Gifoni AMR, et al • Trombose séptica do seio cavernoso e meningite... RELATO DE CASO/RELATO DE CASO Trombose séptica do seio cavernoso e meningite numa adolescente de 13 anos Septic thrombosis of the cavernous sinus associated to meningitis in a 13-years-old adolescent Angela Maria Rodrigues Gifoni1 Adriano Feitosa2 Mestre em Farmacologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Infectologista Pediatra do Hospital São José de Doenças Transmissíveis Agudas - CE. Intensivista Pediatra do Hospital Infantil Albert Sabin - CE. 2 2º Ano de Especialização em Pediatria do Hospital Universitário Walter Cantídio - UFC. 1 Rev Panam Infectol 2007;9(2):47-50 Conflicto de intereses: ninguno Resumo Destaca-se grave trombose séptica do seio cavernoso (TSSC), em adolescente. Não raro, esta entidade é subdiagnosticada e tratada inadequadamente. O caso é de uma jovem de 13 anos, que desenvolveu TSSC e meningite, após espremer uma “espinha” do rosto, evoluindo com disartria e distúrbios oculares. A TSSC é relativamente incomum, se considerarmos a freqüência de processos infecciosos que desencadeiam essa grave obstrução da circulação venosa cerebral, causando febre, cefaléia, vômitos, celulite periorbitária, proptose, lesão de pares cranianos, etc., podendo levar à cegueira ou à morte. Também serão comentados detalhes anatômicos, a etiologia, o diagnóstico e o tratamento desta patologia. Palavras-chave: Trombose, Seio cavernoso, Meningite. Abstract This work detaches the gravity of the septic thrombosis in the cavernous sinus (STCS). Usually it is subdiagnosed and mistreated. We relate the case of a 13-years-old girl who developed a severe episode of STCS and meningitis after squeezing a facial “pimple”. This syndrome is relatively uncommon if we consider the frequency of the infections that cause serious obstruction of the brain venous circulation, with fever, headache, vomits, proptosis, cranial nerves lesions and others alterations which may lead to blindness or even death. We will also have a look at important anatomic aspects, ethiology, diagnose and treatment of this pathology. Keywords: Thrombosis, Cavernous sinus, Meningitis. Recibido en 1/8/2006. Aceptado para publicación en 7/2/2007. Introdução A trombose séptica do seio cavernoso (TSSC) é a obstrução de uma grande veia situada na base do cérebro (seio cavernoso), freqüentemente causada pela disseminação de bactérias 47 Rev Panam Infectol 2007;9(2):47-50 a partir de uma infecção da face, sinusopatia ou um foco amigdaliano (1). Seu agente etiológico mais comum é o S. aureus, seguido de estreptococos, pneumococos, Gram-negativos, anaeróbios e fungos(2), nesta ordem. A doença se manifesta por celulite periorbitária, exoftalmia, quemose (inflamação da conjuntiva ocular), cefaléia intensa, febre elevada, irritação meníngea e sinais de localização conseqüentes às lesões do SNC, especialmente com comprometimento dos pares cranianos. A propagação da infecção para o seio cavernoso oposto ou para os outros seios intracranianos, com infarto cerebral ou aumento da pressão intracraniana (PIC), leva a alterações graves na drenagem venosa intracerebral, resultando em estupor, coma e morte, na maioria dos casos(3). Sem tratamento, a TSSC é quase 100% letal. Felizmente é rara. O diagnóstico é essencialmente clínico, respaldado em exames de imagem, liquor e sangue. Descrição do caso Paciente T.R.O., 13 anos, sexo feminino, foi admitida no serviço de infectologia pediátrica com queixa de cefaléia intensa, rigidez de nuca e edema ocular à esquerda. Há duas semanas, havia “espremido uma espinha” no nariz e, uma semana após, apresentou febre e edema periorbitário. Procurou atendimento médico em sua cidade e foi tratada com penicilina benzatina. Sem melhora clínica, voltou ao mesmo serviço, quando iniciou tratamento com oxacilina IV. Apresentando piora progressiva, foi encaminhada ao Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ), onde chegou com adinamia acentuada, desorientação, rigidez de nuca, edema, hiperemia, quemose, celulite periorbitária e protrusão do olho esquerdo, além de dor facial. Após uma tomografia cerebral (TC), foi submetida a uma punção lombar, pois havia suspeita de meningite. Foram solicitadas ainda cultura, citobioquímica e bacterioscopia do liquor, mais hemograma completo, seguindo-se o internamento na enfermaria. Ao exame físico, encontrava-se febril (38°C), adinâmica, hipocorada (+/4+), anictérica, desidratada (++/4+), orientada, afásica, deambulando com dificuldade, tinha celulite periorbitária acentuada, proptose e secreção purulenta no olho esquerdo, bem como paresia no membro superior direito (MSD). 48 Figura 1. TC de crânio evidenciando edema cerebral pronunciado principalmente à esquerda e protrusão do olho esquerdo. A investigação laboratorial revelou liquor límpido, 280 células/mm³, 03 hemácias/mm³, 55% de neutrófilos, 02% de monócitos, 43% de linfócitos, 59 mg/ dl de glicose, 13 mg/dl de proteínas e bacterioscopia negativa. Hemograma completo: Hemoglobina – 11 g%; Hematócrito – 34,7%; Leucócitos – 18.300; Segmentados – 81%, sem bastonetes; Linfócitos – 18%; Monócitos - 01%, e Plaquetas – 397.000/mm3. No esfregaço de sangue periférico não havia eosinófilos, mas granulações tóxicas em 40% dos neutrófilos. Os outros exames de rotina revelaram-se normais. A TC revelou sinais de celulite orbitária esquerda, áreas de cerebrite no hemisfério cerebral esquerdo, podendo evoluir para abscessos (figura 1). Iniciou-se, então, o tratamento com vancomicina – 40 mg/kg/dia, de 6/6 h (32 dias) + ceftriaxona – 4 g/dia, uma vez ao dia, no 1º dia, seguidos de 3 g/dia (34 dias). No 8º dia, associou-se metronidazol – 30 mg/kg/dia, de 6/6 h (27 dias) + dexametasona 0,6 mg/kg/dia, de 6/6 h, reduzindo-se gradativamente até 30 dias, para cobrir formações de abscessos incipientes sugeridas pela TC de crânio, bem como para reduzir o edema cerebral, além de colírio com antibiótico e corticóide no olho afetado. A paciente respondeu com melhora clínica acentuada. Após uma semana, reverteu a febre, a celulite, a protrusão ocular e a paresia do MSD. A afasia deu lugar a uma disartria. Observou-se uma plegia ocular esquerda, midríase intermediária e ausência do reflexo fotomotor direto e consensual, com ausência dos movimentos conjugados (figura 2). Gifoni AMR, et al • Trombose séptica do seio cavernoso e meningite... Figura 2. Nota-se plegia ocular esquerda e midríase intermediária do olho esquerdo. A menor referia enxergar bem do olho esquerdo e isso se confirmava ao exame. A ptose, aos poucos, cedeu com tratamento fisioterápico específico (regressão de 50% no dia da alta). Foi avaliada por oftalmologista e neurologista, que confirmaram as lesões dos pares cranianos e orientaram para a realização de uma plastia no olho ptótico se não houvesse reversão após seis meses. A TC de controle revelou ausência de inflamação na órbita esquerda e presença de glioses nas regiões frontal, parietal e temporal esquerda, com as demais estruturas normais para a idade. A adolescente recebeu alta hospitalar após 37 dias de internamento, em boas condições, tendo sido encaminhada para tratamento complementar de fisioterapia e fonoaudiologia. Discussão O seio cavernoso é um grupo de canais da duramáter, de paredes finas, avalvulares, revestidos por endotélio contínuo com o das veias, que drenam nas jugulares internas(4). Na parede lateral do seio, estão os nervos oculomotor, troclear e oftálmico, todos separados do sangue, por endotélio. Provavelmente, as pulsações da artéria carótida fazem a drenagem do sangue no seio. A veia oftálmica superior, a veia média superficial do cérebro e o seio esfenoparietal drenam para o seio cavernoso, que se comunica com o seio transverso e a veia jugular interna, através dos seios petrosos superior e inferior(5). A trombose do seio cavernoso pode ser não-séptica, ou primária, quando surge associada a trauma craniano, gestação, puerpério, uso de anticoncepcionais orais, tromboflebites migratórias, colite ulcerativa, colagenoses, neoplasias e distúrbios hematológicos. É mais comum nos seios ímpares (reto, occipital, sagital superior e inferior)(6). A trombose séptica pode ocorrer por disseminação de focos contíguos (otorrinogênicos), ou êmbolos drenados para o seio cavernoso. O S. aureus é o agente etiológico mais envolvido, por sua presença oportunista na pele sã, capacidade de invasão tecidual e formação de abscesso, além de liberação de toxinas na circulação, o que explica a celulite periorbitária da paciente. A tríade - edema de pálpebra, quemose e exoftalmia, é explicada pela obstrução da veia oftálmica(7). A oftalmoplegia é conseqüente à lesão do nervo abducente (VI par craniano), pela sua situação dentro do seio. A pupila midriática média fixa decorre da lesão parassimpática do nervo motor ocular comum (III par). A ptose também é lesão do III par e pode ser irreversível. A cefaléia intensa, os vômitos, a rigidez de nuca e as alterações liquóricas explicam a meningite, que geralmente é asséptica na trombose do seio cavernoso e, segundo alguns autores, a punção lombar deve ser evitada, pois não ajuda no diagnóstico etiológico, podendo causar herniação transtentorial. Além disso, a cultura é comumente negativa. O diagnóstico é essencialmente clínico, mas pode ser confirmado pela TC, que identifica complicações hemorrágicas ou isquêmicas, trombose da veia oftálmica, edema cerebral, coleções purulentas parameníngeas e/ou ausência de contraste no seio cavernoso acometido. Neste caso, o intenso edema difuso mais acentuado no hemisfério esquerdo explica a paresia do membro superior direito e a afasia, fenômenos que regrediram após o uso de dexametasona. A ressonância magnética (RM) é o exame de escolha, porém de pouco acesso em nosso serviço, pelo alto custo, sendo indicada para diagnóstico e seguimento, pois demonstra alterações do parênquima e da vasculatura cerebrais. A angiorressonância do crânio é de segunda escolha, avaliando o fluxo venoso através dos seios(8). O diagnóstico diferencial da TSSC deve incluir: tumores de órbita e região esfenoidal; exoftalmia maligna; síndrome de Tolosa Hunt; pseudotumor inflamatório; apoplexia pituitária; tromboflebites de veias orbitais; trombose asséptica; miosite orbitária; aneurismas; fístulas arteriovenosas; periostite sifilítica; osteomielite esfenoidal, e mucormicose dos seios paranasais (freqüente nos imunossuprimidos)(9). Entre as complicações, destacam-se: propagação da trombose para o outro seio cavernoso; septicemia; cegueira (8% dos casos, por oclusão da artéria central da retina ou de lesão da córnea); lesões residuais de nervos cranianos, principalmente os nervos abducente e oculomotor, como no caso aqui relatado; excepcionalmente, hipofunção pituitária com colapso sistêmico, e a síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético(10). Há uma tendência de publicação apenas dos ca- 49 Rev Panam Infectol 2007;9(2):47-50 sos com evolução satisfatória; por isso, a mortalidade deve ser bem mais elevada. O tratamento precisa ser precoce e abrangente, dirigido para Gram-positivos, Gram-negativos e anaeróbios, sem esquecer os cuidados tópicos no olho atingido. Os medicamentos mais citados na literatura são associações de antibióticos, tais como: penicilina cristalina ou ceftriaxona + oxacilina ou vancomicina + metronidazol ou cloranfenicol + corticóide (dexametasona) + eventualmente anticoagulante (heparina na fase aguda, seguida de varfarina por três meses, via oral). No caso em relato, iniciou-se a vancomicina, posto que a paciente já fizera uso de oxacilina por tempo indeterminado e com doses desconhecidas em sua cidade de origem, sem êxito, e fez-se uma associação com ceftriaxona e metronidazol, de acordo com o recomendado para o caso, levando-se em conta a faixa etária e o peso da paciente, ampliando-se o espectro da cobertura terapêutica em face da piora progressiva de seu estado clínico. Não foi necessário o uso de heparina. A paciente ficou na enfermaria durante todo o tratamento, contrastando com muitos casos descritos na literatura, geralmente tratados em UTIs. A TSSC é relativamente rara, mas de alta letalidade. Seus diagnóstico e tratamento adequados e precoces podem salvar vidas. A profilaxia é importante, necessitando da colaboração de vários profissionais, como pediatras, dermatologistas, otorrinolaringologistas, oftalmologistas e outros, na orientação dos pacientes dessa faixa etária. 50 Referências 1. Cambier J, Masson M, Dehen H. Manual de neurologia. Ed. Masson do Brasil. 1980;399. 2. Lana MA, Barbosa AS. Síndrome do seio cavernoso: estudo de 70 casos. Arq Bras Oftalmol. 1998;61:635-9. 3. Amaral KS, Tosta ED. Trombose venosa cerebral. In: Gagliardi RJ editor. Doenças cerebrovasculares: condutas – volume I. São Paulo: Sociedade Brasileira de Doenças Cardiovasculares. 1996;219-41. 4. Gardner E, Gray DJ, O’Rahilly R. Anatomia. Guanabara Koogan. 3ª ed., 1971;630. 5. Fishmon RA. Cerebral veins and sinusites. In: Rowland LP editor. Merritt’s Neurology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins. 2000;268-71. 6. Dini LI, Sonda I, Saraiva GA, Corso RJ, Almeida FO, Gallo P. Trombose séptica do seio cavernoso: relato de seis casos. Arq Neuropsiquiatr. 1999;57(3A):643-8. 7. Hungria H. Otorrinolaringologia. 6ª ed., Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 19991;56-59. 8. Diament A, Cypel S. Neurologia infantil. 3a Ed. Atheneu. 1996;1211. 9. Simon RP. Parameningeal infections. In: Bennett JC, Plum F (eds). Cecil Textbook of Medicine. 20ª ed., Philadelphia: Saunders. 1996;2080-2085. 10.Schutta HS. Cerebral venous thrombosis. In: Joynt RJ editor. Clinical Neurology. Philadelphia: J.B. Lippincott. 1993;1-51. Correspondência: Dra. Angela Maria Rodrigues Gifoni R. Joaquim Nabuco, 1700 - apto. 801 Aldeota - CEP 60125-120 Fortaleza - CE - Brasil. e-mail: [email protected]