YARA KEIKO TAKEUCHI PINTAÚDE A PRESENÇA DO FEMININO EM QUATRO CANÇÕES DO COMPOSITOR CHICO BUARQUE DE HOLLANDA FACULDADE DE EDUCAÇÃO SÃO LUIS NÚCLEO DE APOIO SANTA CRUZ JABOTICABAL – SP 2009 2 YARA KEIKO TAKEUCHI PINTAÚDE A PRESENÇA DO FEMININO EM QUATRO CANÇÕES DO COMPOSITOR CHICO BUARQUE DE HOLLANDA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Educação São Luís, como exigência parcial para a conclusão do CURSO de PósGraduação Lato Sensu em Língua Portuguesa, Compreensão e Produção de Textos Orientadora: Profa.Dra. Maria Carolina de Godoy FACULDADE DE EDUCAÇÃO SÃO LUIS NÚCLEO DE APOIO SANTA CRUZ JABOTICABAL – SP 2009 3 Dedicamos ao meu pai (in memorian) e à minha mãe, que me deram a vida e me ensinaram que a maior herança que poderiam deixar aos filhos, era a possibilidade de aquisição do saber. 4 AGRADECIMENTOS A Deus, pelo sentido da vida. Ao meu pai (in memorian) e à minha mãe, pelo incentivo que recebi para sempre seguir adiante, apesar das dificuldades. Ao meu marido, pelo apoio incondicional. Aos meus queridos filhos, por serem a motivação de todas as decisões de minha vida. Às minhas amigas Alice, Magda e Edilene, pelo incentivo e colocação de seu tempo e seus conhecimentos à minha disposição, ajudando sempre. À Professora Maria Carolina pela orientação. Aos professores tutores, pela dedicação e disponibilidade nos momentos de orientação e esclarecimentos de dúvidas. Aos colegas de pós-graduação, pela ótima convivência. A todos que, direta ou indiretamente auxiliaram na realização deste trabalho. 5 “A bonificação que a vida às vezes concede é a realização. Eu jamais desejaria fosse a quem fosse uma existência de prosperidade e segurança. São coisas destinadas a trair. Em vez disso eu desejaria aventura, luta, e desafio. Essas coisas têm um benefício comum: exigem o auge do esforço, o melhor. Nada na vida é tão glorioso como alcançar para além da capacidade”. (MARION HILLIARD, 1959, p. 243) 6 RESUMO Para demonstrar ser o autor Chico Buarque de Hollanda um dos poetas que, de maneira sensível, consegue captar o feminino e o exprimir, traduzindo-o em palavras e música, empreendemos esta pesquisa, objeto deste Trabalho de Conclusão de Curso, onde procuramos apresentar e identificar, em quatro músicas do compositor Chico Buarque de Hollanda, a presença da figura feminina. Apresenta quatro capítulos, assim intitulados: Biografia do Autor, A Mulher como Protagonista, Análise de Letras Musicais de Chico Buarque de Hollanda e Traçado entre as Abordagens Sociológica e Psicanalítica Identificadas nas Composições do Autor. No capítulo 1, Biografia do Autor, descrevemos os principais acontecimentos que pautaram a vida do artista, relacionando-os com o início de sua produção musical, desde a mais tenra idade. Os dados analisados e abordados no capítulo 2 mostram a presença da mulher como protagonista principal. Em Análise de Letras Musicais de Chico Buarque de Hollanda, as obras musicais serão estudadas, levando-se em consideração a presença marcante do eu-lírico feminino, isto é, Chico Buarque tornou-se "tradutor" dos sentimentos das mulheres. Por último, o capítulo 4, esboça um traçado social e psicanalítico, abordagens que se mostraram evidentes nas letras das músicas, onde se misturam os aspectos social, afetivo, sexual, político e, ainda, a marginalidade social. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................08 1 BIOGRAFIA DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA.............................................10 2 A MULHER COMO PROTAGONISTA...................................................................23 3 ANÁLISE DE LETRAS MUSICAIS DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA.........25 3.1. Análise da letra Com Açúcar, Com Afeto...........................................................25 3.2. Análise da letra Mulheres de Atenas .................................................................27 3.3. Análise da letra Meu Guri....................................................................................30 3.4. Análise da letra Sem Fantasia ...........................................................................32 4 TRAÇADO ENTRE AS ABORDAGENS SOCIOLÓGICA E PSICANALÍTICA IDENTIFICADAS NAS COMPOSIÇÕES DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA................................................................................................................35 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................40 REFERÊNCIAS..........................................................................................................41 ANEXOS.....................................................................................................................43 8 INTRODUÇÃO A figura da mulher sempre foi considerada como um mistério a ser desvendado e, apesar da existência de inúmeros estudos sobre o feminino, acumulados ao longo da história nas mais diversas áreas do conhecimento humano, o enigma da mulher ainda não foi totalmente decifrado, sendo objeto de estudos constantes da Psicanálise. Nos diversos papéis que a mesma desempenha ao longo de sua vida, seja como mãe, amante, esposa, trabalhadora, dona de casa, e muitos outros, não podemos negar a existência de inúmeras facetas que emergem desse ser humano capaz de mudar de comportamento e adaptar-se conforme as situações assim exigirem. Nesse sentido, ao longo desta monografia pretendemos analisar a concepção do feminino nas canções buarqueanas, visto ser o autor considerado um dos poucos poetas da Música Popular Brasileira que conseguem exprimir, por meio de letras e músicas, o que está escondido no íntimo das mulheres – seus anseios, suas angústias, alegrias e tristezas, com a incrível capacidade que tem de colocar-se no lugar do outro, melhor dizendo, da “outra”. O passo inicial para elaboração deste trabalho foi a escolha do tema e, a partir daí, a fonte de pesquisa realizada foi baseada em livros, jornais e meios eletrônicos. Este Trabalho de Conclusão de Curso foi elaborado com o intuito de mostrar a importância dada pelo autor às representantes do sexo feminino sempre presentes em sua manifestação artística, numa demonstração clara da sensibilidade que possui em tentar valorizá-las, dando voz àquelas que sempre foram colocadas à margem da sociedade. Não se tem o intuito de esgotar, mas de contribuir com a discussão da problematização da mulher em Chico Buarque de Hollanda. Assim, e com o objetivo 9 de enfocar a temática escolhida, optamos pela análise das letras das canções selecionadas do repertório do autor. Como a obra musical de Chico é muito extensa, selecionamos a músicas Com Açúcar, com Afeto, Mulheres de Atenas, Meu Guri e Sem Fantasia. Para tanto, primeiramente mostraremos a biografia do autor, relevante para o presente estudo tendo em vista as influências no comportamento e no estilo de Buarque. Em seguida, discorreremos sobre a presença da mulher como protagonista em suas canções, as abordagens afetiva, social, sexual e a presença do “desejo”. No terceiro capítulo, analisaremos as letras das quatro canções, discorrendo sobre a linguagem poético-musical buarqueana, para orientação dos leitores. A monografia é encerrada com um traçado sobre as abordagens psicanalíticas e sociológicas, presentes nas obras de Chico Buarque de Hollanda, num estudo de base qualitativa, onde se investiga a figura feminina, o amor e a linguagem poética que permeiam a obra do artista. 10 1 BIOGRAFIA DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA O compositor Francisco Buarque de Hollanda, conhecido nos meios musicais tanto do Brasil, quanto do exterior, possui uma vasta obra que engloba música, teatro e literatura. Nascido no dia 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, Francisco Buarque de Hollanda, foi o quarto dos sete filhos do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim. Aos cinco anos de idade parece surgir seu primeiro interesse pela música, materializado sob a forma de um álbum de recortes com fotos de cantores do rádio. Aos nove anos, ao despedir-se da avó, em virtude da mudança da família para a Itália, deixou-lhe um profético bilhete: "Vovó, você está muito velha e quando eu voltar eu não vou ver você mais, mas eu vou ser cantor de rádio e você poderá ligar o rádio do Céu, se sentir saudades". Nesta época, compõe suas primeiras marchinhas de carnaval. De volta ao Brasil, aos doze, treze anos de idade, compôs "umas operetas" que eram cantadas em conjunto com as irmãs mais novas. Há relatos de que, aos quatorze anos, demonstrava predileção pela leitura de grandes obras, como o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, retirado da estante do pai, com o qual era visto perambulando pelo colégio, além dos clássicos das literaturas francesa, alemã e russa. Volta seu interesse pela religião, ao ingressar em um movimento religioso chamado "Ultramontanos", precursor da organização ultraconservadora "TFP - Tradição, Família e Propriedade". Em 1959, participou de grupos religiosos de cunho social, os quais davam assistência aos moradores de rua, levando-lhes alimento e cobertores, além das 11 visitas realizadas em presídios. Esse primeiro contato com os miseráveis colocou-o diante da dura realidade social, refletindo-se nas composições produzidas à época. Nesse período, já mostrava um grande interesse pela música. Além dos sambas tradicionais de Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves, também ouvia canções estrangeiras. Entre os seus preferidos estavam o belga Jacques Brel e os norte-americanos Elvis Presley e o grupo The Platters. Mas foi o disco Chega de Saudade, de João Gilberto, em 1959, que alterou definitivamente sua relação com a música. Ele o ouvia tão insistente e repetidamente que chegava a irritar os vizinhos. Nem mesmo sua irmã Miúcha, que mais tarde se casaria com João Gilberto, agüentava ouvir sempre o mesmo som. Seu sonho, na época, "era cantar como João Gilberto, fazer música como Tom Jobim e letra como Vinícius de Moraes". Sua primeira aparição na imprensa, entretanto, não foi na seção cultural, como imaginava, mas nas páginas policiais do jornal Última Hora, de São Paulo. Chico e um amigo furtaram um carro para dar umas voltas pela madrugada paulista, uma brincadeira comum na época. A diversão acabou na cadeia. A manchete destacava: "Pivetes furtaram um carro: presos" e estampava a foto dos dois menores, com os olhos cobertos pelas tarjas pretas. A pena imposta pelo juiz dizia que até que completasse 18 anos Chico não poderia sair sozinho à noite. Em 1963, Chico Buarque ingressou na FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, época da plena emergência dos movimentos populares que tiveram início na década de 60, atingindo seu ápice nos anos de 62 a 64. O país tomava contato com a política, com a participação das pessoas de diversos setores da população, num movimento de conscientização. Nesse sentido, a faculdade servia de pólo centralizador para diversos projetos de participação social, em ambientes de conversas e discussões, tanto nos corredores localizados no interior da Universidade, quanto nos bares localizados nas imediações da FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, onde Buarque estudava. O contato com as discussões, os sonhos políticos, as frustrações das pessoas, produziu em Chico um efeito catalisador de grande produtividade, levandoo a encontrar a fonte de seu samba urbano. 12 Três anos depois de ter entrado na faculdade, abandonou o curso, tendo como um dos principais motivos dessa decisão o clima de repressão que toma conta das universidades após o golpe militar de 1964. A esse respeito, Chico confessa, em entrevistas, seu distanciamento político: O meu interesse – e também o meu desinteresse – político vem do tempo da Universidade. Ou melhor, um pouco antes, já no vestibular. Mas aí veio 1964, e eu me desencantei: como sentindo assim uma mudança, violenta no sistema mesmo. E dentro da faculdade a coisa se sentia muito mais forte em 64, tanto que de certa forma eu larguei os estudos. O desinteresse pela política e pela arquitetura vem daí; a faculdade ficou uma chatice. Evidentemente eu não era nenhum aluno destacado, mas me interessava pela vida universitária: e isso incluía a musica e a política dentro da Universidade. A partir de 1º de abril, isso tudo mudou. E foi tanto o desinteresse, depois, que até mesmo os momentos de 68 me viram um pouco à margem. Naquela época, por exemplo, só fui à passeata dos Cem Mil porque realmente não ir seria forte demais. Seria quase um posicionamento a favor. (MENESES, 2002, pág. 21) Apresenta-se pela primeira vez em um show, no Colégio Santa Cruz, em 1964. A música Tem mais Samba, feita sob encomenda para o musical Balanço de Orfeu – considerada por Chico ainda hoje como marco zero de sua carreira - também é desse ano, quando novos talentos começam a despontar na Música Popular Brasileira, abrindo caminho para a era dos festivais. O espetáculo mais célebre de então seria organizado no teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo, e ficou conhecido como O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina, onde se apresentaram, entre outros, Alaíde Costa, Zimbo Trio, Oscar Castro Neves, Jorge Ben, Nara Leão, Sérgio Mendes e Os Cariocas. É realizado, no auditório do Colégio Rio Branco, o show Primeira Audição, abrindo espaço para os músicos da nova geração. É lá que Chico mostra, entre outras, a sua canção Marcha Para Um Dia De Sol. 13 Em 1965 é lançado seu primeiro compacto com Pedro Pedreiro e Sonho de um Carnaval, sua primeira música inscrita em um festival, o da TV Excelsior. A canção defendida e depois gravada por Geraldo Vandré não foi classificada. Faz as músicas para o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, cuja montagem ganha os prêmios de crítica e público no IV Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França. No Juão Sebastião Bar, reduto paulista da Bossa Nova na época, conhece Gilberto Gil. Nesse mesmo ano conhece Caetano Veloso, que se entusiasmara ao ouvir Chico cantando Olé, Olá, num show estudantil. Nas festas que aconteciam no porão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) conhece, entre outros, Taiguara e João do Vale, autor da famosa Carcará. A TV Record, diante do sucesso resultante dos shows do ano anterior, lança no programa O fino da Bossa, um bloco especial, o Primeira Audição, que se converte em espaço permanente para novos compositores. Em 1966, A Banda divide com Disparada, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, o primeiro lugar no II Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela Record. A composição é um sucesso imediato, tendo vendido mais de cem mil cópias em uma semana. Saudada com uma crônica por ninguém menos que o poeta Carlos Drummond de Andrade, a música é imediatamente traduzida para vários idiomas (desde 1978 integra o repertório da Band of Irish Guards, uma das corporações musicais que se apresentam durante a troca de guarda do Palácio de Buckingham, na Inglaterra). Muda-se para o Rio de Janeiro e lança seu primeiro LP pela RGE, chamado Chico Buarque de Hollanda. Ocorre seu primeiro embate com a censura: a música Tamandaré, incluída no repertório do show Meu Refrão (com o grupo MPB-4 e Odette Lara), é proibida após seis meses em cartaz, por conter frases consideradas ofensivas ao patrono da Marinha, cujo rosto aparecia na velha cédula de um cruzeiro. Torna-se o mais novo artista a gravar um depoimento para o Museu da Imagem e do Som, privilégio até então reservado a personalidades de gerações anteriores. Realiza seu primeiro trabalho para o público infantil compondo as músicas para a peça O Patinho Feio. 14 Neste mesmo ano, conheceu Marieta Severo Lins, que lhe foi apresentada por Hugo Carvana. Em 1968 participa no Rio de Janeiro, da "Passeata dos Cem Mil", que reuniu estudantes, artistas e intelectuais em um protesto contra a ditadura militar. A música Bom Tempo, considerada por muitos uma composição em descompasso com o clima político de então, fica em segundo lugar na Bienal do Samba. A canção Benvinda, a despeito das vaias, vence o IV Festival da MPB da Record. O teatro Galpão, em São Paulo, é invadido pelo CCC - Comando de Caça aos Comunistas que depreda as instalações e espanca atores e técnicos da montagem da peça Roda Viva. Sob as vaias do público do Maracanãzinho, vence o Festival Internacional da Canção, com Sabiá, feita em parceria com Tom Jobim, com quem compõe, no mesmo ano, Pois É e Retrato em Preto e Branco. A imprensa publica notícias sobre o confronto de idéias entre Chico e os tropicalistas, cuja linguagem musical propunha, de certa forma, um rompimento estético com o belo. Em dezembro, publica no jornal Última Hora, de São Paulo, o artigo intitulado “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, respondendo às críticas que lhe eram feitas por seu apego ao samba tradicional. Dias após a decretação do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro, é detido em sua própria casa e levado ao Ministério do Exército para prestar depoimento sobre a sua participação na Passeata dos Cem Mil e sobre as cenas exibidas na peça Roda Viva, consideradas subversivas. Com autorização dos militares, a quem deveria solicitar permissão sempre que saísse da cidade, deixa o Brasil em janeiro de 1969 e se apresenta na grande Feira da Indústria Fonográfica, em Cannes, na França. Em seguida, parte para um autoexílio na Itália. Depois de passar por várias dificuldades financeiras durante sua temporada no exílio, Chico Buarque fecha, no final do ano, um contrato com a Philips para o 15 lançamento de um novo disco, o que lhe garante a sobrevivência durante esse período. Seu retorno ao Brasil, em 1970, fez com que se deparasse com a dura realidade do país à época, tirando-o do distanciamento político no qual se encontrava. A mudança se reflete também nas letras, nas quais ele parece desvencilhar-se definitivamente do lirismo nostálgico e descompromissado que antes identificavam suas canções. Compõe Apesar de Você, uma resposta crítica ao regime ditatorial no qual o país ainda estava imerso. Surpreendentemente, a música passaria incólume pela censura prévia e se tornaria uma espécie de hino da resistência à ditadura. Foi nessa época que começou o duro embate entre Chico Buarque e a censura do governo do então presidente Emilio Garrastazu Médici. Várias de suas canções foram censuradas e algumas proibidas em sua totalidade; outras têm palavras e versos inteiros cortados. Nesta época, participa do Circuito Universitário com shows promovidos pelos centros acadêmicos das universidades por artistas com dificuldades em mostrar seu trabalho nos meios de comunicação. Ao lado, entre outros nomes, do arquiteto Oscar Niemeyer, do editor Ênio Silveira, e de seu próprio pai, participa do Conselho do Cebrade - Centro Brasil Democrático - organização de intelectuais publicamente comprometidos com a luta contra a ditadura. Em abril de 1971, é vetado integralmente pela censura seu samba Bolsa de Amores, composto como brincadeira para Mario Reis, um aplicador contumaz das Bolsas de Valores. A alegação: a letra era ofensiva à mulher brasileira. O LP é lançado com uma faixa a menos que as doze habituais. Rompe com a TV Globo e cancela sua inscrição, junto com outros convidados, no VI Festival Internacional da Canção, em sinal de protesto contra a censura e a tentativa de se utilizar o festival como veículo de propaganda a serviço da ditadura. 16 Em 1972, atua no filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, vivendo o protagonista, ao lado de Nara Leão e Maria Bethania. Compõe quase todas as músicas do filme. Voltaria a fazer músicas para mais dois filmes de Cacá Diegues: Joanna Francesa, em 1973, e Bye Bye, Brasil, de 1979. Traduz, com Ruy Guerra, o musical O Homem De La Mancha. São deste ano as músicas Sonho Impossível, Partido Alto, Bom Conselho e Atrás Da Porta, entre outras. No ano seguinte, 1973, escreve, com Ruy Guerra, a peça Calabar, cuja ação se passa no Brasil Colônia, onde é relativizada a posição de Domingos Fernandes Calabar que preferiu o invasor holandês ao colonizador português. Proibida pela censura, a peça somente seria liberada muito anos depois. A música Cálice, feita em parceria com Gilberto Gil, foi vetada pela censura, em sua íntegra. Em 1974, para driblar a censura, cria o personagem heterônimo Julinho da Adelaide. A artimanha dá certo e as canções Acorda amor, Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro passam sem grandes problemas pela censura. Julinho da Adelaide concede ao escritor e jornalista Mario Prata uma longa entrevista para o jornal Última Hora. O público só tomaria conhecimento da verdade por meio de uma reportagem publicada em 1975 pelo Jornal do Brasil. Quase impossibilitado de gravar suas próprias canções, lança o disco Sinal Fechado, com músicas de outros compositores, exceção feita a Acorda Amor, feita em parceria com sua alma gêmea, Julinho da Adelaide. Escreve o livro Fazenda Modelo, recebido com reservas por parte da crítica. Em 1975, resiste às tentativas dos que querem transformá-lo em um símbolo da luta política contra o regime militar. Faz com Maria Bethânia uma longa temporada de shows no Canecão, Rio de Janeiro. A letra de Tanto Mar, uma saudação à Revolução dos Cravos - que depusera a ditadura salazarista em 17 Portugal – é proibida pela censura e Chico grava um compacto em Portugal incluindo a canção aqui proibida. Anos depois a música seria liberada, mas Chico refaz a letra em função dos rumos tomados pela revolução portuguesa. Fica nove anos sem subir aos palcos, limitando-se a participar de eventos em benefício de causas sociais, como os shows de 1º de Maio, promovidos pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade). Escreve, em parceria com Paulo Pontes, a tragédia greco-carioca Gota D'água, uma releitura de Medeia, de Eurípedes, baseada em adaptação que Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, havia feito para a televisão. A peça se torna um dos maiores sucessos de crítica e público. Ganha o Prêmio Molière como melhor autor teatral pelo seu trabalho em Gota D´água. Em protesto contra a censura, que proibira peças de vários autores, não comparece à cerimônia de entrega dos prêmios. Compõe Vai Trabalhar, Vagabundo para o filme homônimo dirigido por Hugo Carvana. Compõe a canção O que Será, para o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto. Por tê-la composto depois de ver uma coleção de fotos de Cuba, feitas pelo jornalista e escritor Fernando Morais, diz que a música é um "cubaião", mistura de Cuba com baião. Nesta época sai o disco Meus Caros Amigos. Após seis anos distante de qualquer tipo de programação realizada nos estúdios da TV Globo, em 1977, sua canção Maninha, é incluída na trilha sonora da novela Espelho Mágico. A partir de então, várias outras músicas suas seriam utilizadas como temas de novelas da emissora. Compõe Feijoada Completa para o filme Se Segura, Malandro, de Hugo Carvana. 18 Escreve o texto e compõe as canções da peça Ópera do Malandro, dirigida por Luis Antônio Martinez Corrêa. Em fevereiro de 1978, vai a Cuba pela primeira vez, como jurado do Prêmio Literário da Casa de las Américas. Faz uma versão para a música Canción Por La Unidad Latinoamericana, de Pablo Milanés. Entra em contato com Pablo Milanés, Silvio Rodriguez e outros nomes da música cubana, iniciando um processo de aproximação cultural entre os dois países que redundaria no reatamento das relações diplomáticas em 1986. Ao voltar ao Brasil, é detido pelo DOPS juntamente com a mulher, Marieta. O mesmo aconteceria com Antonio Callado e Fernando Morais, seus colegas de júri em Cuba. Todos são obrigados a prestar depoimentos sobre a viagem à ilha. Estréia a peça Ópera Do Malandro. Compõe diversas músicas para cinema (para República dos assassinos, de Miguel Faria Jr., faz Sob medida e Não Sonho Mais; para Bye bye, Brasil, de Cacá Diegues, a música de mesmo nome) e teatro (Dueto, para a peça O rei de Ramos, de Dias Gomes). Lança Chapeuzinho Amarelo, o primeiro livro infantil de sua autoria, ilustrado por Donatella Berlendis. Calabar é finalmente liberada pela censura e estréia em São Paulo em 1980. É lançado o álbum duplo Ópera do Malandro. Atendendo pedido da bailarina Marilena Ansaldi, faz as músicas para a peça Geni. Participa da festa do Avante, órgão oficial do Partido Comunista Português, e do projeto Kalunga, em Angola, onde se apresenta, com mais 64 artistas brasileiros, por todo o país. A renda dos shows é destinada à construção de um hospital. O cineasta argentino Maurício Berú realiza o documentário Certas Palavras, sobre Chico Buarque, com participação – em números especiais ou depoimentos – de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Vinícius de Moraes (que é filmado pela última vez), Toquinho, Francis Hime, Ruy Guerra, Miúcha, Sérgio Buarque de Hollanda e outros amigos e familiares. 19 Ainda neste ano, faz duas músicas para a peça O Último dos Nukupirus, de Ziraldo e Gugu Olimecha. Lança o LP Vida, que traz, entre outras, a música Eu te Amo, feita especialmente para o filme homônimo de Arnaldo Jabor. Participa, em 1981, juntamente com Sérgio Bardotti, Antônio Pedro e Teresa Trautman, do roteiro de uma produção milionária: o filme Saltimbancos Trapalhões, estrelado pelos Trapalhões. Em parceria com Edu Lobo, no ano de 1982, compõe as canções para o balé O grande Circo Místico, que seria lançado em disco no ano seguinte. Em 1983 compõe o samba Vai Passar, que no ano seguinte, apesar de Chico negar qualquer relação da música com o movimento, se tornaria uma referência na campanha pelas "Diretas Já", da qual participa ativamente. Para o filme Perdoa-me Por Me Traíres, de Braz Chediak, compõe Mil Perdões; para a peça Dr. Getúlio, de Dias Gomes e Ferreira Gullar, compõe a música de mesmo nome; escreve o roteiro e faz várias canções para o filme Para Viver Um Grande Amor, do cineasta Miguel Faria Jr. Sai o disco O Grande Circo Místico. Apresenta-se, depois de nove anos longe dos palcos, no Luna Park, de Buenos Aires. Lança o disco Chico Buarque 1984. Em 1985, trabalha na elaboração do roteiro e compõe novas canções para o filme Ópera do Malandro, de Ruy Guerra, baseado em sua peça. Com Edu Lobo, compõe as músicas para a peça O Corsário do Rei, de Augusto Boal. Dois anos depois, comanda, ao lado de Caetano Veloso, o programa de televisão, Chico e Caetano, que permaneceu por sete meses na programação da Rede Globo, reunindo nomes expressivos da Música Popular Brasileira, além de estrelas internacionais. 20 Compõe As Minhas Meninas para a peça As Quatro Meninas e, finalmente, coloca letra na canção Anos Dourados, uma parceria com Tom Jobim, encomendada pela Rede Globo para ser o tema musical da minissérie de mesmo nome. Entre 1987 e 1988, lança o disco Francisco e volta aos palcos dirigido por Naum Alves de Souza e compõe com Edu Lobo as canções para o balé Dança da Meia-Lua. Dois anos depois, compõe Trapaças, para o filme Amor Vagabundo, de Hugo Carvana, onde faz uma ponta interpretando sua própria criação, Julinho da Adelaide. A editora Companhia das Letras publica o songbook Chico Buarque Letra e Música, com prefácios de Tom Jobim e Eric Nepomuceno, e o texto Gol de Letras, de Humberto Werneck. Lança o disco Chico Buarque. Entre 1987 e 2004, lançou apenas quatro discos com músicas inéditas. Gradativamente, sua criatividade foi transferindo-se para a literatura séria, na qual ele se acha mais inovador do que na música. Ao mesmo tempo, ele ficou cada vez mais reservado sobre sua intimidade, não apreciava aparecer em público ou apresentar-se em shows. Em 1991, lança seu primeiro romance, Estorvo, publicado pela Companhia das Letras, com o qual ganha o "Prêmio Jabuti de Literatura". Os direitos de publicação de Estorvo são rapidamente vendidos para sete países: França, Itália, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Estados Unidos e Portugal. Apresenta-se, em janeiro de 94, para fazer o show do disco Paratodos lançado no final de 93 que é recebido com grande expectativa depois de um período de quatro anos sem gravar. Participa da "Campanha Nacional Contra a Fome e Pela Cidadania", do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Escreve o segundo romance, Benjamim, que, lançado em 1995, recebe críticas desfavoráveis de parte da crítica literária, não obstante o sucesso de vendas e os elogios de grandes nomes da literatura. 21 Em 2000, o filme Estorvo, de Ruy Guerra, concorre à Palma de Ouro do 53º Festival Internacional de Cinema de Cannes. Baseado em romance homônimo de Chico, é uma co-produção de Brasil-Cuba-Portugal. Traz no elenco o cubano Jorge Perugorría e os brasileiros Bianca Byington, Leonor Arocha e Tonico Oliveira. A versão cinematográfica de Estorvo marca mais uma parceria de Ruy Guerra e Chico. Eles já haviam trabalhado juntos na peça Calabar e na adaptação para o cinema do musical A Ópera do Malandro. Em 2001, faz as letras de canções compostas por Edu Lobo para a peça Cambaio, de Adriana e João Falcão. O CD Duetos é lançado em 2002 e reúne 14 das mais de 200 participações de Chico cantando com outros artistas. Participaram do CD: Marçal, Ana Belén, Nara Leão, Zeca Pagodinho, Sergio Endrigo, Nana Caymmi, Johnny Alf, Pablo Milanés, João do Vale, Dionne Warwick, Miúcha, Tom Jobim e Elba Ramalho. O DVD Chico ou o País da Delicadeza Perdida é lançado em 2003. Neste trabalho, Chico Buarque estreou para a televisão francesa em 1990. Após 8 anos sem gravar um disco de inéditas, Chico Buarque lança o CD Carioca em 2006. São 12 faixas, algumas em parceria com ao artistas Edu Lobo, Ivan Lins e Tom Jobim. Em 2003, Chico publicou seu terceiro romance Budapeste. Até hoje, os três romances Estorvo, Benjamim e Budapeste já venderam mais de 435 mil exemplares. A partir de 2005, Budapeste foi lançado em mais 15 países. Em 2006 participa, junto com Caetano Veloso, do filme Fados, do cineasta Carlos Saura. É do mesmo ano o lançamento do CD Carioca. Em 2007, sai em excursão com o show Carioca, bem como são lançados o CD e DVD do mesmo show, ao vivo. Em 2008, começa a escrever seu quarto romance, Leite Derramado, que é lançado em 2009. 22 Atualmente, aos sessenta anos, Chico Buarque aproveita a vida jogando futebol com os amigos ou andando da praia do Leblon até a praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, onde reside, na tentativa de levar uma vida privada fora da atenção da mídia. Cabe ressaltar que a maior parte da produção artística de Chico Buarque de Hollanda deu-se durante o período de ditadura militar entre 1964 e 1985, o que explica o fato da maioria de suas canções serem politizadas; todavia foram produzidas outras belíssimas canções sentimentais e de críticas sociais. 23 2 A MULHER COMO PROTAGONISTA Revelada sob os vários ângulos da natureza feminina, a mulher na obra de Chico Buarque tem um papel de destaque, como podemos identificar no extenso repertório do compositor Chico Buarque de Hollanda, onde se evidencia a presença de várias figuras femininas em diversas composições. O autor privilegia a fala das mulheres, bem como no rol das suas personagens encontramos também o marginal, como traço do lado negativo da sociedade. Essa valorização faz parte da visão de mundo do poeta que saindo da posição de intérprete apaixonado, preocupa-se com as questões femininas como parte do universo das pessoas marginalizadas socialmente. Este compositor é um dos poucos dentro do universo da Música Popular Brasileira que busca em suas canções inserir como tema a mulher e seus “desejos”. Em algumas obras, há uma visão bem masculina do feminino, como podemos verificar nos versos da canção Tororó, de 1988: “Dentro da fêmea Deus pôs/Lagos e grutas, canais/Carnes e curvas e cós/Seduções e pecados infernais [...]” O autor consegue, com muita sensibilidade, captar o que vai à alma das mulheres, descrevendo seus anseios, suas dúvidas, seus medos, traduzindo-os em palavras e canções, num discurso que “dá voz àquelas que em geral não tem voz”. Podemos identificar dentro da abordagem que Buarque faz das figuras femininas, as mulheres vistas sob os mais diversos ângulos em que são enfocadas: como mãe, amada, amante, adúltera, prostituta, lésbica, heroína ou vilã, num misto das abordagens afetiva, social, sexual e política. Dentro deste contexto e por via de 24 conseqüência, chega-se ao tema do “desejo”, não exclusivamente da mulher, mas do ser humano em sua essência. Neste sentido é que se chega à conclusão de que não é possível fazer uma análise da figura das mulheres, sem que seja abordada a figura masculina. São nas intensas relações de afeto que se travam entre um homem e uma mulher, que se desnudam os sentimentos mais recônditos do feminino, levando-nos a desvendar, ainda que de modo incompleto, essas figuras tão singulares que são as mulheres em geral. Dessa maneira, Chico faz descortinar em suas canções onde a mulher é a principal protagonista, a busca sem fim pela satisfação do “desejo”, que possui duas dimensões – de um lado, a percepção da falta e de outro, a “insaciabilidade” que as faz seguir sempre adiante, levando-as ao movimento incessante de superação. Por fim, verificamos que a intensa valorização da mulher presente na obra do compositor Chico Buarque de Hollanda, não se restringe apenas à escolha do sexo oposto como musa inspiradora para a sua criação artística, postura comum a diversos compositores. Ao contrário, coexistindo com essa postura, há em Buarque um dado relevante que o diferencia dos demais, no tocante ao tratamento dado a figura feminina. A análise de sua obra, repleta de mulheres oprimidas, submissas ao homem, injustiçadas cultural e socialmente, ao lado de outros elementos marginalizados como o menor abandonado, o operário, o favelado, comprova que há em Chico Buarque simpatia e solidariedade por essas pessoas que o impulsionaram a criar textos que evidenciam, de forma poética, assombro e inconformismo de natureza social e existencial. 25 3 ANÁLISE DAS LETRAS MUSICAIS DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA 3.1. Análise da letra Com Açúcar, Com Afeto “COM AÇÚCAR, COM AFETO”, composta em 1966, foi a primeira canção em que Chico Buarque de Hollanda assume a posição feminina, revelando a capacidade de colocar-se no lugar do outro, - neste caso -, da “outra”, fazendo emergir a fala das mulheres sob uma perspectiva predominantemente feminina, capacidade esta que se tornaria uma de suas marcas registradas. Esta canção foi composta sob encomenda de Nara Leão, que tinha predileção por cantar músicas onde havia a descrição de mulheres que permaneciam em casa lamentando-se enquanto seus maridos ficavam na rua farreando. Tempos depois, ao inseri-la em um de seus discos, o autor fez, no texto da contracapa, um comentário considerado machista, do qual se envergonharia anos depois: “Insisti ainda em colocar no disco o ‘Com açúcar, com afeto’, que eu não poderia cantar por motivos óbvios”. Embora pareça natural nos dias atuais, em 1966 era inconcebível um homem, mesmo sendo Chico Buarque de Hollanda, interpretar uma mulher. No início de sua carreira, quem administrava o uso das canções eram as editoras, o que levou, à época, os profissionais de marketing utilizarem a canção na propaganda de um bombom. 26 A canção “Com Açúcar, com Afeto”, na primeira estrofe em “Com açúcar, com afeto/ fiz seu doce predileto/ pra você parar em casa/ qual o quê/ com seu terno mais bonito/ você sai e não acredito/ quando diz que não se atrasa [...] faz referência a um tipo de mulher cujo campo de ação se estende somente até onde vão as paredes de sua casa, enquanto o domínio do homem é a rua. Há menção da vida modesta do assalariado, evidenciada entre o primeiro e terceiro versos da segunda estrofe: [...] Você diz que é operário/ sai em busca do salário/ pra poder me sustentar” [...] Chico atribui à mulher a voz que reclama por encontrar-se à espera, preparando-lhe seu doce predileto, enquanto o amante, em sua “malandragem”, perambula pelas ruas à noite, onde não lhe faltam amigos e samba: [...] “Na caixinha um novo amigo/ Vai bater um samba antigo/ Pra você rememorar” [...]. Verifica-se nos versos da canção a atitude feminina apresentada da perspectiva da mulher que atrai sobre si a simpatia das pessoas por ser vista como “vítima” em uma situação desigual, revelando, ainda, a impotência da mesma que tenta aborrecer-se, mas, ao deparar-se com a figura do marido que volta para casa “cansado, maltrapilho maltratado”, acolhe-o com compreensão e de braços abertos. A mulher retratada em "Com Açúcar, com Afeto" é um interessante olhar sobre a condição feminina. Ainda que mostre a figura da mulher submissa, tão comum na concepção esterotipada da personagem femina, a mulher da música é submissa por escolha. Para o horror das feministas de plantão, a esposa ignora tudo aquilo que o marido faz em nome de um sentimento maior. Na concepção dela, vale a pena suportar o comportamento do marido em troca dos momentos de amor que os dois vivem depois. Se ela apóia o marido e se entrega a vida doméstica não é por pura falta de instrução ou pobreza de espírito. É por convicção própria. É uma ética assumida pela mulher na maneira de se conduzir um relacionamento, em que o imperativo do amor ao marido se impõe sobre as demais coisas do mundo. Além disso, a música também mostra a desconstrução e a revisão do estereótipo da mulher a partir de sua própria perspectiva. Na concepção de Chico Buarque, talvez o grande problema do estereótipo seja o fato de ser uma 27 etiqueta externa colocada sem o aval do indivíduo. É o estereótipo como redução de campo. Mas ele prova o valor de um estereótipo ao fazer com que ele seja abraçado por vontade própria. A mulher da canção dança de acordo com a música da imagem do estereótipo e assim é feliz. A esse respeito, pode ser consultado o estudo pioneiro de Manoel Tosta Berlinck denominado “Sossega Leão! Algumas Considerações sobre o samba como Forma de Cultura Popular”, Revista Contexto, São Paulo, Nov. de 1976 – em que o autor classifica, nas letras de sambas, três tipos de mulher: “doméstica”, “piranha” e “onírica”. Dentro do item das domésticas, são comentadas exatamente “Emília”, de Haroldo Lobo e Wilson Batista, “Ai que saudades da Amélia”, de Mário Lago e Ataulfo Alves, bem como “Com Açúcar, com Afeto” e “Quotidiano”, de Chico Buarque de Hollanda. 3.2. Análise da letra “MULHERES DE ATENAS” A idéia da letra desta música foi apresentada a Chico Buarque por Augusto Boal, para canção tema da peça teatral Mulheres de Atenas. Trata-se de uma canção inteiramente metaforizada, passando-nos uma idéia do que acontecia com as mulheres em Atenas. Na letra, o autor descreve um modo de ser, na relação entre homens e mulheres, que se situa na Grécia helênica. Pelo que se conhece documentalmente da vida das mulheres citadas naquele contexto histórico, há a presença da “mulher que espera, restrita aos limites da casa, enquanto seu homem enfrenta odisséias – Penélope, patrona do amor conjugal e da fidelidade feminina”. Ao analisarmos a letra da canção “Mulheres de Atenas”, podemos relacionar as protagonistas ao mesmo universo daquela presente na canção “Com Açúcar, com Afeto”, - mulheres que “não tem gosto ou vontade” -, ou seja, a elas falta consciência do próprio “desejo”. Este tipo de mulher, da estirpe das mulheres de Atenas corresponde ao modelo estrutural da sociedade brasileira e da sociedade patriarcal de um modo geral, tipo muito comum, encontrado em todos os lugares. 28 Na canção, o autor reserva um espaço grande à mulher dionisíaca, referindo-se às Madalenas, as morenas, as mulheres que “desatinam”, o que nos leva a crer que, talvez, a poesia não é feita para duplicar a realidade, mas para abrir-lhe caminhos acenando para a Utopia. “Mulheres de Atenas” é o correspondente erudito das canções “Com Açúcar, com Afeto” e “Sem Açúcar”. Sobre isso: ... com a diferença do foco narrativo e de um registro parodicamente erudito contraposto ao registro coloquial; um tom épico que se contraporia ao tom intimista. As protagonistas de Sem Açúcar e de Com Açúcar, com Afeto são duas das Mulheres de Atenas. (MENEZES, 2000, pág. 152). Podemos verificar, analisando os versos da canção, a utilização de um vocabulário grego, “um universo semântico helênico” em citações de presságios, naufrágios, heróis guerreiros, melenas, cadenas, pequenas Helenas, sirenas, longos tecidos bordados. Outro recurso utilizado nesta canção é a ironia, que não se prende somente à falta de clareza da própria condição da mulher. Chico estende sua ironia também aos homens que se consideram superiores e elevados, em relação ao sexo feminino. Tomando-se como referência o segundo verso de cada estrofe veremos que sempre ao se referir aos homens atenienses, faz complementos enaltecendo suas características. O exagero e a insistência da exposição das qualificações superiores masculinas tornam-se cansativos e chamam bastante a atenção daqueles homens que, na visão das mulheres de Atenas, são heróis, mas por outro lado, são cativos de suas falenas, de sereias, aventuras, naufrágios e morte prematura, por inconseqüência de seus atos vulgares. Assim sendo, o que parece querer enaltecer as habilidades e as características dos maridos atenienses, tornam-se outra ironia de grande dimensão. Os seus maridos, orgulho e raça, poder e força, bravos guerreiros, procriadores, heróis e amantes, na verdade são ausentes, agressivos, amantes ruins, violentos, irresponsáveis e infiéis. É nesse sentido que ironicamente o autor se refere à supremacia masculina das “Mulheres de Atenas”. 29 Na segunda estrofe, o autor faz referência às mulheres que esperam anos a fio, tecendo “longos bordados/Mil quarentenas”, enquanto seus maridos “poder e força de Atenas”, embarcam para a guerra. Na terceira estrofe em... “Despem-se por seus maridos”, há a conotação da presença da sexualidade, são mulheres que fazem sexo. Por outro lado, fica clara a submissão das mesmas mulheres que recebem seus maridos de braços abertos ao voltarem no fim da noite, retornando entupidos de vinho, dos braços de outras “falenas”. Na quarta estrofe, em “Elas não tem gosto ou vontade” e “Não tem sonhos, só tem presságios”, infere-se a ausência de objetivos e o vazio de suas vidas. Observamos, por fim, na quinta estrofe em “Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas”, a insegurança que permeia suas existências; em “As jovens viúvas marcadas”, seu aprisionamento; “Não fazem cenas”, sua subserviência, sem protestar. Em “Vestem-se de negro, se encolhem”, demonstrando a viuvez e finalmente, “Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas”, que morrem. “Mulheres de Atenas”, à época em que foi lançada, deu margem a várias manifestações de repúdio por parte dos movimentos feministas radicais que, incapazes de entender a ironia da letra, condenaram-na, por entender que ela pregava a passividade das mulheres. Acrescente-se ainda, o fato de que culturalmente e socialmente a mulher sempre esteve em menor grau ligada ao princípio do desempenho, ficando assim, à margem do poder econômico e, por conseqüência, do poder decisório. Isto a isolou não só do exercício do poder, mas também do fascínio da vida econômica. Ao contrário, ao invés de pregar a passividade das mulheres, a canção pode ser considerada como uma advertência para as mulheres contemporâneas que ainda vivem sob a égide de uma sociedade patriarcal, adotando, ainda nos dias de hoje, comportamentos praticados à época da Grécia antiga. 30 3.3. Análise da letra “MEU GURÍ” A canção O Meu Gurí, gravada em 1981, tem como foco o jovem marginalizado dos grandes centros urbanos. Jovens que são arregimentados, capturados pelo tráfico de drogas, ou seja, são como soldados na guerra e, sendo assim, como em qualquer guerra, estão lá para matar ou morrer. Embora transcorridos 26 anos, é um assunto que ocupa espaço nas páginas policiais dos grandes jornais de circulação ainda nos dias de hoje. Esta canção apresenta em paralelo, a presença da mulher e o traço da poesia resistência, da vertente crítica onde a dura realidade da vida é atacada diretamente ou através da ironia. Trata-se de uma canção narrativa protagonizada pela mãe de um marginal, favelado do morro que, em sua ingenuidade, desconhece a condição e a real natureza do “batente” de seu filho – aliás, tudo é ignorado por ela, sobretudo, a sua morte de menor infrator, que vira notícia de jornal. A música está estruturada em quatro estrofes, as quais constroem no nível fundamental, a oposição entre pobreza e riqueza ou classe social desprestigiada versus classe social de prestígio. Podemos identificá-la na 1ª e 2ª estrofes... ”com cara de fome x tanta corrente de ouro”. Já nos primeiros versos da composição, podemos identificar o distanciamento entre mãe e filho, denotando ser o sujeito mãe (grifo nosso) um sujeito que não está em conjunto com o amor ao filho: “Quando seu moço nasceu meu rebento/Não era o momento dele rebentar.../Como fui levando, não sei lhe explicar” [...]. Em seguida, na segunda e terceira estrofes, evidenciamos uma aproximação entre os dois: o guri a presenteando, a mãe rezando. Ambos se consolam mutuamente. Nota-se, nos versos desta estrofe, que a vida do guri é uma vida de pobreza, de miséria; uma vida desigual. Sua mãe não tinha condições de criá-lo, sequer possuía documentos, “Eu não tinha nem nome pra lhe dar”, para torná-lo um cidadão perante o Estado. O menino é apenas mais um na sociedade, dentre uma multidão de brasileiros, sem condições, sem nome, sem identidade, como a própria mãe. 31 Podemos notar no texto que o sujeito em questão investe determinados valores, tais como fama, riqueza, poder, em objetos: “presente, bolsa, corrente de ouro”, ou seja, neles estão embutidos os valores que o mesmo deseja adquirir; fama, poder, dinheiro, busca de uma identidade, etc... Não deseja continuar associado a esta vida de pobreza, investindo os valores como fama, riqueza, etc.. nos objetos “corrente de ouro, bolsa, documentos”, os quais busca desde menino: “E na sua meninice ele um dia me disse que chegava lá”. O autor demonstra, de maneira clara e evidente, a ignorância da mãe em relação à natureza do trabalho de seu filho, como observamos na segunda estrofe: “Chega suado e veloz do batente”. Ainda nos versos desta estrofe, percebemos o movimento de transformação por que passou o guri, na ânsia pelo poder, atuando na busca dos objetos valorizados por ele como riqueza, status e tudo o mais que eles representam. Dessa forma, o jovem marginal assume o ato de fazer – “Traz sempre um presente pra me encabular /Tanta corrente de ouro, seu moço/Que haja pescoço pra enfiar/Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro/Chave, caderneta, terço e patuá/Um lenço e uma penca de documentos/Pra finalmente eu me identificar” – e transforma sua vida e a vida de sua mãe. Contudo, para ser rico e sair da miséria e do anonimato, ou seja, para alcançar a transformação desejada, o guri realiza uma atividade, implícita nos versos da estrofe: um programa de roubo, de contrabando. Ressalte-se que a palavra ‘carregamento’, presente no primeiro verso da 3ª estrofe, possui uma carga semântica que, no jargão policial, significa e identifica o transporte de mercadorias ilegais ou contrabandeadas. Ao final desse percurso ambos, mãe e filho, possuirão o objeto almejado: a riqueza. Na terceira estrofe, evidenciamos a ingenuidade da pobre mulher que chega a rezar para que o filho chegue ao alto do morro a salvo da “onda de assaltos” que assola a cidade, trazendo seu carregamento repleto de “pulseiras, cimento, relógio, pneu, gravador” [...]. Ainda, no verso: “Eu consolo ele, ele me consola/Boto ele no 32 colo pra ele me ninar”, Chico desvenda, de forma implacável, o desamparo feminino e a procura de proteção que a maternidade mascara. Por fim, analisando a narrativa, presente na última estrofe, podemos dizer que o guri consegue sair do anonimato, do ostracismo, da vida miserável, adquirindo fama ao “chegar estampado, manchete, retrato, com venda nos olhos, legenda e as iniciais”, afinal, desde menino “Ele disse que chegava lá”. A música coloca em questão a maternidade ferida – a mãe que perde seu filho assassinado pelas forças policiais representantes da opressão socioeconômica. Por ser analfabeta, ela nem mesmo pode ler as legendas das fotos no jornal e decodifica invertidos os signos da morte: “O guri no mato, acho que tá rindo/Acho que tá lindo de papo pro ar”. Ela nem mesmo percebe a tragicidade do momento, demonstrada na última estrofe da canção: “Eu não entendo essa gente, seu moço/Fazendo alvoroço demais” [...] A situação da mãe do guri marginal se torna ainda mais patética em função da alienação que atinge fundo, a desumanização que vai longe, ou seja, ela perde o filho, mas não sabe que perdeu. Em “Meu Guri”, a dor é mostrada em véspera, num estágio anterior ao seu deflagrar. A obra devassa o momento antes da dor, enfocando, ainda, a questão da impossibilidade de consciência e da ingenuidade, frutos da alienação humana. 3.4. Análise da Letra “Sem Fantasia” “Sem Fantasia”, considerada uma das mais belas composições de Buarque, integra seu terceiro disco. Nela, identificamos a representação de uma mulher forte, que molda seu homem, que diante dela, representa uma criança. Na música, se trava um diálogo entre homem e mulher, produzindo um encontro de vozes masculinas e femininas. Ao analisarmos a obra de Chico Buarque de Hollanda, podemos concluir que em “Sem Fantasia” emerge, pela primeira vez a mulher forte, diante da qual o 33 homem é um menino: “Vem meu menino vadio [...] / Vem, mas vem sem fantasia/Que da noite pro dia/Você não vai crescer [...] /Vem que eu te quero fraco/Vem que eu te quero tolo/Vem que eu te quero todo meu”. No segundo verso da primeira estrofe: “Vem sem mentir para você”: “a mulher se revela pedra de toque, em contato com a qual a verdade verdadeira do homem se manifestará. Pedra de toque: a que serve para medir a pureza dos metais que com ela entram em contato; um meio de avaliar os valores.” (MENEZES, 2000, págs. 101, 102) Concomitantemente, essa mulher, diante da qual o homem é “fraco”, “tolo”, “todo dela”, essa mulher é o fruto de uma dura conquista masculina, uma espécie de prêmio final: “Eu quero a prenda imensa/Dos carinhos teus”. Os versos “Ah eu quero te dizer/Que o instante de te ver/Custou tanto penar” estabelecem um rito de iniciação do menino/homem que se desenvolveu em meio a trabalhos, embates e combates, que o marcaram significativamente: “Eu quero te contar/ Das chuvas que apanhei/Das noites que varei/No escuro a te buscar/Eu quero te mostrar/As marcas que ganhei/Nas lutas contra o rei/Nas discussões com Deus”. As “marcas” referidas nesta estrofe são as marcas de homem, adquiridas ao longo do processo de passagem da puberdade para a idade adulta, em que o rapaz, como nos ritos de passagem das civilizações primitivas, se submete a uma série de provações, ao fim das quais se transforma em homem. Sobre isso: Poderíamos também encarar essa canção como um conto de fadas em que, depois de uma série de lutas e trabalhos, em que tem que enfrentar monstros, dragões, passar por cercas de espinho que o ferem, o príncipe encantado (ou o plebeu que depois se tornará príncipe) consegue como prêmio a mão da princesa. Traduzindo em outros termos: está apto para se unir a uma mulher. (MENEZES, 2000, págs. 102, 103) 34 Assim sendo, a canção “Sem Fantasia” nos leva ao mundo dos contos de fada, os quais lidam de forma poética com todos os problemas básicos de nossa existência, em especial aos ligados à luta pela aquisição da maturidade. Neles há a sugestão de que a criança tem que lutar por uma integração superior de sua personalidade e os riscos que isso envolve. Todos esses obstáculos, até o tão sonhado encontro com a amada remetem aos estágios de desenvolvimento que o menino deve atravessar até tornar-se um ser humano independente e pleno. Encontramos nos versos 12 a 15, indícios da luta travada pelo jovem em busca da plena realização afetiva e sexual, onde tem que elaborar uma situação edípica, que envolve intensos ciúmes e competições “lutas” e “discussões” com o pai “rei” e “Deus”. Essa luta nada mais é, em sua essência, a luta pela masculinidade – cujo objeto e prêmio final – é a “prenda imensa/ dos carinhos” da mulher. Se não se empenhasse na luta, o menino “morreria”, ou seja, o morrer, com o significado de não conseguir desenvolver sua masculinidade: “Só vim te convencer/ Que eu vim pra não morrer/ De tanto te esperar.” Na ânsia pela conquista da mulher o menino é investido de ousadia que o impele de ir contra o pai, representante do rival do mesmo sexo. Como se vê, neste poema, não dá para falarmos da mulher sem falar do homem e vice-versa. A mulher é presença constante nas canções de Chico e na vida real, em situações densas de afeto, com exacerbação da libido, de confronto com o masculino, presentes em histórias de amor e desamor nas canções populares. Em síntese, a música “Sem fantasia”, nos faz refletir sobre a relação dos contos de fada com a vida real, as dificuldades e envolvimentos edípicos supõem uma batalha, uma luta travada pelo homem, para que se atinja o pleno desenvolvimento afetivo, para transformar-se nele mesmo, e poder encontrar o feminino. 35 4 TRAÇADO ENTRE AS ABORDAGENS SOCIOLÓGICA E PSICANALÍTICA IDENTIFICADAS NAS COMPOSIÇÕES DO AUTOR “Pari passu” com a capacidade que Buarque possui de traduzir em letras e música as diversas facetas da personalidade humana, seja ela representada pelo sexo feminino, seja pelo sexo masculino, está a abordagem sociológica e psicanalítica presente nas diversas personagens de sua obra. As canções de Chico Buarque abordam com sensibilidade o universo da mulher, suas paixões e seus conflitos. A mesma mulher que, para Sigmund Freud, pai da psicanálise, sempre foi considerada como um “mistério”. A esse respeito: “O que quer a mulher?” (Was Will das Weib?) – a pergunta irrespondida que se fez Freud, em carta a Marie Bonaparte, ressoa singularmente na alta poesia de Chico Buarque. Não que se pretenda que a resposta tenha sido dada, pois, como já cantou Caetano Veloso, “Ninguém sabe mesmo o que quer uma mulher”. (MENEZES, 2000, pág. 15) De fato, essa pergunta nos remete ao “desejo” feminino – ao “desejo” do ser humano, numa visão macro. “desejo” este que toma conta do ser desde a mais tenra idade, “desejo” que não tem objeto que o sacie, que o satisfaça. O ser humano está sempre em busca da satisfação de seus “desejos”, por encontrar-se, via de regra, em condição de carência, de fome, de insatisfação. Entretanto, cabe-nos fazer uma distinção entre necessidade e “desejo”. As primeiras podem ser saciadas, supridas, enquanto que o “desejo” é insaciável e 36 irremediável, no sentido em que para que ele exista, tem que se experimentar a falta de algo, o vazio. Gérard Sévérin, entrevistando Françoise Dolto, nos apresenta uma imagem elaborada sobre o “desejo” humano: Conhecem o jogo do “mexe-mexe”? O mexe-mexe é um retângulo em que figuram letras do alfabeto inscritas em pequenos quadrados móveis. O conjunto se parece com palavras cruzadas. Porém existe um vazio, um quadrado vazio, sem letra, um buraco, uma ausência, uma carência de letras, uma carência de quadrado. Graças a esse vazio, essa carência, podem-se movimentar as outras letras, uma de cada vez, e assim formar as palavras. Isto funciona graças a esse vazio. Todo o jogo do mexe-mexe funciona em torno dessa carência. (DOLTO, apud MENEZES, 2000, pág. 146) O autor demonstra, por meio da representação do jogo, como esse vazio nunca é preenchido, apenas deslocado para outro lugar. Segundo ele, essa falta, essa carência, faz com que se produza o movimento psíquico. Ao considerarmos as letras das canções buarqueanas, podemos verificar lado a lado com a questão subjacente do “desejo”, a sugestão da dualidade presente na personalidade da mulher que apresenta sentimentos de exclusão social, como “Mulheres de Atenas” e “Com Açúcar, com Afeto”, ao lado do sentimento materno que transgride o convencional presente em “Meu Guri”, desvelando, ainda, sentimentos da amante que acolhe e implora pela presença do homem em “Sem Fantasia”. Essa dualidade a que nos referimos remonta “à imagem primordial da Grande Mãe que sobrevive no interior da psique humana”. (FONTES, 1993, pág. 7) O aparecimento deste arquétipo pode ser observado desde os tempos mais remotos da história da humanidade, estando presente nos rituais, sonhos e fantasias dos seres humanos. O termo em si, nos remete à “imago” materna, por meio de uma simbologia específica. Contudo, o arquétipo primordial da Grande Mãe apresenta em si conteúdos manifestos positivos e negativos, ou seja, a imagem da mãe bondosa e protetora, 37 que é repleta de atributos positivos, confunde-se no inconsciente do ser humano com a sua antítese: a “mãe terrível, devoradora e persecutória”. Presente no inconsciente coletivo, o conteúdo deste arquétipo sempre acompanhou o homem, que num primeiro momento, percebe o mundo mais pelas imagens do inconsciente do que pelo consciente. Essas imagens influenciaram as ações do homem, desde os seus primórdios e, embora nos dias atuais essa influência seja menor, o mesmo ainda retém em seu psiquismo essas mesmas imagens que o orientam enquanto pessoa. Os estudiosos da natureza humana procuram embasar suas obras na interpretação das experiências e vivências que o masculino tem do feminino, a partir das imagens simbólicas que povoam seu inconsciente, bem como das influências culturais que de várias maneiras contribuem para a atitude que ele assume diante da mulher. Segundo Neumann, “a dualidade que coexiste em todo ser humano, como qualidade hermafrodita, é o que possibilita “uma vivência ‘independente’ do sexo oposto”: O homem tem uma vivência interior do Feminino, ainda que esta seja a princípio inconsciente, da mesma forma que a mulher evidencia o Masculino. A vivência do outro sexo é mais ainda objetivada por intermédio da relação viva e direta com ele, algo que se tornou usual no mundo moderno e que se tornou possível, em particular ao psicólogo, a introvisão da estrutura profunda do sexo oposto. (NEUMANN, apud FONTES, 2003, pág. 8) Para o homem, a figura feminina sempre representou um objeto de fascínio, provocando sentimentos de atração e repulsa, por ser, em sua essência, uma figura tão controvertida capaz de expressar a todo instante, sentimentos de “desejo”, paixão, sedução, força e desamparo, o que o leva, muitas vezes, a colocar-se no “lugar” da mulher, em busca do seu objeto de “desejo”. A posição de inferioridade da mulher, presente em algumas das canções do autor Chico Buarque de Hollanda, pode ser entendida e explicada se focarmos o que diziam vários pensadores e teólogos como São Tomás de Aquino, que insistiam em 38 considerar as representantes do sexo feminino como pessoas inferiores em relação ao homem, por representarem um “ser imperfeito e demoníaco”, vulnerável às tentações do mal e perigoso”, devendo permanecer sob tutela”. Era, ainda, considerada impura e agente do mal, por seus mistérios ligados ao sangue menstrual. Apesar da existência de inúmeros estudos sobre o feminino, acumulados ao longo da história nas mais diversas áreas do conhecimento humano, o enigma da mulher ainda não foi totalmente decifrado, sendo objeto de estudos constantes da Psicanálise. Do ponto de vista sociológico, as questões relativas a este tema também são presença constante nas obras de Chico Buarque de Hollanda que, como poeta do seu tempo, retrata de maneira fiel a condição da mulher na sociedade, a opressão advinda das situações econômicas e culturais refletindo nas relações conjugais, bem como a marginalidade presente em sua obra em relatos implícitos de prostituição e adultério. A conotação política em sua obra também chama a atenção, dado o engajamento político-social nas décadas de 60 e 70, revelando, por meio de suas letras de música, todo o desencanto com o “status quo”, bem como as situações sociais em que se solidariza com as figuras do malandro, do pivete, do operário reprimido, do favelado, da mãe ou da mulher do malandro. Como vemos, ao analisar alguns textos do autor, tendo em vista a vastidão de sua obra, percebemos que com a mesma eficácia com que se transveste em malandro e em marginal, o seu lado político se reveste da figura da mulher com nova roupagem, dando lugar à mulher que reclama do marido ausente em “Com Açúcar, com Afeto”, das mulheres oprimidas e submissas em “Mulheres de Atenas”, do filho marginal em “Meu Guri” e da mulher que dialoga com seu amante em “Sem Fantasia”. Finalizando, podemos afirmar que Chico Buarque de Hollanda consegue exprimir de maneira poética em suas canções, os aspectos duais da personalidade 39 da mulher em suas várias facetas, dando a ela, nas quatro canções analisadas, um papel de destaque. 40 CONSIDERAÇÕES FINAIS Na elaboração desta monografia, procuramos identificar nas quatro canções escolhidas entre o imenso repertório do artista Chico Buarque de Hollanda, a presença da figura feminina, bem como discorrer sobre a importância que o autor dá à mesma, abordando a mulher que ama, sofre, luta por seus filhos e marido. Primeiramente mostramos um breve relato sobre a biografia do autor, bem como discorremos sobre a presença da mulher como protagonista em suas canções, as abordagens afetiva, social, sexual e a presença do “desejo”. Ainda, foram analisadas as letras de quatro canções. A monografia é encerrada com um traçado sobre as abordagens psicanalítica e sociológica, presentes nas obras de Chico Buarque de Hollanda. Notamos que o autor consegue, por meio de suas composições, expressar de maneira adequada o que vai à alma das mulheres, colocando-se no lugar delas, num verdadeiro exercício de empatia. Como poucos autores do sexo masculino, Chico desenvolve, por meio de letras e música, temas subjacentes aos sentimentos mais íntimos das personagens femininas presentes em suas obras, trazendo à tona aspectos de ordem psicológica, social, afetiva, sexual e econômica. Este estudo não teve o objetivo de esgotar o assunto, tendo em vista a riqueza de detalhes e a complexidade que o compõem. Ao contrário, buscamos com ele, por meio de uma análise de base qualitativa, contribuir para a investigação da figura feminina, do amor e da linguagem poética que permeiam a obra do artista. 41 REFERÊNCIAS BRASIL, U. Os Sentidos das Canções do Chico, O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno 2, D5, de 10 out. 2009 BRUNO, L. Jornalismo e linguagem – Análise da letra Com Açúcar – disponível em www.jorwiki.usp.br. Acesso em 05 abr. 2010. CATARINO, D. Gramática On Line – disponível em www.gramaticaonline.com.br. Acesso em 22 abr. 2010. FONTES, M. H. S. Sem Fantasia: Masculino-Feminino em Chico Buarque – Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 1993. HOMEM, W. Histórias de Canções: Chico Buarque – São Paulo, Leya, 2009. MARTINELLI, D. M. O Meu Guri: Um recorte semiótico da canção, artigo disponível em www.unigran.br, acesso em 05/04/10. MENESES, A. B. Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque, São Paulo, Ateliê Editorial, 2002. MENESES, A. B. Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque, São Paulo, Ateliê Editorial, 2000. MOTA, N. Noites Tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2000. 42 WAGNER, L. R. Use o português adequado: Aspectos Gramaticais e Análise de Textos, São Paulo, All Print Editora, 2008. _____________. Análise da Letra de Mulheres de Atenas. Disponível em www.mundocultural.com.br. Acesso em 07 abr. 2010. _____________. Biografia de Chico Buarque de Hollanda. Disponível em www.jazznbossa.ning.com. Acesso em 21 abr. 2010 _____________. Biografia de Chico Buarque de Hollanda. Disponível em www.chicobuarque.com.br/vida/vida.htm _____________. Biografia de Chico Buarque de Hollanda. Disponível em www.caiman.de/brasil/buarque/buarquept.shtml. Acesso em 21 abr. 2020 43 ANEXO 44 ANEXO A Tororó Lobo, Edu; Buarque, Chico Eu fui no Tororó Beber água, não achei Achei bela morena Que no Tororó deixei Pra que, morena Ah, pra que carinho Ah, pra que desejo Pra acabar sozinho Antes da mulher Era o homem só Era sem querer Era sem amor Era sem penar Era sem suor Era sem mulher Era bem melhor Deus fez a fêmea e depois Que ela encorpou, nunca mais Que um mais um foram dois E caíram de quatro os animais E tome praga no arroz Rebelião nos currais Ficou o homem feroz E estranhou seus iguais Antes da mulher 45 Era um dissabor Era um desprazer Que fazia dó Homem sem mulher Era quase um pó Que ficava em pé Era um saco só Dentro da fêmea Deus pôs Lagos e grutas, canais Carnes e curva e cós Seduções e pecados infernais Em nome dela, depois Criou perfumes, cristais O campo de girassóis E as noites de paz 46 ANEXO B “Com Açúcar, Com Afeto” Buarque, Chico Com açúcar, com afeto fiz seu doce predileto pra você parar em casa qual o quê com seu terno mais bonito você sai e não acredito quando diz que não se atrasa Você diz que é operário sai em busca do salário pra poder me sustentar qual o quê no caminho da oficina há um bar em cada esquina pra você comemorar sei lá o que sei que alguém vai sentar junto você vai puxar assunto discutindo futebol e ficar olhando as saias de quem vive pelas praias coloridas pelo sol Vem a noite, mais um copo sei que alegre "ma non tropo" você vai querer cantar na caixinha um novo amigo vai bater um samba antigo pra você rememorar Quando a noite enfim lhe cansa Você vem feito criança 47 pra chorar o meu perdão qual o quê diz pra eu não ficar sentida diz que vai mudar de vida pra agradar meu coração E ao lhe ver assim cansado maltrapilho e maltratado ainda quis me aborrecer qual o quê Logo vou esquentar seu prato dou um beijo em seu retrato e abro meus braços pra você 48 ANEXO C “Mulheres de Atenas" Buarque, Chico; Boal Augusto Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seu maridos, orgulho e raça de Atenas Quando andas, se perfumam Se banham com leite, se arrumam Suas melenas Quando fustigadas não choram Se ajoelham, pedem, imploram Mais duras penas Cadenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas Quando eles embarcam, soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam sedentos Querem arrancar violentos Carícias plenas Obscenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar o carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços 49 De suas pequenas Helenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas Elas não têm gosto ou vontade Nem defeito nem qualidade Têm medo apenas Não têm sonhos, só têm presságios Lindas sirenas Morenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas As jovens viúvas marcadas E as gestantes abandonadas Não fazem cenas Vestem-se de negro, se encolhem Se conformam e se recolhem Às suas novenas Serenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas 50 ANEXO D “O Meu Guri” Buarque, Chico Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando, não sei explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice ele um dia me disse Que chegava lá Olha aí Olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega suado e veloz do batente E traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro, seu moço Que haja pescoço pra enfiar Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave, caderneta, terço e patuá Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega no morro com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto 51 Essa onda de assaltos tá um horror Eu consolo ele, ele me consola Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo, olho pro lado E o danado já foi trabalhar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo, de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri 52 ANEXO E “SEM FANTASIA” Buarque, Chico Vem, meu menino vadio Vem, sem mentir pra você Vem, mas vem sem fantasia Que da noite pro dia Você não vai crescer Vem, por favor não evites Meu amor, meus convites Minha dor, meus apelos Vou te envolver nos cabelos Vem perder-te em meus braços Pelo amor de Deus Vem que eu te quero fraco Vem que eu te quero tolo Vem que eu te quero todo meu Ah, eu quero te dizer Que o instante de te ver Custou tanto penar Não vou me arrepender Só vim te convencer Que eu vim pra não morrer De tanto te esperar Eu quero te contar Das chuvas que apanhei Das noites que varei No escuro a te buscar Eu quero te mostrar As marcas que ganhei 53 Nas lutas contra o rei Nas discussões com Deus E agora que cheguei Eu quero a recompensa Eu quero a prenda imensa Dos carinhos teus