1676 – TÓPICO C Este ensaio filosófico tem como tema central a legitimidade moral da eutanásia. Face a este problema, destacam-se dois autores dos quais conseguimos extrair dois pontos de vista relacionados com questões éticas e morais: a teoria deontológica de Immanuel Kant e a teoria teleológica de Stuart Mill. Pessoalmente, consigo encontrar, em ambas as teorias, um fundamento para a minha visão acerca da eutanásia, pelo que, ao longo deste ensaio, irei, primeiramente, mostrar em que consistem ambas as teorias, de seguida, procurarei identificar a que mais se iria adequar a este tema, dando sempre razões que justifiquem devidamente a referida identificação. Irei também, referir alguns contra-argumentos para esta teoria, que posteriormente irão servir de suporte à teoria que eu apoio, esclarecendo as suas atualizações e o porquê desta mesma se adequar perfeitamente ao exemplo referido no enunciado. O meu objetivo será, não só demostrar o caminho que percorri e que me conduziu, posteriormente, à conclusão de que é um ato moralmente correto, como também alertar para a importância deste problema na sociedade atual. É referido, no enunciado, que “matar uma pessoa é das piores coisas que se lhe pode fazer”, e é verdade que, normalmente, o é -não discordo- no entanto, existem situações excecionais em que pode ser a melhor saída tanto para a pessoa em causa como para os seus próximos. Poderá ser dito que com “a melhor saída” eu me refira à saída mais fácil, mas será que matar uma pessoa é, efetivamente, uma saída fácil? Será que a tomada dessa decisão e consequências irreversíveis que dela provêm são tomadas porque são as “mais fáceis”? Creio que não, sobretudo quando falamos de uma situação como esta: um paciente com uma doença num estado terminal, que só respira com o auxílio de uma máquina, cujo coração não baterá nunca mais por si só e que já nada pode ser feito em relação ao cessamento da referida doença a não ser a morte. Para os familiares dessa pessoa, vê-la sofrer é equivalente a não só sofrer com esta, como também, fazê-lo de uma forma pior: sofrer com a consciência de que podem fazer algo para acabar com o sofrimento e que, no entanto, estão a deixar tudo continuar e progredir. Numa situação assim, a decisão de acabar com o sofrimento do modo referido não é uma decisão fácil, mas para que se minimize a dor, isto é, para que não seja dolorosa a morte, é usada a eutanásia. A eutanásia é a injeção de um veneno letal na circulação sanguínea do paciente, o que resulta em morte, não lhe causando dor, com o efeito do veneno no seu corpo. Também existem outras situações em que pode ser aplicada a eutanásia, porém, a meu ver, o único caso em que o seu uso se justifica é no caso da doença terminal. Assim sendo, será que a eutanásia é um ato moralmente correto? Primeiramente, saibamos o que se entende por um ato que é considerado moralmente correto. Um ato é uma ação, que resulta de uma ponderação de todas as hipóteses possíveis e as suas respetivas consequências, é, também, uma decisão (consciente) uma vez que implica a escolha de uma determinada hipótese, em detrimento das outras que tinham a potencialidade de serem escolhidas. No que toca à moralidade do ato, este pode ou não ser moral, e esta moralidade depende da conduta que for escolhida. Comecemos, portanto, pela teoria teleológica de Stuart Mill. Para que uma ação seja correta, esta terá que resultar no maior bem para o maior número de indivíduos. Esta ética é uma ética consequencialista e o seu fim é a felicidade, logo, um ato que cause felicidade para um maior número de indivíduos, é um ato moralmente correto e uma ação boa, pelo menos, para Stuart Mill. A felicidade é aqui entendida como prazer, ou ausência de dor. É importante referir também que se houver alguma dor, o ato perderá a sua moralidade mesmo que cause felicidade num maior número de pessoas: se um assassino for morto publicamente, com o incentivo do povo, o ato nunca será moralmente bom mesmo que todas as outras pessoas fiquem felizes. Deste modo, podemos concluir que a eutanásia seria apoiada por Stuart Mill no primeiro exemplo que referi: o exemplo da doença num estado terminal e que nada poderia ser feito, uma vez que cessa tanto o sofrimento do doente, como o dos seus próximos, estes, por sua vez, apesar de continuarem a sofrer com a morte do mesmo, mas irão ultrapassá-la pois saberão que tomaram uma decisão que acabou com o sofrimento da pessoa em causa, de uma forma pacífica e não permitindo a progressão do seu sofrimento, tendo em conta que uma mínima melhoria, seria impossível naquele caso. Tecnicamente, o meu ensaio poderia estar muito próximo do fim, porém, eu não apoio a teoria consequencialista de Stuart Mill e, tentarei agora explicar a razão que me leva a discordar de tal teoria mesmo que esta funcione no caso que referi (tratando-se de uma coincidência: podemos não ter a mesma sorte numa outra situação e cometermos um ato imoral mesmo que resulte em felicidade para maior número de indivíduos), posteriormente gostaria de evidenciar a teoria que sigo e que considero a mais adequada para nós, seres racionais. Pensar que o nosso objetivo último é a felicidade é rebaixar o ser humano a um nível irracional. Isto porque a ferramenta mais decente que o Homem tem não é a ferramenta mais adequada na procura da felicidade; refiro-me, portanto, à nossa racionalidade. Esta ética consequencialista serviria para qualquer animal não racional e este teria muito melhor desempenho que qualquer ser pensante nesta tarefa, uma vez que os animais não racionais são regidos pelos instintos, e o que um instinto faz é procurar exatamente o prazer ou a ausência de dor. A razão não é o melhor instrumento na busca da felicidade. Vejamos o exemplo de um gato: um gato nasce gato e assim que o faz tem, com ele, todas as respostas necessárias para a vida de um gato. Um gato tem instintos que o levam a ter uma vida digna de uma vida irracional. Um gato dorme, arranha, mia, faz necessidades, come o que tem que comer e não se preocupa em tentar evoluir ou descobrir o sentido da vida (se é que a vida tem, efetivamente, algum sentido). Pelo que, um gato vive bem segundo Stuart Mill; se ele fosse abandonado à nascença, ele sobreviveria porque tem os referidos instintos. Vejamos também um outro exemplo, de uma pessoa: se um ser humano for abandonado numa idade muito tenra, é muito pouco provável que sobreviva uma vez que o seu processo de crescimento é relativamente aos outros animais, menos acelerado e este não possui a mesma força, reflexos e agilidade que um outro animal, cuja natureza é o instinto, teria. Mas se, por ventura, tal acontecesse, o ser humano seria um animal irracional uma vez que não evoluiria no sentido racional (não teria como, nem quem o ensinasse e sozinho não aprenderia a fazê-lo) e não se tornaria pessoa, pelo que, se este ser humano levasse uma vida cujo fim é a felicidade, seria compreensível. O mesmo não acontece com os seres humanos racionais criados numa sociedade civilizada e educados de modo a serem potenciais aventureiros na busca de respostas para a vida. Se estes possuem algo maior que o instinto, que lhes permitiria ter uma vida melhor, mais evoluída e segura, porque iriam desperdiçar algo tão valioso? Seres humanos racionais, devem buscar a racionalidade e essa busca não implica, necessariamente, felicidade. Isto porque o processo de crescimento (como ser racional) é um processo doloroso, um processo que traz sofrimento, aprender dói. Caso suscitem dúvidas ao que disse anteriormente, reparemos na nossa sociedade ou até na própria educação. Para se começar a aprender, mesmo no ensino primário, muitas vezes a criança pode não querer ir fazer o trabalho de casa ou ir estudar, talvez prefira antes ver televisão ou brincar com os seus brinquedos. O que os pais fazem no caso em que uma criança não quer estudar? Obrigam a criança a estudar. Agora nesta situação, onde está a felicidade? Estará na mãe que vê a criança triste a ser obrigada a fazer algo que lhe dá pouco deleite (se desse, efetivamente, prazer, a criança já teria ido estudar sem ter que ser obrigada)? Estará na criança que foi interrompida de uma atividade que gosta? O crescimento, em termos de sabedoria, é um processo doloroso! Se a mãe agisse de acordo com Stuart Mill, deixaria a criança ficar a ver televisão, mas isso não daria mais nada à criança. Se seguíssemos Stuart Mill como efetivamente dizemos seguir, seríamos uma civilização estagnada na sua evolução. Eu penso que a chave aqui é percebermos que não somos nem só instinto nem só razão e que a nossa maior arma é a razão. Pelo que, voltando à situação da doença terminal, eu adotaria uma perspetiva Kantiana mais atualizada. Esta atualização consiste em: o imperativo categórico não ser tão rígido, os valores morais não serem de tal forma absolutos (mas sim do modo “nesta situação, faz sempre x” – e.g. Não devemos mentir, mas se a situação for para salvar uma vida inocente, então é legítimo que se minta),e a boa vontade que continue a ser o combustível da ação, no entanto que possam haver outras razões que motivem alguém a agir de um certo modo (sendo que essas razões não devam incluir a fuga à punição ou o castigo ou uma outra causa fútil). Portanto, nesta perspetiva, matar uma pessoa que estivesse irremediavelmente doente e numa fase terminal da doença em que nada pudesse ser feito, seria moral uma vez que todos fariam o mesmo neste caso, todos os que se preocupam com o que o doente sente e o que sentem os seus familiares e que têm a consciência da inutilidade de ter a possibilidade de acabar com o progressivo sofrimento do mesmo e não o fazer porque todos os humanos têm direito à vida então nunca se pode matar um ser humano. Isto porque, repetindo o que disse anteriormente, não somos só feitos de sentimentos, mas também não somos feitos unicamente de razão. E se quisermos usar um pouco mais a razão, apelando mais à parte lógica, poderemos pensar do seguinte modo, tendo sempre em atenção que tais situações já ocorreram e poderão voltar a ocorrer caso a eutanásia seja proibida: uma pessoa que saiba o quanto está a sofrer e quanto sofrimento esta a causar aos outros, uma pessoa que saiba que a morte é inevitável e a doença é progressiva e que daí para a frente serão impossíveis melhorias, terá também o desejo de acabar com a própria vida, tendo ou não possibilidade de o fazer. O que acontecerá a seguir? Essa pessoa, logicamente, tentará acabar com a vida visto que é o que quer (e novamente, não é porque a morte é uma saída muito fácil, mas sim porque há casos que é a melhor saída, mesmo que a morte seja das piores coisas que acontecem, se não a pior), podendo tal resultar tanto em sucesso como em insucesso. O problema é que o modo como esta tentará acabar com o seu sofrimento, possa não ser tão pacífico como a eutanásia e tão pouco (ou nada mesmo) doloroso, em termos físicos. Isto quer dizer que se a pessoa quer morrer porque não é capaz de ter uma vida com um mínimo de qualidade, a pessoa irá morrer mesmo que proíbam a eutanásia: como irão proibir os suicídios? Quem irão punir caso se suceda essa infração? O que devemos reter daqui é que com a proibição da eutanásia, a pessoa causará ainda mais dor a si própria e ainda mais sofrimento aos seus próximos; não é por proibirem a eutanásia que as pessoas irão aceitar sobreviver mesmo na pior qualidade de vida (aqui eu não me refiro às pessoas que ficaram de tal modo incapacitadas que já nem a própria vida podem tirar sozinhas, mas às pessoas que ainda têm algumas forças). E algo ainda pior, a pessoa doente em causa poderá não se despedir da maneira certa das pessoas certas… E em vez de uma lembrança pacífica, humana, talvez do último suspiro da pessoa, terão algo miserável na memória. É mil vezes preferível ver uma pessoa que não sofreu ao morrer, mas sim se aliviou, do que ver uma pessoa, que para apagar a sua dor, teve de se desfazer aos pedaços porque algumas pessoas ainda rosnam que nunca se pode matar uma pessoa, ou que a eutanásia devia ser proibida. É por estas razões que eu considero que a eutanásia é um ato moral correto e que é um assunto sobre o qual as pessoas deviam pensar seriamente ao invés de, dogmaticamente, repetirem a ideia de que é errado matar em qualquer situação, sem se preocuparem com os sentimentos das pessoas dos quais elas são tão dotadas quanto da razão.