RESENHA: Novas perspectivas na luta contra a dependência

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RESENHA: Novas perspectivas na luta contra a dependência química
provocada pela cocaína.
FONTE: Yao, L. et al. (2010) Nature Medicine 16 (9), 1024.
Contribuição de Rodolfo do Couto Maia (Doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Química do IQ-UFRJ).
Foi publicado recentemente na revista científica Nature Medicine resultados
promissores na luta contra a dependência da cocaína. A publicação aponta para
potenciais novos alvos moleculares para a redução do vício e abstinência pela droga,
jogando luz sobre este obscuro problema. A falta de um medicamento efetivo para o
tratamento do vício causado pela cocaína e correlatos (crack) é uma urgência não só
clínica como também social. A dependência associada ao uso da cocaína é causada
pelo aumento dos níveis de dopamina no Sistema Nervoso Central (SNC) que esta
provoca. A dopamina é sintetizada nos neurônios da área tegmental ventral e
transportada, via axônio, para liberação no núcleo accumbens. Drogas de abuso ativam
os neurônios da área tegmental ventral resultando no aumento da liberação de
dopamina no núcleo accumbens. A cocaína aumenta tanto os níveis extracelulares
como os intracelulares de dopamina nesta área do cérebro.
Recentemente, foi observado que o dissulfiram, fármaco utilizado no combate
ao alcoolismo, também reduz o consumo de cocaína. O dissulfiram inibe de forma não
específica e irreversível as isoformas 1 e 2 da enzima aldeído desidrogenase (ALDH),
resultando em um aumento do acúmulo de acetaldeído no organismo (Figura 1). Este
último é responsável pelos efeitos desagradáveis associados com o consumo de álcool,
o que leva a inibição do consumo do mesmo.
Figura 1. Mecanismo de ação do dissulfiram.
Creditava-se esta diminuição do consumo de cocaína promovida pelo
dissulfiram à sua capacidade de inibir a enzima dopamina β-hidroxilase (DBH) no
cérebro. No entanto, o CVT-10216, um inibidor seletivo da ALDH-2, foi capaz de inibir a
procura por álcool tanto na presença como na ausência de acetaldeído. Este composto
ainda foi capaz de diminuir o aumento da biossíntese de dopamina associada ao
consumo de álcool no núcleo accumbens, o que não pode ser explicado pela inibição
da DBH. De fato, estudos apontam que o CVT-10216 não inibe esta enzima. Estes
resultados em conjunto indicam que a inibição seletiva da ALDH-2 reduz a procura por
cocaína devido a sua capacidade em inibir o aumento da biossíntese de dopamina
induzida pelo consumo desta droga.
A publicação na Nature Medicine comprova esta hipótese através de uma série
de experimentos in vivo e in vitro, que também demonstraram a via biológica
envolvida no processo de diminuição da biossíntese de dopamina a partir da inibição
da ALDH-2, revelando importantes detalhes sobre a modulação da biossíntese e
liberação da dopamina associada ao uso da cocaína.
Em um modelo animal de auto-administração de cocaína o CVT-10216 foi capaz
de inibir de forma dose-dependente a procura pela droga, da mesma forma que este
composto inibiu a recaída pela cocaína em um modelo animal de re-estabelecimento
do vício, demonstrando que pode ser útil para o tratamento da síndrome de
abstinência relacionada à droga.
Como a procura pela droga e o estabelecimento do vício estão relacionados
com o aumento da liberação de dopamina no sistema nervoso central, também foi
investigado como a inibição seletiva da ALDH-2 afetaria o aumento dos níveis de
dopamina induzido pela cocaína. Foi visto que o CVT-10216 preveniu de forma dosedependente o aumento dos níveis de dopamina induzido pela droga, adicionalmente,
não alterou os níveis basais de dopamina.
O próximo passo consistiu na compreensão do mecanismo molecular envolvido
na diminuição da biossíntese de dopamina através da inibição seletiva da ALDH-2. Esta
enzima é altamente expressa nos neurônios da área tegmental ventral e também está
diretamente relacionada com o metabolismo da dopamina. A ALDH-2 é responsável
por converter o DOPAL (3,4-dihidroxifenil acetaldeído) em DOPAC (ácido 3,4dihidroxifenil acético), logo, a inibição da ALDH-2 aumenta a concentração de DOPAL,
que por sua vez se condensa com a dopamina para gerar a tetraidropapaverolina (THP)
(Figura 2). O CVT-10216 aumentou a produção de THP em células neuronais prétratadas com cocaína, porém, não alterou os níveis basais de THP na ausência de
cocaína, sugerindo que a inibição seletiva da ALDH-2 não interfere com o
funcionamento normal dos neurônios.
Figura 2. Formação da tetraidropapaverolina (THP) através da inibição de ALDH-2.
Desta forma, se a formação de THP, dependente da inibição de ALDH-2, possui
um papel fundamental na diminuição da biossíntese de dopamina induzida por
cocaína, então o tratamento direto com THP também deveria reduzir este processo.
De fato, o THP também reduziu a produção de dopamina em células neuronais
estimuladas por cocaína de uma maneira dose-dependente, no entanto, também
reduziu a produção basal de dopamina. Diante destes resultados, entender em que
nível a THP atua na modulação da síntese de dopamina tornou-se de extrema
importância para entender de que forma a inibição seletiva da ALDH-2 produz seus
efeitos.
A conversão da tirosina em L-DOPA pela tirosina hidroxilase (TH) é a primeira
etapa na biossíntese da dopamina, é esta enzima que converte a tirosina em L-DOPA,
que sofre subseqüente descarboxilação pela ação da L-DOPA descarboxilase gerando
então a dopamina. A inibição de qualquer uma destas enzimas, ou ambas, deveria
resultar na diminuição da síntese de dopamina. Desta forma, a capacidade da THP em
inibir estas enzimas foi avaliada e foi visto que, de fato, a tirosina hidroxilase é inibida
pela THP, porém a L-DOPA descarboxilase não é inibida. Foi identificado que a forma
fosforilada (ativa) da tirosina hidroxilase é 75 vezes mais sensível à inibição (IC 50 = 50
nM) pela THP que a forma não fosforilada (IC50 = 3,8 µM). Vale destacar que a THP não
inibe outras enzimas envolvidas na biossíntese e/ou metabolismo da dopamina e que
o inibidor seletivo de ALDH-2 (CVT-10216) também não inibe nenhuma destas
enzimas, incluindo a TH. O que demonstra que a THP produz seus efeitos
exclusivamente pela ação na TH e que o CVT-10216 exerce seus efeitos indiretamente,
através da inibição da ALDH-2 que resulta no aumento da THP.
A fosforilação da TH parece exercer papel central no aumento da biossíntese de
dopamina induzida pela cocaína, pois foi constatado que esta última aumenta a
fosforilação da TH. Restava saber de que forma a cocaína estaria ativando a
forforilação da TH. Sabe-se que os neurônios da área tegmentar ventral expressam
autorreceptores de dopamina. A questão então seria saber se estes receptores
estariam envolvidos nesta via de sinalização. Desta forma, as células foram prétratadas com antagonistas dos receptores D1 e D2. Foi observado que as células
tratadas com o antagonista D2 não apresentaram aumento da produção de dopamina
induzida por cocaína, enquanto que o mesmo não foi observado para as células
tratadas com o antagonista D1. Estes resultados demonstram que a fosforilação da TH
e o consequente aumento da síntese de dopamina pela cocaína é dependente da
ativação do receptor D2.
A tirosina hidroxilase (TH) é substrato para as enzimas PKA e PKC, que por sua
vez são estimuladas pela ativação dos receptores D2. O tratamento das células
neuronais com ativadores de uma destas enzimas mimetizaram os efeitos da
fosforilação induzida por cocaína da TH, sendo que estes efeitos foram bloqueados
pelo antagonista D2, a spiperona. Inversamente, inibidores da PKA e da PKC inibiram o
aumento da produção de dopamina induzido por cocaína, demonstrando de forma
inequívoca a participação destas duas enzimas na fosforilação da TH.
Em resumo, a cocaína inibe a recaptação de dopamina, esta última por sua vez
ativa seus autorreceptores D2, que conduz a fosforilação (ativação) da tirosina
hidroxilase (TH) através da estimulação da PKA e PKC, a TH ativada leva ao aumento da
síntese de dopamina, caracterizando um feedback positivo (Figura 3, setas verdes). A
inibição seletiva da ALDH-2 durante a ativação deste processo de feedback positivo
leva ao acúmulo de DOPAL, que irá se condensar com a dopamina formando THP, que
por sua vez é um inibidor seletivo da TH fosforilada, inibindo a síntese de dopamina e
bloqueando o ciclo do feedback positivo iniciado pela cocaína (Figura 3, setas
vermelhas).
Figura 3. Mecanismo pelo qual a inibição seletiva da ALDH-2 bloqueia o feedback
positivo na síntese de dopamina gerado pela cocaína (as setas verticais ao lado da
dopamina demonstram o aumento (verde) ou a diminuição (vermelha) de sua
concentração).
Estes resultados elucidam de forma bastante clara e elegante o mecanismo
pelo qual a cocaína aumenta a síntese e liberação de dopamina e, por conseqüência,
estabelece a dependência química em seus usuários. A identificação dos atores deste
processo possibilita a exploração de novas estratégias terapêuticas para combater este
urgente problema clínico e social.
Referência Bibliográfica:
Yao, L. et al. (2010) Nature Medicine. 16 (9), 1024.
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