Crescimento liderado pelos salários e inflação no Brasil

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Crescimento liderado pelos salários, política monetária e inflação no Brasil
Thiago Sevilhano Martinez*
Julia de Medeiros Braga**
Resumo
O artigo discute a partir de um referencial kaleckiano a política monetária e o comportamento
da inflação no atual padrão de crescimento brasileiro, liderado pela distribuição de renda e
consumo de massas. Dá-se ênfase ao papel da política de valorização do salário mínimo e
suas implicações para a inflação e a condução da política monetária. São apresentados fatos
estilizados sobre a determinação da inflação na última década. O modelo pós-keynesiano de
Setterfield (2006) e Lima e Setterfield (2008), de metas de inflação em uma economia com
crescimento determinado pela demanda, é estendido para incorporar efeitos da distribuição de
renda no crescimento e uma regra salarial que indexa o poder de barganha dos trabalhadores.
A partir da análise de estabilidade do modelo e dos fatos estilizados, são debatidas as
restrições à condução da política monetária que emergem do atual padrão de crescimento
brasileiro.
Abstract
This paper discusses monetary policy and inflation behavior in the current Brazilian growth
pattern from a Kaleckian theoretical perspective. Emphasis is placed on the role of minimum
wage valorization policy and its implications for inflation and monetary policy. Stylized facts
about the determination of inflation in the last decade are presented. The post-Keynesian
model of Setterfield (2006) and Lima and Setterfield (2008), of inflation targeting in a
demand-led growth economy, is extended to incorporate effects of income distribution in
growth and indexation of workers’ bargaining power by a wage rule. Restrictions to monetary
policy that emerge from Brazilian growth pattern are discussed based on the stability analysis
of the model and the stylized facts presented.
* Técnico de planejamento e pesquisa e coordenador de Economia Monetária e Câmbio da
DIMAC/IPEA.
** Professora Adjunta da Faculdade de Economia da UFF e colaboradora do IPEA.
1
1. Introdução
A história dos últimos trinta anos da economia brasileira tem por característica marcante o
baixo crescimento dos salários reais médios. O desempenho da atividade econômica na
chamada década perdida (1980) e o padrão de crescimento do tipo stop-and-go da década de
1990 com a decorrente ameaça do desemprego enfraqueceram o poder dos trabalhadores em
reivindicar por ganhos salariais substanciais. O conflito distributivo durante esse período tinha
uma solução clara: a recorrente incapacidade por parte dos trabalhadores de conseguir elevar a
parcela dos salários na renda nacional.1
As margens de lucro, por sua vez, estavam de alguma forma protegidas contra a alta da
inflação, pois competiam de forma indireta com altos ganhos gerados nas atividades
financeiras. Os contratos financeiros no Brasil foram atrelados a mecanismos de indexação
formais (no período de alta inflação) ou informais, através da própria atuação da política
monetária (no período de baixa inflação), que estabelecia um alto piso para a taxa de juros
básica da economia. Dessa forma, de maneira geral, a atividade produtiva só se justificava
economicamente se fosse geradora de ampla margem de lucro na definição dos preços finais,
com a taxa de juros estabelecendo um piso mínimo para as taxas de lucros.2
Essa configuração da distribuição funcional da renda prossegue no início da década de 2000.
Somente a partir de 2005 houve uma ruptura desse padrão de comportamento e os salários em
média passaram a superar a inflação ao consumidor a cada ano. Além disso, os ganhos em
alguns anos também começaram a superar o aumento da produtividade da economia,
permitindo uma recuperação da participação da renda do trabalho na renda nacional.3
Há indícios de que essa alteração da distribuição funcional da renda a favor dos salários está
relacionada ao processo de recomposição do valor real do salário mínimo, que está em curso
desde o Plano Real, mas foi intensificado em 2007 pela adoção de uma política de valorização
explícita com indexação dos reajustes à inflação e ao crescimento da economia. Tal aumento
do salário mínimo foi uma das principais causas da substancial melhora na distribuição
pessoal de renda na última década (CARVALHO et al., 2010; FIRPO; REIS, 2007; NEDER;
RIBEIRO, 2010). De 2001 a 2005, a redução da desigualdade ocorreu em contexto de
estagnação da renda média, mas daí em diante esta também cresceu substancialmente
(SOARES, 2010).
Interpretações fundamentadas no princípio da demanda efetiva, especialmente sob o enfoque
kaleckiano, tendem a apontar a melhora na distribuição de renda como uma causa
fundamental da retomada do crescimento econômico ocorrida a partir de 2004. Com a
desconcentração da renda, elevou-se o multiplicador de renda, o que conduziu a maior
crescimento, puxado pela demanda interna (CARNEIRO, 2010). Conforme Santos (2012), a
redução da concentração de renda e da pobreza, motivadas pelo salário mínimo e por políticas
de transferência públicas, como Bolsa Família, foram parte de uma estratégia governamental
para fomentar um padrão de crescimento puxado pelo mercado de massas. Medidas para a
ampliação do crédito ao consumo também atuaram nessa direção. Outros elementos
constitutivos desse novo padrão de crescimento são: alívio da restrição externa, associado à
alta internacional dos preços de commodities exportadas e à acumulação de reservas; atuação
do Estado na expansão do investimento, de forma direta ou indiretamente pelo fomento ao
1
Para dados da distribuição funcional da renda nas décadas de 1980 e 1990, ver Mattos (2005).
Bastos e Braga (2010) calculam uma estimativa para a taxa real de lucro real média da economia brasileira no
período de 1999 a 2008, e encontram uma tendência comum com o movimento da taxa de real juros (calculada
de forma ex-post).
3
Ver IPEA (2008) e Bastos (2012).
2
2
setor privado; aumento da produtividade, acompanhando o investimento (AMITRANO, 2010;
SANTOS, 2012).
Também desde 2004, as metas de inflação foram cumpridas em todos os anos. Entretanto, a
condução da política monetária foi dura e a taxa de juros básica brasileira manteve-se dentre
as maiores do mundo, embora tenha sido reduzida. A taxa de juros alta é um dos principais
limites desse modelo: obsta a continuidade da expansão do crédito ao investimento e
consumo, além de levar a uma taxa de câmbio continuamente apreciada que conduz à
especialização regressiva da estrutura produtiva (CARNEIRO, 2010). Mesmo sob uma
política monetária restritiva, nesse período o cumprimento da meta de inflação esteve sob
risco em momentos em que houve a combinação entre crescimento intenso da economia e
preços de commodities em alta. Assim foi em 2008, quando a inflação acumulada em 12
meses se aproximou do teto da meta e apenas recuou no último trimestre, durante a fase
crítica da crise financeira mundial precipitada pela quebra do Lehman Brothers, à qual se
seguiu uma brusca redução nos preços de commodities. Algo semelhante ocorreu em 2011,
quando em abril a inflação acumulada em 12 meses estourou o teto da meta em virtude de
efeitos defasados de dois fenômenos ocorridos em 2010, o crescimento do PIB de 7,5% e a
repentina retomada das cotações de commodities. Novamente, somente no último trimestre a
inflação em 12 meses recuou, simultaneamente a nova deterioração do cenário internacional,
fechando o ano exatamente no valor do teto da meta.
O propósito do presente artigo é problematizar como a inflação e a política monetária podem
se constituir em limites a um padrão de crescimento guiado pela distribuição da renda
nacional. A discussão é situada nos marcos da teoria neo-kaleckiana, que denomina modelo
de crescimento liderado pelos salários a estrutura econômica em que mudanças na
distribuição funcional da renda a favor dos salários levam a maior crescimento da renda. Para
esse fim, foi alterado o modelo pós-keynesiano apresentado em Setterfield (2006) e Lima e
Setterfield (2008), de uma economia sob regime de metas de inflação em que a demanda
lidera o crescimento e a inflação responde ao conflito distributivo. Foram duas as alterações:
inclusão de efeitos da distribuição de renda sobre o crescimento, conforme a teoria
kaleckiana; e a adição de características da economia brasileira, particularmente um
mecanismo de indexação do poder de barganha dos trabalhadores ao crescimento e à inflação,
como na regra do salário mínimo. A análise de estabilidade do equilíbrio do modelo permite
questionar no plano conceitual em que medida a condução da política monetária e o
comportamento da inflação impõem limites ao atual padrão de crescimento brasileiro.
O artigo está dividido em quatro partes. Após esta introdução, a segunda seção apresenta fatos
estilizados sobre fatores que influenciaram a inflação nos anos recentes: câmbio e preços de
commodities, salários, inércia, demanda, políticas não-monetárias, produtividade e condução
da política monetária. Na terceira seção, é desenvolvido o modelo teórico com características
da economia brasileira, assim como sua análise de estabilidade. Por fim, na quarta seção os
resultados do modelo são utilizados para debater perspectivas da política monetária no
modelo de crescimento brasileiro.
2. Fatos estilizados sobre a inflação nos últimos anos.
i) Na última década, os dois determinantes principais da inflação foram a taxa de câmbio e
os preços em dólares de algumas commodities.
3
A taxa de câmbio é uma variável estruturante da inflação brasileira. Seu papel é tão
importante que sempre é levada em consideração em qualquer trabalho teórico ou empírico
que se propõe a analisar a inflação brasileira (ver SUMMA, 2011), sendo este praticamente
um consenso entre economistas das mais diferentes linhas teóricas. Bastos e Braga (2010)
encontraram que de 1999 a 2008, tudo o mais constante, um aumento médio de 10% na taxa
de câmbio levou a um aumento de um ponto percentual da inflação ao consumidor.
Outra variável importante na determinação da inflação é o preço das commodities. Essa
variável, juntamente à taxa de câmbio, determina uma ‘inflação importada’ pelo Brasil que
pode ser considerada em grande medida exógena na determinação dos preços finais. Essas
duas variáveis foram as determinantes principais da inflação brasileira na última década, no
sentido de serem as influências mais importantes tanto dos movimentos de alta como de
queda da inflação, e que são altamente significativas em qualquer estimação da inflação, a
partir de diferentes métodos econométricos e para diferentes períodos de tempo (ver BRAGA,
2011).
Nas estimativas desagregadas da inflação ao consumidor de Martinez e Cerqueira (2011), a
variação cambial e a inflação de commodities também apresentaram forte significância
estatística. Em Braga (2011), a única categoria da inflação ao consumidor que não é afetada
pela inflação importada são os serviços não monitorados pelo governo. Uma análise setorial
do índice de preço no atacado (IPA-OG) também indica que todos os setores industriais de
bens comercializáveis sofrem repasse cambial, com repasse médio próximo a 0,7 (elevação de
0,7% do IPA-OG para cada 1% de aumento do câmbio). Os setores que apresentam em sua
composição de insumos uma participação maior de importados apresentam repasse cambial
mais elevado (CORREA, 2012). Este repasse é praticamente completo nos setores de extração
de petróleo e gás, setores do complexo químico e outros com elevado grau de abertura.
Na década de 2000 ocorreu uma correlação média negativa entre a taxa de câmbio, de um
lado, e os preços das commodities, de outro. O único período em que os dois fatores atuaram
conjuntamente em direção altista foi no final de 2002/início de 2003, em virtude da incerteza
associada às eleições presidenciais, o que explica o alto patamar da inflação alcançado ao
longo do ano de 2003 (ver BASTOS; BRAGA, 2010).
Como apontam Lora, Powell e Tavella (2011), em países exportadores de commodities os
efeitos inflacionários da elevação desses preços são compensados pela apreciação cambial
decorrente da maior entrada de divisas no balanço comercial, na medida em que o governo
não combata a apreciação. Este é um dos dilemas de política econômica do modelo brasileiro,
intervir ou não no câmbio. Pois a apreciação cambial decorrente da alta das commodities
ajuda a controlar a inflação, em boa medida pressionada por esses mesmos preços, mas
fragiliza a indústria nacional, tornando a economia cada vez mais dependente da exportação
de commodities.
Pressões cambiais ocorreram, grosso modo, na primeira metade da década, enquanto que
pressões dos preços das commodities foram relevantes principalmente na segunda metade da
década. As depreciações cambiais da primeira metade da década pressionaram os índices de
inflação ao consumidor, influenciando o preço de serviços monitorados pelo governo (como
energia elétrica, combustíveis, transporte urbano e telefonia), o preço dos produtos
industrializados e de alimentos e bebidas (Martinez, 2012).
Já na segunda metade da década, os principais grupos que impactaram a inflação foram os
serviços não monitorados pelo governo, como será discutido na próxima subseção e,
novamente, alimentos e bebidas. O grupo alimentos e bebidas foi diretamente influenciado
pelo aumento das cotações em dólares das commodities agrícolas. As principais commodities
4
com impacto sobre a inflação ao consumidor no Brasil são as energéticas e, sobretudo as
agrícolas. De fato, uma característica marcante do processo inflacionário brasileiro é o forte
peso que os alimentos têm na cesta de consumo das famílias brasileiras, correspondente a
mais de 20% do Índice Nacional de Preços ao Consumidor amplo (IPCA).
Recentemente, no final do ano 2010 e início de 2011, a escalada dos preços das commodities
foi extremamente forte e não foi compensada por uma valorização da taxa de câmbio, em
parte por causa de intervenções governamentais para conter a queda da cotação. O resultado
foi uma forte inflação importada concentrada nos itens alimentos e combustíveis – nesse
último caso, menos pela alta do petróleo, que foi absorvida pela Petrobrás, e mais pelo efeito
do preço do açúcar no etanol. Após o primeiro trimestre de 2011, as cotações recuaram e
auxiliaram o cumprimento da meta de inflação.
ii) Os efeitos dos salários sobre a inflação têm sido crescentes nos últimos anos,
especialmente sobre os serviços livres.
De 2000 até 2004, os salários nominais médios cresceram abaixo da inflação (medida pelo
IPCA), com média de 3,2 % ao ano (a.a.). A partir de 2005, a variação dos salários nominais
ficou acima da inflação geral, passando a crescer numa média de 8,0% a.a.
GRÁFICO 1: Salários Nominais e Inflação
20
18
16
14
12
10
8
Inflação ao Consumidor (%)
6
4
Variação dos Salários Nominais
(%)*
2
2000.01
2000.09
2001.05
2002.01
2002.09
2003.05
2004.01
2004.09
2005.05
2006.01
2006.09
2007.05
2008.01
2008.09
2009.05
2010.01
2010.09
2011.05
0
Ambas os indicadores são variações acumuladas em 12 meses.
Os salários nominais foram obtidos a partir da série de rendimento médio habitualmente recebido pela
população ocupada da Pesquisa Mensal do Emprego. A série foi suavizada pelo filtro Hodrick-Prescott
Fonte: IBGE
Elaboração: Própria
No período de crescimento salarial acima da inflação, o salário mínimo apresentou ganho
ainda superior ao do salário médio. O efeito do salário mínimo sobre a inflação é
extremamente difícil de captar, devido ao fato de os reajustes serem concentrados em apenas
um mês do ano, causando descontinuidades abruptas nas variações percentuais da série. Além
disso, os meses desses reajustes variaram ao longo dos anos: de 2000 a 2003 os reajustes
foram em abril, em 2004 e 2005, maio; em 2006 e 2007, abril; em, 2008, março; em 2009,
fevereiro e em 2010, 2011 e 2012, janeiro. Contudo, algumas outras evidências sugerem que
o salário mínimo foi importante para explicar a evolução de preços em alguns setores. Em
primeiro lugar, o número de trabalhadores com salário equivalente ao mínimo4 foi cerca de
16% do número total de empregados em 2009 (refletindo um aumento em relação à
4
Ao valor do SM foi adicionado, para mais ou para menos, 3,6% do mesmo, para considerar arredondamentos
na declaração da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)/IBGE.
5
participação de 10% em 1999). Em segundo lugar, o crescimento dos rendimentos dos
trabalhadores no setor informal (sem carteira assinada) e por conta própria foi superior ao do
setor formal. Estes rendimentos podem ter sido influenciados pelo salário mínimo, visto que
este pode atuar como um importante sinalizador, um ‘farol’, servindo de base para reajustes
destas remunerações.
Dessa forma, Braga (2011) realiza um tratamento estatístico de suavização da variação
salarial acumulada do salário mínimo em 12 meses e a compara à inflação de serviços,
chegando à conclusão que as duas séries compartilharam de tendência semelhante ao longo da
década de 2000.
A importância dos salários na determinação dos preços dos serviços livres foi estimada
formalmente por Braga (2011). A autora estima um sistema de equações para a inflação ao
consumidor e para a variação salarial, encontrando o resultado de que variação salarial é uma
variável significativa na explicação da inflação ao consumidor agregada, mais
especificamente, na inflação dos serviços livres. Segundo as estimativas da autora, os salários
foram as principais variáveis explicativas na equação para esses serviços, única categoria que
não sofre influência direta nem dos preços das commodities nem da taxa de câmbio, mas
predominantemente de seu próprio passado, sugerindo comportamento fortemente inercial, e
da variação dos salários. Esses serviços compreendem os chamados serviços pessoais,
prestados por empregados domésticos, cabeleireiros; serviços prestados por outros
profissionais tais como mestre de obras, mecânicos, bombeiros; serviços prestados pelos
chamados profissionais liberais (médicos, dentistas, advogados, entre outros). Outras
componentes com peso significativo são o aluguel residencial, as taxas condominiais e,
especialmente, serviços da área de educação. Além disso, a autora também encontrou
evidências da influência dos salários na categoria de alimentos fora do domicílio, item que
apesar de ser classificado com um bem de consumo não durável até o final de 2011, contem
uma componente de prestação de serviços, tanto que foi reclassificado como tal pelo Banco
Central em 2012.
Esses serviços com preços não administrados pela esfera pública cresceram acima da meta de
inflação desde 2003, em uma média de aproximadamente 6,0% a.a. A partir de 2006 ocorreu
um aumento também do preço relativo dos serviços (serviços em relação a todas as outras
componentes do IPCA). No gráfico 2, as estimativas da autora são corroboradas pela alta
correlação entre o preço relativo dos serviços livres5 e a trajetória do salário médio real. Esse
aumento do preço relativo dos serviços acompanhou de perto o aumento dos salários reais.
5
O preço relativo dos serviços é construído em forma de índice, com base 100 em janeiro de 2000 a partir da
variação dos preços dos serviços não monitorados pelo governo dividido por uma média ponderada das outras
categorias de uso do IPCA (preços monitorados e bens de consumo) com pesos observados em 2010 para toda a
série. Os pesos utilizados foram 29,4% para os monitorados, 8,7% para os bens de consumo duráveis, 28,7%
para os não duráveis e 8,7% para os semi-duráveis.
6
GRÁFICO 2: Preço Relativo dos Serviços e Salário Real
105
100
Preço Relativo
dos Serviços
95
90
Salário Real
Médio
85
3 Trim 2011
4 Trim 2010
1 Trim 2010
2 Trim 2009
3 Trim 2008
4 Trim 2007
1 Trim 2007
2 Trim 2006
3 Trim 2005
4 Trim 2004
1 Trim 2004
2 Trim 2003
80
3 Trim 2002
BASE 3o TRIMESTRE 2002 = 100
110
Fonte: IBGE. Elaboração própria
Martinez (2012) calcula que esses serviços foram, juntamente com os alimentos e bebidas, os
maiores responsáveis pela inflação ao consumidor na segunda metade da década de 2000,
com destaque para a alta nos serviços pessoais e educacionais. Na decomposição da inflação
de 2011, ano em que a inflação medida pelo IPCA fechou exatamente no teto da meta, quase
todo o desvio da inflação da inflação em relação ao centro da meta pôde ser explicado pelos
serviços livres acrescidos da alimentação fora do domicílio.
iii) A inflação brasileira tem um alto grau de inércia.
A literatura sobre a inflação da década de 1980 no Brasil foi marcada pela discussão do papel
da inércia na formação da inflação. O que passou a se chamar de “inflação inercial” foi
justificada no período de alta inflação por mecanismos formais de indexação. A inflação se
movia em patamares cada vez maiores e, uma vez atingido um patamar de inflação, este
tendia a se perpetuar, mesmo na ausência de novos choques externos.
De forma geral, o plano Real foi bem sucedido no sentido de desindexar a economia, com a
extinção de mecanismos formais de indexação de preços. Porém, muitos preços monitorados
continuaram a ser reajustados parcialmente por algum indexador após as privatizações, sendo
o mais comum o Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação Getúlio Vargas, cujas variantes
IGP-M e IGP-DI diferem pelo período do mês de coleta dos dados. Mais da metade da
ponderação do IGP é derivada de um índice de preços ao produtor, muito afetado por
variações cambiais. Assim, esses contratos de serviços públicos indexados ao IGP reforçavam
sobremaneira o canal de transmissão da taxa de câmbio à inércia inflacionária.
Medidas de desindexação foram adotadas com sucesso ao longo da década de 2000. Dentre
diversas alterações da fórmula de reajuste de preços duas se destacam, quais sejam, as tarifas
de energia elétrica e telefonia fixa, cujos reajustes acompanhavam os Índices Gerais de Preços
e passaram a seguir índices que refletem melhor os custos de cada setor. Assim o IGP perdeu
importância para explicar variações dos preços administrados no IPCA, contribuindo para
reduzir a inércia no grupo, como será visto na subseção v.
7
Atualmente, dos componentes que agregam a cesta de consumo utilizada no cálculo do IPCA,
praticamente apenas alguns preços tem reajustes formalmente vinculados a índices de preço
do ano anterior, como é o caso dos alugueis residenciais e, parcialmente, algumas tarifas
públicas. Ainda assim, para alguns economistas, além do problema da indexação nos
contratos financeiros,6 os agentes econômicos ainda não conseguiram se desvencilhar de
mecanismos informais de indexação de preços, em grande parte por razões subjetivas de
memória do passado de alta inflação.
Braga (2011) estima que cerca de 70% a 80% das variações mensais da inflação são passadas
de um período ao outro, indicando um processo de auto-alimentação da inflação. Coeficientes
menores que a unidade, porém, não justificam a adoção de modelos aceleracionistas da
Curva de Phillips para a inflação brasileira, pois estatisticamente tal modelo leva a uma
superdiferenciação não necessária da série de inflação. Dessa forma, os receios de uma
aceleração contínua da inflação não têm respaldo de estimativas econométricas.
O papel na inércia na economia, porém, é bastante difícil de ser medido empiricamente.
Marques (2004) critica os trabalhos que estimam a inércia através de modelos univariados,
ressaltando a dificuldade de se separar empiricamente a inércia inflacionária das mudanças na
tendência de longo prazo da inflação. Por sua vez, para Serrano (1986) a “inflação inercial” da
economia brasileira na década de 1970 e 1980 na verdade não era determinada apenas por
mecanismos de indexação. Para o autor, o processo inflacionário era explicado não somente
por uma característica de plena indexação da economia e inércia completa, mas por uma
conjugação entre estes elementos e a existência de um conflito distributivo acirrado. Esse
argumento ainda pode ser utilizado no período de baixa inflação, uma vez que, diante da
inexistência de dados para margens de lucro, a medida de inércia pode na verdade captar a
dinâmica das margens de lucro na inflação ao consumidor. A hipótese aqui levantada é que, à
semelhança dos contratos financeiros, as margens de lucro ficam protegidas, pois os
produtores conseguem realizar a recomposição após um choque nos preços e custos de
produção, determinando assim uma dinâmica de inércia dos preços finais. Ou seja, é possível
que grande parte da inércia da inflação no Brasil ocorra por causa das recomposições de
margens de lucro após choques nos custos de produção.
O problema da inércia inflacionária tem sido um dos principais argumentos dos críticos à
regra de indexação do salário mínimo. No ano de 2007, foi adotada uma política de
valorização do salário mínimo que indexou até 2011 os reajustes anuais à variação do Índice
Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do ano anterior, mais o crescimento do PIB real
de dois anos antes. Em 2011, foi aprovada uma lei que garante a vigência dessa regra até
2015. Isso garantiu crescimento anual do salário mínimo acima dos ganhos de produtividade e
reintroduziu na economia brasileira um mecanismo formal de indexação de alcance
abrangente, uma vez que pelo “efeito farol” o valor do salário mínimo influencia mesmo os
rendimentos não indexados a ele.
iv) Medidas de contenção de demanda têm pouco efeito sobre a inflação.
Historicamente no Brasil sempre foi difícil encontrar uma relação econométrica sistemática
entre inflação e excesso de demanda (ver, por exemplo, SUMMA, 2010 para um survey).7
Esta relação é bastante instável, varia de acordo com a fase histórica da economia, sendo
6
Para uma resenha sobre a questão da indexação nesses contratos, ver Modenesi e Modenesi (2012).
As evidências mostram também que os aumentos na renda e na atividade econômica estimulam e elevam mais
que proporcionalmente o investimento privado no país (LUPORINI; ALVES, 2007). Além disso, num cenário
de demanda aquecida, parte dela pode ser atendida por importações.
7
8
negativa em alguns períodos e positiva em outros. Estimativas desagregadas por grupos do
Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA) indicam que a demanda (dentre o câmbio, o
preço das commodities, as expectativas inflacionárias e a inércia inflacionária) é a variável
que tem menor relevância na explicação da inflação (MARTINEZ; CERQUEIRA, 2011). Nas
equações estimadas em Braga (2011) para a inflação ao consumidor, não foi encontrado
suporte econométrico para a existência de inflação de demanda na década de 2000. Nenhum
dos indicadores de excesso de demanda se mostrou estatisticamente significativo na equação
de inflação ao consumidor agregada nem nas estimativas desagregadas para bens de consumo
duráveis, não-duráveis e semi-duráveis e nem mesmo para o caso dos serviços cujos preços
não são administrados na esfera pública.
Braga (2011) interpretou a falta de significância estatística da demanda na inflação ao
consumidor como uma evidência da falta de resposta das margens de lucro aos movimentos
da demanda. A autora não encontrou evidências de que o canal de transmissão da demanda
aos preços se dê por ajustes nas margens de lucro, como supõem alguns autores póskeynesianos (ver em LAVOIE, 1992). Por outro lado, para Braga (2011) a demanda se faz
sentir de forma indireta através do impacto sobre o poder de barganha dos trabalhadores. As
estimativas para a década de 2000 apontam que os salários tiveram comportamento prócíclico, com a taxa de desemprego sendo significativa estatisticamente na expansão dos
salários. O impacto indireto da demanda sobre a inflação se dá por meio de um ambiente
mais favorável às reivindicações dos empregados no período de negociações salariais. Braga
(2011) encontra que, para cada diminuição de um ponto percentual da taxa de desemprego,
considerados constantes todos os outros fatores que afetam os salários, há um aumento de
0,23 ponto percentual dos salários nominais. A implicação é que medidas de contenção de
demanda, tudo mais constante, podem ter o efeito perverso de frear a expansão dos salários
contendo um viés pela resolução do conflito distributivo desfavoravelmente aos salários e
pró-lucros.
v) Políticas não monetárias de controle foram eficazes no combate à inflação.
Na década de 2000 foram implementadas uma série de mudanças nas regras de determinação
de preços monitorados. Destas, destacam-se alterações contratuais nos setores de telefonia e
energia elétrica e a política de reajuste de preços da Petrobrás aliada à tributação sobre os
preços finais dos combustíveis.
No caso da telefonia e energia, pelas regras impostas durante o processo de privatização, nas
quais o valor em dólar das receitas dos novos proprietários eram preservados, alguns desses
itens acabaram por atrelar esses preços de uma forma indireta aos movimentos da taxa de
câmbio. Tais regras permitiram que esses preços tivessem reajustes muito acima da média da
inflação durante o período de desvalorização cambial. De fato, como colocam Martinez e
Cerqueira (2011), esses preços tiveram forte impacto sobre a inflação nos anos de 2000 a
2005. Esse aumento pode ser caracterizado por uma “inflação de grau de monopólio” e se
refere ao lucro acima daquele obtido sob condições de concorrência.
Especificamente no caso da energia elétrica, a influência da variação cambial é sentida de
forma direta, uma vez que a energia gerada por Itaipu é denominada em dólares. Em 2004,
ocorreu uma mudança do marco regulatório e as distribuidoras não mais poderiam repassar
quaisquer custos de aquisição a tarifas. O repasse de custos passou a ser definido pela agência
reguladora a partir dos preços médios operados nos leilões de energia elétrica. Além disso,
9
para os leilões de energia nova o indexador de reajuste passou a ser o IPCA.8 Atualmente,
somente uma parcela da componente da fórmula de reajuste (encargos tarifários) é ainda
referenciada ao IGP-M.
No caso dos contratos dos serviços telefônicos, houve uma alteração na regulação em janeiro
de 2006 (devido ao vencimento dos contratos realizados na época das privatizações). A
primeira mudança foi a substituição do Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGPDI) pelo Índice de Serviços de Telecomunicação (IST), composto por uma combinação de
outros índices, dentre eles o IPCA, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), o
IGP-DI e o IGP-M. A mudança do índice atuou no sentido de amortecer as fortes oscilações
do IGP-DI e foi benéfica especialmente no ano 2008, quando o IGP-DI aumentou 11,2%, o
IPCA, 5,9%, e o IST, 6,6%. Além disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)
alterou a regulação no momento da reformulação contratual, modificando a fórmula do
chamado fator X. Este fator do mecanismo de “preço-teto” (price-cap) consiste em um
desconto após o reajuste por determinado índice de preço. Anteriormente, este fator era
praticamente estático; com as novas regras, passou a ter uma fórmula que o vincula ao
crescimento da produtividade. O resultado da nova regulamentação foi um aumento desse
desconto, uma redução dos tetos tarifários e um compartilhamento com os consumidores dos
ganhos de produtividade do setor (ver MATTOS, 2007).
No caso dos combustíveis, a regra de reajuste da Petrobras é de não repassar oscilações de
curto prazo aos preços dos combustíveis. Além disso, desde 2006 o Ministério da Fazenda
(MF) adotou a política da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cideflexível), reduzindo temporariamente a tributação sobre a gasolina e o óleo diesel durante
picos de preço do petróleo no mercado internacional. O efeito destas duas políticas foi
determinante para o comportamento da inflação na segunda metade da década, quando a
variação (já convertida em reais) de cerca de 40% do preço do petróleo ocorrida em 20072008 não foi inteiramente repassada ao preço dos combustíveis. Os preços da gasolina e do
diesel nas refinarias permaneceram inalterados desde o final de 2005 até maio de 2008. Em
maio de 2008 houve reajuste de 10%, no caso da gasolina e 15% no caso do diesel. O impacto
sobre o consumidor do reajuste da gasolina, no entanto, foi nulo (a componente gasolina do
IPCA variou em 0,0% no acumulado em 12 meses), uma vez que foi compensado pela
diminuição da Cide. Em 2009 e 2010 a variação percentual no IPCA continuou baixa no caso
da gasolina (cerca de 1,5% a.a.)9, enquanto o óleo diesel passou a registrar deflação.
Essas mudanças nas regras dos preços foram interpretadas por Martinez e Cerqueira (2011)
como uma alteração em uma componente “estrutural” desses preços. Os autores estimaram,
por intermédio de modelos de função de transferência de Box e Jenkins, que após 2006 séries
de preços monitorados tiveram redução no patamar, na inércia e/ou na volatilidade. Braga
(2011) encontra resultado semelhante, a partir de modelagem GARCH-M, mostrando que
essa redução de patamar não foi causada somente pela valorização cambial ocorrida no
período, mas também pelas medidas adotadas pelo governo de alteração nas regras do jogo e
do forte crescimento da produtividade nos setores em que houve essa mudança, sugerindo a
eficácia de políticas não monetárias de combate à inflação.
vi) A produtividade cresceu nos últimos anos, ainda que pouco, o que auxiliou o controle
da inflação.
8
Tais mudanças se fizeram sentir a partir de 2006, uma vez que em 2005 aconteceram reajustes em decorrência
do repasse de componentes financeiros, o chamado passivo regulatório.
9
Média do índice acumulado em 12 meses ocorrida em todos os meses entre janeiro de 2009 até agosto de 2010.
10
Como exposto em Lavoie (1992), uma variável importante para acomodar o conflito
distributivo latente é a mudança na tecnologia e o consequente crescimento da produtividade.
Ao longo da década de 2000, houve aumento da produtividade total da economia
(crescimento de 1,7% da produtividade total dos fatores de 2003 a 2007) e uma redução da
defasagem tecnológica em relação aos países desenvolvidos (ver BARBOSA FILHO;
PESSOA; VELOSO, 2010; AMITRANO, 2010). Esse crescimento da produtividade foi
maior naturalmente no setor industrial, sujeito a se beneficiar de ganhos de escala e da
tecnologia incorporada nas máquinas e equipamentos importados, e parece ter influenciado os
preços dos bens de consumo duráveis. Desde o final de 2005, o preço de bens de consumo
duráveis cresceu a um nível muito abaixo da inflação agregada ao consumidor (apresentando
variação praticamente nula). Esse parece ser o efeito conjunto da valorização cambial, da
exposição à concorrência externa, de economias de escala (e, portanto, redução do custo
unitário de produção), além da política temporária de redução dos tributos devido à crise
econômica de 2008.
Na indústria, esse crescimento da produtividade foi responsável por manter o custo unitário
do trabalho real (isto é, o salário real médio vis-à-vis a produtividade) em patamar
aproximadamente invariante ao longo da década. O índice com base 100 em janeiro de 2001
atingiu o nível de 94,5 em dezembro de 2010 no caso da indústria geral (e 94,0 na indústria de
transformação). Mais especificamente, o índice apresentou leve queda nos primeiros anos da
década, cresceu durante a crise de 2008 e voltou a declinar parcialmente no final da década.
Dessa forma, na indústria os ganhos agregados de produtividade compensaram o crescimento
dos salários. O baixo crescimento do preço dos bens duráveis (e dos preços monitorados pelo
governo, como vimos na subseção anterior), por sua vez, compensou parcialmente o
crescimento do preço dos serviços no IPCA.
Porém, quando se toma como medida de produtividade do trabalho o volume bruto da
produção agregada (em todos os setores) dividido pela população ocupada a história passa a
ser um pouco diferente, devido ao peso do setor de serviços na economia. O gráfico 3 mostra
que a queda do salário real ocorrida em 2003 foi tão intensa que a recuperação dos anos
posteriores ainda não foi suficiente para que a parcela dos salários na renda alcançasse níveis
de 2000. Assim, o crescimento salarial desse período apenas compensou as expressivas
quedas que se observaram ao longo das últimas décadas, interrompidas apenas
temporariamente durante os primeiros anos de vigência do Plano Real.
11
GRÁFICO 3: Salário Real e Produtividade
115
110
105
100
95
Produtividade
Salário Real Médio
90
85
Base 2007 = 100
80
3 Trim 2011
1 Trim 2011
3 Trim 2010
1 Trim 2010
3 Trim 2009
1 Trim 2009
3 Trim 2008
1 Trim 2008
3 Trim 2007
1 Trim 2007
3 Trim 2006
1 Trim 2006
3 Trim 2005
1 Trim 2005
3 Trim 2004
1 Trim 2004
3 Trim 2003
1 Trim 2003
3 Trim 2002
Fonte: IBGE. Elaboração própria
Porém, a velocidade com que ocorreu esta recuperação de fato provocou um impacto
inflacionário. Os salários passaram a subir acima da produtividade nos últimos anos da década
de 2000, o que está relacionado à regra de indexação do salário mínimo. O setor dos serviços
livres é sujeito a menor crescimento da produtividade relativamente aos outros setores pela
sua própria natureza. Ao mesmo tempo, é aquele em que incidiram maiores variações
salariais, devido à influência da política de reajuste do salário mínimo. Assim, o aumento do
preço relativo desses serviços na década de 2000 foi reflexo: i) da desejada redistribuição de
renda decorrente da política de recuperação do poder de compra do salário mínimo e de um
ambiente mais favorável ao crescimento dos salários médios, já que é um setor fortemente
intensivo em trabalho; e ii) do menor crescimento da produtividade no setor de serviços vis-àvis ao setor industrial.
TABELA 1: Salário Real e Produtividade Agregada e no Setor de Serviços
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011*
Salário Real Médio
-11.5
-1.3
1.5
4.0
3.2
3.4
3.2
3.8
4.0
Produtividade Agregada
-2.6
2.6
0.3
1.7
3.2
1.4
-1.4
3.1
0.8
Produtividade Serviços
-4.1
1.8
3.8
1.8
2.5
-0.3
2.8
-2.7
-0.7
Taxas de crescimentos da média dos 4 trimestres do ano frente á média dos 4 trimestres do ano anterior
*Crescimento acumulado em 4 trimestres terminados no segundo trimestre de 2011
Fonte: IBGE, elaboração própria
Dessa forma, a despeito das dificuldades de se obter medidas adequadas para a produtividade
no setor, é possível afirmar que os ganhos de produtividade gerados nestas atividades per si
12
não foram o suficiente para compensar estas pressões salariais. Portanto o custo unitário do
trabalho nos serviços livres de fato exerceu uma influência altista sobre os preços do setor.
vii) Na última década, o BCB deu pouca ênfase à estabilização do produto na condução da
política monetária, mas isso mudou na atual gestão.
Desde julho de 1999, a política monetária no Brasil é conduzida seguindo um sistema de
metas para a inflação. Este foi adotado para que a política monetária substituísse o regime de
câmbio administrado, abandonado no início do ano, como âncora nominal para manter a
estabilidade inflacionária (BOGDANSKI et al., 2000; FRAGA, 2011).
O Decreto Presidencial nº 3088, que criou o regime de metas para a inflação, estabelece que o
Banco Central do Brasil (BCB) deve perseguir a meta de inflação fixada pelo Conselho
Monetário Nacional com dois anos e meio de antecedência. A meta é considerada cumprida se
a variação acumulada do índice de inflação – o IPCA, escolhido posteriormente – estiver
dentro do intervalo de tolerância ao final do ano. O decreto estipula que compete ao BCB
“executar as políticas necessárias para cumprimento das metas fixadas”, o que, nas palavras
do presidente do BCB à época, Armínio Fraga, “insinuava a delegação de uma autonomia
operacional para o Banco” (FRAGA, 2011 p.28). A autonomia operacional do BCB na
condução da política monetária manteve-se desde então.
Na gestão de Armínio Fraga, durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique
Cardoso (1999-2002), as metas foram cumpridas nos dois primeiros anos, mas não nos dois
últimos. O motivo principal foi a sequência de crises que causaram depreciações abruptas na
taxa de câmbio, com reflexos nos preços domésticos. Pela mesma razão, a meta também foi
descumprida em 2003, mas foi atendida nos sete anos subsequentes da gestão de Henrique
Meirelles, durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
A taxa de juros básica de curto prazo, que é uma média de operações com títulos federais
realizadas no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), é o principal instrumento da
política monetária no Brasil. A taxa Selic foi reduzida ao longo dos anos de vigência do
regime de metas para a inflação. Não obstante, a taxa de juros reais brasileira ainda é muito
superior à média das principais economias do mundo. Consequentemente, críticas ao BCB são
frequentes entre industriais, sindicados e setores da academia.
Estimativas da regra de Taylor para o Brasil em geral apontam que, durante a vigência do
regime de metas, a função de reação do BCB tem dado grande importância à suavização nos
movimentos da taxa de juros e aos desvios da inflação em relação à meta, mas pouco ou
nenhum peso à estabilização do produto. Esse resultado é observado em estimativas lineares
de regras do tipo forward-looking (MINELLA et al., 2002) e backward-looking
(MODENESI, 2011). Modenesi (2011) interpreta o elevado peso ao objetivo de suavização da
trajetória da Selic como evidência de conservadorismo do BCB na condução da política
monetária. Aplicando um modelo Markov-Switching, Lima et al. (2007) identificam dois
regimes de política monetária no período após a adoção das metas de inflação. Em ambos a
suavização de movimentos da taxa de juros é forte e em apenas um deles a resposta ao
produto é relevante, mas ainda assim com coeficiente inferior à resposta à inflação.
Balbino et al. (2011) testam se a condução da política monetária foi diferente nas gestões
Armínio Fraga e Henrique Meirelles por meio de um VAR de parâmetros variáveis, isolando
os efeitos de choques exógenos e da política monetária sobre a trajetória da inflação.
Encontram que as diferenças não são significativas, mas que a gestão Henrique Meirelles foi
13
mais conservadora porque a taxa de juros permaneceu acima do necessário à convergência da
inflação segundo a condição de estabilidade manifesta no princípio de Taylor.10 Palma e
Portugal (2011) apontam que a regra de Taylor é uma forma reduzida, a partir da qual não é
possível fazer inferências sobre as preferências do Banco Central. Estimam um modelo novokeynesiano padrão com expectativas forward-looking e verificam que o comportamento do
BCB durante o regime de metas é mais coerente com a hipótese de discrição do que
comprometimento com uma regra. No sistema de preferências do BCB estimado sob a
hipótese de discrição, os pesos para cada um dos objetivos são de 82,64% para o controle da
inflação, 16,53% para a suavização de juros e 0,83% ao hiato do produto. Esse resultado em
parte difere do indicado pelas estimativas de regra de Taylor, nas quais em geral a suavização
de taxa de juros aparece com o peso maior e o controle da inflação em seguida com peso
menor, mas concorda ao conferir peso muito baixo à estabilização do produto.
Ao longo do ano de 2011, o primeiro do mandato presidencial de Dilma Rousseff e da gestão
de Alexandre Tombini à frente do BCB, generalizou-se a impressão de que a autoridade
monetária passou a dar maior relevância à estabilização do produto. Já no final de 2010
surgiram sinais de mudanças na operacionalidade vigente até então do regime de metas,
quando o relatório de inflação de dezembro anunciou que medidas macroprudenciais
restritivas - como elevação de recolhimentos compulsórios - passariam a ter como objetivo
não só a estabilidade sistêmica, mas também anteceder ou mesmo substituir parcialmente as
ações convencionais de política monetária (BCB, 2010).
Em suas declarações no início de 2011, quando a inflação acumulada em 12 meses crescia
rapidamente em direção ao teto da meta, Tombini apresentou o diagnóstico de que a maior
parte das pressões se originava no choque de commodities e que o retorno ao centro da meta
seria mais lento. Na decomposição da inflação apresentada no relatório de inflação de março
de 2011, os choques de oferta passaram a ser considerados como um dos componentes,
reforçando a mensagem de que a reação do BCB a esse tipo de choque passaria a ser diferente
da reação a um choque de demanda (BCB, 2011). 11 A mudança mais contundente no
comportamento do BCB ocorreu na reunião do Copom de agosto de 2011, quando para a
surpresa dos analistas de mercado a taxa Selic foi reduzida em meio ponto, mesmo com a
inflação acumulada em 12 meses acima do teto da meta e em trajetória de alta. Críticas
surgiram a uma suposta intervenção política no BCB, reforçadas porque há meses a presidenta
Dilma Rousseff dava declarações sobre a necessidade de reduzir os juros ao patamar
internacional. Desde então, o BCB continuou a reduzir os juros, atingindo a mínima histórica
de 8,5% em maio de 2012. A inflação acumulada em 12 meses começou a recuar no final de
2011, chegou ao teto da meta em dezembro e em maio de 2012 era de 4,99%. Embora parte
dos analistas econômicos continue com o diagnóstico de que o regime de metas de inflação
foi distorcido, fortaleceu-se a visão de que o BCB antecipou corretamente a deterioração do
cenário externo.
10
Decorre do princípio de Taylor que uma condição suficiente para a estabilidade do sistema é que a soma dos
coeficientes de resposta da taxa de juros à inflação seja maior que a unidade, o que foi observado nas estimativas
para a gestão Meirelles. Embora não haja diferenças significativas de condução da política monetária nos dois
períodos, o modelo aponta que, durante a gestão Meirelles, o esforço necessário em termos de taxa de juros para
manter a inflação estável poderia ter sido menor, pois a potência da política monetária para afetar preços teria
aumentado em relação ao período da gestão Fraga (BALBINO et al., 2011).
11
De acordo com Armínio Fraga, no início do regime de metas havia uma preocupação do BCB em identificar a
natureza do choque inflacionário e agir de forma diferenciada conforme esse diagnóstico, mas ao longo do tempo
essa prática se tornou menos transparente e o foco passou a ser reagir aos desvios da meta sem explicitar a fonte
dos choques (FRAGA, 2011, p. 31).
14
3. Um modelo de metas de inflação e regra salarial para o caso brasileiro
Nessa seção, será desenvolvido um modelo para a economia brasileira em que fatores
relacionados à distribuição funcional da renda afetam a inflação e o crescimento. O modelo
incorpora alguns dos fatos estilizados mencionados na seção anterior. A ênfase é dada à regra
de indexação do salário mínimo, por seus efeitos sobre o poder de barganha dos
trabalhadores. Pela análise de estabilidade do equilíbrio do modelo, pretende-se
problematizar como a configuração da economia brasileira limita a escolha entre priorizar a
inflação ou o crescimento na condução da política monetária.
Parte-se do modelo proposto em Setterfield (2006) e ampliado em Lima e Setterfield (2008)
para analisar a compatibilidade de diferentes regras de política monetária e políticas de rendas
com uma economia de características pós-keynesianas, em que a demanda afeta o crescimento
de longo prazo e a inflação depende do conflito distributivo. O arcabouço da presente seção se
diferencia do referido modelo por dois motivos: avança ao incorporar efeitos da distribuição
de renda sobre o crescimento e introduz características específicas à atual economia brasileira.
Na literatura de conflito distributivo e inflação originada a partir de Rowthorn (1977), a
variação do salário real depende da diferença entre a parcela dos salários na renda desejada
pelos trabalhadores e a observada, enquanto a inflação é função da diferença entre a parcela
dos salários na renda observada e a desejada pelas firmas.12 A dinâmica da inflação é afetada,
portanto, pelas aspirações distributivas das duas classes. Nessa literatura, frequentemente o
efeito do crescimento do produto na distribuição é isolado das mudanças na distribuição
causadas por outras fontes, como mudanças institucionais.
Em Setterfield (2006) e Lima e Setterfield (2008), para simplificar a análise os autores
adotam especificações lineares para as equações de crescimento do produto e inflação. O
crescimento do produto é uma função de fatores exógenos e da taxa de juros. Seguindo a
versão de Lima e Setterfield (2008), a inflação responde a fatores exógenos, à taxa de
crescimento do produto e a uma variável Z, que depende da capacidade que os trabalhadores
têm de aumentar seus salários independentemente do crescimento do produto. 13 A influência
do conflito distributivo na inflação é captada pelo próprio crescimento e pela variável Z.
Considera-se que o governo persegue uma meta de inflação e uma meta de produto, fazendo
uso da taxa de juros e de políticas de rendas que atingem o poder de barganha dos
trabalhadores por meio da variável Z.14 Em Setterfield (2006), o equilíbrio do sistema é um
foco estável na economia com comportamento pós-kenesiano quando a regra de política
monetária persegue a meta de produto e a regra de política de rendas mira a meta de inflação.
Em Lima e Setterfield (2008), as condições de estabilidade dessa economia pós-keynesiana
são analisadas sob diferentes regras de política monetária e política de rendas. Opõem ao
regime pós-keynesiano de Setterfield (2006) o que chamam de “regime ortodoxo” de
12
As mesmas equações podem ser formuladas também com a parcela dos lucros na renda ao invés da parcela dos
salários, apenas invertendo o sinal da diferença.
13
Os autores afirmam que um dos avanços do artigo em relação a Setterfield (2006) consiste em incorporar uma
teoria pós-keynesiana de formação de expectativas inflacionárias, baseada em Dequech (1999). Mas na
especificação matemática, supõem que as expectativas de inflação são dadas exogenamente por convenções. A
variável de expectativas é uma constante pe, que desaparece quando o sistema é diferenciado. Ou seja, as
expectativas não têm qualquer papel na dinâmica do sistema. Assim, as expectativas de inflação não são
diferentes de qualquer outro fator exógeno a afetar os preços.
14
Foi preservada nesse artigo a hipótese desses dois estudos de que há uma meta de crescimento do produto
perseguida pelo governo. Ainda que o Brasil não tenha uma meta explícita de crescimento, pode-se considerar
que os formuladores da política econômica, incluindo o Banco Central, sempre têm em mente um valor de
referência aproximado que consideram adequado para o crescimento. Este pode ser, por exemplo, o que
calculam ser o “produto potencial” da economia.
15
políticas, em que a taxa de juros persegue somente a meta de inflação e a variável Z responde
inversamente ao hiato em relação à meta de crescimento, o que remeteria à maior facilidade
de aplicar políticas de liberalização do mercado de trabalho quando a economia cresce acima
do almejado. Concluem que o equilíbrio da economia é instável no mix ortodoxo de políticas,
um ponto de sela. Testam também combinações de regras em que tanto os juros quanto a
variável Z podem responder aos dois hiatos, de inflação e crescimento. Nesses casos, a
estabilidade do sistema depende do tamanho dos parâmetros, mas para que o equilíbrio da
economia seja um foco estável a orientação do regime pós-keynesiano (juros respondem mais
ao produto, Z responde mais à inflação) deve prevalecer sobre a orientação do regime
ortodoxo (juros respondem mais à inflação, Z responde mais ao produto). Postulam ainda a
partir desse resultado que:
“(...) policymakers can both set and achieve an inflation target without real costs (i.e.,
without thwarting the achievement of any target level of real activity set independently of the
inflation target)” (Lima & Setterfield, 2088, p.456).
Essa afirmação só é válida se a política de rendas puder ser usada livremente para obter
qualquer nível de inflação desejado sem afetar a taxa de crescimento perseguida. Isso
significa que o poder de barganha dos trabalhadores, refletido na variável Z, pode ser reduzido
sem limites. De fato, o modelo não impõe qualquer limite ao valor de Z. Deixa de considerar,
em particular, o impacto da distribuição de renda no crescimento econômico, o que é um dos
pilares da teoria do crescimento kaleckiana.
No modelo proposto nessa seção, procura-se incorporar efeitos da distribuição de renda sobre
o crescimento. Como descreve Blecker (2002), os modelos de crescimento desenvolvidos
originalmente a partir das formulações de Kalecki e de Steindl (1952) postulavam como caso
geral que a mudança da distribuição de renda a favor dos assalariados promove o crescimento.
Steindl (1952) argumenta que haveria nas economias maduras uma tendência à estagnação
econômica secular porque a concentração industrial levaria a markups e margens de lucro
crescentes, contraindo a demanda – por isso os modelos que seguiram essa lógica passaram a
ser denominados estagnacionistas.
Porém, desde Bhaduri e Marglin (1990) e Marglin e Bhaduri (1990), popularizaram-se na
literatura kaleckiana modelos de crescimento em que a melhora da distribuição funcional da
renda a favor dos trabalhadores pode tanto elevar o crescimento, configurando uma economia
liderada pelos salários, quanto reduzi-lo, caso de uma economia liderada pelos lucros. A
emergência de uma configuração ou outra depende de características estruturais da economia,
com especial relevância da função de investimento: se o efeito acelerador predomina, a
economia é liderada pelos salários, mas se o investimento é mais estimulado pela elevação da
margem de lucro, o crescimento se torna liderado pelos lucros. Além da função investimento,
outros parâmetros podem ser relevantes. Por exemplo, o crescimento liderado pelos lucros
será mais provável em uma economia com elevada propensão a poupar dos trabalhadores
(Taylor, 1990) ou em uma economia aberta em que o efeito do ganho de competitividade das
exportações decorrente de uma compressão dos salários predomina sobre a contração do
consumo interno (Blecker, 1989).
Em nosso modelo, o efeito da distribuição sobre o crescimento e a inflação será captado por
duas variáveis de conflito distributivo, uma referente ao mercado de trabalho e outra ao
mercado de bens e serviços. A primeira é a própria variável Z de Setterfield (2006) e Lima e
Setterfield (2008), refletindo o poder de barganha dos trabalhadores na determinação de
salários. A segunda será denominada X e está relacionada ao markup das firmas, seu poder
para elevar preços no mercado de bens. As equações do crescimento do produto e da inflação
são dadas por:
16
y = y 0 − a1 r + a 2 ( Z − X )
(1)
p = p 0 + b1 y + b2 Z + b3 X
(2)
Onde y é a taxa de crescimento do produto, p é a taxa de inflação, r é a taxa de juros real, Z
reflete o poder de barganha dos trabalhadores no mercado de trabalho, X o poder de mercado
das firmas no mercado de bens e os termos y0 e p0 são fatores exógenos a afetar o crescimento
e a inflação, respectivamente.15 Tanto Z quanto X acirram o conflito distributivo, portanto a
inflação é afetada positivamente por ambas. Na equação do crescimento, o impacto da
distribuição depende da diferença entre Z e X: se o crescimento for liderado pelos salários, a2
> 0; se for liderado pelos lucros, a2 < 0. Supusemos uma função linear para simplificar a
análise, então é importante enfatizar que se a economia for, por exemplo, liderada pelos
salários, é pouco plausível que ela continue a sê-lo se houver um processo muito intenso de
mudança na distribuição de renda a favor dos trabalhadores. Ou seja, uma especificação nãolinear seria mais adequada. Mas para manter simples a análise de estabilidade do sistema,
continuamos com a forma linear, com a ressalva de que essa formulação é mais apropriada
quando mudanças nas variáveis Z e X não são muito intensas.
Na definição da resposta do crescimento a (Z – X) e do comportamento das variáveis de
política r, Z e X, vamos tentar incorporar as seguintes características da economia brasileira
recente discutidas nas seções anteriores:
I) O crescimento é liderado pelos salários. Assim, a2 > 0 na equação (1);
II) A regra que indexa o salário mínimo à inflação e ao crescimento do produto aumenta o
poder de barganha dos trabalhadores, diretamente ou indiretamente pelo “efeito farol” sobre
aqueles que não recebem o mínimo mas o têm como referência;
III) É forte o canal de transmissão da política monetária através do câmbio, que afeta o poder
de mercado das firmas brasileiras;
IV) Desde a adoção do regime de metas de inflação em 1999, o Banco Central brasileiro tem
focado o combate à inflação, dando pouca relevância à estabilização do produto, mas há
indícios de que em 2011 passou a dar mais peso à manutenção do crescimento.
O comportamento no tempo das variáveis de política é definido pelas seguintes equações:
r& = c1 ( y − y T ) + c 2 ( p − p T )
(3)
Z& = ( y − y T ) + ( p − p T )
(4)
X& = −d 1r&
(5)
Tais equações refletem as seguintes características da economia brasileira:
II) A regra de salário mínimo foi retratada na equação (4). Na regra, o reajuste do salário
mínimo no ano corrente é igual à inflação do ano anterior mais o crescimento do produto de
dois anos atrás. Na equação (4), supôs-se que, em função da regra de salário mínimo, o poder
de barganha dos trabalhadores frente às firmas no mercado de trabalho aumenta quando a
15
Dentre esses fatores exógenos, são particularmente importantes os preços internacionais de commodities em p0
afetando a inflação e os efeitos da crise internacional diminuindo exogenamente o crescimento do produto por
meio de y0.
17
economia cresce acima da meta de produto e quando a inflação cresce acima da meta.
Portanto, se o produto e os preços crescem a taxas iguais às suas respectivas metas, o
equilíbrio de poder no mercado de trabalho não se altera. Note-se que Z& não poderia ser
função direta apenas de y e p, pois nesse caso o poder dos trabalhadores aumentaria
indefinidamente com níveis de equilíbrio positivos para y e p.
Cabe ainda apontar que, mesmo que apenas uma parte dos trabalhadores tenha seus
rendimentos diretamente vinculados ao salário mínimo ou seja afetada pelo “efeito farol”, não
é necessário queque haja coeficientes inferiores à unidade multiplicando os hiatos na equação
(4). Para contemplar esse fato, basta impor que a2 e b2, os coeficientes que multiplicam Z nas
equações (1) e (2), são inferiores à unidade.
III) A equação (5) é uma maneira simplificada de considerar o efeito da política monetária no
poder de mercado das empresas pelo canal do câmbio. O modelo não incorpora
explicitamente a taxa de câmbio, mas isso não impede que seja levado em conta esse efeito, se
entendermos a taxa de câmbio como um elo intermediário desse canal de transmissão da
política monetária: aumentos na taxa de juros levam à apreciação da taxa de câmbio pela
atração de capitais externos, o que reduz o poder das firmas no mercado de bens, representado
pela variável X. Na equação (5) esse efeito é direto, o aumento dos juros reduz a variável X.
IV) A regra de política monetária em (3) inclui os desvios da inflação e do crescimento do
produto às suas respectivas metas. As implicações para a estabilidade do modelo de uma
ênfase maior na inflação (c2 > c1), como foi o caso no Brasil desde a adoção do regime de
metas de inflação, em oposição a uma ênfase maior na estabilização do produto (c1 > c2), o
que aparentemente vem ocorrendo em 2011, serão exploradas a seguir.
Diferenciando a equação (1), temos:
y& = − a1 r& + a 2 ( Z& − X& )
com a1 > 0, 0 < a2 < 1. Substituindo (4) e (5) e reagrupando:
y& = −(a1 − a 2 d 1 )r& + a 2 [( y − y T ) + ( p − p T )]
(6)
Espera-se que o efeito direto de um aumento na taxa de juros sobre o produto predomine
sobre o efeito indireto via redução do poder de mercado das firmas. Assim, o termo que
multiplica r& na equação (6) deve ser positivo. Adota-se então essa hipótese e, para simplificar
o desenvolvimento do modelo, o termo todo será agrupado e denominado α :
α = (a1 − a 2 d1 ) > 0
(7)
Introduzindo (3) na equação (6), chega-se a:
y& = −(c1α − a 2 )( y − y T ) − (c 2α − a 2 )( p − p T )
(8)
Para obtermos a trajetória da inflação, diferenciamos a equação (2):
p& = b1 y& + b2 Z& + b3 X&
Substituindo (3), (4), (5) e (8):
p& = −[c1 (αb1 + b3 d 1 ) − (a 2 b1 + b2 )]( y − y T ) − [c 2 (αb1 + b3 d1 ) − (a 2 b1 + b2 )]( p − p T ) (9)
18
Temos então o seguinte sistema de equações diferenciais:
 yT 
 y& 
 y
 p&  = [J ] p  − [J ] T 
 
 
p 
onde a matriz jacobiana é dada por:
− c1α + a 2
− c 2α + a 2


− c1 (αb1 + b3 d1 ) + (a 2 b1 + b2 ) − c 2 (αb1 + b3 d1 ) + (a 2 b1 + b2 )
[J ] = 
Supondo que nenhum dos termos da matriz jacobiana seja nulo, pode-se demonstrar que o
único equilíbrio do sistema que pode gerar um foco estável é atingido quando o crescimento
do produto e a inflação são iguais às suas respectivas metas.
As propriedades de estabilidade do sistema dependem do traço e do determinante da matriz J.
Para que o sistema seja um foco estável, o traço da matriz jacobiana deve ser negativo:
Tr(J) = − (c1 + c 2 )α − c 2 b3 d 1 + a 2 (1 + b1 ) + b2 < 0
(10)
Seguem as primeiras implicações de política econômica do modelo:
(i)
Quão maiores forem a sensibilidade do crescimento do produto à distribuição de
renda a favor dos trabalhadores (a2) e as respostas da inflação ao crescimento (b1) e
ao poder de barganha dos trabalhadores (b2), mais agressiva deve ser a autoridade
monetária na resposta a desvios das metas de inflação e produto (c1 + c2). Note-se
que b2 é a resposta direta e b1a2 é a resposta indireta, por meio da taxa de
crescimento, da inflação ao poder de barganha dos trabalhadores. Portanto, a regra
de indexação do salário mínimo gera instabilidade no comportamento dinâmico do
sistema, que deve ser contida pela atuação da política monetária;
(ii)
O canal de transmissão da política monetária aos preços via redução do poder de
mercado das firmas, dado por b3d1, atenua a necessidade de respostas mais
agressivas da taxa de juros. A potência do canal de transmissão da política
monetária ao crescimento do produto, refletida em α , também suaviza função de
reação do Banco Central.
A outra condição necessária para que o equilíbrio do sistema seja um foco estável é que o
determinante da matriz jacobiana seja positivo:
Det(J) = (c2 – c1) (b2α − a 2 b3 d1 ) > 0
(11)
ou, desmembrando α de acordo com a equação (7),
Det(J) = (c2 – c1) [a1b2 − a 2 d1 (b2 + b3 )] > 0
(12)
Assim, ou os dois termos da multiplicação devem ser positivos, ou ambos devem ser
negativos, de maneira que:
(iii)
A definição para que o Banco Central priorize a meta de inflação (c2 > c1) ou a
meta de produto (c1 > c2) deve estar condicionada ao valor dos parâmetros em
[a1b2 − a 2 d1 (b2 + b3 )] ;
19
Desta forma, para que o equilíbrio seja estável, a escolha do objetivo a ser enfatizado pela
regra de política monetária não pode ser livre, dependerá da estrutura da economia.
Se [a1b2 > a 2 d 1 (b2 + b3 )] , ou [a1 > a 2 d 1 (1 + b3 b2 )] , a regra de política monetária deve ser tal
que (c 2 > c1 ) . O Banco Central deve dar mais ênfase aos desvios da inflação em relação à sua
meta se forem predominantes o efeito direto da taxa de juros no crescimento (a1 ) e o efeito
do poder de barganha dos trabalhadores sobre a inflação (b2 ) 16.
Se [a 2 d 1 (b2 + b3 ) > a1b2 ] , a prioridade da política monetária deve ser manter a taxa de
crescimento do produto na meta estabelecida pelo governo, de maneira que (c1 > c 2 ) . Esse
cenário surge se forem mais intensos o efeito da distribuição de renda a favor dos
trabalhadores no crescimento (a2), a sensibilidade da inflação ao poder de mercado das firmas
(b3) e a resposta do poder de mercado das firmas à taxa de juros (d1), que, como explicado
anteriormente, reflete o efeito da apreciação da taxa de câmbio na redução do poder das
firmas para aumentar preços.
Em síntese, a emergência de uma configuração ou outra dependerá das respostas do
crescimento e da inflação a fatores geradores de estabilidade ou instabilidade, da seguinte
maneira:
Os fatores que tornam mais provável a configuração (b2α > a 2 b3 d 1 ) , que obriga a
(iv)
regra de política monetária a priorizar a inflação (c 2 > c1 ) , são:
(v)
A indexação do salário mínimo afeta mais a inflação do que o crescimento do
produto (b2 > a2);
O efeito direto da taxa de juros para estabilizar o produto (a1) é mais relevante que
a combinação dos efeitos da taxa de juros, via variável X, para gerar instabilidade
na equação do crescimento (a2d1) e estabilidade na equação da inflação (b3d1), isto
é, (α > b3 d 1 ) ou (a1 − a 2 d 1 > b3 d 1 ) ;
A configuração em que a regra de juros deve priorizar o crescimento
(c1 > c 2 ) tende a emergir se as desigualdades acima tiverem seus sinais invertidos.
Em que pese o modelo exposto ser bastante estilizado, é possível utilizá-lo para discutir
algumas limitações que a dinâmica inflacionária impõe ao atual padrão de crescimento
brasileiro. Na conclusão, serão discutidas essas restrições e quais desafios elas estabelecem à
política monetária.
4. Conclusão: desafios para a política monetária no modelo brasileiro.
A partir de um referencial interpretativo kaleckiano, pode-se afirmar que a política de
valorização do salário mínimo, que desde 2007 tomou o formato de uma regra explícita de
indexação, teve um papel importante para estimular a retomada de taxas mais vigorosas de
crescimento econômico no Brasil ao modificar a distribuição funcional da renda a favor dos
trabalhadores. Entretanto, como acusa o modelo desenvolvido no artigo, a indexação do poder
16
A derivada de
[a1b2 − a 2 d1 (b2 + b3 )] em relação a b2 é igual a (a1 – a2d1), que é justamente α , o qual
supusemos ser positivo, conforme a equação (7).
20
de barganha dos trabalhadores ao crescimento e à inflação tende a gerar uma instabilidade
dinâmica. Para impedir o surgimento de trajetórias explosivas, a reação da política monetária
deve ser mais intensa do que seria sem a regra de indexação, dados outros fatores.
Pelos resultados do modelo, a escolha da autoridade monetária entre dar mais peso ao
controle da inflação ou à estabilização do produto não é livre, uma vez que estejam
estabelecidas metas para a inflação e o crescimento do produto, explícitas ou implícitas. A
prioridade conferida a cada um dos dois objetivos deve estar condicionada à potência relativa
dos canais de transmissão da política monetária e da regra de política salarial à inflação e ao
crescimento do produto.
De 2004 a 2010, as metas de inflação foram cumpridas com uma condução da política
monetária que deu peso muito maior à inflação que ao crescimento (no modelo, c2 > c1) e
manteve a taxa de juros bem acima da média internacional. Em 2011, a autoridade monetária
deu sinais de que passaria a dar mais peso à estabilização do produto (c1 > c2), chegando a
reduzir os juros mesmo com a inflação acumulada em 12 meses acima do teto da meta. A
justificativa foi a perspectiva de agravamento da crise econômica mundial, o que de fato
ocorreu nos meses seguintes. A inflação entrou em trajetória de declínio e se aproxima do
centro da meta.
No modelo, os efeitos da crise internacional podem ser incorporados pelas variáveis exógenas
y0 e p0, como redução de exportações e elevação de incertezas diminuindo o crescimento do
produto e queda dos preços de commodities contendo a inflação. Se na condução da política
monetária até então foi necessário priorizar as pressões sobre preços (c2 > c1) não apenas por
conservadorismo, mas para cumprir a meta de inflação, essa mudança de orientação da
política monetária em dar mais ênfase ao crescimento (c1 > c2) apenas poderá ser temporária,
enquanto perdurarem os efeitos da crise.
Ademais, podem-se apontar ao menos três fatores que tornam mais provável a configuração
de parâmetros (b2α > a 2 b3 d 1 ) , a qual obriga o Banco Central a priorizar a meta de inflação
(c 2 > c1 ) para manter a estabilidade do sistema segundo a condição imposta pelo
determinante da matriz jacobiana, fatores esses que também forçam a regra de política
monetária a ser mais reativa a desvios das metas, para que seja atendida a condição de
estabilidade do traço da matriz jacobiana.
Primeiro, porque as mudanças recentes na regulação dos preços administrados, expostas na
segunda seção do artigo, diminuíram o impacto do câmbio nesses preços, que respondem por
aproximadamente um terço do índice de inflação ao consumidor. Isso se reflete em uma
redução dos parâmetros d1 e b3 do modelo, que compõem o canal de transmissão da política
monetária aos preços via redução do poder de mercado das firmas.
Segundo, porque para simplificar a análise supusemos que é linear o efeito da distribuição de
renda sobre o crescimento, dado por a2. Mas é razoável supor que esse efeito seja, de fato, não
linear, pois a melhora da renda dos trabalhadores leva a aumentos na proporção a poupar a
partir dos salários e reduz a diferença entre o efeito acelerador e o efeito margem de lucro na
determinação do investimento, reduzindo a2. No Brasil, ainda temos um elevado nível de
desigualdade de renda, apesar da consistente redução desse nível na última década. Assim,
certamente ainda estamos distantes do ponto em que a2 se tornaria negativo e a economia
seria liderada pelos lucros e não mais pelos salários. Mas a continuidade do processo de
elevação da parcela dos salários na renda tende a causar uma progressiva redução em a2,
reduzindo aos poucos o poder da distribuição de renda para incentivar o crescimento.
21
Terceiro, a economia brasileira ainda conserva fortes mecanismos formais e informais de
indexação, que perduraram do período de alta inflação anterior ao Plano Real. O quadro de
baixo desemprego e elevação frequente do valor do salário mínimo, com uma regra formal de
indexação, fomenta a disseminação de mecanismos de indexação dos salários, o que no
modelo seria representado por uma elevação de b2, a sensibilidade dos preços ao poder de
barganha dos trabalhadores. O mesmo impacto sobre b2 procede da elevação da proporção de
trabalhadores que recebem o salário mínimo, conforme o mínimo se aproxima do salário
médio da economia. Por esse efeito, cresce progressivamente a parcela dos trabalhadores que
têm uma indexação formal garantida dos seus rendimentos.
Se essas suposições são válidas e a regra do salário mínimo realmente impõe ao BCB a
prioridade da inflação sobre o crescimento e uma postura dura na condução da política
monetária, é imprescindível aproveitar o espaço aberto pela crise internacional para corrigir a
distorção da elevada taxa de juros brasileira e levá-la ao nível internacional. Ainda que esse
objetivo seja alcançado, resta a questão de que ações de política econômica deverão ser
tomadas para impedir que os juros voltem a um alto patamar após o fim da crise.
Políticas não monetárias de controle da inflação, como revisão de contratos distorcivos de
serviços monitorados e reduções de impostos pontuais, mostraram efetivas na última década.
Há que se investigar se outras políticas nessa direção podem ser adotadas.
A produtividade cresceu na última década, mas ainda de forma modesta. O modelo brasileiro
de crescimento puxado pelo consumo tende a gerar pressões inflacionárias e, a menos que se
permita forte apreciação cambial, é necessário que a produtividade aumente em ritmo
satisfatório para conter essas pressões. A própria redução dos juros poderá ajudar ao diminuir
encargos da dívida pública e dar condições para aumento de gastos públicos com educação e
investimentos em infraestrutura sem comprometer a estabilidade fiscal.
Por fim, há que se avaliar a própria conveniência de manter a regra de salário mínimo atual
após 2015. É possível que outras ações para melhorar a distribuição de renda tenham um
efeito inflacionário menor por não recorrerem à indexação de um custo fundamental da
economia. Isso envolve um debate ainda a ser amadurecido de mensuração dos efeitos de
diferentes instrumentos de políticas redistributivas sobre o crescimento e a inflação.
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