Tema 6 Rev. Medicina Desportiva informa, 2012, 3 (5), pp. 29–31 Substâncias ergogénicas no desporto de competição – repercussões cardiovasculares Dr. Énio Pestana1, Dr. Joaquim Goulão2 Serviço de Medicina Física e de Reabilitação, Hospital de Santa Maria; 2Serviço de Ortopedia, Hospital de São José, Lisboa. 1 Resumo ABSTRACT As substâncias ergogénicas não são desprovidas de efeitos adversos para o organismo do atleta. Os efeitos cardiovasculares, pelo seu impacto na morbilidade e mortalidade, estão entre os mais perigosos. Neste artigo os autores pesquisaram o modo como as diferentes substâncias ergogénicas podem afetar o sistema cardiovascular do atleta e procuram sensibilizar todos os intervenientes no desporto para a importância da competição honesta e sem dopagem. The ergogenic aids can have severe side effects on the athlete. The cardiovascular side effects are among the most hazardous due to their morbidity and mortality. In this paper the authors review the literature to find out the different ways the various ergogenic aids may affect the cardiovascular system and try to sensitise all the participants in sport for the importance of a fair competition with no doping. Palavras chave Key-words Cardiovascular, dopagem, desporto. Cardiovascular, doping, sports. Introdução Resultados: Os efeitos adversos da dopagem para a saúde do atleta dependem do tipo, da quantidade e da duração do consumo e da suscetibilidade individual. Os atletas geralmente usam uma combinação de substâncias em doses variáveis (geralmente supra-terapêuticas) com interação e potenciação de efeitos negativos1,2. Os efeitos cardiovasculares da dopagem não podem ser negligenciados devido ao risco de aumento da morbilidade e mortalidade no atleta2. Os efeitos cardiovasculares das substâncias ergogénicas ocorrem através de cinco mecanismos indicados no Quadro I3: Material e métodos Foi feita revisão dos artigos publicados na Pubmed entre 1986 e 2011, utilizando os termos da MeSH: doping in sports; performance-enhancing substances; side effects e cardiovascular. Pesquisaram-se também tratados internacionais. Foram encontrados 24 artigos/capítulos que reuniam as caraterísticas pretendidas. Esteroides androgénicos e anabolizantes Estes aumentam a síntese de proteínas, reduzindo os efeitos catabólicos dos corticoides. Associados ao exercício físico aumentam a massa e a força muscular ao facilitarem a assimilação de proteínas alimentares3. Os anabolizantes reduzem a eliminação urinária de azoto, sódio, potássio, cloro, fosfato e água, conduzindo a retenção hidrossalina com consequente hipertensão arterial (HTA), insuficiência cardíaca (IC) e alterações do ritmo cardíaco (podem conduzir a fibrilação auricular e ventricular)4. A HTA dos anabolizantes é controversa nos vários estudos disponíveis5, mas quando presente carateriza-se por ausência de descida tensional noturna. A IC dos anabolizantes é favorecida pela fibrose miocárdica induzida pelos mesmos, pela hipertrofia ventricular esquerda causada pela HTA e pelo aumento de frequência cardíaca3. Os anabolizantes promovem a agregação plaquetária ao aumentarem a sua sensibilidade ao colagénio, reduzem a atividade fibrinolítica, inibem o ativador do plasminogénio e aumentam a anti-trombina III e a proteína S. Estes efeitos adversos refletem uma diátese trombótica que pode contribuir para a oclusão vascular. Estes efeitos são exacerbados em caso de desidratação e de stress catecolaminérgico, frequentemente associados ao exercício físico2,3. Os anabolizantes, particularmente os androgénios 17 alquilados, Quadro I. Efeitos cardiovasculares das substâncias ergogénicas3 Substâncias vasoconstritoras · Hemoglobinas reticuladas · Estimulantes · Interleucina 3 (IL-3) · EPO · Anabolizantes · Cafeína · Cocaína · Glucocorticoides Estimuladores do sistema nervoso autónomo simpático Substâncias que provocam retenção hidrossalina · ß2 agonistas · Glucocorticoides · Estimulantes · Anabolizantes · Canabinoides Substâncias e métodos que aumentam a viscosidade sanguínea Substâncias que alteram o perfil lipídico · Transfusão sanguínea · Anabolizantes · Eritropoietina (EPO) · Glucocorticoides · Perfluorcarbonetos (PFC) Revista de Medicina Desportiva informa Setembro 2012 · 29 aumentam, em proporção, mais os lípidos que as proteínas por mobilização exagerada de colesterol e de triglicéridos (TAG), conduzindo a baixa da HDL, aumento da LDL, do colesterol total, dos TAG e a insulino-resistência. Estas alterações são responsáveis por lesões ateromatosas em particular nas artérias coronárias. A morte súbita de origem cardíaca pode ocorrer por um evento coronário agudo, como no vasoespasmo coronário causado pela baixa de produção e libertação de óxido nítrico vascular induzida pelos anabolizantes, ou por alterações do ritmo cardíaco, já que os anabolizantes são pró-arrítmicos, pois alteram a estrutura miocárdica e influenciam a concentração de eletrólitos)2,3,6. Hormonas e substâncias relacionadas Nesta classe as substâncias mais usadas: Hormona de crescimento humana: O uso excessivo conduz a miocardiopatia, caraterizada por hipertrofia do miocárdio, com fibrose intersticial, infiltrado linfomononuclear e áreas de necrose monocitária. Além disso, o excesso de hormona de crescimento aumenta a incidência de arritmias e, consequentemente, a mortalidade de causa cardiovascular7. Eritropoietina (EPO): A administração de EPO visa o aumento da taxa de glóbulos vermelhos circulantes, o que provoca maior capacidade de transporte e de libertação de O2 da hemoglobina. Tem um efeito dose-dependente nos parâmetros hematológicos8. O uso incorreto de EPO causa aumento do hematócrito e da viscosidade do sangue que, por sua vez, origina trombose cardíaca e vascular periférica e fenómenos tromboembólicos (enfarte pulmonar, AVC e morte súbita)3,9. No 30 · Setembro 2012 www.revdesportiva.pt desportista a trombose é ainda favorecida pela desidratação associada ao esforço físico e pela bradicardia durante o sono10. A EPO também aumenta o tónus vascular por aumento significativo do cálcio livre, com efeito vasoconstritor direto na célula muscular lisa e nas plaquetas, o que conduz a HTA e possivelmente disfunção cardíaca11. ß2 agonistas Estes fármacos são usados por via inalatória no tratamento da asma. Quando administrados oralmente, os ß2 agonistas, como o clenbuterol e o salbutamol, parecem aumentar a força muscular pelo seu potencial de aumento da massa muscular. Estes fármacos ativam os recetores adrenérgicos cardíacos e periféricos, causando aumento da FC e da força contráctil do miocárdio e vasodilatação, com redistribuição do débito coronário2,3,12. Os efeitos secundários mais frequentes são as alterações do ritmo (supraventriculares ou ventriculares) por vezes responsáveis por morte súbita3,12. O clenbuterol é um ß2 agonista que tem efeitos anabolizantes. Ele atua por estimulação simpática dos receptores ß2, com hipertrofia da célula muscular esquelética e cardíaca, aumento da síntese proteica, estimulação da lipólise e aumento das reservas energéticas. A longo prazo causa HTA e hipertrofia ventricular, que é depois responsável pela IC3,13. Estimulantes Os estimulantes, como as anfetaminas e a cocaína, atuam no sistema nervoso central (SNC) através da secreção de neurotransmissores excitatórios, como a dopamina, a norepinefrina e a serotonina14. Anfetaminas: O seu efeito estimulante sobre o sistema nervoso autónomo causa aumento das resistências arteriais periféricas, com consequente HTA e aumento da FC, que pode induzir alterações do ritmo (supraventriculares ou ventriculares), por vezes responsáveis por morte súbita2,3. A cocaína e outros simpaticomiméticos parecem ter pouco ou nenhum efeito sobre a performance do atleta. Têm um efeito anestésico local no coração pela sua capacidade de bloquear os canais de sódio e potássio, assim como um potente efeito simpaticomimético e vagolítico3. O principal efeito adverso cardiovascular é o enfarte agudo do miocárdio (EAM), que é independente da dose. O mecanismo é o aumento nas necessidades miocárdicas de O2 devido ao vasoespasmo coronário e o aumento da agregação plaquetária (mal conhecido atualmente)15. As arritmias ventriculares, o prolongamento dos intervalos QT e PR e os distúrbios da condução AV são precursores de morte súbita nos consumidores de cocaína. Outras reações adversas cardiovasculares incluem: miocardite, miocardiopatia dilatada, endocardite infeciosa, rotura de aneurisma da aorta, trombose vascular, HTA e AVC3,16,17,18. Alcalóides de efedrina: Os preparados que contêm efedrina, como ma-huang, “ecstasy herbal” e outros, estimulam o coração aumentando a FC e a força de contração. A efedrina aumenta a pressão arterial por vasoconstrição. Os efeitos adrenérgicos da efedrina podem levar ao desenvolvimento de arritmias cardíacas. Complicações cardiovasculares, como HTA, miocardite, AVC, arritmias e morte súbita de causa cardíaca, podem ocorrer com o seu uso 3,14. Canabinoides Os mais usados são a marijuana e o haxixe. O seu principal ingrediente ativo é o tetrahidrocanabinol que atua primariamente via estimulação ß adrenérgica e possivelmente também por bloqueio parassimpático. Ele aumenta a FC e diminui o volume sistólico, causando aumento das necessidades miocárdicas em O2 com diminuição do seu aporte, conduzindo a isquémia aguda e/ou arritmias19,20. Glucocorticoides O uso continuado e prolongado está associado a alterações do metabolismo lipídico, como o aumento do colesterol total, TAG e LDL (a dislipidémia é causada pelo aumento dos níveis de insulina plasmática, diminuição do catabolismo lipídico e aumento da produção lipídica pelo fígado)2,3. O cortisol aumenta o efeito vasoconstritor das catecolaminas. A nível renal esta vasoconstrição desencadeia uma disfunção secundária responsável por retenção hidrossalina (que causa HTA e IC), parte da síndroma de hipercortisolismo (HTA, retenção hidrossalina, hiperglicémia, hipocaliémia e acidose)3. Métodos proibidos A dopagem sanguínea (transfusão, transportadores artificiais de O2 que atuam como substitutos do sangue, como os PFC e as hemoglobinas reticuladas, estimulação da EPO com IL-3) visa o aumento da massa de glóbulos vermelhos para entregar mais O2 ao músculo, com consequente aumento da capacidade física. A resultante eritrocitose conduz a taquicardia e aumento da pré-carga, o que origina HTA, EAM, embolia pulmonar e risco de formação de coágulos na circulação periférica9. Outras substâncias Outras substâncias (cafeína e alguns suplementos nutricionais) são frequentemente usados pelos atletas com o intuito de melhorar a performance atlética, mas não são considerados proibidos. Muitas destas substâncias têm efeitos adversos cardiovasculares. Não há evidência científica que os suplementos (proteínas, creatina, carnitina ou vitaminas) causem efeitos cardiovasculares, apesar de não existirem dados sobre a sua segurança a longo prazo2. O consumo de cafeína antes do exercício aumenta o catabolismo lipídico e diminui a oxidação dos hidratos de carbono, sendo por isso muito usada em provas de endurance21. O aumento da performance não tem relação com a dose ingerida. A cafeína estimula o SNC e em quantidades superiores a 1,5 g por dia pode causar os sintomas típicos de cafeínismo: agitação, cefaleias, coronário, o que aumenta o risco de doença coronária isquémica e morte súbita de origem cardíaca. Por outro lado, o consumo moderado de álcool está associado a menor incidência de aterosclerose coronária (em grande parte devido ao aumento do HDL e da atividade fibrinolítica e à diminuição do LDL)24. ß-Bloqueantes: O seu uso diminui a FC e a pressão arterial. São usados em desportos de grande stress ou tensão psicológica que exijam grande controlo do tremor e da ansiedade (tiro ao alvo, saltos de esqui)2. insónia, tremores, aumento da FC, HTA e extrassístoles ventriculares2,21. A cafeína é antagonista dos recetores adrenérgicos e aumenta a contractilidade da célula muscular lisa ao facilitar a permeabilidade ao cálcio do retículo sarcoplásmático (efeito vasoconstritor)3. A terminar Substâncias sem efeito ergogénico usadas no dopagem Diuréticos e outros agentes mascarantes: São usados principalmente para mascarar a presença de fármacos na urina14,22. Os diuréticos podem causar desequilíbrio eletrolítico conducente a arritmias2. Além disso inibem a desidrogenase hidroxiesteroide, o que causa aumento nos níveis de colesterol e de TAG23. Narcóticos: São derivados diretos do ópio (morfina, heroína, codeína) ou são sintéticos/semi-sintéticos. Os analgésicos narcóticos não são necessariamente ergogénicos, mas o seu uso pode ser lesivo para o atleta ao permitir que ele participe numa prova quando está lesionado. O ópio é um forte depressor respiratório, mas afeta muito pouco a FC e a pressão arterial. Os seus principais efeitos tóxicos são a depressão respiratória, coma e morte2. O álcool não tem efeito ergogénico direto. Reduz a ansiedade e o tremor antes da competição2,14. Inicialmente o consumo de álcool pode conduzir a aumento da FC e da frequência respiratória, vasodilatação superficial e aumento da pressão arterial. Como efeitos adversos dessas alterações surgem a HTA, AVC, doença coronária isquémica, arritmias cardíacas e miocardiopatia dilatada (apesar de não se conhecerem os mecanismos precisos). Os grandes consumidores têm aumento da atividade adrenérgica, com consequente HTA, taquicardia e espasmo Na prática clínica, aquando do aparecimento de queixas cardiovasculares no atleta (palpitações, crises hipertensivas, arritmias ventriculares graves) é necessário questionar o eventual abuso de substâncias ergogénicas, estando também atento a substâncias e produtos geralmente consideradas inócuos, como as preparações de ervanária ou misturas que contenham cafeína e efedrina na sua composição. Bibliografia 1. World Anti-Doping Agency, World Anti-Doping Code, Prohibited list 2011. Disponível no site http://www.wada-ama.org/ [consultado a 1 de Janeiro de 2011 às 15h]. 2. Deligiannis A, Bjornstad H, Carre F, Heidbuchel H, Kouidi E, Panhuyzen-Goedkoop NM, Pigozzi F, Schanzer W, Vanhees L; ESC study group of sports cardiology position paper on adverse cardiovascular effects of doping in athletes. European Journal of Cardiovascular Prevention and Rehabilitation 2006; 13 (5): 687-694. 3. 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