ética tem, neste caso, uma tarefa de
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reconstituição semântica, ou seja, ressignificação ética das
palavras que adquiriram sentido moral – inclusive a expressão
“ética e cidadania”.
Aqui o papel de uma disciplina como a EC na escola é
crucial, decisivo. A este aspecto, é interessante o lugar que A.
Barrere e D. Martucelli destinam à escola.20 Por meio de seus
discursos, a escola ocupa duas posições decisivas: lugar de
transmissão de valores morais e palcos de promessas éticas. O
que os autores vêem como complementares, eu veria como alternativas. Se há algo para transmitir, não precisam ser os valores, mas sim nossa possibilidade de recriar os hábitos (e não
os valores – Nietzsche), de inventar novas soluções para os
problemas morais vividos. Descobrir possibilidades de instaurar
outros hábitos que não são exatamente aqueles sedimentados
na cultura.
Uma ética para o corpo – É nesse contexto de imaginação ética, imaginação cidadã, ressignificação semântica
e instauração de novos hábitos que o tema do corpo ganha
mais força. A imaginação aqui não terá um caráter científico,
simbólico, material, mas será imaginação corporal. Por que o
corpo? Porque o corpo é o que mais nos aproxima de uma
sensibilização ética, necessária para que as discussões éticas
ganhem a dimensão terrena, freqüentemente ausente. Não um
corpo que aparece ressignificado nos discursos moralizantes
(proibições, interditos, preso no processo de simbolização),
mas um corpo que ressignifica discursos éticos contra discursos
moralizantes. Uma ética para o corpo é a ressignificação da
20. A escola entre a agonia moral e a renovação ética, in: Educação e sociedade,
p. 258-77.
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ética pelo corpo. Uma ética segundo o corpo. Uma ética seguindo os corpos.
O corpo faz a ética, melhor, o corpo é o lugar da ética.
A disciplina EC é criada pelos corpos e para os corpos. A ética
decide-se no corpo, porque é o corpo que cria hábitos. A ética
é um trabalho dos corpos, para os corpos. O corpo ama seus
hábitos: muitas vezes elimina outros corpos para preservar seus
hábitos – trata-se da violência moral, resultante da violência
corporal. Nossa luta ética é para que o amor pelo corpo não
decaia na idolatria do corpo-próprio (corpolatria); que o amor
pelo “meu” corpo não resulte na destruição de “outros” corpos. Por isso, o corpo precisa também libertar-se de seus
hábitos, para que comece a viver junto de outros corpos,
visualizando novas possibilidades habituais: novos hábitos
educacionais, políticos, sociais, econômicos, políticos. Estudar
ética é, radicalmente falando, estudar os hábitos dos corpos.
No estudo de EC, encontramos o corpo. Não encontramos um tema, mas outro corpo. Ao estudar os hábitos humanos, deparamo-nos com corpos. Aprendemos aos poucos a
conhecer os corpos por meio de seus hábitos, por meio de
seus conflitos. Hábitos em conflitos? Hábitos corporais em
conflito! Conflitos de “cidadanias” são conflitos entre corpos.
Eis o significado dos conflitos da cidadania, dos conflitos dos
corpos: são diferentes formas de habitar; de instituir hábitos,
de herdá-los, de tentar renová-los, de buscar reinventá-los.
Assim, habitar poderia ser a forma verbal dos hábitos: habitar,
instituir hábitos.
O caráter transformador da ética encontra-se na transformação dos hábitos. A educação incide sobre os hábitos e não
sobre os corpos. E a mudança de hábitos não surge somente
por meio da reelaboração de hábitos vencedores, quer dizer,
da moral. A mudança de hábitos surge por meio do choque
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sentido no encontro com outros hábitos corporais, outras
maneiras de o corpo habitar. Mudar de hábitos: não pensar o
corpo em função da Cidade (já-dada, econômico-politicamente estruturada), mas pensar a Cidade (não-dada) em função
dos corpos e, mais exatamente, da geografia atual dos corpos.
O que significa fazer a imaginação ética passear pela cidade
para que os sonhos não sejam elucubrações da mente, mas
gestos apaixonados de corpos que foram afetados por outros
hábitos dos corpos, inimagináveis antes. Afetar-se pelos corpos
que não comem, não bebem e, quando bebem, ficam doentes,
violentados, maltratados, indigentes embora tendo amigos,
corpos privados das danças de amor pela falta de espaço,
privacidade e insalubridade. E tantos outros hábitos...
Se queremos contribuir para a transformação da sociedade e se a disciplina EC pode colaborar, não será por meio de
receituários moralistas e grandes discussões sobre os costumes
hereditários que atingiremos alguma coisa. Será pelo enfrentamento chocante dos hábitos... de uma elite, de abastados,
de beneficiados pelo sistema econômico-político e educacional
vigentes diante de outros hábitos. É um começo apenas, um
ensaio para a percepção dos outros corpos, fora das redes
disciplinares do ensino.
A conservação social e a moralização da sociedade representam uma resistência habitual contra os corpos: a recusa de que a discussão sobre o espaço citadino comece pelo
corpo e não pelos valores morais predominantes (liberdade,
autonomia, direitos, valores cívicos etc.). Resulta daí um esquecimento crucial e mortal para toda educação de novos
hábitos: ignorância de uma geografia dos corpos. Seria preciso, então, começar por mapear o lugar dos corpos na Cidade: identificar aqueles lugares onde se localizam os corpos
sofridos, onde se aglomeram os corpos abastados; seguir os
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movimentos constantes dos corpos violentos e dos violentados; encontrar meios perspicazes para detectar a dissimulação da violência dos corpos, seus centros de irradiação; pôr
em evidência os espaços que calam sobre o corpo... entre
eles, a escola. Tão importante quanto a ressignificação ética
dos hábitos, é a explicitação dessa geografia. A partir dela,
poderíamos concluir que não há Cidade, cidadania... há sim
Cidades, cidadanias, porque há corpos... hábitos diferentes
de viver, de habitar na Cidade.
A explicitação da geografia dos corpos – a desigualdade
de seus hábitos – é condição inicial para que a educação seja
ética. Há corpos que têm hábitos educacionais bem definidos
(freqüentam universidades, projetam outros hábitos em função
destes); hábitos comestíveis (comem várias refeições por dia);
hábitos econômicos (advindos dos recursos financeiros); hábitos
habitacionais (dormem em camas agradáveis, protegidos do
frio). A hierarquia entre os corpos significa que há corpos que
têm hábitos de não freqüentar centros universitários, de não
comer todos os dias e todas as refeições e que habitam lugares
que outros corpos jamais habitarão.
Pensar os problemas morais (hábitos que venceram) a
partir dos corpos é pensar a urgência na discussão ética; é
projetar de maneira diferente as relações cidadãs e as relações
educacionais. Exige-se transformar a maneira de ver da Cidade
e as considerações éticas sobre a cidadania. A educação é
transformadora quando a ética o é, quer dizer, quando o
corpo se põe a revolucionar os hábitos e a interferir politicamente. Neste caso, trata-se de exercer sua cidadania e buscar
alterações geográficas e novos hábitos: propor uma nova
geografia e novos hábitos para o corpo. Uma ética para o
corpo não tem a pretensão de fornecer um programa político
de realocação de corpos nas estruturas sociais vigentes. Ela
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tem como alvo imaginar outras “morais” porque imagina outros “hábitos”. Outros hábitos educacionais.
Educar os hábitos. Educar para o amor, encontrar o
ponto mais alto da vida é o amor pelos corpos sofridos...
Amar o corpo próximo como a teu próprio corpo. É um gesto
ético mínimo e fundamental para que as potencialidades do
corpo e, por isso da ética, comecem a sentir o prazer de habitar de maneira diferente os espaços geográficos das Cidades.
A Cidadania começa no corpo e só tem sentido se for ela
também uma cidadania para os corpos sofridos. Em função do
seu caráter de transformação educacional, terá que mostrar
por que os corpos sofridos e corpos abastados precisam reorganizar a cidade. Se os sofridos precisam começar a viver, os
abastados poderiam – ainda que em função do amor ao próprio corpo – procurar alterar as coisas com vistas à sua sobrevivência. Chegamos ao momento em que a geografia atual
dos corpos começa a matar a todos e não só aos corpos
sofridos! Exercer a cidadania é isso: corpos em luta constante
para instaurar novos hábitos, corpos querendo preservar os
mesmos hábitos de sempre. Neste caso, todos são cidadãos.
A exclusão diz respeito aos benefícios da cidadania e não ao
seu exercício. Eis-nos diante de vícios corporais que impedem
colocar a cidadania como problema do corpo, porque não se
pretende que o corpo seja um problema para a cidadania.
Uma ética para o corpo é um canto em sua homenagem,
mas não para o corpo em geral. É uma ética para aqueles
corpos que não gozam os mesmos hábitos prazerosos de poucos corpos abastados. É uma ética para corpos que não habitam a Cidade de maneira paritária: não puderam ainda desfrutar o prazer de habitar na terra. Uma ética para os corpos sofridos (empobrecidos, pobres, vítimas de organizações opressoras
das cidades, mutilados no prazer). Transformar a geografia atual
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dos corpos, sabendo que não há meios imediatos de eliminar os
conflitos: os hábitos vencedores – a moral – continuarão a se
impor. Contudo, há meios de relativizar os hábitos atualmente
vencedores. Uma vez que os hábitos são instituídos pelos corpos, mudar os hábitos não é uma decisão moral, mas uma
decisão corporal. Apesar das resistências habituais predominantes, vencedoras (morais) é possível transformar aquilo que tomou
forma um dia. Um belo encontro entre corpos, num espaço
educacional, pode ser a ocasião de começar a sonhar assim.
São sonhos dos corpos que mudam os mundos, que instituem
hábitos, outras formas de existência. São os sonhos dos corpos
que resistirão às morais. E, por meio de outros hábitos, poderão
imaginar mundos não vividos, geografias não demarcadas e cidadanias ainda não discutidas.
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