01-4 - CONDUTA

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CONDUTA, CONHECIMENTO E ACEITAÇÃO DE NOVOS VALÕRES
(1945)
QUAL É
a natureza do processo reeducativo? O que faz com
que “dê certo”? Quais são as resistências que é provável encontrar? A necessidade de reeducação surge quando um
indivíduo ou grupo está fora de passo em relação à sociedade em geral. Se o indivíduo se tornou alcoólatra, por exemplo,
ou criminoso, o processo de reeducação tenta reconduzi-lo aos valôres e à conduta que estão sintonizados com a sociedade
em que vive.
A definição do objetivo da reeducação poderia deter-se aqui se a sociedade, como um todo, estivesse sempre de acôrdo
com a realidade. Como tal não é o caso, temos de acrescentar: a reeducação também é necessária quando um indivíduo ou
grupo perde contato com a realidade. Estamos tratando do que se poderia descrever como uma divergência em relação à
norma ou à realidade dos fatos objetivos. Ao considerar o problema, a pergunta que nos cumpre fazer é esta: o que é
preciso acontecer no indivíduo para que êle derista da divergência e se torne a orientar para uma norma, ou, conforme o
caso, para um contato mais íntimo com a realidade?
A ORIGEM DE UMA DIVERGÊNCIA
Os cientistas sociais concordam em que as diferenças dc conduta, tal como existem hoje entre homens
brancos, prêtos oL
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material dêste capitulo foi preparado conjuntament pelo Dr. Lewin e pelo Sr. Paul Grabbe.
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amarelos, não são inatas; são adquiridas. As divergências da norma social também são adquiridas. Não foram
compensadores os esforços para encontrar, nas “diferenças de personalidade básica”, uma explicação para tais
divergências. Ë provâvelmente correto formular esta hipótese mais precisa:
1. São fundamentalmente jemelhantes os processos que governam a obtenção do normal e do anormal.
Ao que parece, é fundamentalmente a mesma a natureza dos processos pelos quais o indivíduo se torna um criminoso, por
exemplo, e a dos processos pelos quais o indivíduo não-divergente é levado a conduta considerada honesta. O que conta é
o efeito, no indivíduo, das circunstâncias de sua vida, a influência do grupo em que se desenvolveu. A anormalidade dessa
influência se acentua no caso do alcoólatra e do delinqüente e, aparentemente, é válida para muitos outros tipos de
divergências da norma social:
a prostituta, por exemplo, ou mesmo o autocrata.
Sem dúvida, ocorre o mesmo com as divergências em que as crenças e a conduta se opõem à realidade. Os processos que as provocam —
por exemplo, uma crença super-patriótica de que todos os “estrangeiros” são “vermelhos” — têm, fundamentalmente, a mesma natureza
que aquêles pelos quais o indivíduo adquire uma perspectiva suficientemente realista da família e dos amigos, para viver em harmonia
com a comunidade. Seu estereótipo errado de estrangeiros é uma forma de ilusão social. Para compreender-lhe a origem, atentemos para
uma conclusão feita pelos psicólogos no campo da percepção de espaço: a de que são de natureza idêntica os processos responsáveis pela
criação de imagens visuais “inadequadas” (ilusões) e os que provocam ima gens visuais “adequadas” (“realidade”).
Experimentos relativos à memória e pressão de grupo sôbre o indivíduo demonstram que, para êste, o que existe como
“realidade” é em grande parte determinado pelo que é aceito social- mente como realidade. Isto tem validade até no
campo do fato físico: para o ilhéu dos Mares do Sul, o mundo pode ser plano; para o europeu, é redondo. Portanto, a
“realidade” não é um absoluto. Difere com o grupo a que pertença o indivíduo.
Esta dependência do indivíduo em relação ao grupo, no que
toca a uma determinação do que constitua ou não “realidade”, se
torna menos surpreendente se lembramos que a própria experiên 73
cia do indivíduo é necessàriamente limitada. Em outras palavras, aumenta a probabilidade de o seu julgamento estar certo,
se o indivíduo tiver maior confiança na experiência do grupo, concorde ou não a experiência do grupo com a sua. Ëste é
um motivo para a aceitação do juízo do grupo, mas existe ainda outro. Em qualquer campo de conduta e crenças, o grupo
exerce forte pressão no que respeita à submissão de seus membros individuais. Estamos sujeitos a tal pressão em tôdas as
áreas — política, religiosa, social — inclusive em nossas crenças do que seja verdadeiro ou falso, bom ou mau, certo ou
errado, real ou irreal.
Nessas circunstâncias, não é difícil compreender a razão pela qual a aceitação geral de um fato ou uma crença poderia
constituir a própria causa que impede tal crença ou fato de jamais ser pôsto em dúvida.
A REEDUCAÇÃO COMO UMA MUDANÇA DE CULTURA
Se os processos que levam a preconceitos e ilusões, e os que levam à percepção correta e a conceitos sociais realistas, são
essencialmente os mesmos, então a reeducação deve ser um processo funcionalmente semelhante a uma mudança de
cultura. Trata-se de um processo em que as mudanças de conhecimento e crenças, mudanças de valôres e padrões,
mudanças de ligações e necessidades emocionais e mudanças da conduta cotidiana não ocorrem aos poucos, e
independentemente umas das outras, mas dentro do quadro da vida total do indivíduo no grupo.
Dêsse ponto de vista, até a reeducação de um carpinteiro que se vai tornar relojoeiro não se limita à questão de ensinar-lhe
um grupo de novas técnicas de relojoaria. Antes de poder tornar-se relojoeiro, o carpinteiro, além da aprendizagem de um
conjunto de novas habilidades, terá de adquirir um nôvo sistema de hábitos, padrões e valôres — os padrões e valôres que
caracterizam o pensamento e o comportamento dos relojoeiros. Pelo menos, é o que precisará fazer para conseguir atuar
com êxito como relojoeiro.
Nesse sentido, a reeducação equivale ao processo pelo qual o indivíduo, ao desenvolver-se na cultura em que se encontra,
adquire o sistema de valôres e o conjunto de fatos que mais tarde lhe irão governar o pensamento e a conduta. Portanto,
parece que
2. O processo reeducativo tem de realizar uma tarefa que equivale essencialmente a uma mudança de cultura.
Agora, podemos compreender com maior facilidade porque é acentuada a “informalidade da educação” como fator de
particular importância na reeducação do delinqüente; porque a atmosfera inclusiva, característica da vida num grupo como
o dos Alcoólatras Anônimos, é considerada muito mais eficiente para auxiliar o viciado a deixar o álcool que a longa e
severa rotina de treinamento específico de hábitos pela qual tem de passar o alcoólatra como paciente clínico.
Ünicamente com ancorar sua própria conduta em algo grande, substancial e supra-individual, como a cultura de um grupo,
é que o indivíduo pode estabilizar suas novas crenças o suficiente para mantê-las imunes das flutuações diárias de estados
de ânimo e de influências a que êle está sujeito como indivíduo.
Encarar a reeducação como tarefa de aculturação constitui, a nosso ver, um vislumbre básico e valioso. Todavia, não passa
de um esquema. Para proporcionar uma reeducação eficiente, precisamos de uma nova compreensão da dinâmica do
processo, da constelação específica de fôrças com que é preciso lidar sob dife. rentes condições.
CONTRADIÇÕES INTERNAS NA REEDUCAÇÃO
O processo reeducativo afeta o indivíduo de três maneiras. Muda-lhe a estrutura cognitiva, — a maneira de ver o mundo
físico e o social abrangendo-lhe todos os fatos, conceitos, crenças e expectativas. Modifica suas valências e valôres, e
êstes compreendem tanto suas atrações e aversões a grupos e a padrões grupais como seus sentimentos em relação a
diferenças de status e suas reações às fontes de aprovação e desaprovação. E afeta a açâo motora, que inclui o grau de
contrôle do indivíduo sôbre seus movimentos físicos e sociais.
Se essas três influências (e os processos que as provocam) fôssem regidas pelas mesmas leis, a tarefa prática da
reeducação seria muito mais simples. Infelizmente não são e, portanto, o reeducador enfrenta certas contradições. Por
exemplo, o tratamento relacionado com o treinamento de uma criança que chupa o dedo; esta aprende certos movimentos
circulares da mão cuja finalidade é tornar a criança consciente de que chupa o dedo e dar-lhe, com isso, maior contrôle
dos movimentos; contudo, isso
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pode afastá-la de outras crianças e minar-lhe a segurança emocional, cuja posse é uma condição prévia para o êxito da
reeducação.
Um dos problemas fundamentais da reeducação é ver como podem evitar-se tais contradições interiores. Provàvelmente,
são essenciais uma seqüência correta de etapas, uma divisão correta de tempo e urna combinação correta de tratamentos
individual e de grupo. Todavia, é da maior importância que o reeducador tenha inteira compreensão da maneira pela qual
êsses componentes psicológicos — a estrutura cognitiva, as valências e valôres, e a ação motora — são afetados por
qualquer etapa específica na reeducação.
A discussão que se segue abrange apenas dois dos principais problemas aqui envolvidos, um relativo à mudança de
cognição, o outro à aceitação de novos valôres.
MUDANÇA DA ESTRUTURA COGNITIVA
As dificuldades encontradas nos esforços para atenuar os preconceitos ou mudar, de alguma outra maneira, a visão social
do indivíduo, levou à compreensão de que a reeducação não pode ser apenas um processo racional. Sabemos que
preleções ou outros métodos abstratos semelhantes de transmissão de conhecimento têm pouco valor no que tange a
mudar-lhe os pontos de vista e a conduta. Portanto, poderíamos ser levados a pensar que o que falta a tais métodos é a
experiência direta. A triste verdade é que mesmo a experiência direta não produzirá necessàriamente o resultado desejado.
Para compreender as razões disso, cumpre-nos examinar algumas premissas que têm relação direta com o problema.
3. Mesmo ampla experiência direta não cria automàticamente conceitos corretos (conhecimento).
Durante milhares de anos, a experiência diária do homem com objetos que caem não bastou para levá-lo a corrigir a teoria
da gravidade. Foi necessária uma seqüência de experiências assaz fora do comum, feitas pelo homem, denominadas
experimentos, os quais nasceram da busca sistemática da verdade, para provocar uma mudança, de conceitos menos
adequados para outros mais adequados. Parece, portanto, injustificável supor que a experiência direta no mundo social
levaria automàticamente à formação de conceitos corretos ou à criação de estereótipos adequados.
4. A ação social não é menos dirigida pela percepção que a ação física.
Em tôda situação, não podemos deixar de agir de acôrdo com o campo que percebemos; e nossa percepção se estende a
dois aspectos diferentes dêsse campo. Um tem a ver com fatos, outro com valôres.
Quando agarramos um objeto, o movimento de nossa mão é dirigido pela posição em que o percebemos na vizinhança
igualmente percebida. Da mesma forma, nossas ações sociais são orientadas pela posição em que nos percebemos a nós e
aos outros. A tarefa básica da reeducação, portanto, pode ser considerada a de alterar a percepção social do indivíduo.
Ünicamente por meio dessa mudança da percepção social é que é possível realizar mudança da ação social do indivíduo.
Suponhamos que de alguma forma um conhecimento mais adequado substituiu a informação inadequada (conhecimento).
Bastará isto para mudar nossa percepção? Ao responder, aceitemos de nôvo uma indicação do campo da percepção física
e perguntemos: Como é possível corrigir uma falsa percepção física, por exemplo, as ilusões visuais
. Via de regra, não basta o domínio do conhecimento correto para corrigir a percepção errada.
Nossa compreensão das condições que determinam a correção ou incorreção da percepção é ainda muito limitada. Sabe-se
que existe alguma relação entre a percepção visual e o conhecimento. Todavia, as linhas que aparecem curvas numa ilusão
de ótica não endireitam tão logo as “saibamos” retas. Mesmo a experiência direta — a mensuração das distâncias em
questão
— não elimina habitualmente a ilusão. Em geral, para endireitar as linhas, são necessários outros tipos de mudança, tais
como o aumento ou redução da área percebida ou uma mudança nos quadros visuais de referência.
Quando consideramos as resistências à reeducação, pensamos usualmente em têrmos de obstáculos emocionais.
importante, contudo, não subestimar as dificuldades inerentes à mudança cognitiva. Se lembrarmos que até ampla
experiência com fatos físicos não conduz necessàriamente a percepção física correta, ficaremos menos surpreendidos com
as resistências encontradas quando tentamos modificar estereótipos sociais inadequados.
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French e Marrow contam a história da atitude de uma contramestre para com operárias mais antigas. Ela se apega à
convicção de que as operárias mais antigas não prestam, embora em seu pavimento tenha operárias antigas que considera
muito eficientes. Seus preconceitos se opõem frontalmente a tôda a sua experiência pessoal.
Este exemplo da indústria confirma estudos sôbre as relações entre negros e brancos, no tocante à influência da escola
integrada e às observações acêrca do efeito da vida em comum. Tais estudos mostram que experiências favoráveis com os
membros do outro grupo, ainda que freqüentes, não reduzem necessàriamente os preconceitos contra êsse grupo.
Só quando se estabelece um vínculo psicológico entre a imagem dos indivíduos específicos e o estereótipo de um
determinado grupo; só quando os indivíduos podem ser percebidos como “representantes típicos” dêsse grupo, é que a
experiência com indivíduos tem a probabilidade de afetar o estereótipo.
6. Os estereótipos incorretos (preconceitos) são funcional- mente equivalentes a conceitos erróneos (teorias).
Podemos supor, por exemplo, que as experiências sociais necessárias para mudar estereótipos inadequados tenham de ser
equivalentes àquelas raras e específicas experiências físicas que suscitam uma mudança em nossas teorias e conceitos
acêrca do mundo físico. Não é possível depender da ocorrência acidental de tais experiências.
Cumpre considerar um outro ponto para compreender as dificuldades de mudar a conduta:
7. Mudanças de sentimentos não acompanham necessã ria- mente mudanças da estrutura cognitiva.
Mesmo que a estrutura cognitiva referente a um grupo seja modificada num indivíduo, seus sentimentos para com êsse
grupo podem continuar os mesmos. A análise de um levantamento de opinião acêrca do problema do negro, que inclua
respostas de hranos de diversos níveis educacionais, mostra que, em grande parte, o conhecimento e o sentimento são
independentes.
Os sentimentos do indivíduo para com um grupo são determinados menos por seu conhecimento do grupo que pelos
sentimentos dominantes na atmosfera social que o cerca. Assim como o alcoólatra sabe que não deve beber — e não quer
beber
assim também o soldado branco dos Estados Unidos que observa um negro a passear com uma môça branca na
Ir*glaterra, pode achar que não se deve incomodar — e pode conscientemente condenar-se por seus preconceitos. No
entanto, freqüentemente, pode sentir-se inerme diante dêsse preconceito, pois a sua percepção e sua reação emocional
permanecem contrárias àquilo que sabe que devam ser.
A reeducação corre com freqüência o perigo de atingir apenas o sistema oficial de valôres, o nível de expressão verbal e
não de conduta; pode meramente provocar aumento da divergência entre o superego (a maneira como me devo sentir) e o
ego (a maneira como de fato me sinto), e com isso suscitar no indivíduo uma consciência culposa. Tal discrepância
conduz a um estado de grande tensão emocional, mas raramente a uma conduta correta. Podc adiar transgressões, mas
tende a torná-las mais violentas quando ocorrem.
Um fator da maior importância no provocar uma mudança de sentimento é o grau em que o indivíduo se envolve
ativamente no problema. Sem êsse envolvimento do indivíduo, nenhum fato objetivo conseguirá atingir condição de fato
para o indivíduo implicado e dessarte influenciar-lhe a conduta social.
A natureza dessa interdependência torna-se um pouco mais compreensível se se considerar a relação entre mudança de
percepção, aceitação e participação no grupo.
—
ACEITAÇÃO DE NOVOS VALÔRES E PARTICIPAÇÃO NO GRUPO
Como a ação é dirigida pela percepção, uma mudança de conduta pressupõe a percepção de novos fatos e valôres. Estes
devem ser aceitos, não só verbalmente, como uma ideologia oficial, mas como uma ideologia de ação, que compreende o
sistema específico, freqüentemente inconsciente, de valôres que dirige a conduta. Em outras palavras,
8. Urna mudança da ideologia de ação, uma aceitação real de um conjunto modificado de fatos e valôres,
uma mudança do mundo social percebido — os três não passam de expressões dif e- rentes do mesmo processo.
Alguns denominam êsse processo, de mudança da cultura do indivíduo; outros, de mudança de seu superego.
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Ë importante observar que a reeducação só terá êxito, isto é, só levará a uma mudança permanente se tal mudança de
cultura fôr suficientemente completa. Se a reeducação conseguir ünicamente que o indivíduo se torne um marginal,
situado entre o sistema antigo de valôres e o nôvo, não terá realizado nada de valor.
Um dos fatôres que se, revelou de grande importância para o êxito ou malôgro do processo reeducativo foi a maneira de
apresentar o nôvo superego. A solução mais simples parece estar na imposição direta de nôvo conjunto de valôres e
crenças. Neste caso, introduz-se um novo deus que tem de lutar contra o antigo, considerado agora um demônio. A tal
respeito, podem-se estabelecer dois pontos para ilustrar o dilema com que se defronta a reeducação, com referência à
introdução de um nôvo conjunto de valôres.
a. Lealdade para com os antigos valôres e bostilidade para com os novos. Um indivíduo obrigado a mudar-se do
seu país para outro, com uma cultura diferente, provàvelmente enfrentará com hostilidade o nôvo conjunto de valôres. O
mesmo ocorre com o indivíduo sujeito à reeducação contra a vontade. Como se sente ameaçado, êle reage com
hostilidade. Tal ameaça será sentida ainda mais intensamente se o indivíduo não se estiver expondo voluntàriamente à
reeducação. Uma comparação entre a migração voluntária e a involuntária, de uma cultura para outra, parece provar esta
observação.
Seria de esperar que semelhante hostilidade fôsse mais acentuada quanto maior fôsse a lealdade do indivíduo para com o
antigo sistema de valôres. Portanto, é de esperar-se que as pessoas mais sociáveis e, por isso, menos voltadas para o
próprio eu, ofereçam resistências mais fortes à reeducação, pela simples razão de que estão mais ‘intimamente ligadas ao
antigo sistema.
De qualquer maneira, o processo reeducativo encontrará normalmente hostilidade. A tarefa de romper essa hostilidade
torna-se um paradoxo, se se considerar a relação entre a aceitação dos novos valôres e a liberdade de escolha.
b. Reeducação e liberdade de aceitação. Dá-se muita ênfase
à criação de uma atmosfera de liberdade e espontaneidade, como
parte do processo reeducativo. A freqüência livre, a informalidade
das reuniões, a liberdade de expressão no tocante a reclamações,
a segurança emocional e a evitação de pressões incluem tôdas tal
elemento. A insistência de CarI Rogers na autodecisão do paciente acentua o mesmo aspecto na psicoterapia do indivíduo.
Parece haver um paradoxo implícito nesta insistência na liberdade de aceitação, e provàvelmente nenhum outro aspecto da
reeducação põe em foco com maior clareza uma dificuldade fundamental do processo. Como a reeducação aspira a mudar
o sistema de valôres e crenças de um indivíduo ou grupo — mudá-lo a fim de torná-lo adequado à sociedade em geral, ou à
realidade — parece ilógico esperar que semelhante mudança possa ser feita por êles próprios. O fato de a mudança precisar
de ser imposta de fora ao indivíduo parece constituir uma necessidade tão evidente que, muitas vêzes, é considerada
natural. Muita gente supõe que a criação de uma atmosfera de informalidade e liberdade de escolha, como parte do
processo reeducativo, não pode possivelmente significar outra coisa que não seja o educador ter o cuidado de manipular
os indivíduos de modo a fazê-los pensar que são os donos do espetáculo. Para gente assim, essa forma de reeducação não
passaria de um engôdo e de uma cortina de fumaça para o que consideram o método mais honrado, direto de utilização da
fôrça.
Todavia, pode-se assinalar que se a reeducação significa o estabelecimento de um nôvo superego, segue-se
necessàriamente que o objetivo procurado não será atingido enquanto o indivíduo não sentir o nôvo conjunto de valôres
como algo livremente escolhido. Se êle se submeter apenas por mêdo do castigo e não pelos ditames de seu livre arbítrio e
consciência, o nôvo conjunto de valôres que deve aceitar não assume, nêle, a posição de superego, e, portanto, sua
reeducação permanece irrealizada.
Disto podemos concluir que a percepção social e a liberdade de escolha estão correlacionadas. Obedecer à consciência é o
mesmo que obedecer às exigências intrínsecas percebidas da situação. Só quando o nôvo conjunto de -valôres é
livremente aceito, só quando corresponde ao superego do indivíduo, é que ocorrem aquelas mudanças de percepção social
que, como vimos, constituem condição prévia para uma mudança de conduta e, portanto, para um efeito duradouro da
reeducação.
Podemos agora formular o dilema que a reeducação tem de enfrentar desta maneira: Como é possível suscitar a livre
aceitação de um nôvo sistema de valôres se a pessoa a ser educada tende, pela natureza das coisas, a hostilizar os novos
valôres e a ser leal aos antigos?
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9. Geralmente, a aceitação do nôvo conlunto de valôres e crenças não pode ser efetuada ponto por ponto.
Os métodos e processos que procuram mudar, ponto por ponto, as convicções, são de pouca utilidade na efetivação da
desejada mudança profunda. Verificou-se ser esta uma das experiências mais importantes para os que estão empenhados
no campo da reeducação. Argumentos que se desenvolvam làgicamente, ponto por ponto, podem encurralar o indivíduo.
Mas, via de regra, êle encontrará alguma maneira — se preciso fôr, uma maneira assaz ilógica — de conservar suas crenças.
Não é possível estabelecer qualquer mudança de convicção, a respeito de qualquer questão específica, a não ser de
maneira efêmera, enquanto o indivíduo não renunciar à sua hostilidade para com o nôvo conjunto de valôres como um
todo, passando pelo menos da hostilidade para o espírito aberto.
Os métodos por etapas são muito importantes em reeducação. Todavia, as etapas têm de ser concebidas como etapas
duma mudança gradual da hostilidade para cordialidade, em relação ao nôvo sistema como um todo, e não como uma
conversão do indivíduo na base de um ponto por vez. Naturalmente, convicções referentes a determinados pontos do
sistema total podem desempenhar papel importante no processo de conversão. Entretanto, para o planejamento geral da
reeducação, é importante não perder de vista o fato de que os esforços com vistas a provocar uma mudança da hostilidade
em receptividade e cordialidade com a nova cultura como um todo, devem ter prioridade sôbre a conversão referente a
qualquer item isolado ou séries de itens do programa reeducativo.
Como então se pode estabelecer a aceitação dos novos valôres, a não ser por via de uma mudança ponto por ponto da
convicção?
A CRIAÇÃO DE UM GRUPO SOLIDÁRIO E A ACEITAÇÃO
DE UM NÔVO SISTEMA DE VALÔRES
Atualmente, um dos importantes meios utilizados para efetuar a aceitação em reeducação, tal como foi discutida acima, é
estabelecer o que se denomina um “grupo solidário (in-group), isto é, um grupo cujos membros tenham consciência de a
êle pertencer. Nessas circunstâncias,
10. O indivíduo aceita o nôvo sistema de valôres e crenças quando aceita pertencer a um grupo.
Allport formula êste ponto como um princípio geral de ensino quando diz: “E um axioma que não se podem
ensinar pessoas que, ao mesmo tempo, sentem estarem sendo agredidas.” A distância normal entre professor e
aluno, médico e paciente, assistente social e público, pode portanto constituir um obstáculo real à aceitação da
conduta postulada. Em outras palavras, a despeito de tôdas as diferenças de status que possam existir entre
êles, o professor e o aluno têm de sentir-se como membros de um grupo nas questões que envolvam seu senso
de valôres.
As oportunidades de reeducação parecem aumentar sempre que se cria um forte sentimento grupal. O
estabelecimento dêsse sentimento, de que estamos todos no mesmo barco, passamos as mesmas dificuldades e
falamos a mesma língua, é ressaltado como uma da principais condições para facilitar a reeducação do
alcoólatra e do delinqüente.
Quando a reeducação implica o abandono de padrões que sejam contrários aos da sociedade em geral (como é
o caso da delinqüência, do preconceito contra minorias, do alcoolismo), o sentimento de participação grupal
parece aumentar muito se os membros se sentirem livres para exprimir abertamente os mesmos sentimentos
que a reeducação pretende remover. Pode-se considerar isso como outro exemplo das aparentes contradições
inerentes ao processo de reeducação: a expressão de preconceitos contra minorias ou a desobediência às
regras da ordem parlamentar podem ser contrárias ao objetivo desejado. Todavia, numa fase particular da
reeducação, um sentimento de completa liberdade e uma maior identificação com o grupo são freqüentemente
mais importantes que aprender a não violar regras específicas.
Este princípio de solidariedade grupal permite compreender por que é possível atingir completa aceitação de
fatos anteriormente rejeitados, quando os próprios membros do grupo descobrem êsses fatos. Então, e amiúde
sômente então, os fatos se tornam verdadeiramente fatos dêles (em oposição aos fatos de outras pessoas). Um
indivíduo acreditará nos fatos que êle mesmo descobriu, da mesma forma que acredita em si ou no seu grupo.
A importância dêsse processo de descobrimento de fatos pelo grupo foi recentemente pôsto em relêvo, no
caso da reeducação, em vários campos. Pode-se supor que a pesquisa social é traduzida em ação social na
medida em que os que realizam tal ação participem do descobrimento de fatos em que ela se baseia.
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A reeducação só influencia a conduta quando o nôvo sistema de valôres e crenças domina a percepção do
indivíduo. A aceitação do nôvo sistema liga-se à aceitação de um grupo específico, de um determinado papel,
de uma fonte definida de autoridade como novos pontos de referência. Para a reeducação, é fundamental que
seja muito íntimo o liame entre a aceitação dos novos fatos ou valôres e a aceitação de alguns grupos ou
papéis, e que esta seja amiúde uma condição prévia daquela. Isto explica a grande dificuldade de mudar-se
gradualmente de crenças e valôres. Tal liame constitui importante fator oculto na resistência à reeducação,
mas pode também tornar-se um poderoso meio para o êxito dela.
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