Caso Mulher jovem com múltiplos factores de risco MGCFM, sexo feminino, 39 anos de idade, caucasiana, casada, funcionária administrativa, recorreu pela primeira vez ao Atendimento Complementar do Centro de Saúde, a 7 de Abril de 2008, por cefaleia intensa, generalizada e sem sintomatologia acompanhante, nomeadamente náuseas ou alterações visuais, negando fono ou fotofobia. Negava toma de medicamentos à excepção de anticonceptivo oral (ACO) hormonal (Minigeste®). Nos antecedentes pessoais há a referir história de oligomenorreia desde a menarca (aos 12 anos) e dificuldade em engravidar. Índice Obstétrico 1001, parto eutócico aos 28 anos. Há um ano operada a teratoma ovárico benigno. Faz a sua vigilância ginecológica anual na Privada, uma vez que possui sub-sistema de saúde. Fumadora de aproximadamente 10 UMA. Possui uma alimentação variada e equilibrada, praticando uma actividade física regular (caminha várias horas por dia). Dos antecedentes familiares é relevante a história de diabetes Mellitus tipo 2 no pai, desde os 34 anos de idade, tendo falecido aos 60 anos por “morte súbita” (sic). Ao exame físico apresentava-se eupneica, coloração normal da pele e mucosas, algum hirsutismo, auscultação cardio-pulmonar sem alterações, sem sopros abdominais tensão arterial (TA) de 200/110 mmHg e índice tornozelobraço normal. Dos dados antropométricos de salientar um índice de massa corporal de 35 kg/m2, perímetro abdominal de 109 cm e índice cintura-anca de 1,04. Admitiu-se Hipertensão Arterial (HTA) iatrogénica pelo que se suspendeu a contracepção hormonal, tendo sido proposto método contraceptivo alternativo. Recomendou-se redução da ingestão de sal. Foi referenciada a consulta de nutrição para correcção da dieta e perda ponderal. Foram requisitados exames complementares de diagnóstico (ECD) para despiste de causas secundárias HTA e sinais de lesão de órgão alvo (nomeadamente rotinas analíticas, perfil lipídico, ionograma, função tiroideia, doseamento ácido vanilmandélico, cortisol e catecolaminas, microalbumiúria, ecografia renal, electrocardiograma (ECG) e ecocardiograma). Quatro dias depois (11 de Abril) veio à consulta de Planeamento Familiar para colocação de dispositivo intrauterino (Multiload 375®). Ao exame objectivo apresentava TA 180/100mmHg. Trouxe alguns resultados analíticos: glicemia jejum 148mg/dl; Colesterol total 162mg/dl; LDL-C 65mg/dl; HDL-C 46mg/dl; Triglicerideos 234mg/ dl. Prescreveu-se lisinopril 20 mg, hidroclorotizida 12,5mg e fenofibrato 200mg. Pedida nova glicemia de jejum e hemoglobina glicosilada (HbA1c). Cláudia Soares Interna do 2º ano do Internato Complementar de Medicina Geral e Familiar (MGF); Agrupamento de Centros de Saúde de Setúbal e Palmela - Centro de Saúde de Palmela. Orientadora de formação: Dra. Susete Polónia; Chefe de Serviço de Medicina Geral e Familiar do Agrupamento de Centros de Saúde de Setúbal e Palmela – Centro de Saúde de Palmela; Orientadora de Formação. Directora do Internato de MGF Setúbal Sul: Dra. Ana Sustelo; Assistente Graduada de Medicina Geral e Familiar. Resumo do artigo Este caso, tão comum em MGF, foi escolhido essencialmente por três motivos: 1. Tratar-se de uma utente relativamente jovem, aparentemente saudável, assintomática até à data do recurso à nossa consulta e fortemente motivada para o tratamento; 2. Reunir múltiplos factores de risco silenciosos; 3. Encontrar-se numa fase de estudo etiológico, permitindo à plateia a que se destinava (Grupo de Estudo de Risco Cardiovascular) a discussão do diagnóstico diferencial e das opções terapêuticas. 48 Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 48-49 “As doentes com SOPQ devem ser cuidadosamente avaliadas em relação à resistência à insulina e à síndrome metabólica, pois estas doenças estão relacionadas com maior probabilidade de desenvolver alterações vasculares, diabetes, hipertensão arterial e risco cardiovascular aumentado.” A 20 de Abril recorreu à consulta, sem queixas. Ao exame objectivo é de salientar TA 160/96mmHg. Trouxe os restantes resultados dos ECD: Ecografia Renal, ECG e Ecocardiograma sem alterações; Hemograma sem alterações; glicemia jejum 135mg/dl; HbA1c 6,7%; fun­ção renal, tiroideia e hepática normais; PCR 0,7mg/ dl; doseamentos de ácido vanilmandélico, cortisol e cate­ colaminas urinárias normais; microalbuminúria negativa. Aconselhada desabituação tabágica e reforçados conselhos dietéticos. Manteve medicação anteriormente prescrita e associou-se metformina 1000mg duas vezes ao dia. Discussão Resumindo temos uma mulher de 39 anos que associa múltiplos factores de risco, detectados oportunisticamente numa consulta urgente por cefaleias: HTA, diabetes mellitus tipo 2, dislipidémia mista (hipertrigliceridemia com baixo colesterol HDL), obesidade central e fumadora. O cálculo do risco cardiovascular utilizando o SCORE (Systematic Coronary Risk Evaluation) dá-nos um risco, a 10 anos, inferior a 5% de desenvolver doença cardiovascular fatal e pela Equação de Framingham o risco de desenvolver doença coronária cardíaca a 10 anos é de 5%. Nesta doente assentavam-lhe, à partida, múltiplos diagnósticos: HTA iatrogénica ao ACO, HTA secundária ou essencial; Síndrome metabólica; Síndrome do Ovário Poliquístico (SOPQ). A doente preenche os critérios que caracterizam e definem a Síndrome Metabólica (diabetes mellitus tipo 2, HTA, baixo colesterol HDL, hipertrigliceridemia, perímetro abdominal de 105cm). Os critérios actuais para o diagnóstico da SOPQ são: 1. História de oligomenorreia; 2. Sinais clínicos ou laboratoriais de hiperandrogenismo; 3. Ovários poliquísticos na ecografia pélvica (Quadro I). O diagnóstico é estabelecido quando estão presentes pelo menos 2 dos 3 critérios. Esta paciente apresenta antecedentes de infertilidade, oligomenorreia, hirsutismo e obesidade andróide, que estão incluídos no primeiro e segundo critérios, sendo portanto estabelecido o diagnóstico clínico de SOPQ. Quadro I Critérios para o diagnóstico de Síndrome do Ovário Poliquístico (SOPQ) 1. História de oligomenorreia; 2. Sinais clínicos ou laboratoriais de hiperandrogenismo; 3. Ovários poliquísticos na ecografia pélvica. As doentes com SOPQ devem ser cuidadosamente avaliadas em relação à resistência à insulina e à síndrome metabólica, pois estas doenças estão relacionadas com maior probabilidade de desenvolver alterações vasculares, diabetes, hipertensão arterial e risco cardiovascular aumentado. O tratamento de eleição é um anovulatório, que neste caso não deve ser utilizado pelo efeito deletério no perfil lipídico e parede arterial. Têm sido propostos outros tratamentos, nomeadamente a metformina, por combater a insulino-resistência, e a espironolactona pelo seu efeito antiandrogénico. Poder-se-iam levantar ainda duas questões: Interesse de uma estatina apesar do colesterol total normal? Introdução de uma dose baixa de aspirina? Segundo as últimas orientações da Sociedade Europeia de Cardiologia os doentes hipertensos sem doença cardiovascular, mas com elevado risco, devem fazer tratamento com estatina, mesmo se os valores de colesterol total e LDL não estiverem aumentados, apenas se o risco de evento cardiovascular a 10 anos for superior a 20%. Uma dose baixa de aspirina deve ser considerada em doentes hipertensos, sem história de doença cardiovascular, se idade superior a 50 anos, aumento ligeiro creatinina sérica ou com elevado risco cardiovascular. Em Medicina Geral e Familiar o plano de acção deve integrar as guidelines internacionais mas também os factores inerentes ao próprio doente, usando o conhecimento e confiança da relação estabelecida nos contactos repetidos. Cláudia Soares 49