MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL AMERICANA (1861-1865) Aluna: Lara Taline dos Santos [email protected] Orientadora: Prof. Dr. Martha Daisson Hameister Palavras-chave: Estados Unidos, guerra civil, tropas negras. O presente estudo dedica-se a discutir o surgimento e desenvolvimento dos regimentos de negros durante a Guerra Civil norte-americana, também conhecida como Guerra de Secessão. Para tanto, além do apoio de vasta bibliografia, norte-americana em sua maioria, utilizaram-se documentos diversos como fontes primárias da pesquisa. Essa documentação é oriunda dos volumes de documentos e ensaios do projeto Freedmen and Southern Society1, da Universidade de Maryland – EUA e estão disponibilizadas na internet. Tratam-se de documentos com diversidade tipológica, abrangendo o período de 1861 a 1867. O primeiro conjunto documental consta de proclamações e correspondências oficiais do presidente Lincoln acerca da institucionalização das tropas de homens negros na União e os atos assinados por esse presidente. Destacam-se o Militia Act e o segundo Confiscation Act, que colocam a questão das milícias negras no âmbito legislativo. A partir dessa documentação se busca demonstrar o processo de constituição formal das tropas de homens de cor pelo governo. São analisados os aspectos relativos à legislação sobre tais tropas e sua composição em momentos distintos do conflito. Nesse conjunto há um grande número de correspondências do presidente Lincoln e nota-se a relevância da documentação para o estudo da gradual importância que as tropas de negros adquirem no âmbito militar. Os dois Atos constantes nesse conjunto, entretanto, só podem ter sua importância apreendida a partir dos efeitos que causaram nas tropas que lutaram na guerra, as de soldados negros e as de soldados brancos, gerando expectativas em soldados negros, em escravos não-militares e na sociedade branca. O segundo conjunto documental traz correspondências em mais de um momento da guerra civil. Em contraponto com a documentação oficial, a correspondência não oficial é pouco numerosa e são raras as cartas redigidas por negros, visto que muitos eram analfabetos. Esse foi um dos complicadores ao se lidar com essa documentação. As cartas são atinentes a testemunhos de homens de cor livres integrantes do exército e de comandantes brancos de regimentos de negros. A partir dessa documentação buscou-se caracterizar a formação das tropas de negros nos espaços da União e dos Estados Confederados e a compreensão dos aspectos básicos relativos à institucionalização, treinamento, recebimento de soldo e do armamento2. Houve grande dificuldade na obtenção de dados mais aprofundados sobre os autores das cartas, sua origem e condição. Isso impossibilitou uma análise mais aprofundada da composição dessas tropas. A análise de ambos os conjuntos permitem apreender o processo no qual tensões entre elites do norte e do sul dos Estados Unidos acabaram tomando o rumo de uma guerra pela abolição da escravidão e a percepção in loco sobre quem eram esses soldados negros com os quais o oficialato branco lidava, além do destino projetado para esses soldados ao final da guerra. 1 O projeto é iniciativa do departamento de história da Universidade de Maryland, tendo como diretora Leslie S. Rowland e contando com um grande número de colaboradores. Seu acervo on-line encontra-se disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/fsspeds.htm 2 Essa documentação também encontra-se transcrita no mesmo site A produção sobre a História dos Estados Unidos ainda é pequena entre autores brasileiros. O tema da Guerra Civil, objeto desse trabalho, tem produção limitada no Brasil. A historiografia sobre este tópico é predominantemente norte-americana. Dentre os brasileiros, destaca-se aqui o trabalho de Victor Izecksohn3, importante ponto de apoio para esse estudo. Na literatura estadunidense, atenta-se para o fato de que a Guerra Civil constitui um tema particularmente difícil para a historiografia. Assim, foi necessário, problematizar a bibliografia atinente ao tema, compreendendo o contexto de sua produção. Tratar da guerra que desfez a União - nascida com a Proclamação de Independência em 4 de julho de 1776 é problemático e polêmico, envolve as correntes historiográficas em um amplo debate. Detectou-se uma divisão entre as posições dos autores, a qual não será objeto desse trabalho, no que concerne à relação Guerra Civil e abolição. A historiografia tradicional tenta ocultar esse estreito vínculo e a segunda grande corrente, a que se tomou como base para o projeto, assume esse vínculo e trata de desvendar seus meandros. Estes autores privilegiam a análise de alguns tópicos: a formação das tropas; a sua constituição formal e as questões sociais. O autor Noah Andre Trudeau, em sua obra Like Men of War 4, privilegia questões relacionadas à concepção dessas tropas com foco no armamento, fardamento e pagamento de soldo. Sua análise centra-se, não menos, em aspectos relacionados à institucionalização das tropas de homens de cor. Sua obra apenas dá ao leitor um panorama geral da questão social e das discussões a cerca da inserção do homem negro no exército5. Já Joseph T. Glatthaar, em Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white officers 6, privilegia justamente essas questões. Sua análise aborda a participação dos homens brancos no comando de regimentos negros, as questões de armamento e treinamento a partir da perspectiva da interação entre os diferentes grupos sociais nas corporações militares7. Tanto Trudeau, quanto Glatthaar enfocam as tropas da União, sendo as tropas confederadas tema periférico. Por outro lado, Steven Hahn, em A nation under our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to the great migration8, centra a análise no sul dos Estados Unidos, focando a instituição escravista confederada e a grande migração dos escravos que, cada vez mais, fugiam do sul buscando vida melhor no norte. Estando o leitor situado no âmbito dos debates historiográficos atinentes ao tema específico das tropas negras na Guerra Civil norte-americana a partir dessa produção básica, passa-se a apresentação da investigação e seus resultados. O texto foi dividido em três capítulos para a exposição do trabalho. No primeiro capítulo, intitulado “A Guerra de Secessão norte-americana: O embate entre os Estados Confederados do Sul e a União”, procedeu-se a uma revisão historiográfica sobre o tema, apontando a pequena produção brasileira e discutindo os principais autores e correntes interpretativas norte-americanas, expostos resumidamente acima. Logo passou-se a uma caracterização do grande panorama da Guerra Civil Norte-Americana. 3 Autor de Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. e Deportação ou Integração.Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 20, Janeiro-Junho de 2010. 4 TRUDEAU, Noah André. Like Men of War. Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002. pp 03-150. 5 Ibidem. pp. XVII-XX. 6 GLATTHAAR, Joseph T. Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white officers. New York: Fist Meridian Printing, January, 1991. pp 99-120. 7 Ibidem, Op. Cit. pp. IX-X. 8 HAHN, Steven. A nation under our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to the great migration. Belknap Harvard, 2003. pp. 01-10. Voltando aos seus antecedentes, segundo Izecksohn9, salientaram-se as mudanças econômicas e políticas que se operavam nos Estados Unidos cerca de uma década antes da eclosão do conflito. Essas transformações tinham origem em processos de modernização e industrialização, estando aliadas ao singular aumento populacional do país, à expansão territorial e à urbanização. Buscou-se aqui demonstrar que sul e norte não eram, de todo, divergentes quando do início das tensões. Porém, progressivamente a partir da década de 1800 a diferenciação econômica entre as duas regiões aumentou, sendo que interesses regionais passaram a desestabilizar a integridade nacional norte-americana10. O norte vivenciava um período de grande desenvolvimento econômico a partir de um processo industrialização, com preponderância das indústrias naval e têxtil. Era um período de rápida diversificação econômica, com a região atrelando-se ao capitalismo comercial mundial a partir das grandes transformações no mercado. Atenta-se aqui para a situação dos negros e as primeiras concepções ligadas à emancipação dos escravos nos estados do norte. Na grande maioria desses, a população negra era pequena e economicamente pouco significante, em proporção ao número total de habitantes. Nos estados do sul a situação era diferente. Os proprietários sulistas encontravam dificuldade ou relutavam em incorporar tecnologias recentes na sua produção, estando ainda estavam profundamente ligados a uma produção agrária extensiva 11. A agricultura continuava como principal atividade regional, estando baseada no trabalho escravo africano. O sul ainda mantinha fortes laços com a antiga metrópole inglesa. Laços, sobretudo econômicos, que a Revolução Americana de 1776 não foi capaz de cortar imediatamente. A produção local, baseada em produtos primários, mantinha-se dependente do mercado britânico, sempre procurando expandir os domínios de sua monocultura algodoeira e a área de abrangência da comercialização de sua produção agrícola para territórios situados mais ao norte, o que de certo modo, representa complementaridade das produções de ambos os territórios. Segundo Izecksohn 12 a diversificação econômica não era uma realidade possível no Sul, sendo que no Norte já era acentuada. A essas diferenças na composição econômica e política das duas regiões, somou-se a questão escravista. A escravidão, remanescente do período colonial e ampliada após a independência, era defendida, sobretudo pelos grandes proprietários sulistas que visavam proteger interesses ligados as plantations baseadas no trabalho escravo africano. Em paralelo, o norte vivenciava o crescimento de uma demanda abolicionista, nascida como conseqüência direta do processo de expansão do mercado local. Neste ponto atenta-se para a necessidade de se relativizar uma imagem abolicionista defendida por grande parte da historiografia norte-americana. Entretanto, torna-se perceptível que a expansão comercial levou a criação de novos padrões de humanitarismo e ao esforço abolicionista no Norte. 13 Nesse primeiro capítulo apontaram-se os conflitos entre concepções nortistas e sulistas, inclusive no âmbito do congresso nacional, abrindo as portas para uma linha de pensamento seccional, que aliado ao descontentamento sulista com algumas ações da gestão Lincoln, levou a Guerra Civil. Assim, explorou-se a questão da escravidão como fator crucial para a eclosão do conflito entre norte e sul, promovendo um combate ideológico entre as duas porções do país que possuíam projetos sociais, políticos e 9 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norteamericano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47. Disponível em: www.ppghis.ifcs.ufrj.br/.../izecksohn_escravidao_federalismo.pdf 10 Ibidem, pp. 47-54. 11 Ibidem, pp. 47-51. 12 Ibidem, p. 57 13 FORD, Lacy K. “Introduction: a civil war in the age of capital”. In: _______ (ed.) A Companion to the Civil War and Reconstruction. Blackwell Publishing, 2005. pp. 04-08. econômicos distintos. Apesar dos embates já se darem há tempo considerável no campo político e diplomático os conflitos bélicos iniciaram-se em 1861, com a exigência dos sulistas de que as tropas da União abandonassem o estratégico forte Sumter, localizado na Carolina do Sul, um dos primeiros estados a declararem-se separatistas. No segundo capítulo, de nome “Rally, men of color, at once for your country!: Os soldados negros na Guerra de Secessão” 14 passou-se à questão do negro como soldado, tanto no norte, como no sul. Para tanto, dividiu-se o capítulo em três sub-capítulos: os dois primeiros intitulados “Os Soldados Negros do Norte” e “Os Soldados Negros do Sul”. Cada deles tratando especificamente da transformação de homens negros, ex-escravos ou não, em soldados profissionais dos Estados Unidos da América. Um terceiro subcapítulo trata da regulamentação desse engajamento militar. Atentou-se para a formação das tropas compostas por homens de cor, com a formulação de quadros cronológicos que indicam o surgimento formal dessas tropas nos diferentes estados da União e dos Confederados. É notável que, inicialmente, as autoridades governamentais alegaram que não havia necessidade da incorporação de negros à instituição militar, uma vez que não cabia a eles lutar em um conflito que era compreendido como uma guerra apenas de homens brancos. 15 Dessa forma, em um primeiro momento, os estados do norte e do sul passaram a um recrutamento maciço de suas populações brancas. Logo, percebeu-se que o número de homens brancos em idade de combate não era suficiente, problema identificado tanto nos exércitos do sul, quanto do norte. Apelaram então para o recrutamento de homens de cor na composição das forças armadas, sendo que os estados da União foram os primeiros a recrutar descendentes de africanos. Relativizando a idéia de que no Norte os negros alistados foram incluídos sem problemas nas corporações militares, salientaram-se nesse capítulo os desconfortos, tensões e embates com oficiais e soldados brancos, que desconfiavam da capacidade das tropas compostas apenas por homens de cor16. Tal organização de tropas deu-se em um momento em que faltavam ações governamentais quanto às demandas por mais homens. Vários estados nortistas resolveram organizar sua defesa de forma independente a fim de garantir a integridade territorial e conter as forças confederadas17. Assim, quando uma legislação específica acerca dos regimentos negros formalizou essa incorporação, veio apenas a regulamentar uma realidade já existente. Havia um tempo considerável que nos estados da União a utilização de soldados negros se dava, remontando o início dos conflitos, todavia sem a organização em unidades18. Tendo isso em vista, abordou-se a seguir, nesse capítulo, o tema da institucionalização das tropas negras e a legislação específica gerada durante o governo do 16º presidente norte-americano, Abraham Lincoln. A partir da análise de fontes primárias, basicamente os dois documentos promulgados pelo presidente – o segundo Consfiscation Act e o Militia Act – buscou-se compreender aspectos relativos à constituição formal dessas tropas. Para melhor organização desta análise, ela encontra-se no sub-capítulo denominado “As conseqüências da institucionalização: o segundo Confiscation Act e o Militia Act”. 14 A frase (“Reúnam-se, homens de cor, de uma só vez pelo seu país”- tradução livre) foi retirada de uma coleção de pôsteres que incitavam os negros a alistarem-se no exército da União. Essa coleção encontra-se no acervo no Chicago History Museum. 15 MCCORMICK, Jayne. The Black Troops of the Civil War. 2001. Disponível em: http://www.bitsofblueandgray.com/feb2001.htm. Acesso em: 25 de outubro de 2010. 16 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit , p. 112. 17 BURTON, William L. Melting Pot Soldiers. The Union´s Ethnic Regiments North´s Civil War. Fordham University Press, 1998. pp. 15-17. 18 Ibidem, pp, 03-05. No terceiro capítulo fez-se uma análise da correspondência de soldados negros e seus comandantes brancos. A partir das fontes primárias, buscou-se examinar o desenvolvimento dos regimentos de negros na Guerra de Secessão, procurando identificar a forma de ingresso dos homens de cor nos corpos militares do norte e do sul; os padrões de recrutamento em cada uma das regiões e sua constituição formal, bem como suas aspirações à liberdade e a uma vida melhor para seus familiares, além de aspectos relativos a armamento, pagamento de soldo, acesso a cargos na oficialidade, treinamento e fardamento. Procurou-se identificar a procedência das correspondências considerando as taxas de analfabetismo e a realidade dos negros nos diferentes espaços. Buscou-se, ainda, estabelecer relações entre o ingresso desses homens de cor na instituição militar e o grande número de escravos fugidos do sul, ao passo que se atenta para as promessas de liberdade – muitas vezes não cumpridas – feitas a inúmeros soldados negros do norte e do sul. Conclui-se com esse estudo que a inclusão de negros nas tropas que fizeram a guerra e a sua assimilação em uma nova realidade sem escravidão que dela emergiu, são parte de um processo bem maior, cujas origens não estão na Guerra Civil propriamente dita e sua conclusão não se dá com o fim dela. Se por um lado o engajamento dos negros nas tropas serviu aos interesses dos brancos norte-americanos dos dois lados da contenda, por outro, fomentou os anseios de liberdade da população escravizada, conduzindo, ao fim e ao cabo, à ruptura de um elo fundamental na estrutura sócio-econômica dessa sociedade e abrindo espaço para as novas tensões e conquistas sócio-raciais dos afro-norte-americanos. Como considerações finais, pondera-se também que, sendo notável que nos Estados Unidos há um número considerável de historiadores que elegeram o Brasil como seu objeto de estudo. Os assim chamados brazilianists possuem produção vasta e fecunda, dialogando com autores brasileiros e formando centros de pesquisa em instituições prestigiadas, como Harvard e a New York University. Entretanto, essa troca acadêmicas não é equilibrada. No Brasil o estudo de muitos aspectos da história norte-americana é um campo ainda recente e pouco explorado. Por outro lado, não estão os pesquisadores estrangeiros, e dentre esses, os brasileiros, envolvidos “emocionalmente” com esse momento delicado da história dos Estados Unidos. Tal momento envolve a um só tempo a construção do Estado nacional norte-americano, as questões relativas às noções de liberdade e de igualdade e as questões raciais desse estado que se reorganiza. Acredita-se eles os pesquisadores brasileiros possam contribuir para esses estudos dotando-os de um maior distanciamento que por sua vez, pode produzir uma visão mais crítica desses eventos. O estudo por autores brasileiros de temas relacionados aos Estados Unidos constitui ainda um ramo novo para a historiografia. Na medida em que cresce, vai abrindo espaço para uma maior interação intelectual e pesquisas conjuntas. Com um maior desenvolvimento da Organization of American Historians, os diálogos entre historiadores brasileiros e norte-americanos vem aumentando19. Eis que o breve estudo da formação das tropas de negros durante um período crucial e problemático da história dos Estados Unidos, a Guerra Civil, que aqui se apresenta, insere-se nessa nova perspectiva, demonstrando-se que mesmo com restrições à investigação in loco da documentação, utilizando fontes disponibilizadas em acervo on-line, os projetos podem tornarem-se viáveis. Assim, há perspectiva de se produzir material em língua portuguesa atinente ao tema da constituição e desenvolvimento das tropas de negros durante o conflito da secessão. 19 WEINSTEIN, Bárbara. Diálogos Brasil - Estados Unidos. Tempo: vol.13, n.25. Niterói: 2008. Entrevista concedida a Cecília Azevedo.