Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial II Da Filosofia Moral à Ética Empresarial Ética enquanto Filosofia Moral: Ética, uma disciplina da filosofia; Racionalidade e interesse; Radicalizar a separação entre moral e ética; O moral e a sua fundamentação As Éticas Aplicadas: O nascimento das éticas aplicadas; Características e distinção face à filosofia e à moral; Casuística ou hermenêutica crítica; Éticas aplicadas e democracia; Ética aplicada enquanto direito social Adela Cortina e a defesa de uma Ética Empresarial: A ética empresarial no seio de uma ética cívica; A ética empresarial no seio de uma ética das organizações; Razões para o surgimento da ética empresarial; Uma nova empresa e uma ética diferente (a superação do taylorismo e a defesa da responsabilidade); Uma cultura de diálogo Sumário No âmbito da presente tese é crucial questionarmo-nos sobre qual o significado de ética, sobre o seu objecto, sobre o seu método, sobre o seu objectivo. Distintas visões sobre a matéria a tratar, sobre a abordagem ao tema e sobre o que se pretende alcançar com uma reflexão ética – é bem verdade que as há. No entanto, a questão impõe-se de forma premente: Que ética se pretende no campo político e no campo económico? A questão adensa-se quando tentamos estabelecer fronteiras aceitáveis para a ética. Nomeadamente, poderemos esquecer que a ética é, ao fim e ao cabo, filosofia moral? E que significa isso de ser filosofia moral? Será restringir demasiado o seu âmbito, negar a possibilidade de outros saberes tratarem da ética? Por outro lado, podemos correr o risco de efectuar exactamente o inverso, impondo um imperialismo1 da ética sobre outros saberes que, podendo com ela relacionar-se, seguem ainda assim lógicas distintas. Neste capítulo pretende-se responder a estas questões. Consideramo-las vitais, pois só o seu esclarecimento poderá permitir a justificação da necessidade de uma ética empresarial que reconhecidamente se situa numa área cinzenta., na intersecção de múltiplas disciplinas. No entanto, muito do que aqui se enunciar será aprofundado no próximo capítulo: ao passo que aqui colocamos algumas questões-chave, as respostas serão apresentadas no terceiro capítulo. 1 - Ética enquanto Filosofia Moral 1.1 – Ética, uma disciplina da Filosofia Uma das questões que deve ser esclarecida de forma inequívoca será a do estatuto da ética. Em concreto, onde deveremos inserir a ética na constelação dos saberes e das 1 Sobre o problema colocado pelo imperialismo de determinados conceitos, Adela Cortina nos fala em Ética Aplicada y Democracia Radical, págs. 25-29. 33 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica ciências? Será autonomizável? Será dependente de outros saberes? De quais? A isto Adela Cortina responde claramente: a única forma de a ética atingir uma verdade (a sua verdade, o seu objecto) será enquanto parte da filosofia. Isto implica pôr de parte uma multitude de metodologias que, podendo ser referidas, não constituem a metodologia própria da ética. A descrição, a análise histórica, a prescrição2 e análise da linguagem podem, em alguns casos, ser até importantes como forma de documentar a reflexão ética. No entanto, a ética não visa catalogar as morais que ao longo do espaço e do tempo os homens para si criaram, nem tampouco defender uma moral concreta. Que visa então a ética? O seu objecto é a moral; aqui encontra ela a prova da sua necessidade. De facto, é a persistência do moral, da realização de juízos sobre as acções humanas, da sua bondade ou maldade, que dá sentido à ética. A sua função será pois cumprir a tarefa da filosofia, no campo mais restrito da moral. E para a autora, “A filosofia é agora discurso teórico sobre as regras de um discurso prático legitimador de normas morais e jurídicas, assim como da forma política; a verdade é agora mais propriamente validade prática.”3 Surge-nos assim como um saber prático, que parte do facto e chega ao facto; a ética é filosofia moral. Sendo filosofia moral, a ética separa-se do seu objecto por não se cingir a uma imagem pré-definida do ser humano, por não ter por missão defender nenhuma ideologia oficial, não consistindo igualmente numa amálgama de modelos antropológicos. O que existe é uma mudança de nível reflexivo e da sua influência sobre a acção. O objectivo não é o condicionamento imediato do acto, mas poder influenciá-lo de forma mediata, reflexiva. Consistindo numa teorização filosófica da acção, tem de se ocupar do moral na sua especificidade, não se limitando a uma única visão. É nesta medida que podemos afirmar que ela é normativa e não prescritiva (tarefa deixada a cargo das diversas doutrinas morais e religiosas). Visa a forma da moralidade, ou seja, se há ou não razão suficiente para ela, o que é possível saber averiguando o seu fim ou causa final. Se a filosofia consiste num esforço conceptual dirigido a esclarecer os fins racionais da acção humana, a ética será a sua consumação no que concerne à concepção do dever em relação aos fins racionais do homem. Ela é o saber prático que visa estabelecer as leis do dever-ser, as normas segundo as quais o ser racional deve idealmente agir. 2 3 34 A prescritividade ou não da ética é uma das questões mais relevantes, dado que na linguagem quotidiana as palavras “ética” e “moral” tendem a ser utilizadas de forma indiscriminada. No entanto, ao passo que a moral é, essa sim, prescritiva, a ética deve ser normativa. In Ética Mínima, pág. 24. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial Desta forma, a questão ética para o gestor público não é saber se deve estabelecer uma taxa superior sobre determinado serviço para angariar mais fundos ou se deve tornar o acesso a esse serviço mais barato. A questão ética para o cidadão ou para o gestor também não é saber se deve rejeitar práticas como o nepotismo ou a corrupção. O que de facto existe é uma valoração moral sobre aqueles estejam envolvidos em práticas como as agora referidas. A questão ética será então explicar por que motivo não devemos aceitar dinheiro em troca de um favorecimento, por que motivo não devemos nomear alguém por favor pessoal ou político. O que justifica esta rejeição, este juízo moral? Se a moral nos impele a perguntar Como devo agir?, a filosofia moral interroga-nos Por que devo agir? Ao fazê-lo, mostra quão inseparável é a moralidade da racionalidade. 1.2 – Racionalidade e Interesse Podemos dizer que a ética assenta em dois pilares: por um lado, a confiança na missão da filosofia e por outro o interesse moral, ou seja, o interesse pelos outros. Se o homem é um ser social, ele é necessariamente ético. Ele questiona-se sobre os seus actos, julga os actos dos outros homens e procura coerência, unidades lógicas para a conduta própria e alheia. Coerência é em boa verdade uma palavra-chave para a ética. Ela recorda-nos o significado etimológico do termo: ethos, carácter, conjunto de elementos que definem cada ser humano e o tornam psiquicamente único – como uma espécie de ADN do espírito. A eticidade dependerá da capacidade de cada um forjar para si um carácter que, para lá de único, é coerente. E que, para lá de ser coerente, o seja de forma racional. Questionemo-nos, pois, sobre qual a racionalidade que aqui está em causa. Bastarnos-á para vivermos, enquanto seres humanos, um racionalismo técnico-científico? Poderemos de forma absoluta estabelecer uma razão neutra? Cortina nega-o: “a razão não é neutral, […] em cada âmbito do saber [ela é] movida por um interesse objectivo”.4 O interesse moral é um interesse pela humanidade (ou seja, um interesse pela condição humana). Podemos questionar se realmente todas as morais se baseiam neste interesse pela condição humana, muito em particular actualmente. Numa época em que abundam os “realismos” (forma como os pessimistas menos francos costumam designar-se), poderemos dizer que a técnica não esgota a razão? A resposta só pode ser uma: os valores, a cultura, escapam necessariamente ao consequencialismo e à 4 Op.cit., pág. 33. 35 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica estratégia. Independentemente de classificarmos determinado valor ou cultura como bom ou mau, todos (pelo menos até certo ponto) temos áreas nas quais não somos capazes de ceder perante o puro cálculo. Nem mesmo os mais empedernidos defensores da tecnocracia economicista seriam capazes de trocar a totalidade das suas convicções por mais benefícios. Para melhor fundamentar esta ideia da existência de um “interesse moral” que se baseia numa racionalidade distinta da da técnica e que esse interesse moral é um interesse pela condição humana, poderemos referir uma das correntes éticas dominantes, o utilitarismo. A sua ponderação dos factores contingenciais é apontada como o seu maior defeito pelos seus detractores e como a sua melhor característica pelos seus apoiantes. Ele baseia-se na perseguição da felicidade, obtida pela satisfação dos prazeres. Não tem como objectivo primordial realizar um qualquer ideal de homem, alcançar a perfeição, mas antes garantir a satisfação. E, no entanto, mesmo os utilitarismos dos nossos dias, produto da revisão anglo-saxónica do epicurismo5 não se reduzem a um puro hedonismo egoísta, a um cálculo do que me será mais vantajoso, aconteça aos outros o que acontecer. Ao fazer entrar em jogo o altruísmo, os utilitaristas confirmam a sua defesa do carácter social da moralidade. O juízo ético pertence ao campo do ser (não do dever, como já vimos) e constitui uma norma para quem quiser ser fiel à sua humanidade; ele não se pronuncia sobre a contingencialidade, sobre algo a que todos tendemos naturalmente. Não é, pois, o cálculo das consequências de uma decisão que a ética se ocupa. A sua racionalidade é, antes, relativa ao fundamento dessa decisão. 1.3 – Radicalizar a separação entre Moral e Ética Pode-se ser ético ou não se ser ético, mas não anti-ético. Pode-se ser moral ou imoral, mas não amoral. Significa isto que podemos ter comportamentos que são ou não consentâneas com determinada doutrina, mas os nossos actos não podem ser – nunca são – indiferentes de um ponto de vista moral. Já face à ética, a questão é bem diferente. Não se pode ser anti-ético como se é imoral e pode não se ser ético, apesar de não podermos ser amorais. A diferença está no facto de a ética ser filosofia moral; por conseguinte, à sua luz um acto pode ou não ser justificado (fundamentado) de um ponto de vista racional. No entanto, é descabido ter um acto contra a filosofia moral, a menos que admitamos que não é descabido ter um acto contra determinada ciência ou área do saber. Já a moral diz 5 36 Conforme Adela Cortina, op.cit., pág. 49. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial respeito a mundividências específicas que podem guiar o comportamento humano mas que não levam nem exigem forçosamente uma explicação cientificamente aceitável. O caso extremo são as morais religiosas, fundadas que são na crença em dados não passíveis de ser provadas ou refutadas, como sejam as divindades ou os livros sagrados. Desta forma, os nossos actos nunca são indiferentes face à(s) morai(s), dado que podemos agir bem dentro da lógica de uma moralidade e agir simultaneamente mal face a outra doutrina moral. Não significa isto que a moral não possa ser fundamentada racionalmente (afirmar isso seria contraditório com o que já afirmámos, dado que essa é precisamente a tarefa da ética). Simplesmente, não há uma relação de necessidade entre uma doutrina moral e uma corrente ética. Devemos ter de resto esta separação: a moral é feita de doutrinas e ideologias; a ética de correntes e escolas. A separação aqui apresentada é essencialmente uma distinção operativa: será com base nela que iremos aqui trabalhar. Não é uma distinção que seja pacificamente aceite. Pode ser em parte considerada conflituosa com divisões tradicionais na filosofia, como seja a moralidade kantiana (que está mais próxima do conceito de ética que aqui defendemos) e a eticidade hegeliana (que está mais próxima do que afirmámos a respeito da moral)6. No ponto seguinte, em que falaremos das éticas aplicadas, esperamos conseguir esbater este aparente conflito, nomeadamente realçando o seu nascimento e construção no seio das sociedades e tento em conta os seus valores específicos, embora sempre à luz de padrões racionais. Outros autores, como Peter Singer no início da sua obra Practical Ethics, não fazem qualquer distinção entre os dois termos. Curiosamente acaba pouco depois por fazer uma separação entre ética e “morais particulares” o que vai de facto ao encontro do que aqui defendemos. Como já referimos, uma outra questão que está com esta relacionada é a religião. José Manuel Moreira no seu livro A Contas com a Ética Empresarial, cita uma passagem de Weber em que um comerciante afirma que se se deparar com alguém que não pertença a uma igreja, não lhe empresta dinheiro algum; ao fim e ao cabo, quem não acredita em nada pode bem nunca lhe devolver o dinheiro emprestado7. Não é necessário nenhum tipo de análise casuística para negar a pretensão segundo a qual apenas os seguidores de uma religião são dotados de espiritualidade e de moralidade. Mais ainda, a ideia de pretender submeter a ética à religião é particularmente fácil de contraditar. Diz-nos Kant que “subsiste, no entanto, a questão de se não é possível e válido um juramento quando 6 7 Para um aprofundamento do tema, verificar “Moralidade e Eticidade”, no terceiro capítulo. José Manuel Moreira, A Contas com a Ética Empresarial, Principia, Cascais, 1999, pág. 84. 37 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica se presta apenas no caso de existir um Deus [...] De facto, os juramentos prestados com sinceridade e de modo reflectido não podem ter sido prestados em qualquer outro sentido.”8 Ou seja, Kant defende que um juramento não necessita da utilização da divindade pois que ele ou é sincero, ou não é. Mais à frente, esclarece isto mesmo: “Mas este dever para com Deus (em bom rigor, para com a ideia que nós concebemos de um tal Ser) é dever do homem para consigo próprio, quer dizer, não é um dever objectivo, consistente na obrigação de prestar a outro certos serviço, mas tão somente um dever subjectivo, o dever de fortalecer o móbil moral na nossa própria razão legisladora.”9 Assim, a crença numa (ou em várias) divindade(s) bem como a obediência a uma religião, não sendo de forma alguma contraditórias, também não são compulsórias para que uma acção seja conforme a princípios morais nem tampouco pode a ética necessitar da religião como suporte a um nível teórico. Não se põe assim em causa, por exemplo, o papel que as associações de base religiosa têm tido no desenvolvimento da ética empresarial. O que pode suceder e sucede de facto, é que a religião estará inserida nas ou, talvez seja mais correcto dizer, ela pode facilitar o desenvolvimento das Noções estéticas preliminares da receptividade do espírito aos conceitos de dever em geral10 podendo fornecer uma base (que é sempre subjectiva) para o sentimento moral e para o desenvolvimento da consciência moral e do respeito. A outra noção estética referida por Kant (a filantropia) gostaríamos, devido à relevância que a palavra tem para a ética empresarial, e que resulta da crítica de Hayek em 1970, de a desenvolver em separado quando realizarmos a clarificação conceptual. 1.4 – O Moral e a sua fundamentação O problema nuclear da ética será por conseguinte a fundamentação dos juízos morais. Estes não respeitam à contingência, mas à liberdade de agir de diferentes formas perante uma mesma situação. E por que motivo é então necessário fundamentar a moral? A resposta, encontramo-la na imperatividade de o homem continuar sendo um ser racional (consequentemente, na necessidade de não renunciar à condição humana). A resposta à questão “por que devo?” não pode ser “porque sim.” O dogmatismo não satisfaz a ética (conquanto satisfaça e constitua até o elemento principal de certas doutrinas morais e de todas as doutrinas religiosas). A fundamentação dos juízos morais 8 9 10 38 Immanuel Kant in A Metafísica dos Costumes, “A doutrina da religião, como doutrina dos deveres para com Deus, encontra-se para além dos limites da filosofia moral pura”, pág.450. Ibid., pág. 451. Ibid., pág. 311. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial não tem de ser a própria razão (que pode ser em si mesma a soma de muitos outros factores) mas a sua forma deve ser racional. Desta forma, qualquer percurso da ética tem de partir do seu próprio questionamento. Ou seja, se a fundamentação da moral é o que a ética (enquanto filosofia moral) deve fazer, então deve emergir a questão de saber o que é e como deve ser sustentada a ética. É nesta medida que Cortina define três etapas: a primeira, será determinar se a dimensão moral é irredutível a outras áreas ou saberes; a segunda, elaborar as categorias necessárias para conceber as características que criam a sua especificidade; a terceira, tornar estas características inteligíveis, dando uma razão para a sua existência11. No que concerne à primeira etapa, vimos já que, exceptuando a filosofia moral, os restantes saberes se podem ocupar da descrição dos comportamentos e dos costumes, da comparação entre comportamentos e costumes, da análise da linguagem usada no discurso moral – mas nenhum se ocupa da sua realidade intrínseca. Quanto à segunda etapa, a autora define as condições de uso do termo “moral”: os juízos morais são prescrições; referem-se a entes livres, ou seja, conscientes dos seus actos e por eles responsabilizáveis; o moral constitui uma instância última de conduta (tal como a religião); ao contrário dos imperativos dogmáticos, tem razões. No entanto, a racionalidade está longe de ser exclusivo da moral; próprios das prescrições morais serão antes a sua não dedutibilidade a partir de observações empíricas (não é a frequência com que determinado acto ocorre na sociedade que lhe dá validade do ponto de vista ético), a sua capacidade para a universalização (possibilidade de se tornar norma para todos os seres igualmente racionais), a sua incondicionalidade e por fim a auto-obrigação. Ultrapassadas as duas primeiras etapas, resta a questão da fundamentação, à qual poderá ser dada à partida uma de três respostas: não é possível fundamentar racionalmente juízos morais, eles são definitivamente irracionais (resposta inserida no seio de um certo positivismo ou cientificismo12); não é possível efectuar uma fundamentação última acerca de nada, posição sustentada pelo racionalismo crítico; se aceitarmos que a justificação da moral é necessária, teremos de fazer uma opção, decidir 11 12 “Instigar o fundamento da moral é, como dissemos, tarefa da ética, que deve portanto cobrir as seguintes etapas: 1. Determinar se 'o moral' é uma dimensão humana irredutível às restantes por possuir características específicas. 2. Elaborar as categorias necessárias para conceber semelhantes características. 3. Tornar Inteligíveis estas características propondo a razão para que as haja. O cumprimento desta tarefa tem por resultado a resposta à pergunta 'é razoável que haja moral?'.”Ética Mínima, págs. 81 e 82. “Se se pode unicamente considerar “saber objectivo” ao que tem diante de si o objecto, não há outra objectividade a não ser a do saber científico, pelo que cientificismo significará, – nas palavras de Habermas – “a fé da ciência em si mesma […]”. Ética Mínima, pág. 90. 39 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica que tipo de fundamentação lhe queremos dar, dado que o termo não é unívoco. Aqui, chama a autora atenção para dois factos inegáveis. Por um lado, temos a persistência do moral (ou seja, esta é uma dimensão que acompanha a humanidade). Por outro lado, temos a heterogeneidade de propostas morais. Assim sendo, conclui, deve a ética procurar saber em que consiste cada proposta moral e até que ponto será realmente universalizável. Esta conclusão e este propósito encaminhar-nos-ão para o ponto seguinte, respeitante à opção de Adela Cortina no que concerne às grandes correntes no seio da filosofia moral. O facto de perante cada questão que nos coloquemos nos surgir uma multiplicidade de possíveis respostas constitui um drama para o homem… e a razão de ser da ética. É a tragédia quotidiana da decisão, do estabelecimento de prioridades, da realização de escolhas que dá à ética a sua relevância. É a heterogeneidade de temas, perguntas e respostas que conduz ao questionamento filosófico-moral. Ora a existência, por um lado, de juízos morais; e a existência por outro lado de uma pluralidade de discursos morais, conduz a nossa autora a realizar uma opção quanto ao tema ético, ou seja, quanto àquilo que está em causa quando analisamos a validade de diferentes enunciados morais e quando confrontamos imperativos universais com questões concretas. É neste choque entre a fundamentação pura e premência de respostas que a ética dialógica (não apenas uma ética do diálogo, ainda que o inclua) pode tornar-se não apenas 2 – As Éticas Aplicadas e a Ética Empresarial 2.1 – O nascimento das éticas aplicadas Para Adela Cortina, a dimensão aplicada foi a uma das quatro grandes mudanças que abalaram e transformaram a filosofia ao longo do século XX, tendo sido as três anteriores a linguística, a hermenêutica e a pragmática. Para além disto, esta mudança não veio de dentro da filosofia mas foi-lhe, de certa forma, imposta a partir de fora. De facto, enquanto que dentro da filosofia a ética mantinha exclusivamente o seu carácter de fundamentação, diversos sectores sociais começaram a sentir a necessidade de transpor o teoricamente conseguido para a realidade vivida. No entanto, para além de constatar este facto, a autora é bastante crítica quanto à reacção inicial que as mesmas tiveram: “Curiosamente, boa parte dos que escrevem sobre filosofia recebeu as éticas aplicadas com cepticismo. Habituados a repetir o que disseram os grandes pensadores e a tomar como 40 Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial problema o que eles tomaram como problema, resultavam-lhes incómodos os novos candidatos a objecto da filosofia: as biotecnologias, as novas dimensões das organizações empresariais, a actividade económica, o desenvolvimento dos povos, o exercício das profissões, as consequências das novas tecnologias, a estrutura dos meios de comunicação, a revolução informática, a construção da paz no novo contexto.” 13 Desta forma, as éticas aplicadas nascem da exigência de sociedades moralmente pluralistas em que não há ou começa a desaparecer o monismo em termos de éticas de máximos (ou morais). Estas sociedades buscam mínimos éticos que permitam a vivência em conjunto entre os indivíduos, necessitando por isso de uma fundamentação racional. No entanto, e ao fim de cerca de um terço de século desde a emergência das contemporâneas éticas aplicadas, a ética conhece um novo ímpeto, sendo abraçada tanto dentro como fora do campo filosófico. Se politicamente o liberalismo difundiu a democracia representativa, na moral o mesmo sistema não pode ser utilizado: a consciência e os actos não se representam. Isto implica a devolução da liberdade – e com ela, da responsabilidade – aos indivíduos. A complexifição do mundo em que vivemos pela globalização e por todas as implicações (políticas, sociais, económicas, tecnológicas, ambientais) que ela tem torna a juridificação da vida cada vez menos concretizável. A aceleração da mudança é tal que também este instrumento herdado da luta da Modernidade contra o despotismo se vai revelando, mesmo que naturalmente necessário, ainda assim insuficiente para garantir uma resposta adequada aos dilemas com que nos deparamos. A ética aplicada terá gozado do impulso lançado essencialmente por quatro instâncias: as comissões de ética, os especialistas, a opinião pública e os filósofos morais. As comissões éticas são órgãos ad hoc cuja formação é muitas vezes solicitada por governos ou instituições internacionais. Nelas participam normalmente especialistas reputados de cada área e que têm como função dar uma visão de dentro, ou seja, garantir que o carácter próprio de cada actividade seja respeitado. A sua colaboração não deve ter em vista um revivalismo corporativista, mas precisamente evitar este tipo de cristalizações, promovendo-se a auto-regulação. A opinião pública tem um duplo papel. Como já referimos, as sociedades começam a exigir que haja um controlo maior sobre determinados campos que normalmente só pode ser realizado endogenamente (e não pelos governos). Assim, a opinião pública surge como força de pressão. No entanto, o passo seguinte que começa a surgir é a própria participação da opinião pública nos processos de ética aplicada enquanto parte interessada (stakeholder). Ou seja, o papel 13 Adela Cortina, Razón pública y éticas aplicadas, Editorial Tecnos, Madrid, 2003, pág. 13. 41 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica dos cidadãos sobre os quais recai o impacto de dada actividade (enquanto consumidores ou enquanto habitantes de determinada região afectada por uma actividade económica, por exemplo) está a evoluir de meros espectadores para partes activas. Por fim, os filósofos morais contribuem dando o enquadramento teórico, trazendo o saber acumulado em torno das diversas tradições filosóficas. Daremos maior atenção a esta questão no ponto seguinte. 2.2 – Características e distinção face à filosofia e à moral Para que se compreenda qual o sentido e qual o objectivo da expressão ética aplicada é preciso compreender qual a diferença entre ela e a ética ou a moral tradicionais. Quais serão então as suas peculiaridades? Adela Cortina refere quatro. As duas primeiras estão relacionadas com a distinção entre as éticas aplicadas e as éticas de máximos (ou as morais), ao passo que as duas últimas as apartam da filosofia moral. Ao contrário do que sucede com as distintas morais, a ética aplicada em qualquer das suas ramificações não se confunde com a assunção de uma qualquer “verdade” moral. Para além disso, nem mesmo a filosofia moral lhe pode dar tais certezas. Na verdade, o que esta lhe dá não são absolutos e respostas, mas antes método e perguntas. É esse de resto um dos papéis que mais frequentemente os filósofos têm nestes processos: a colocação do problema. A procura da solução é uma busca conjunta. Concomitantemente e em consequência do que agora se afirmou, a ética aplicada não se centra nos ideais de felicidade de cada indivíduo mas na definição de critérios que permitam a vivência comum de múltiplos projectos de felicidade distintos e por vezes conflituosos. O seu objectivo é então o forjar de uma ética cívica, de uma ética de mínimos. Não é a felicidade, é a justiça. Entre a ética enquanto filosofia moral e a ética aplicada há também distinções a fazer. Desde logo, esta última não emerge da obra isolada de filósofos, sendo antes elaborada em redes que normalmente implicam equipas multidisciplinares. Paralelamente, e desenvolveremos esta ideia mais à frente, existe uma questão problemática para o estatuto da ética aplicada. Nomeadamente, nem sempre é clara a distinção entre uma norma jurídica e o resultado do trabalho destas equipas, dado que por vezes ele tem implicações que vão muito além do mundo académico ou da mera sugestão. O acompanhamento de recomendações e pareceres éticos de força coactiva denuncia uma aproximação ao campo jurídico que não gostaríamos de deixar de desenvolver. Por fim, as éticas aplicadas não se baseiam exclusivamente numa ou noutra teoria ética. Bem pelo contrário, à problemática do pluralismo moral soma-se então o dilema 42 Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial do pluralismo ético, das diversas correntes que no seio da filosofia moral existem. No entanto, a perspectiva que tem sido adoptada tem sido não só a de não ver isto como necessariamente improdutivo, como normalmente enriquecedor. Diferentes áreas, diferentes situações ou diferentes momentos podem exigir abordagens que partam de diversas doutrinas. O resultado habitualmente é a simbiose entre várias correntes que se fundem para responder a apelos concretos nascidos no seio das equipas multidisciplinares. 2.3 – Casuística ou hermenêutica crítica No âmbito da distinção entre ética aplicada e filosofia moral surge a questão: será a ética aplicada uma casuística? Adela Cortina nega-o, contrapondo o conceito de ética aplicada enquanto hermenêutica crítica. Iremos então explicitar esta questão apresentando os dois caminhos possíveis no seio da casuística, o dedutivo (também designado casuística 1) e o indutivo (casuística 2). A casuística dedutiva consiste em aplicar aos casos concretos os pressupostos morais (quaisquer pressupostos morais) que tenhamos em nossa posse. Constituída por dois níveis, a casuística 1 parte de um primeiro momento universal, axiomático, para um segundo momento particular em que a prudência tem em vista a resolução silogística de questões concretas. Adela Cortina discorda desta metodologia como sendo a mais correcta na ética aplicada por três motivos primordiais. O primeiro tem que ver com a inadequação do método dedutivo, que pode ser o apropriado para o saber científico, no qual premissas dadas se desenvolvem em conclusões inevitáveis. Pelo contrário, a ética enquanto saber prático, não teórico, deve ter um procedimento de certa forma inverso, ou seja, indutivamente ir da pluralidade dos casos concretos com que nos deparamos para, fazendo uso da comparação e da prudência, produzir regras genéricas. Uma outra questão, já anteriormente referida, é o pluralismo de correntes éticas. De facto, para a casuística dedutiva ser plenamente e coerentemente aplicada, necessitaria ter à sua disposição uma doutrina com validade universal no que concerne às suas directivas. Nenhuma doutrina ética pode garantir validade material universal, pelo que a alternativa deverá ser a busca de princípios que, sendo formais, são despidos de conteúdos. Por fim, as éticas aplicadas, pelo seu processo de formação, não se prestam à obediência de princípios doutrinários rígidos: elas partem do concreto e buscam fundamentação teórica, não o contrário. A casuística indutiva poderia desta forma apresentar-se como uma melhor alternativa 43 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica (a autora sustenta esta ideia com a popularidade que a casuística 2 terá atingido em alguns campos da ética aplicada, como a bioética). Dada a impossibilidade de coordenar princípios éticos dissonantes, os especialistas optam por procurar o acordo sobre máximas de acção que tenham sido produto das experiências de vida e que são assim reformuladas para permitir a elaboração de metodologias de acção e decisão. Aqui já não há certezas, trabalhando-se apenas no campo das probabilidades. Adela Cortina reconhece as vantagens deste método, até pela prova da sua validade que constitui o seu sucesso. Não obstante, põe em causa a sua alegada ausência de princípios éticos a priori; simplesmente, ao invés de princípios materiais, utiliza-se um formalismo que parte do vivido. Trataremos esta ideia no ponto dedicado à relação entre democracia (que formata em parte a casuística 2) e as éticas aplicadas. Estas aparecem para a autora com “a estrutura circular própria de uma hermenêutica crítica”14 em que, partindo-se de uma ética cívica que se inspira em dois princípios, um directamente kantiano (cada pessoa como fim em si mesmo) e outro extraído das éticas dialógicas (cada pessoa como interlocutor válido), e tendo-se em conta as características específicas de cada área, permitir que a partir das tradicionais correntes filosóficas se extraiam os princípios que melhor se apliquem. A ética do discurso acaba por ser o elemento mediador entre indivíduos, entre áreas e também entre as correntes de filosofia moral, dado que “As dicotomias éticas clássicas – éticas teleológicas/deontológicas, da convicção/ da responsabilidade, procedimentalistas/ substancialistas – deverão ser superadas num terceiro que constitua a verdade de ambas.”15 Esta afirmação tem como consequência a definição de cinco pontos de referência ou momentos da ética aplicada: a análise dos objectivos perseguidos por cada actividade e que lhe dão sentido; a busca dos melhores mecanismos para a sua prossecução; o marco jurídico-político; as condições de uma ética cívica e as exigências de uma ética crítica. As éticas aplicadas têm pois um primeiro momento a que Adela Cortina chama aristotélico na medida em que os seus fins últimos não são definidos no âmbito do desenvolvimento das éticas aplicadas, pré-existindo-lhes. O seu objectivo deve ser por conseguinte buscar os valores e princípios que permitem alcançar os fins. O momento seguinte, o estratégico, resulta disto mesmo: é necessário encontrar os meios próprios de cada actividade para atingir os seus fins. Tal implica estabelecer metas intermédias 14 15 44 Ibid., págs. 30 e 31. Ibid., pág. 31. Sobre estas dicotomias nos debruçaremos em “Encruzilhadas de uma Ética Empresarial”. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial que, não sendo fins em si próprios, são ainda assim objectivos que permitem ir construindo o caminho rumo aos fins. Ter em conta o enquadramento jurídico, político e social é outra das necessidades a satisfazer. É certo, contudo, que a legalidade (jurídica) não é nem pode abarcar a moralidade inteira. Não só o campo jurídico não tem capacidade para absorver todo o campo das morais, como a própria moralidade implica superar mera coerção jurídicopolítica. A solução é assumir a imperatividade de uma normatividade ética, o que abre caminho para um momento deontológico ou kantiano, em que o sujeito moral e o sujeito jurídico-político podem encontrar um terreno de mediação (aquilo a que, como veremos depois, Gurvitch designa por “direito social”) Aqui temos, por um lado, as orientações ditadas pela ética cívica (os valores compartilhados pelos cidadãos em sociedades pluralistas) e por outro, nas sociedades pluralistas (isto é, aquelas em que há não apenas diversidade de éticas máximas, mas em que sobretudo cada indivíduo tem valor em si mesmo e não existe necessariamente como parte de um qualquer grupo, facção ou crença, ou seja, em que cada indivíduo é um fim em si mesmo e por si mesmo) a própria ética cívica é submetida a um crivo crítico. É preciso pois que a todo o afectado por uma decisão ou uma actividade seja reconhecido o estatuto de participante num processo deliberativo baseado num diálogo racional. Em suma, podemos afirmar que à luz do conceito de hermenêutica crítica podemos afirmar que as éticas aplicadas não são nem se baseiam nem em puras abstracções racionais nem em actividades guiadas apenas por interesses particulares e momentâneos. Trata-se este de um espaço de hibridação. Entretanto, levantámos duas questões que terão de ser respondidas de imediato, nomeadamente, a relação que a democracia tem com as éticas aplicadas, enquanto conceito pleno de sentido(s) e que portanto exerce sobre elas uma influência não desprezível. Outra questão é a relação entre direito e ética, questão clássica mas sobre a qual pretendemos lançar uma discussão parcialmente diferente da normalmente seguida e na qual, ao contrário da relação entre ética e democracia (fundamental para a autora), Cortina é normalmente omissa. 2.4 – Éticas aplicadas e democracia Adela Cortina defende que para as éticas aplicadas é fundamental o conceito de opinião pública, conceito que sendo polissémico, é fundamental para as sociedades liberais. A sua visão a este respeito assenta na “tradição republicana liberal”16, e é 16 Ibid., pág. 37. 45 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica balizada pelo liberalismo político e pela teoria do discurso. O processo deliberatório no seio de uma ética aplicada deverá então envolver a ponderação de todos os interesses afectados por determinada decisão, sendo que todos os afectados são não só os indivíduos actuais, como igualmente as gerações futuras e não só os seres humanos (e isto especialmente em questões de ética ambiental) como a natureza no seu conjunto. A ética do discurso faz desta forma uma mediação entre as éticas aplicadas e o conceito de democracia, entendida não como a participação política directa de todos na tomada de decisão, mas como uma recusa da apatia dos cidadãos e uma salvaguarda dos interesses do que não podem participar nem tampouco escolher os seus representantes no processo de decisão17. O que se pretende é a promoção do debate intersubjectivo (ou seja, sem imposição de princípios a priori mas recusando o relativismo) com vista a uma tomada de posição. Procedimentalista que é, a ética dialógica terá para a autora como imperativo “Obra sempre de tal modo que a tua acção se encaminhe a firmar as bases (na medida do possível) de uma comunidade ideal de argumentação!”18 A criação de uma democracia autêntica ou radical depende pois de um duplo processo, indutivo (através dos valores que emergem de cada área) e dedutivo (em que os princípios aceites nas sociedades democráticas se estendam a todos os âmbitos) do qual surgem novos valores e princípios a adoptar na vida quotidiana. No cruzamento dos dois processos e no produto do diálogo intersubjectivo, as éticas aplicadas surgem como um campo de mediação entre o sujeito moral e o sujeito jurídico-político, podendo ser vistas um direito para-jurídico, um direito socialmente estabelecido não necessariamente pelo costume (uma das fontes tradicionais do direito) mas por esse mesmo debate entre os sujeitos. 2.5 – Ética aplicada enquanto direito social Autor simultaneamente polémico e menosprezado, Georges Gurvitch desenvolveu o seu trabalho em torno da filosofia social, área onde confluem filosofia, sociologia e direito. Muitas vezes confundindo ou fundindo as suas perspectivas e desejos políticos com o trabalho académico, Gurvitch, influenciado pelo anarquismo, abandonou a URSS para viver em França e nos Estados Unidos. É da sua recusa tanto do individualismo como do estatismo que nasce a sua maior criação: a ideia de direito social. Define-o o autor como “não estatal, frequentemente ignorado pelos juristas, sendo engendrado por cada Nós, cada grupo, cada classe, ora de forma espontânea, ora pelos precedentes, 17 18 46 Conforme Adela Cortina, Ética aplicada y democracia radical, pág. 119. Adela Cortina, Razón pública y éticas aplicadas, pág. 30. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial costumes, práticas etc. […].”19 Um dos motivos pelos quais Gurvitch poderá não ter alcançado grande protagonismo na sociologia jurídica terá sido, para lá da complexidade e da não ortodoxia da sua abordagem e das suas teses, o seu desfasamento. De facto, num período (da década de 20 à década de 60) em que o Estado por todo o lado crescia inexoravelmente, não só nos regimes totalitaristas de direita e de esquerda como igualmente nas democracias ocidentais, o autor propõe uma concepção para-estatal de Direito. Tendo morrido a meio da década de 60, próximo portanto do nascimento das éticas aplicadas, a sua reflexão sobre o direito social poderá dar um contributo importante para a área, comportando este conceito três características primordiais: ele é colectivo, pacífico e múltiplo. Colectivo, na medida em que é uma “união intuitiva num Nós”. O indivíduo não é a base da sociedade, mas sim as relações sociais, as formas de sociabilidade. As consciências individuais interpenetram-se e o controlo social não constitui um elemento nem uma relação exterior à sociedade. Pelo contrário, o controlo faz parte do funcionamento dos grupos e das sociedades, de forma imediata e não hierárquica. A política e o Estado são excluídos bem como o poder (enquanto capacidade de exercer violência). Pacífico, dado que a experiência jurídica deverá ser uma experiência de colaboração; já as relações de mando e obediência serão perversões políticas do direito. O consenso não é nem criação nem produto do direito social, mas é este último que resulta do consenso. Como mecanismo de reconciliação e pacificação das relações sociais, o direito gurvitchiano exclui a luta de forças sociais antagónicas pelo poder. Outra questão que tem elevada importância para a compreensão do conceito gurvitchiano de direito social é a ideia de multiplicidade, o pluralismo jurídico, produto dos corpos intermédios entre Estado e indivíduo capazes de produzir normas para uso próprio que, tendo força coactiva, serão jurídicas. Esta ideia de pluralismo jurídico, note-se, antes de ser tomada pelo libertarismo de esquerda, partiu das correntes conservadores e reaccionárias que recusavam o Estado moderno, acusado que era de ter nascido de abstracções racionalistas e não ter sido baseado na realidade social. É certo que dialecticamente a negação da negação nunca é igual à afirmação inicial (ou seja, esta negação do estatismo não terá correspondência imediata no esmagamento do indivíduo por força dos corpos sociais pré-modernos). No entanto, constitui um aviso importante para que se reafirmem os fins sobre os meios: de facto, se o objectivo for 19 Georges Gurvitch citado por Robert Cramer, revista Droit et Societé 4-1986, pág. 458. 47 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica aumentar a liberdade humana, não podemos perder de vista o papel regulador do Estado na garantia do individualismo20. Assim, o pluralismo jurídico deverá ser visto como força potencialmente libertadora por via da autolegislação, da capacidade de cada sector da sociedade ser capaz de livremente se submeter a regras que respeitem pressupostos suportados por uma ética cívica. O objectivo não pode ser um refortalecimento do corporativismo nem a (re-)invenção de mais uma forma de exercer controlo sobre o indivíduo. Gurvitch afirma o Estado como apenas um grupo particular, uma forma entre outras de expressão de solidariedade social, fundada neste caso no factor geográfico. Outras formas no entanto existem, como sejam a solidariedade económica, religiosa, cultural ou internacional. Pode desta forma emergir um sistema jurídico com pluralidade de direitos e sem que necessariamente haja um elemento centralizador e soberano. Há sem dúvida muitos elementos neste autor que podem dar um contributo valioso à reflexão e à prática das éticas aplicadas. De facto, este conceito de direito social consegue ser menos estatizante que algumas das abordagens que tem havido no âmbito das éticas aplicadas e simultaneamente menos opressor para os indivíduos21. O recurso à formalização da ética (com recurso a códigos éticos e deontológicos) e à sua juridificação constituem não só uma submissão da ética e da capacidade auto-reguladora a um caucionamento estatal como também são vistas positivamente por muitas empresas como mais uma forma de exercer controlo sobre os seus empregados.22 Importa por isso fazer um enquadramento das éticas aplicadas num âmbito mais alargado, que lhes dê um sentido e um objectivo e que por isso limite tentações que desvirtuem o seu potencial libertador. A ética cívica de Adela Cortina é justamente uma das formas de o conseguir. 3 – Adela Cortina e a defesa de uma Ética Empresarial 3.1 – A ética empresarial no seio de uma ética cívica “A ética pública cívica consiste naquele conjunto de valores e normas que uma sociedade moralmente pluralista compartilha e que permite aos distintos grupos, não só coexistir, não só conviver, mas também construir a sua vida juntos através de projectos compartilhados e 20 21 22 48 Relembre-se Rosanvallon e a análise que coloca estatismo e individualismo como faces diferentes de uma mesma realidade e o Estado moderno como uma garantia da liberdade do Indivíduo. Afirma Paul Mercier em A Ética nas Empresas, pág. 36, que “A ética formalizada constitui um meio jurídico de desresponsabilizar a empresa em caso de actuações ilegais de um seu empregado. Os Estados Unidos procuram suprimir os comportamentos não éticos declarando-os fora de lei”. Ibid., pág. 37: “No contexto americano […] O não respeito das regras é considerado como uma falta grave susceptível de arrastar”. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial descobrir respostas comuns aos desafios com que se confrontam.” 23 O conceito de ética pública enquanto ética social constitui um ponto de partida a partir do qual é possível compreender a fundamentação da ética empresarial levada a cabo pela autora. Há não obstante uma diferença entre ética pública cívica e ética pública global, sendo a primeira respeitante às comunidades políticas concretas, e a segunda inserindo-se num projecto de construção de uma cidadania global. Em todo o caso o que é necessário ter em conta é, por um lado, a separação entre ética e direito; por outro, a consciência da obrigação, por parte da sociedade, de construir para si padrões morais racionalmente fundamentados e que lhe permita prescindir, naquilo que for possível, da coerção estatal. De facto, a separação entre ética e direito está precisamente na questão da liberdade e da coerção: na primeira a liberdade está na capacidade de nos coagirmos a nós próprios a agir correctamente, no segundo a garantia da nossa liberdade é a existência de uma entidade externa capaz de coagir todos a agir correctamente. Ora, a sociedade será tanto mais livre quanto mais prescindir do Estado para manter a paz no seu interior; não significa isto um voluntarismo no sentido do desmantelamento do Estado (perspectiva adoptada pelos neoliberais), mas um voluntarismo no sentido da construção de uma sociedade capaz de se dar a si própria regras comuns. A ética pública terá como corpo as exigências de justiça mínimas, os valores, princípios e práticas aos quais não se pode renunciar e os quais devem ser de tal forma que poderiam ser queridos por todos os afectados caso estes participassem num diálogo absolutamente simétrico. Esta deve então ser uma ética de mínimos e uma ética de cidadãos, ou seja, uma ética que por considerar todos os indivíduos como fins em si mesmos procura estabelecer as regras mínimas de justa convivência tendo em conta os interesses de cada um e do todo, conjugando universalismo e respeito (tolerância activa) da diferença. A ética cívica é pois imprescindível para se construir uma ética empresarial. Para que se saiba quais os valores que devem modular a acção livre (relembramos que o respeito da coerção estatal só de forma indirecta faz parte da ética) das empresas é necessário haver uma base a partir da qual trabalhar – os mínimos éticos que todos devem respeitar. A ética empresarial irá aplicar à actividade empresarial, enquanto actividade que visa satisfazer as necessidades humanas através da conjugação de múltiplos capitais (financeiro, humano, tecnológico, etc.), esses mesmos mínimos, encontrando as formas 23 Adela Cortina, Hasta un Pueblo de Demonios, pág. 109. 49 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica de valorizar os indivíduos afectados e a organização em si. Simultaneamente, uma ética cívica que esqueça a ética empresarial (ou, de forma mais ampla, a ética organizacional) está condenada à partida. Se a ética é um saber prático, ou seja, que visa orientar a conduta humana, ela não pode pôr de parte o mundo empresarial e organizacional: todos estamos inseridos em organizações, todos somos consumidores e a maior parte das pessoas trabalha em empresas, dedicando-lhes uma parte substancial do seu tempo de vida. 3.2 – A ética empresarial no seio de uma ética das organizações A questão que se coloca é então a de saber se a ética é coisa que respeite aos indivíduos apenas ou se as próprias organizações necessitam também de uma ética. Ou seja, é necessário saber se as organizações são ou não amorais. A autora afirma que as teorias organizacionais dominantes defendem a sua amoralidade na medida em que os actos e as decisões são empreendidos por indivíduos concretos24. Desta forma, a sua rectidão ou não reflecte apenas a moralidade ou imoralidade dos agentes directos. Não obstante, é um facto que defender que as organizações são apenas o somatório dos indivíduos concretos que em dado momento nela estão é, na prática, negar a existência das organizações. É impossível, conceptualmente, negar que uma organização seja menos ou o mesmo que a soma das partes: se assim fosse, teríamos apenas um grupo, uma multidão e não um organismo. Organização será algo construído com o intuito de obter uma sinergia, com o objectivo de coordenar esforços individuais para a produção de fins determinados de modo que esses mesmos fins não poderiam ser alcançados pela acção independente de cada um dos componentes. Como todo maior que as partes, a organização tem uma história, uma estrutura e um carácter. Esse carácter – esse ethos – permite então que falemos de uma moralidade das organizações; uma moralidade que será sem dúvida diferente da moralidade dos indivíduos, mas que não permite classificá-las de amorais. Posto que todas as organizações são morais, todas hão-de ter uma estrutura moral. Adela Cortina estabelece três elementos: responsabilidade; consciência; identidade25. Havendo procedimentos que definem como são as decisões tomadas a organização fica no seu conjunto responsável por essas decisões: elas não são (apenas) fruto da vontade de um ou vários indivíduos, mas resultam da forma como esses indivíduos se distribuem na organização, das relações hierárquicas, dos objectivos que se pretende atingir. Salvo situações anormais, os indivíduos podem ser internamente responsáveis, mas 24 25 50 Ibid., pág. 125. Ibid., págs. 128-131. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial externamente é a instituição no seu todo o agente. No que respeita à consciência corporativa, ela será a forma mediante a qual a organização reflecte sobre como está a procurar atingir os seus objectivos. Isto implica que todos os afectados pela organização tenham conhecimento desses objectivos e possam contribuir para a sua definição e alteração. Depois de articular todos os interessados, é necessário difundir os objectivos e valores definidos. Por fim, a organização deve estar aberta a novas críticas e ao confronto com situações complexas que ponham em causa os equilíbrios existentes, reflectindo sobre eles e, sempre que necessário, deve rever os valores previamente delineados. A identidade é interdependente face à cultura organizativa enquanto conjunto de valores, crenças e ideais compartilhados pelos membros da organização. É a passagem dessa cultura ao quotidiano que gera o carácter, a identidade que terá três níveis: o moral (forma como os objectivos são ordenados em termos de prioridade), o organizativo (forma como a organização se distingue das demais) e finalmente o nível social da identidade (a organização necessita de um reconhecimento público para se reconhecer a si própria). Afirmar que a organização tem uma existência própria não pode no entanto ser utilizado para apagar o facto de o recurso mais significativo ser sempre o humano. Por conseguinte, a participação e a co-responsabilização são dois valores organizacionais que terão de estar sempre presentes em organizações que pretendam construir-se uma ética. 3.3 – Razões para o surgimento da ética empresarial Precisamente, entre os países pós-capitalistas os pontos nevrálgicos da vida dos indivíduos não são nem a família nem o Estado, mas as diversas organizações. Assim, qualquer tentativa de reintroduzir laços sociais e de promover maior unidade e solidariedade tem de passar pela construção de uma ética das organizações. Ora, entre as organizações existentes na sociedade, nenhumas terão o peso que as empresas têm, delas dependendo o sustento dos membros da sociedade, que a elas votam a maior parte do seu tempo. Sendo a ligação dos indivíduos às empresas ditada em grande medida pela necessidade, ainda assim não é possível que essa ligação seja saudável e frutuosa sem que haja um valor básico assegurado: a confiança. De facto, Cortina refere que grandes escândalos como Watergate acabaram impulsionando o desenvolvimento (primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa) da ética empresarial. A reconstrução da credibilidade das empresas tornou-se um imperativo, surgindo a percepção de que sem confiança, não 51 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica há negócio que se mantenha. Esta percepção vai a par com um terceiro motivo para o surgimento da ética empresarial, nomeadamente, a necessidade de tomar decisões de longo alcance, a longo prazo. Tempo é aquilo que não só um bom negócio como um bom ethos necessitam para surgirem. Retomando em parte o início deste ponto, a empresa é uma das organizações mais relevantes das nossas sociedades. Cada empresa é, ao fim e ao cabo, uma comunidade. Ora, se assumirmos que existe de facto um excesso de individualismo entre nós e se pretendermos minimizar o efeito atomizante desse individualismo, utilizar uma ética de empresa como meio de recuperação de um certo sentido comunitário será inevitável. Simultaneamente à necessidade de instituir culturas corporativas inclusivas dos seus membros, as próprias empresas detêm responsabilidades sociais; da mesma maneira que cada indivíduo tem um dever pessoal, terão as empresas responsabilidades colectivas – para com os seus accionistas, para com os empregados, os fornecedores, os clientes ou as comunidades nas quais se inserem. Na senda de MacIntyre, Cortina afirma ainda que nas sociedades actuais uma das figuras fundamentais é a do gestor (manager) como em outras épocas terão sido os aristocratas ou os clérigos, enquanto indivíduo “dotado de iniciativa, imaginação e capacidade inovadora” que tem objectivos claros que persegue criando os meios adequados26. O fundamental da sua actividade é a capacidade de negociação, dado que a negociação, por complexa que seja, será mais rentável que o conflito. Se a isto somarmos importância das direcções na definição da natureza das empresas, surge a questão de como produzir organizações preocupadas não com a luta pelo poder, mas pela produção dos bens dos quais deriva a sua legitimidade. A tónica é posta então numa cultura cooperativa e numa moral de excelência. A cultura empresarial será também relevante na medida em que quanto menos eticamente fundada maior será a tendência para algo que, à partida, ninguém quer seriamente ser: herói. De facto, em empresas em que práticas como a corrupção, o favorecimento ilícito ou o dumping ecológico sejam a regra é bem provável que alguns dos trabalhadores se revoltem, mesmo que a custo do seu emprego. A alternativa é a acomodação e a “desmoralização” (expressão que Cortina utiliza frequentemente para realçar a sua potencial polissemia). Enfim, o facto de tanto interna como externamente haver uma apreciação crítica do comportamento das empresas será a prova de que a ética empresarial não será apenas uma moda, mas corresponderá pelo contrário a uma 26 52 Cf. Adela Cortina, Ética de la empresa, pág. 82. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial verdadeira exigência social à qual é necessário responder. Correspondendo as nossas sociedades ao nível pós-convencional da teoria de Kholberg, entender que as instituições seguem apenas fins que lhe são próprios desprezando qualquer responsabilização face à sociedade já não será aceite – cabe-lhes então reformarem a sua actividade a partir de dentro e sem necessidade de coerção estatal. 3.4 – Uma nova empresa e uma ética diferente (a superação do taylorismo e a defesa da responsabilidade) Para que a empresa seja capaz de agir eticamente, uma mudança de paradigma organizacional terá de ser realizada e terá de o ser de forma verdadeira. Assim, não só o taylorismo, enquanto modelo organizacional que entende que o factor humano é apenas um meio entre muitos outros que concorrem para a produção, deve ser posto de parte, como manter um neotaylorismo ou “taylorismo corrigido” como o que emergiu das necessidades de modernização do tecido empresarial (resultante da própria mudança da economia, da passagem do sector secundário para o sector terciário) não será suficiente. Uma das grandes deficiências do taylorismo será, para Cortina, o facto de gerar uma cultura empresarial centrada no “como fazer?” sem que antes se questione “por quê?” nem “para quê?”. A empresa pós-taylorista (ou “empresa de terceiro tipo”) deverá então substituir a coerção burocrática pela “assunção de destino colectivo”, ou seja, pela definição e divulgação de um conjunto de valores básicos que devem constituir um ideal compartilhado – a cultura substitui a tecnocracia e a adesão pela participação substitui a obediência burocrática. Este tipo de empresa deverá ter um conjunto de traços específicos: responsabilidade pelo futuro (a gestão deve ser pensada a longo prazo); desenvolvimento de capacidade comunicativa (que lhe forneça legitimidade social); identificação entre os indivíduos e as empresas (como resposta ao fracasso do individualismo atomizante); desenvolvimento de uma cultura empresarial (entendendose que o ético não é apenas uma questão de dever, mas que também é rentável); personalização da empresa (ou seja, a imagem que a empresa passa de si através da “guerra do logos”, através do marketing, tem de corresponder a uma identidade verdadeira, caso contrário ficará descredibilizada); centralidade da confiança (entre a empresa e o público); abertura comunicativa (a gestão deve encarar como princípio ético a receptividade à crítica e à sugestão interna e externa). Que ética corresponderá então a esta empresa nova? Um ponto de partida será o que é defendido por Brown e que Cortina acompanha: a ética não visa tornar as pessoas boas, 53 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica mas sim que sejam tomadas boas decisões. Por conseguinte, a sua tónica deve estar na proposta e não na proibição. Esta ética positiva deve permitir reflectir melhor sobre cada situação, tomar decisões racionalmente justificáveis e alcançar acordos. Sendo este o ponto de partida, não significa que os códigos de conduta sejam irrelevantes. Pelo contrário, são um elemento fundamental dado que permitem que as relações entre a empresa e os stakeholders (partes interessadas) sejam jogos de soma superior a zero, ou seja, a ética empresarial tem de ser capaz de gerar um modelo de relações cooperativas que substitua o conflito. Adela Cortina extrai de Max Weber e da sua reflexão sobre a política os conceitos de ética de convicção e ética de responsabilidade27, aplicando-as no campo económicoempresarial para gerar uma síntese que denomina “responsabilidade convencida”. Concorda com Weber que uma ética exclusivamente baseada na convicção pode gerar a intolerância; no entanto, afirma que o pragmatismo também ele radicalizado é igualmente nefasto. A ética da responsabilidade convencida será uma ponderação entre os fins próprios da actividade, aquilo que lhe dá sentido e entre as consequências que resultarão de cada decisão, tido em conta o contexto. Trata-se, pois, de permitir que a racionalidade estratégica (que permite alcançar os benefícios) seja harmonizada com a racionalidade comunicativa (que garante que cada interveniente na actividade empresarial seja considerado um interlocutor válido cujos direitos e deveres deve, ser salvaguardados). 3.5 – Uma cultura de diálogo Defendendo Adela Cortina uma ética dialógica, com inspirações em Kant, em Apel e em Habermas e aceitando que esta opção é especialmente válida para o campo das éticas aplicadas ao campo económico-empresarial, interessar-nos-á uma descrição breve mas objectiva do que é a ética dialógica para a autora. A ética dialógica baseia-se na ideia de que só estão justificadas as normas que satisfaçam o princípio de universalização (“U”): as normas de acção são válidas quando possam ter o reconhecimento de todos os afectados, ou seja, quando (porque satisfazem princípios universalizáveis) as suas consequências possam realmente ser queridas por todos os afectados por elas. Se pretendermos resumir as grandes correntes éticas em duas perguntas, podemos colocar as duas questões, A e B, do quadro abaixo. 27 54 Em particular, da obra Politik als Beruf. Versão portuguesa, A Política como Vocação, publicada em Política e Ciência, Editorial Presença, Lisboa 1979. Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial A Que podemos fazer para ser felizes Felicidade B Que devemos fazer para que cada um seja feliz Dever C Como podemos fazer para que cada um seja feliz Diálogo A situação A corresponderá às éticas teleológicas, de inspiração aristotélica; a situação B, às éticas deontológicas, que encontram em Kant um dos seus maiores representantes. A ética do diálogo (situação C) funde elementos das duas correntes que a precedem. Tendo marcada influência kantiana, nem por isso renega em absoluto o contributo das éticas teleológicas; simplesmente, o poder expressa-se aqui através de um procedimentalismo e não já como uma cedência à razão prudencial. O objectivo é conseguir um equilíbrio entre valores muitas vezes conflituantes, evitando as posições extremadas. O procedimentalismo em causa concretiza-se num debate racional através do qual são tidas em conta as necessidades e interesses dos sujeitos, entendidos enquanto interlocutores válidos. Ele visa um consenso que recusa a pura tecnocracia dos especialistas ou o messianismo das vanguardas e não é nem subjectivista nem objectivista, mas antes intersubjectiva. Pretende-se fazer justiça ao ser autónomo e comunicacional que o homem é, exigindo-se por conseguinte um mínimo moral. Só serão consideradas justas as normas que tenham sido queridas pelos afectados através de um diálogo realizado em condições simétricas. Estas condições deverão respeitar o princípio formal da razão, ou seja, cada indivíduo deverá “indagar se [uma norma moral] tem a forma da razão, ou seja, se é universal, incondicionada, se se refere a pessoas considerando-as como fins e se tem em conta não só cada indivíduo, mas também o seu conjunto”28. Não havendo aqui uma antropologia metafísica, encontramos ainda assim um certo idealismo – uma metafísica do diálogo. Aliás, postular a existência de uma comunidade ideal de argumentação (onde a compreensão entre os interlocutores será total) é um dos três pressupostos básicos das éticas dialógicas. O primeiro é o da impossibilidade da amoralidade (a cada escolha que fazemos subjaz uma opção moral); o último é o da imperatividade de reproduzir com a maior fidelidade possível a comunidade ideal na comunidade real. Para a autora, o grande tema ético actual é saber se os homens são ou não capazes de um diálogo não estratégico, ou seja, um diálogo em que cada um seja considerado como 28 Adela Cortina, Ética Mínima, pág. 124. 55 Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica um fim em si mesmo e não um mero meio. Nelas sendo notório o eco kantiano, as éticas do diálogo argumentativo, influenciadas pela ideia marxista do conflito social permanente introduzem uma alteração de perspectiva em relação às teorias do contrato social. Ao passo que estas colocavam a tónica numa harmonização de interesses através de um pacto, pretende-se agora que o âmbito moral seja a solução de conflitos através da argumentação. É desta forma que podemos afirmar o procedimentalismo da corrente defendida por Cortina. A questão está em grande medida em saber quais as estruturas que permitem o consenso racional e por que se considera este consenso como o único modo racional de legitimar normas para a convivência, independentemente das cosmovisões de cada grupo ou indivíduo. Não se trata de uma legitimação de uma opção pela realização de um pacto ou pela vontade individual, mas antes pela sua racionalidade. A legitimação das normas cívicas passa aqui por um modelo procedimental de fundamentação em que se distingue o que é universal (ou seja, o que já é objecto de consenso legitimado, embora podendo vir a ser alterado) e o que é universalizável (o conteúdo do diálogo). Os consensos fácticos das éticas do diálogo mesclam moral e política: como já vimos, convergem aqui o dever-ser e a possibilidade, configurando um dever ser possível sempre alterável com vista à aproximação ao dever-ser. Ao longo deste capítulo procurámos debater os conceitos de moral e de ética que aqui estão em causa, usando-os como ponte entre a disciplina da filosofia moral e a ética empresarial. Apresentámos igualmente a visão de Adela Cortina relativamente a esta ética aplicada. No capítulo seguinte aprofundaremos os temas aqui tratados, confrontado diferentes correntes éticas e passando dessa confrontação para a defesa de uma ética empresarial à luz da perspectiva da ética dialógica. 56