__________________________________________ 1 AUTONOMIA: onde mora a vontade livre? Marlene Braz1 "Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?.. Ai de mim!... Mário de Sá-Carnetro Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999. In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos – questões emergentes dos Psicanalista Há coisas que nos assustam e causam estranheza, mas isso não tem a ver, tão somente, com a realidade do evento que está se passando na nossa frente, seja uma peça de teatro, um filme ou um número de mágica e sim, com a realidade interna, algo reprimido que retoma. Nesse sentido, o estranho não seria algo novo e sim algo familiar, habitante há muito da mente, mantido alienado pela repressão. Dentre os exemplos levantados por Freud, há algo, até hoje, que mudou bem pouco, continuando preservado em nosso inconsciente, de forma levemente disfarçada: a relação de nossas idéias e sentimentos com a morte. Duas coisas podem ser ditas para tal conservadorismo, quais sejam: "(...) a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela. A biologia ainda não conseguiu responder se a morte é o destino inevitável de todo ser vivo ou se é apenas um evento regular, mas ainda assim talvez evitável, da vida (...). Nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para a idéia da sua própria mortalidade (...). Uma vez que quase todos nós ainda pensamos como selvagens a respeito desse tópico, não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação" (1919. ESB. 1976:301:302). Freud escreveu esse texto em 1919 e de lá para cá, as descobertas da biologia molecular e o avanço das neurociências vêm mudando a relação do humano com a morte. A credibilidade no progresso científico é de tal monta, que quem pode, está "comprando a eternidade", ao pagarem para serem mantidos congelados até poderem ser "acordados" de sua morte pelas descobertas que advirão. A imortalidade está perto, crêem, não poucos, e podemos falar assim de, um gradual mas forte, distanciamento da morte ou, em outras palavras, uma negação intensificada da mesma. Entendemos que essa negação da morte e, não mais a repressão, levada a efeito na contemporaneidade, é o principal motor para a emergência do temor que, muitas vezes chega a uma paranóia e ronda todo o progresso técnico ligado a ela, tais como: a eutanásia, a reprodução assistida, a clonagem, a engenharia genética. Nesse sentido, não é por acaso o vigoroso 1 Coordenador do CEP/IFF e Vice-Coordenador do CEP/FIOCRUZ. __________________________________________ 2 e árduo debate sobre as questões éticas suscitadas pelas biotecnociências CSchramm. 1996). A Bioética, surge em 1970 para servir de campo de reflexões em torno de princípios éticos a serem levados em consideração face ao avanço da tecnociência (Hottois.1990). Essa disciplina estabeleceu princípios norteadores das pesquisas médicas e dos tratamentos e tem sido responsável pela divulgação contínua e extensa dos princípios prima facie, entre eles, o de autonomia, colocando-o, para alguns bioeticistas como o principal princípio a ser considerado (Engelhardt.1993). Desde o advento da modernidade todos os cidadãos são considerados iguais e autônomos, impedindo, teoricamente, a exploração de uma pessoa por outra. Portanto é a dignidade da pessoa humana que está em jogo. De outro modo a autonomia é vista como respeito a liberdade do paciente, de escolha e de decisão. "Em situação normal, em face a um adulto capaz de dirigir sua própria vida, o princípio de autonomia exige o seu consentimento a todo tratamento médico e a todo ensaio experimental. O direito torna um valor ético quando proclama: 'A pessoa humana é inviolável. Ninguém pode invadir outra pessoa sem seu consentimento"' (Código Civil de Québec, artigo 19) - (Durant. 1995). Concordamos, inteiramente, que uma pessoa não pode ser invadida sem sua permissão, não significando que ao permitir esteja exercendo seu livre arbítrio. Esse é o ponto principal de nossa discussão. Até que ponto, nós temos autonomia para dar um consentimento livre e esclarecido sobre todo tratamento médico e ensaio experimental? As pessoas cada vez mais informadas de seus direitos sobre seus corpos e da "autonomia" conferida pela modernidade, exigem dos médicos, muitas vezes, em nome daquela, procedimentos considerados não éticos (pelos juízes, pelos próprios médicos, sociedade), como por exemplo, o direito reivindicado pelo casal de lésbicas a fazerem inseminação artificial ou clonar humanos, entre outros. Por que é proibido? Quem proíbe? Ora, por princípio, se acreditamos no livre arbítrio, no não determinismo psíquico ou social, na autonomia, enfim, não haveria necessidade de se discutir se uma descoberta ou tratamento pode ser aplicado. O que acontece, então? Para darmos conta de nossa problemática, isto é, do conceito de autonomia e de seu corolário) o consentimento livre e esclarecido, somos obrigados a retomar uma discussão antiga sobre a consciência e o inconsciente, o livre arbítrio e o determinismo. Essa discussão não tem sido clara, ou pelo menos, manifesta desta forma pelos bioeticistas. Ela se encontra camuflada por dois posicionamentos bioéticos, quais sejam: os partidários da bioética - justificativa expressa na máxima "tudo aquilo que pode ser feito, deve ser feito" (Garrafa & Berlinguer. 1996) - ou, os da corrente conservadora da bioética - que prevê o apocalipse, o consentimento das pessoas seria insuficiente para fundamentar a legitimidade da decisão. A primeira posição seria uma "posição dita liberal, mais preocupada com o indivíduo apontando que o acesso a estas técnicas deve ser franqueado, sendo suficiente o contrato livremente firmado entre as partes"; a segunda "posição mais preocupada com a sociedade que implica em apontar __________________________________________ 3 este acesso como perigoso para as liberdades fundamentais, devendo o Direito instituir e proteger" (Labrusse-Riou. 1995:120). Entre permitir o avanço desenfreado da tecnociência e a imposição de leis que regulamentem a atividade científica, toma relevância o princípio prima facie da autonomia, expressa através de consentimento livre e informado, exigido em toda e qualquer pesquisa e, em determinados países, para todo e qualquer ato médico. O consentimento livre e informado aparece, então, como uma tentativa de saída para o impasse criado pelas duas posições. No entanto, devemos nos deter um pouco mais sobre esta questão porque ela não é simples e acabada, apesar da unanimidade em torno da necessidade de só se poder intervir num corpo com o consentimento do sujeito. Isto porque, um termo assinado de permissão, não impede, no nosso entendimento, o abuso possível de experimentos científicos e, por outro lado, não implica numa autorização para uma pesquisa ser levada a efeito se não for considerada ética. Onde fica a autonomia deste indivíduo que deu autorização? Qual é o mal-estar pouco falado em torno deste problema? Antes de respondermos, faz-se necessário um breve percurso na teologia e filosofia, que privilegiaram a discussão da liberdade do homem. A discussão do livre arbítrio é antiga e seu principal pensador é Santo Agostinho (1995) que em 396 termina uma obra iniciada em 388, cujo título original é De libero arbítrio. O problema básico da obra se prende à questão da liberdade humana e da origem do mal. Se Deus era o responsável por tudo que existia, o era também pelo mal e tal fato era insuportável para ele. Santo Agostinho lutava contra os maniqueus e suas idéias, que podem ser expressas pela concepção que existiriam duas divindades governando o universo: o Bem e o Mal, a luz e as trevas, conseqüentemente, o homem possuiria duas almas, cada uma comandada pelos princípios. Assim sendo, o mal faria parte da natureza humana, seria meta físico e ontológico, sendo a pessoa humana um ser não livre e nem responsável pela maldade, porque isto lhe era imposto. Nesse sentido, o homem não possuiria o livre arbítrio. O mal não seria um ser e, sim a privação e deficiência de ser. Existindo vários bens criados por Deus, o homem gozando de liberdade pode optar entre eles. O pecado seria uma escolha incorreta entre esses bens. A vontade livre de que goza o homem é um enorme bem, sendo o mal o uso indevido desse bem ( Gilson.1995). Ele repete inúmeras vezes a liberdade do homem de fazer o bem, não existindo nenhuma necessidade que o obrigue para o mal. Se há pecado a culpa é do homem, pois, Deus tem uma bondade essencial e infinita. "Sem o livre arbítrio não haveria mérito nem demérito, glória nem vitupério, responsabilidade nem irresponsabilidade, virtude nem vício" (Santo Agostinho. 1995:18). A capacidade do homem de fazer o mal faria parte do livre arbítrio que ele possui e não fazê-lo implica justamente no signo da liberdade. O grau supremo da liberdade seria, então, não poder mais fazer o mal. Lutero, teólogo, aborda também a liberdade humana e sua questão pode ser resumida no seguinte: "se existe de fato a predestinação, reza a sua retórica incontrolável, se Deus sabe desde toda a eternidade tudo sobre todos, a liberdade só pode ser uma falácia; só __________________________________________ 4 Deus seria livre, e o homem ficaria aprisionado num jogo de faz-de-conta" (Bornheim.1997:9). Essa discussão e o posicionamento de Lutero prosseguem com novas vestes até os dias atuais. Descartes muda a retórica deslocando de Deus para o próprio homem a discussão. É com ele que se desenvolve a questão da autonomia, tema até então inédito. A "experiência absoluta acontece independentemente da experiência do Absoluto, e essa certeza ontológica deixa-se confirmar como que de modo imediato pela perfeição maior que é a certeza do livre arbítrio" (Bornheim. 1997:10). O livre arbítrio de Descartes traz consigo uma nova noção - a do sujeito da consciência. A identificação da subjetividade com a consciência, portanto, do primado da razão, parece ser um ponto inabalável da filosofia moderna, assim como a noção de autonomia. Com Kant, o princípio da autonomia, o poder da escolha e o livre arbítrio se consolidam e marcam a filosofia ocidental e a concepção do sujeito humano. A partir de Freud, de sua produção do conceito de inconsciente, ocorre uma ruptura com o pensamento da filosofia moderna. "O filósofo contemporâneo encontra Freud nas mesmas paragens que Nietzche e que Marx, os três levantam-se perante ele como os protagonistas da suspeita, os descobridores de máscaras. Nasceu um problema novo: o da mentira da consciência, da consciência como mentira" (Ricoeur. s/data:l00). 0 determinismo seja ele psíquico (Freud) ou social (Marx) vem se contrapor à idéia do homem possuidor de razão e capaz de autodeterminar-se, enfim um ser não dotado de livre arbítrio e autonomia. O conhecimento da alma humana, levado a efeito pela psicanálise, com a descoberta do inconsciente, aponta para uma radicalidade no pensar o homem, levando-a a estar contra a corrente de pensamento dominante. Nascido fora do domínio da filosofia causou, como já era de se esperar, um verdadeiro escândalo (Birman. 1995), difícil de se digerir até hoje. Não espanta, portanto, a negação deste território obscuro, nesta virada do século, e todas as tentativas para reduzir o psiquismo, os afetos, os sintomas mentais, os vícios no registro biológico tão somente (Damasio. 1996). Alguns filósofos (Vaz. 1997) chegam mesmo a colocar a existência do inconsciente como constitutivo do pensamento da época moderna, onde prevalecia a questão da alteridade. Hoje, a temática da "dupla alteridade, a espera e a transformação do social deixaram de ser pertinentes para descrever o que está acontecendo em nosso tempo, o modo como hoje se vive o novo" (Vaz. 1997:128). Cresce, na nossa percepção, como assinalamos no princípio deste trabalho, um processo de negação da morte através da crença de "o novo é feito pela ciência, então vem queiramos ou não" (Ibidem: 129). Freud coloca por terra o livre arbítrio já que sua concepção está inelutavelmente ligada à razão. Para a psicanálise estamos sob a égide do inconsciente a quem não temos um acesso livre e constante. Nosso Ego consciente (a maior parte dele também é inconsciente) é determinado por ele, pelo Superego e pela realidade externa. O Ego é também fruto de inúmeras identificações, na realidade um precipitado delas (Freud. ~923). A formação da identidade, portanto, é um lento processo a partir da incorporação __________________________________________ 5 exitosa de todas as identificações fragmentárias da infância, o que implica em introjeções bem sucedidas (Braz. 1997). Se o sujeito é fruto da incorporação parcial de "outros", acreditar na autonomia para o psicanalista seria uma incongruência ou no mínimo, uma utopia (Ferraz. 1997:5-6). Quando falamos "Eu", na realidade estamos falando de vários "eus" que habitam em nós mantidos unidos pela identidade. Com a noção de inconsciente, a subjetividade deixa de ser entendida como um todo unitário, identificado com a consciência e sob o domínio da razão. "Contra a unidade do sujeito defendida pelo racionalismo, a psicanálise vai nos apontar um sujeito fendido" (Garcia Roza. 1993:23). A psicanálise traz uma ferida narcísica de difícil aceitação, aquela do pensamento que consente ser desalojado da certeza de si. Tornar consciente o inconsciente - esta é a proposta da psicanálise - e, deste modo, poder-se- ia interpretar como a libertação do homem das amarras do inconsciente. De algum modo Freud tinha essa ilusão, pois, sofreu a influência de seu tempo e das idéias iluministas do primado da razão. Observando o psiquismo humano deu-se conta de quanto éramos limitados pelo "desconhecimento" do inconsciente e desenvolveu, a partir daí, uma técnica com a finalidade de nos libertar do determinismo psíquico fazendo uma confissão de fé no método psicanalítico, quando diz: "(...) Vamos, deixe que lhe ensinem algo sobre esse problema! (...) Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! Então compreenderá porque está destinado a ficar doente e, talvez, evite adoecer no futuro" (1917.ESB.1976:177178). Freud conclui, mais tarde, que esta tarefa é de difícil execução, pois, há algo além do princípio do prazer, irrepresentável e responsável por uma tenaz resistência ao processo psicanalítico: a pulsão de morte (Freud.1920). Limitados por algo que habita dentro de nós mesmos, de difícil abordagem, um mistério a ser decifrado. A psicanálise de hoje, continua a se propor à complicada tarefa de decifrar o psiquismo mas reconhece suas limitações. O desvelamento do inconsciente, possível de ser levado a cabo, nos coloca frente ao que já não somos ou ao que pensávamos que éramos e isso é libertário. Agora pode-se fazer uso do que nos determinava mas não de toda a determinação. Isto posto algumas questões se colocam. De que autonomia falam os teólogos, os filósofos e os bioeticistas? Do ponto de vista da bioética, sem levar em conta o conhecimento do sujeito pela psicanálise, o indivíduo poderá assumir uma das duas posições faladas no início deste trabalho, ou seja, é totalmente autônomo e o consentimento é suficiente, ou não o é, devendo haver normas e leis para proteger a pessoa. Seja qual for a corrente bioética, temos o direito e o dever de nos interrogarmos quanto a eticidade de qualquer ato médico. Teremos o direito de, simplesmente, atender a demanda, expressa por um pedido, sem entendermos o desejo inconsciente que move o sujeito? __________________________________________ 6 Os dilemas éticos colocados pela tecnociência pode ser evidenciado por uma procura, cada vez maior, de responder a uma questão parcialmente subjetiva por uma totalmente orgânica afirmando a crença num somatismo absoluto, calando deste modo o sujeito, pois, nada mais normal do que o direito de cada um viver. Deste modo, operações custosas e invasivas são realizadas nos indivíduos com seu consentimento, nem sempre consciente (Chatel. 1995). É necessário, assim, abordar as questões morais e éticas sob vários ângulos mesmo que a prática médica já seja reconhecida e permitida. A comunidade científica, a todo momento, tem se questionado da eticidade da aplicação de suas descobertas. Discute-se se é moral ou não, se é justo ou não, se causa bem ou mal. A discussão recai sempre sobre os aspectos mais visíveis do problema, respeitando-se o dito e o aparente. A constatação mais imediata quando a discussão ética se dá desse modo, isto é, não ouvindo o não dito, não olhando-se em profundidade o sujeito, é acreditar numa possibilidade de se apagar o discurso ideológico que a subjaz. A cultura individualista, marca da nossa atualidade, fruto do livre mercado e da globalização, vende a ilusão, de cada um de nós nos bastarmos, com a ajuda da ciência, evidentemente. A conseqüência disto é um incremento do sentido da responsabilidade de nossos atos. O plurarismo ético é um corolário desta nova "identidade" humana. Com o intuito de conter os possíveis radicalismos desse pluralismo ético, fala-se de uma "ética de responsabilidade", isto é, "do momento em que nos tornamos potencialmente competentes em nos autocriar (graças aos progressos das biotecnociências), conforme nossos projetos e desejos (...), tornamo-nos em princípio mais autônomos com relação a leis naturais e a princípios de autoridade transcendentes. Mas esta autonomia implica, também, maior responsabilidade, ou seja, uma 'responsabilidade radical' (...) para com o fenômeno da vida humana, que é uma reforma constante do natural pelo cultural, inclusive pela biotecnociência" (Schramm. 1997:11). Como se coloca na prática essa responsabilidade? Quando se adoece, por exemplo, é porque falhamos de algum modo, não seguimos as prescrições médicas que dirigem atualmente nossa vida: não fumar, não engordar, andar, não beber, não comer comida gordurosa, não se estressar, fazer sexo seguro, exames preventivos e preditivos. Todo um olhar obsessivo e permanente sobre o corpo, como se obedecendo a todas as recomendações escapássemos do adoecimento e quem sabe, vivendo mais, a ciência não encontrará o elixir da vida eterna? Como disse um colega: "vou viver 120 anos, aliás se eu morrer". Se levantadas questões quanto a relatividade do princípio da autonomia de ordem moral ou simplesmente médicas, podemos cair na ideologia da heteronomia, do paternalismo. Não é politicamente correto, nos dias de hoje, alguém determinar ou decidir o que se pode fazer ou não pelo outro. A autonomia deve ser preservada. __________________________________________ 7 O psicanalista vê o indivíduo de outro modo, não o julga. Ele escuta e atende para o desejo do paciente, não para sua demanda explicitada num pedido ou num consentimento. Apesar de não concordarmos com a autonomia absoluta do humano, não descartamos a possibilidade de escolhas acertadas, desde que se atente para o desejo de cada um. Isso é ético para nós. Para os médicos não o é. Se há tecnologia por que não empregála? A autonomia, aos poucos, está se transformando numa espécie de fetiche, e levantar quaisquer dúvidas a respeito dela provoca brados de revolta. Isso ocorre porque queremos sustentar, a qualquer preço, que temos uma escolha sobre nossa finitude. Se relativizamos nossa autonomia temos que encarar aquilo que Freud escreveu acima, que o primitivo medo da morte é tão intenso hoje quanto o foi nos primórdios da civilização. Acreditamos na importância de se preservar a decisão do paciente, no entanto, questionamos a autonomia, fundada na ideologia iluminista da crença na razão. Decidimos muitas e muitas vezes, não porque conseguimos dominar inteiramente as forças inconscientes que nos habitam e sim porque a cada momento temos que decidir, seja para o bem ou para o mal. Quando se trata de consentir num tratamento ou numa pesquisa é bem mais fácil deixar a decisão para o paciente, depois de informá-lo, como se a informação fosse suficiente para uma compreensão verdadeira, pois ele é autônomo. Lavamos as mãos, o paciente assinou o consentimento livre e informado, a justiça estará do nosso lado, não importando o preço que o indivíduo possa pagar quando nada indica que sua decisão tem outras motivações mais profundas "que a vã filosofia desconhece", Se a autonomia do sujeito é algo que não deve ser questionado se ele foi suficientemente informado, porque as campanhas de prevenção fracassam e o indivíduo é culpabilizado? Isto ocorre porque "(...) o público é encarado como passivo, (...) a comunicação é basicamente de caráter cognitivo/racional (...). Ou seja, no caso das pessoas se depararem com distintas possibilidades de ação, supostamente deverão selecionar aquela que, conforme suas crenças, as conduzam ao melhor resultado global. Portanto, a escolha racional é instrumental, orientada pelo resultado da ação (...). O que importa aqui é o fato desta teoria ter o intuito de explicar a conduta humana (...). A adesão ou não a este ideário serve, além do mais, para distinguir indivíduos considerados responsáveis dos não responsáveis" (Castiel. 1996:94). Ora, parece-nos que a autonomia defendida por uma determinada corrente bioética com o pressuposto do livre arbítrio, nos leva a um paradoxo e a um obscurantismo preconceituoso, ou seja, quem consente em seguir todas as normas prescritas é considerado responsável, quem não segue é irresponsável. Se uma pessoa se recusa a utilizar dos meios comuns (alimentação, repouso, remédios baratos, intervenções médicas benignas) - que é uma responsabilidade ética frente à saúde, pois, a saúde é um bem e o ser humano é responsável pelo cuidado e conservação dela - implica em dizer que isto equivale ao suicídio ou a eutanásia ativa (Durant. 1995). Nestes casos, o médico pode intervir "a favor do doente", ignorando, então sua autonomia e irresponsabilidade por seus atos. Pode-se perceber claramente a estreita relação entre os __________________________________________ 8 dois termos - autonomia e responsabilidade. Porque nestes casos a autonomia é esquecida? Se o livre arbítrio faz parte da natureza humana, como quis Santo Agostinho ou como disse Kant utilizando o conceito de autonomia, ela faz parte da essência humana, o que faz com que julguemos que um indivíduo, em determinado momento, não está consciente ou é responsável para exercer seu livre arbítrio? A resposta está no fato de sabermos, mesmo querendo negar, que uma parte de nós não é possível de ser controlada, o que pode conduzir a um consentimento desastroso, porque não basta informar. Estranha autonomia é esta que precisa ser lapidada moralmente, colocada sub judice com freqüência não pouco habitual. Por que resistimos à evidência de que o psiquismo humano é fruto de forças oponentes, na sua grande maioria não conscientes e que, sob sua égide, nosso jogo de cintura é pequeno? Por que cada vez mais parecemos desconsiderar a escuta como um espaço privilegiado de entendimento do ser humano? O homem não consegue superar todas as limitações impostas pelo seu mundo interno mas, na nossa contemporaneidade, está impossível superá-las se ninguém está disposto a escutar o nosso desejo e muitos estão ávidos por ouvir a nossa demanda. Nós nos ignoramos, não queremos ver e nem escutar mais nada, precisamos, isto sim, consumir, se estupidificar com o consumo de tecnologia que prometem juventude e eternidade e se não aderirmos somos loucos, suicidas, dignos de pena. Diz um filósofo: "Hoje estamos vivendo uma transformação tecnológica, e é ela que determina quem vamos ser, o tipo de mudança por que vamos passar (...) Não se trata mais de uma mudança de cultura e sim de que deixaremos de ser humanos, certo? Estamos deixando de lado uma essência humana, estamos nos modificando. E não tem jeito, é um ponto de não-retorno mesmo" (Vaz. 1997:129). Esta é a estranha autonomia que nos resta, seguir o que dita a ciência e consentirmos que invadam nosso corpo e, estranhamente, com nosso consentimento consciente. BIBLIOGRAFIA AGOSTINHO, Sto., 1995. O livre arbítrio. São Paulo: Paulus. BIRMAN, J. 1995. Estranhas passagens. entre estesia e alteridade: sobre a problemática do sujeito no discurso freudiano. 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