Pé eqüino na paralisia cerebral: análise do tratamento * 1 2 CELSO SVARTMAN , PATRÍCIA M.M.B. FUCS , PAULO F. KERTZMAN 2, VITOR M. DE OLIVEIRA3, EDGAR A.B. PRIETO RESUMO Os autores realizaram a análise do tratamento cirúrgico do pé eqüino na paralisia cerebral visando alguns pontos polêmicos como: Qual a melhor época para a cirurgia? Qual a técnica a utilizar? Como orientar o pósoperatório? A idade média por ocasião da cirurgia foi de cinco anos e seis meses. A distribuição geográfica do comprometimento motor foi de 30 pacientes (30 pés) hemiparéticos e 15 (26 pés) diparéticos. Após um tempo médio de seguimento de quatro anos e três meses, os autores obtiveram 80% de resultados bons e regulares, com correção da deformidade, utilizando as técnicas de Hoke ou a zetaplastia por via aberta. SUMMARY Equinus varus foot in cerebral palsy: analysis of treatment The authors analyzed the surgical treatment of equinus varus deformity caused by spastic cerebral palsy, considering some controversial issues, such as the best time for surgery, the surgical technique of choice, and management during the post-op period. Mean age at the time of surgery was 5 years and 6 months. Geographic distribution of motor disorder was 30 patients (30 feet) * Trab. realiz. no Grupo de Doenças Neuromusculares do Dep. de Ortop. e Traumatol. da Santa Casa de Miseric. de São Paulo “Pavilhão Fernandinho Simonsen” (Diretor: Prof. Dr. Rudelli Sérgio Andrea Aristide). 1. Chefe do Grupo de Doenças Neuromusculares. 2. Assist. do Grupo de Doenças Neuromusculares. 3. Méd. Resid. de 3º ano do Departamento. Rev Bras Ortop — Vol. 29, Nºs 1/2 — Jan/Fev, 1994 3 with hemiplegia, and 15 (26 feet) with diplegia. After a mean follow-up of 4 years and 3 months, the authors achieved 80% of good and regular results in terms of deformity correction using the Hoke or the zetaplasty techniques, both in open approach. INTRODUÇÃO A deformidade em eqüino é a mais freqüente nos pacientes com paralisia cerebral do tipo espástico e existem várias técnicas cirúrgicas propostas para sua correção. Essa deformidade está associada à hipertonia do conjunto gastrocnêmio-sóleo, que permanece contratura(8) do em todas as fases da marcha . A diminuição da força do tibial anterior e a discrepância entre os membros podem acentuar essa tendência ao eqüinismo. O eqüino pode se manifestar de forma dinâmica ou estruturada. É denominado dinâmico quando aparece apenas durante a marcha, pois, quando o paciente está em repouso, consegue tocar o calcâneo no solo e, ao exame, com o paciente em decúbito dorsal e o joelho em extensão, não conseguimos levar o tornozelo a 90 graus ou o fazemos, porém com o tendão sob grande tensão. É denominado estruturado quando o paciente não consegue tocar o calcâneo no solo nem na fase de repouso e nem ao exame em decúbito dorsal conseguimos levar o tornozelo a 90 graus. As tentativas de correção cirúrgica do eqüino remontam ao século XIV, quando se realizaram tenotomias por via percutânea. Na fase pré-asséptica, desenvolveram(6) se técnicas percutâneas de alongamento e tenotomia do tendão de Aquiles. As inúmeras variáveis que interferem no tratamento do paciente paralítico cerebral, tais como nível de inte33 C. SVARTMAN, P.M.M.B. FUCS, P.F. KERTZMAN, V.M. OLIVEIRA & E.A.B. PRlETO ligência, grau de espasticidade, grau de hipertonia muscular e as deformidades associadas, tornam muito difícil a padronização desses pacientes e a normatização do seu tratamento. O advento da análise eletromiográfica da marcha forneceu um instrumento propedêutico importante para esses casos, embora não acessível à maioria dos serviços do nosso país. Procuramos analisar na nossa casuística e na literatura aspectos ainda indefinidos no tratamento dessa deformidade: Qual a melhor época para a cirurgia? Que técnica utilizar? Como orientar o pós-operatório? mos uma via medial longitudinal ao tendão de Aquiles. Habitualmente, o paciente é internado no mesmo dia da cirurgia, com alta no dia seguinte. Imobilizamos com gesso cruropodálico com o joelho em extensão e tornozelo em 90 graus por três semanas, quando trocamos o aparelho gessado por bota gessada por mais três semanas, estimulando a deambulação nesta fase. Após a retirada do gesso, estimulamos exercícios passivos e ativos para o tornozelo e treino de marcha. A fisioterapia não foi realizada de rotina e o uso de botas e tutores curtos foi empregado em 44% dos pacientes por período mínimo de seis meses. MATERIAL E MÉTODOS Nos hemiparéticos (30 pés), a zetaplastia foi feita em 17 e, em 13, a técnica de Hoke. Nos diparéticos (26 pés), foram feitas 13 zetaplastias e 13 Hoke. No período de fevereiro de 1986 a dezembro de 1991, foram tratados pelo Grupo de Doenças Neuromusculares do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, “Pavilhão Fernandinho Simonsen”, 123 pacientes (185 pés) portadores de pé eqüino por paralisia cerebral espástica, submetidos ao alongamento do tendão de Aquiles como procedimento isolado. Do total de pacientes, retornaram 45 (56 pés) para avaliação final em novembro de 1993. A distribuição quanto ao sexo foi de 23 do masculino e 22 do feminimo. A idade no momento da cirurgia variou entre um ano e oito meses e 12 anos e sete meses, com média de cinco anos e seis meses. Quanto a distribuição geográfica do comprometimento motor, dos 45 pacientes (56 pés), 30 (30 pés) eram hemiparéticos e 15 (26 pés), diparéticos. O tempo de seguimento variou de 24 a 113 meses, com média de quatro anos e três meses. Todos os pacientes foram examinados no pré-operatório analisando-se a marcha e a redutibilidade do eqüinismo, com o paciente em decúbito dorsal e o joelho em extensão. A nossa indicação cirúrgica é basicamente clínica, ocorrendo sempre que o eqüinismo estiver prejudicando a marcha e quando não é possível levar o tornozelo a 90 graus. Quando faltam até 20 graus para o tornozelo chegar à posição neutra, indicamos o alongamento por deslizamento pela técnica de Hoke e, quando faltam mais de 20 graus, indicamos a zetaplastia, suturando-se o tendão de Aquiles sob leve tensão, com o tornozelo a 90 graus e o joelho em extensão. Todas as cirurgias foram por via aberta, com o paciente em decúbito dorsal, sob anestesia geral; utiliza34 RESULTADOS Utilizamos como critério de avaliação o padrão da marcha e a movimentação do tornozelo. Consideramos o resultado bom quando o paciente obtém marcha independente e flexão dorsal maior que dez graus; regular, quando a marcha é independente e a flexão dorsal neutra; mau, quando não possui marcha independente e não atinge 0 grau de flexão dorsal. Nos casos em que houve recidiva da deformidade, levou-se em conta o estado atual após a reoperação. Entre os hemiparéticos, obtivemos 34% bons, 46% regulares e 20% maus resultados. Entre os diparéticos, houve 23% bons, 54% regulares e 23% maus resultados. Como complicação, tivemos um paciente (1,7%) com infecção superficial e nenhum caso com infecção profunda. Não se constatou queixa de dor na cicatriz cirúrgica e não houve nenhum caso de hiperalongamento do tendão de Aquiles desenvolvendo marcha em calcâneo. A recidiva ocorreu em 11 pacientes (14 pés), corres pondendo a 24% dos casos. Entre os hemiparéticos, a recidiva ocorreu em oito pacientes (oito pés) (26,6%) e nos diparéticos, em três pacientes (seis pés) (20%). Se levarmos em consideração a idade do paciente na época da cirurgia, notamos que, nos 15 pacientes operados abaixo de quatro anos, ocorreu a recidiva em seis (40%) e, nos 30 operados acima dos quatro anos de idade, a recidiva ocorreu em cinco (16%). Quanto ao uso de órteses no pós-operatório, 20 pacientes (45%) utilizaram-nas por pelo menos seis meses. Rev Bras Ortop — Vol. 29, Nºs 1/2 — Jan/Fev, 1994 PÉ EQÜINO NA PARALISIA CEREBRAL: ANÁLISE DO TRATAMENTO Nos 25 pacientes (55%) com idade média de cinco anos mais cinco meses que não utilizaram órteses, houve recidiva em cinco (20%); nos 20 pacientes (45%) com idade média de cinco anos mais três meses que utilizaramnas, notamos a recidiva em seis (30%), embora a diferença não tenha sido estatisticamente significante. DISCUSSÃO Atualmente, as técnicas para o tratamento do eqüino podem ser divididas em neurectomia, abaixamento do gastrocnêmio, fasciotomias do gastrocnêmio e cirurgias no tendão de Aquiles, sejam abertas ou percutâneas. A neurectomia seletiva do nervo tibial na fossa po(1) plítea, desenvolvida por Phelps , caiu em desuso pelas dificuldades técnicas e resultados imprevisíveis, além de não promover o alongamento do tríceps. A desinserção da origem do gastrocnêmio, como (1) descrita por Silfverskiöld também não é por nós utilizada, dadas as dificuldades técnicas. A fasciotomia do gastrocnêmio, utilizando as técni(4) cas de Vulpius, Baker e Strayer promove apenas o alongamento do gastrocnêmio. Não utilizamos estas técnicas, pois não conseguimos a correção total quando o eqüino (1,9) é intenso, a recidiva pode ser muito freqüente , além de acreditarmos na necessidade de alongar o conjunto gastocnêmio-sóleo que atua simultaneamente, como de(8) monstrado por Perry . As técnicas que atuam no tendão podem ser por via (1,2,11) ou por via aberta pela técnica de Hoke, percutânea em que o alongamento se faz por deslizamento ou pela zetaplastia. Ambas as vias apresentam resultados seme(1,4,7,10) .No nosso serviço, não utilizalhantes na literatura mos as cirurgias percutâneas, pelo risco de provocarmos uma tenotomia completa do Aquiles ou uma lesão do feixe vasculonervoso, além de sentirmos dificuldade em controlar a quantidade do alongamento do tendão. Assim sendo, no nosso serviço, preferimos as técnicas que atuam por via aberta, pois nos permitem melhor controle do alongamento, maior segurança cirúrgica e por não termos tido complicações como quelóide ou dor na cicatriz cirúrgica. Não ocorreu nenhum caso de hiperalongamento e as recidivas (25%) foram de acordo com a literatura. Acreditamos ser necessária a imobilização do tornozelo a 90 graus, mantendo o joelho em extensão por três Rev Bras Ortop — Vol. 29, N°s 1/2 — Jan/Fev, 1994 semanas, para permitir a cicatrização do tendão, e, após três semanas, liberamos a movimentação do joelho, mantendo o paciente com bota gessada, com o tornozelo a 90 graus. Alguns pacientes retornam deambulando com o gesso e notamos que o retorno à marcha foi mais fácil nesses casos. A fisioterapia pós-operatória, na maioria dos casos, foi feita pela própria família, orientada quanto aos exercícios passivos e ativos para o tornozelo, devido às dificuldades socioeconômicas para comparecer ao centro de reabilitação. O uso de órteses no pós-operatório, tanto diurno (1) quanto noturno, não foi feito de retina . Aqueles pacientes que fizeram uso de órteses não mostraram melhores resultados quanto à recidiva em relação aqueles que não as utilizaram. Quanto à idade no pré-operatório, houve predomínio evidente de recidivas nos pacientes operados abaixo dos quatro anos (40%) em relação aos acima dos quatro (16%). Ainda assim, consideramos que não há limite mínimo de idade para indicarmos o alongamento do Aquiles, pois sugerimos a cirurgia sempre que houver prejuízo à marcha e o tratamento fisioterápico falhar. Com as técnicas por nós utilizadas, obtivemos resultados considerados bons ou regulares em 80% dos pacien(1,2,3,5) . tes, o que está de acordo com a literatura CONCLUSÕES 1) Qual a melhor época para a cirurgia? Não há limite mínimo de idade. Indicamos a cirurgia sempre que a deformidade estiver dificultando a marcha e não melhorar com o tratamento fisioterápico, mesmo tendo-se em conta um número maior de recidivas abaixo dos quatro anos. 2) Que técnica utilizar? Consideramos que não existe a “melhor” técnica. No nosso serviço, preferimos as técnicas por via aberta: nos eqüinos leves, a técnica de Hoke e, nos mais intensos, a zetaplastia. 3) Como orientar o pós-operatório? Achamos necessário o bloqueio do joelho em extensão, mantendo o tornozelo em 90 graus por três semanas. Estimulamos a carga com a beta gessada nas outras três semanas e não indicamos órteses no pós-operatório, a não ser nos casos com eqüino muito intenso, em criangas abaixo dos quatro anos de idade, o que sugere fraqueza muito intensa do músculo tibial anterior. 35 C. SVARTMAN, P.M.M.B. FUCS, P.F. KERTZMAN, V.M. OLIVEIRA & E.A. B. PRIETO REFERÊNCIAS 1. Bleck, E.E.: Orthopaedic management in cerebral palsy. Mac Keith Press, Philadelphia, 1987, 497 pp. 2. Conrad, J.A. & Frost, H.M.: Evaluation of subcutaneous heelcord lengthening. Clin Orthop 64: 121-127, 1969. 3. Fontenrose, A., Miller, J. & Hallum, A.: Physicians and physical therapists evaluations of cerebral-palsied children for Achilles tendon lengthening. 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