V. VIANNA & S. VIANNA Ruptura crônica do tendão de Aquiles: reparo com tendão flexor longo do hálux* VERÔNICA VIANNA1 , SÉRGIO VIANNA2 RESUMO Técnica de reconstrução utilizando o flexor longo do hálux para tratamento de lesões crônicas do tendão de Aquiles é descrita. Os resultados pós-operatórios de dez pacientes são apresentados (follow-up médio de 43,7 meses, variando de 28 a 66 meses). Todos os pacientes retornaram às atividades pré-ruptura. Todos evoluíram com limitação da flexão ativa do hálux, fato que passou despercebido aos pacientes e não acarretou nenhuma restrição das atividades. Não se observou nenhum caso de reruptura. SUMMARY Chronic Achilles tendon rupture: repair with flexor hallucis longus tendon An operative technique using the flexor hallucis longus tendon is described for the treatment of chronic Achilles tendon rupture. Follow-up on ten patients is provided (average follow-up, 43.7 months; range, 28-66 months). All patients have had a satisfactory return of function. The patients have developed a loss in the active range of motion in the involved big toe with no compromise to the daily activities or sports. There were no postoperative re-ruptures. INTRODUÇÃO Com freqüência, as rupturas do tendão de Aquiles são negligenciadas, acarretando distúrbio marcante na marcha e no apoio na ponta do pé. * Trab. realiz. no Inst. Nac. de Traumato/Ortopedia – Hosp. de Traumato/ Ortopedia – RJ. 1. Ortopedista da Seção de Cirurgia do Pé – INTO/HTO. 2. Chefe da Seção de Cirurgia do Pé – INTO/HTO. 542 O complexo gastrocnêmio-solear sofre processo de retração e o espaço entre os cotos tendinosos é preenchido por tecido fibroso. Embora haja controvérsias quanto ao tratamento das rupturas agudas do tendão de Aquiles, estudos prévios demonstram que o tratamento cirúrgico é a melhor opção frente às lesões crônicas(3,8). Alguns autores têm rebatido distalmente um retalho do coto proximal do próprio tendão ou utilizado enxerto de fascia lata para reparar a lesão(2). Outros recomendam a transferência do fibular curto(16,17), do plantar delgado(10), do flexor longo dos dedos(11) ou do tibial posterior(14). Materiais sintéticos como polímero de fibra de carbono(7), dácron(9) e tela de marlex(13) também são mencionados na literatura. Este estudo focaliza os resultados da utilização do flexor longo do hálux no tratamento das rupturas crônicas do tendão de Aquiles(6,18). CASUÍSTICA Entre abril de 1990 e junho de 1993, dez pacientes – seis do sexo feminino e quatro do masculino – foram submetidos a reconstrução pós-ruptura crônica do tendão de Aquiles com o flexor longo do hálux. O diagnóstico foi feito através da história e exame físico em todos os casos. A média de idade dos pacientes na ocasião da cirurgia foi de 54,3 anos (mín. de 28 e máx. de 78 anos). O follow-up variou de 28 a 66 meses (média de 43,7 meses). Nenhum paciente se havia submetido previamente a cirurgia envolvendo o tendão de Aquiles. Dois pacientes, casos 4 e 5, tinham antecedentes de infiltrações com corticosteróides na região do tendão realizadas por outro médico para tratamento de “tendinite”. O primeiro foi submetido a duas infiltrações e o segundo, a seis. Quatro pacientes apresentavam hipertensão arterial (casos 3, 5, 6 e 7). Nenhum paciente era portador de diabetes melitus, tabagista ou etilista. Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 7 – Julho, 1996 RUPTURA CRÔNICA DO TENDÃO DE AQUILES: REPARO COM TENDÃO FLEXOR LONGO DO HÁLUX A duração dos sintomas variou de 3 a 18 meses e todos os pacientes sabiam precisar o momento da Caso lesão, normalmente associada a traumatismo (tabela 1). O quadro clínico caracterizavase por edema discreto no aspecto 1 posterior do tornozelo, além de di2 minuição da força de flexão plan3 tar e claudicação. Os pacientes 4 eram incapazes de realizar apoio 5 monopodálico na ponta do pé. A 6 manobra de Thompson foi positi7 va em todos os pacientes. 8 Os pacientes foram avaliados 9 através do exame físico e das res10 postas a um questionário. TABELA 1 Sexo Idade Follow-up sintomas (meses) Resultado masc 36 Prática desportiva 4 31 Excelente masc 57 Prática desportiva 3 31 Bom masc 66 Trauma direto 6 54 Bom fem 70 Subindo escada 18 33 Excelente fem 53 Caminhando 12 48 Excelente fem 78 Queda da escada 6 66 Regular fem 51 Trauma direto 12 33 Excelente fem 28 Prática desportiva 5 62 Excelente masc 33 Prática desportiva 6 28 Excelente fem 71 Subindo escada 3 51 Excelente O procedimento é realizado com o paciente em decúbito ventral, sob isquemia com manguito pneumático. Faz-se uma incisão longitudinal, lateral ao tendão de Aquiles, caminhando distalmente em direção ao centro da face posterior da tuberosidade do calcâneo. Identifica-se o tendão de Aquiles com a zona de lesão e, medialmente, o tendão flexor longo do hálux, visibilizando-se acima o feixe vasculonervoso tibial. Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 7 – Julho, 1996 Duração dos da lesão (meses) TÉCNICA CIRÚRGICA Fig. 1 – Identificação do tendão de Aquiles com área de lesão Mecanismo Uma segunda incisão de aproximadamente 7cm é realizada com início no aspecto medial do pé, ligeiramente inferior e distal ao navicular, estendendo-se ao longo da borda superior do abdutor do hálux em direção à primeira metatarsofalangiana. A dissecção prossegue dorsal ao abdutor do hálux, afastando este músculo no sentido plantar, identificando-se o flexor curto do hálux e os tendões do flexor longo do hálux e flexor longo dos dedos. A visibilização desses tendões é favorecida pela liberação do nó de Henry. Fig. 2 – Individualização do flexor do hálux Fig. 3 – Abdutor do hálux afastado e tendão do flexor do hálux tracionado 543 V. VIANNA & S. VIANNA Fig. 6 Tendão do flexor do hálux objetivando flexão plantar de 10-15 graus Fig. 4 Perfuração da tuberosidade do calcâneo Fig. 7 Flexor do hálux suturado. Coto do tendão de Aquiles solidarizado ao músculo transferido. Fig. 5 – Flexor ao ser passado através do calcâneo O flexor longo do hálux é seccionado o mais distalmente possível; o coto distal é suturado ao flexor longo dos dedos. Durante a sutura, os dedos são mantidos em posição neutra. O tendão do flexor longo do hálux é exteriorizado através do acesso ao tendão de Aquiles. Se o cabo distal do tendão de Aquiles é viável, o flexor do hálux é passado através dele. Nos pacientes em que o cabo 544 distal é inviável, efetuamos uma perfuração, transversa, no aspecto póstero-superior do calcâneo, através da qual passamos o flexor do hálux, de medial para lateral. Em seguida, com o pé em 10 a 15 graus de flexão plantar, o tendão do flexor do hálux é suturado ao cabo proximal do tendão de Aquiles e/ou ao próprio flexor do hálux, com pontos simples, separados de vicryl ® 1. As feridas são suturadas em dois planos utilizando vicryl ® 2-0 e monylon ® 4-0. Seguem-se curativo compressivo acolchoado (algodão hidrófilo) e calha gessada durante 48 horas. Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 7 – Julho, 1996 RUPTURA CRÔNICA DO TENDÃO DE AQUILES: REPARO COM TENDÃO FLEXOR LONGO DO HÁLUX A seguir confecciona-se bota gessada em eqüino gravitacional durante quatro semanas. Com duas semanas de pósoperatório, as feridas são inspecionadas e os pontos, retirados. Na quinta semana de pós-operatório confecciona-se bota gessada em posição neutra e autoriza-se carga progressiva. O período total de imobilização é de oito semanas. RESULTADOS Os resultados foram classificados segundo critérios estabelecidos por Mann et al.(11). Sete pacientes (casos 1, 4, 5, 7, 8, 9 e 10) obtiveram resultado excelente. Evoluíram sem dor, limitação da atividade ou complicações da ferida operatória. A flexão dorsal estava normal, com força excelente e a marcha na ponta dos pés era possível. Dois pacientes obtiveram resultado bom (casos 2 e 3). Eles não apresentavam dor, restrição da mobilidade, diminuição da força ou impossibilidade de retornar às atividades prélesionais. Entretanto, apresentaram deiscência com necrose parcial de pele da ferida operatória no nível do tendão de Aquiles, que evoluiu bem, sem necessidade de qualquer outro procedimento. Uma paciente apresentou resultado regular (caso 6), com diminuição de força, claudicação e deiscência da ferida operatória. Retornou, entretanto, às suas atividades usuais sem dor e sem necessidade de muletas. Todos os pacientes apresentavam diminuição da flexão ativa das articulações metatarsofalangiana e interfalangiana do hálux, embora isto tenha passado despercebido aos pacientes e não tenha acarretado nenhuma restrição das atividades. Não foi observada diminuição da flexão ativa ou deformidade dos dedos. Somente dois pacientes (casos 1 e 2) desenvolviam atividades desportivas, retornando plenamente às suas práticas após a cirurgia. culonervoso tibial ou de músculos do compartimento lateral(18); e, finalmente, a transferência do flexor longo do hálux mantém o equilíbrio muscular normal do tornozelo por transferir músculo com a mesma função original, isto é, flexor plantar para flexor plantar. A primeira menção ao uso do flexor longo do hálux cabe a Hansen(6), que, entretanto, não identificava o tendão na planta do pé. Como Wapner(18), identificamos o tendão flexor longo do hálux na região plantar, o que acrescenta 10 a 12cm ao comprimento do tendão a ser utilizado. Em todos os pacientes foi observada diminuição da flexão ativa ao nível das articulações metatarsofalangiana e interfalangiana do hálux. Entretanto, não havia, como constatado por Wapner(11), limitação da mobilidade passiva dessas articulações. A importância do flexor longo do hálux durante a marcha, corrida e salto tem gerado controvérsias. Frenette & Jackson(5), no entanto, estudando as lesões do flexor longo do hálux em atletas, concluíram que sua integridade não é essencial para um bom push-off e equilíbrio durante a corrida. Quando se utiliza o fibular curto, estamos usando um eversor para efetuar a flexão plantar. Este tipo de transferência é menos funcional segundo as regras de transferência tendinosa. Além disso, efeito desconhecido sobre a função do pé e tornozelo pode ocorrer por perda parcial da força de eversão(11,18). A maioria dos pacientes apresentou resultado excelente e mesmo os com resultado considerado bom tiveram retorno às atividades sem restrições, sendo aí incluídos somente pelas complicações na ferida operatória. Esses resultados confirmam os de Wapner(18) ao empregar técnica semelhante em sete pacientes. CONCLUSÃO DISCUSSÃO Existem várias opções para a reconstrução do tendão de Aquiles pós-ruptura crônica. A utilização do flexor longo do hálux oferece teoricamente as seguintes vantagens: o músculo é mais forte que os previamente utilizados para a transferência(15); o eixo da força contrátil do flexor longo do hálux reproduz com maior proximidade o do tendão de Aquiles; o flexor longo do hálux tem contração fásica com o gastrocnêmio-solear; sua proximidade anatômica torna a técnica cirúrgica mais fácil e evita o comprometimento do feixe vasRev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 7 – Julho, 1996 Nas rupturas crônicas do tendão de Aquiles, a restauração funcional pode ser obtida através da reconstrução com o tendão flexor longo do hálux. Esta técnica apresenta vantagens frente àquelas descritas previamente na literatura. A maioria dos pacientes apresenta resultados excelentes e bons. A limitação da flexão ativa do hálux não acarreta comprometimento da marcha bem como das atividades esportivas. 545 V. VIANNA & S. VIANNA REFERÊNCIAS 1. Bosworth, D.M.: Repair of defects in the tendo achillis. 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