112 J Bras Nefrol 2003;25(2):112-6 Relato de caso: Oxalose A case report: Oxalosis Ana Cristina Simões e Silva e Flávia Mara Ulhôa Silva Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil Hiperoxalúria primária. Lactentes. Insuficiência renal. Nefrocalcinose. Primary hyperoxaluria. Infants. Renal failure. Nephrocalcinosis. Resumo Neste artigo é relatado um provável caso de hiperoxalúria primária tipo 1 que evoluiu precocemente para insuficiência renal crônica (IRC) terminal, com o objetivo de chamar atenção para uma enfermidade rara que exige tratamento agressivo e precoce. O paciente iniciou sintomatologia aos dois meses, com diarréia associada a aumento de escórias, anemia, edema, hipertensão arterial, distúrbios metabólicos e descompensação hemodinâmica, necessitando de diálise peritoneal. A propedêutica revelou nefrocalcinose e depósitos de cristais de oxalato de cálcio no parênquima renal, estabelecendo-se o diagnóstico de oxalose. Evoluiu com IRC, episódios de peritonite, desnutrição e atraso no desenvolvimento. Foi tentado o uso de piridoxina, sem sucesso. Está atualmente em diálise peritoneal ambulatorial contínua. O tratamento definitivo da oxalose consiste no transplante hepatorrenal, realizado o mais precocemente possível. Sendo assim, tal conhecimento por parte dos nefrologistas é relevante para o diagnóstico etiológico de IRC na infância. Abstract It is reported a probable case of hyperoxaluria type 1 (PH1) with early progression to endstage renal disease (ESRD) aiming at calling attention to a rare disease that demands aggressive and prompt treatment. The onset of symptoms was at the age of 2 months, with diarrhea associated to increased nitrogen wastes, anemia, edema, arterial hypertension, metabolic disorders and hemodynamic imbalance that required peritoneal dialysis. The complementary investigation revealed nephrocalcinosis and deposits of calcium oxalate crystals in renal tissue, establishing the diagnosis of oxalosis. The patient developed ESRD, episodes of peritoneal infections, malnutrition and failure to thrive. Treatment with pyridoxine was unsuccessful. At the moment, the patient is under continuous peritoneal dialysis. The definitive treatment of oxalosis consists of hepatorenal transplantation at early stages. Thus, this knowledge is important for nephrologists in order to determine possible etiology of ESRD during childhood. Oxalose - Silva ACS & Silva FMU J Bras Nefrol 2003;25(2):112-6 I n t r o d u ç ã o As hiperoxalúrias primárias são condições clínicas raras caracterizadas pela superprodução e acúmulo de oxalato em diferentes órgãos1-3 sobretudo nos rins. Suas formas primárias podem ser divididas em: Hiperoxaluria primária tipo 1 (HP1), defeito genético autossômico recessivo causado pela deficiência da enzima alanina, glioxilato aminotransferase (AGAT);3-6 Hiperoxalúria primária tipo 2, deficiência da enzima desidrogenase Dglicerato;3,6,7 e Hiperoxalúria primária tipo 3, defeito enzimático não definido.6 A HP1 é um erro inato do metabolismo dos peroxissomos hepáticos secundário à deficiência de AGAT1,2,4,6 (Figura 1). Tal deficiência reduz a transaminação do glioxilato à glicina, com aumento dos níveis de oxalato, que é um produto final de baixa solubilidade.6 Como a excreção de oxalato ocorre nos rins, seu acúmulo leva à formação de cristais de oxalato de cálcio. A apresentação clínica da HP1 pode variar desde nefrolitíase na idade adulta, até insuficiência renal crônica terminal (IRC) em lactentes. O oxalato também 10 3 - Hidroxipiruvato D - glicerato 4 Alanina 9 L - glicerato Piruvato Serina Etanolamina Alanina Piruvato AGAT 8 1 Glicoaldeído 2 2 - Oxo glutarato Glutamato 6 Glicina Glioxilato Gliocolato 7 3 4 5 Hidroxiprolina Ascorbato OXALATO 1= Alanina: Glioxilato Aminotransferase (AGAT), peroxissomal; 2= Glutamato:Glioxilato Aminotransferase, citossólica e mitocondrial; 3= D-Aminoácido Oxidase; 4= Lactato Desidrogenase, citossólica; 5= Glioxalato Oxidase; 6= Glicolato Oxidase, peroxissomal; 7= Glioxalato Redutase, citossólica; 8= Serina-Hidroximetiltransferase, citossólica; 9= Alanina: 3Hidroxipiruvato Aminotransferase, citossólica; 10= D-Glicerato Desidrogenase, citossólica. Figura 1 - Vias enzimáticas envolvidas no metabolismo do oxalato. 113 pode depositar-se em outros tecidos, incluindo ossos, medula óssea, olhos, nervos, artérias e coração, caracterizando uma condição clínica denominada oxalose, quando há deficiência da função renal.4,8 Neste artigo é relatado um caso de HP1, com o objetivo de mostrar uma doença que, embora rara, pode determinar IRC em lactentes jovens. Relato de caso Trata-se de lactente, do sexo masculino, pesando 2950 g e medindo 46 cm, internado aos dois meses com diarréia aguda, desidratação e acidose metabólica, evoluindo para insuficiência renal, anemia, edema generalizado, hipertensão arterial (160 x 110 mmHg) e distúrbios hidroeletrolíticos. Na história familiar há consangüinidade dos pais, tios com nefrolitíase e tia falecida com IRC. A ultrassonografia renal foi sugestiva de nefrocalcinose. Após duas semanas, foi transferido para o Hospital das Clínicas, devido ao surgimento de edema agudo de pulmão, necessitando de ventilação mecânica, uso de aminas e diálise peritoneal (DP). Evoluiu com aumento persistente de escórias (creatinina =7 mg/ dL), hipoalbuminemia (1,6 mg/ dL) e peritonite. Durante a internação, foi mantido em DP, apresentou hipocalcemia acentuada e refratária (Ca+2 iônico =0,57 mmol/L) e hipertensão arterial de difícil controle, necessitando da associação de nifedipina, captopril e minoxidil. Apresentou várias intercorrências como peritonites, hipervolemia e crises convulsivas tônico-clônicas generalizadas, secundárias a distúrbios metabólicos. A tomografia computadorizada de crânio mostrou atrofia cerebral difusa e o eletroencefalograma, ausência de alterações. Foram levantadas as hipóteses de Síndrome de Bartter neonatal, Síndrome de Lowe e Oxalose, sendo realizados cariótipo (46XY), dosagem de eletrólitos urinários (relação Ca+2/ creatinina na urina =0,37) e biópsia renal. O exame anatomopatológico mostrou numerosas incrustações cristalóides no lúmen e parede tubulares com padrão morfológico em luz polarizada compatível com cristais de oxalato, confirmando a suspeita de oxalose (Figura 2). Além da nefropatia, foram observadas alterações das enzimas hepáticas (gama glutamiltransferase =935 mg/dl, transaminase glutâmico pirúvica =85 U/L) e doença óssea (fosfatase alcalina =1029 U/L e paratormônio =321 pg/ml). Iniciou-se, então, o uso de piridoxina, porém sem sucesso. Atualmente, permanece em uso de hipotensores, polivitamínicos, reposição de eletrólitos e diálise peritoneal ambulatorial contínua. 114 J Bras Nefrol 2003;25(2):112-6 Figura 2 - Fragmentos do parênquima renal biopsiado, mostrando incrustações cristalóides na luz e parede tubulares com padrão morfológico em luz polarizada compatível com cristais de oxalato e nefroesclerose vascular hialina. D i s c u s s ã o A incidência de oxalose é desconhecida em nosso meio e difícil de ser estimada nos países desenvolvidos. Cochat et al9 (1995) relataram que a incidência média da doença foi de 1:120.000 nascidos vivos na França. Em nosso meio, existem limitações para se estabelecer um diagnóstico de certeza de HP1. No entanto, podemos utilizar metodologias alternativas tais como exames de imagem, estudos anátomo-patológicos, permitindo o diagnóstico presuntivo e início da abordagem terapêutica. Cochat et al10 publicaram um estudo multicêntrico que comparou características clínicas e epidemiológicas da doença em países desenvolvidos e em desenvolvimento, verificando diferenças marcantes quanto ao manuseio de pacientes com oxalose.10 Obviamente, existe maior facilidade de acesso tanto a métodos de diagnóstico precoce, assim como ao tratamento definitivo da doença, nos países do primeiro mundo.10 Porém, apesar das dificuldades, em nosso país há centros avançados em transplante renal, que Oxalose - Silva ACS & Silva FMU possibilitam uma melhor abordagem para casos de HP1 precocemente diagnosticados. A HP1 pode-se manifestar através de sintomatologia variada. Cochat & Basmaison2 dividiram a doença em três formas de apresentação clínica: uma forma rara que surge em lactentes associada à nefrocalcinose precoce com rápido desenvolvimento para IRC; outra que ocorre tardiamente na idade adulta e se manifesta através de episódios de nefrolitíase; a forma mais freqüente de apresentação que está relacionada à nefrolitíase recorrente e falência renal progressiva na infância ou adolescência. É interessante observar que o caso descrito caracteriza a forma mais rara e grave da doença, apresentando nefrocalcinose e evoluindo rapidamente para IRC. Além disso, Byrd & Latta3 relatam que os primeiros sinais e sintomas da doença ocorrem antes dos cinco anos de idade em 50% dos pacientes, incluindo infecções urinárias e déficit de crescimento associado a IRC em 14% dos casos. É interessante ressaltar que distúrbios metabólicos, convulsões, anemia, vômitos e diarréia são achados relativamente raros, embora apareçam nos lactentes que exibem formas graves,3 como observado no caso relatado. A urolitíase é considerada a característica mais marcante da doença, consistindo desde cálculos esporádicos até o desenvolvimento precoce de nefrocalcinose, que, freqüentemente, é o primeiro indício do diagnóstico.3,10 O paciente estudado exibia nefrocalcinose, confirmada pela ultrassonografia renal. A IRC ocorre na grande maioria dos casos, variando, contudo, sua época de aparecimento.3,4,8 Após comprometimento da função renal, sobrevém a deposição de oxalato em outros órgãos, caracterizando a oxalose, como aqui mostrado.3,4,8 Com relação às manifestações extra-renais, os ossos são precoce e predominantemente acometidos devido ao aumento das áreas de reabsorção com prejuízo a sua formação.3,6 O paciente apresentava nítidas alterações laboratoriais compatíveis com doença óssea. Podem ocorrer também alterações cardíacas, neurais, articulares, vasculares, cutâneas, de tecidos moles e retinianas.6,8 Sendo assim, fica evidente que tal enfermidade é pleomórfica, tanto em relação a sua gravidade, quanto ao quadro clínico, dificultando, muitas vezes, a suspeita diagnóstica. Quanto ao diagnóstico, considera-se como padrão-ouro a detecção de diminuição ou ausência de atividade da AGAT ou a determinação de mutações através da análise de DNA.3,4 No entanto, tal prope- Oxalose - Silva ACS & Silva FMU dêutica é bastante onerosa e de difícil acesso em nosso meio. Cochat et al10 chamam atenção para o fato de que nos países em desenvolvimento, o diagnóstico da doença se baseia em métodos menos específicos, tais como ultrassonografia e biópsia renal, coincidindo com o que ocorreu no caso relatado. Esses achados devem sempre ser correlacionados à história familiar. A abordagem terapêutica da oxalose é complexa, podendo ser dividida em duas etapas. Primeiramente, procura-se inibir a formação de cristais de oxalato de cálcio e/ou evitar sua precipitação. Essas medidas são transitórias, mostrando-se, geralmente, incapazes em evitar a progressão para falência renal. Cochat & Basmaison2 sugerem que seja iniciado tratamento precoce, mesmo antes do diagnóstico de certeza, diante de suspeita clínica da doença ou em casos que apresentem história familiar positiva. Essa abordagem deve incluir aumento da ingestão hídrica, uso de piridoxina e de inibidores da cristalização do oxalato de cálcio tais como citrato, fosfato e magnésio.1,2,6,8,10 A piridoxina é um co-fator da AGAT que atua reduzindo a produção endógena de oxalato.2,6,8 Existe ampla variação na dose recomendada. Recentemente, após o 5o Workshop em hiperoxalúria primária,11 estabeleceu-se como dose de 3 a 5 mg/Kg, podendo ser aumentada até 15 mg/Kg, obtendo-se resposta clínica em 10% a 40% dos casos. Este paciente continua usando piridoxina conforme a recomendação atual, embora sem resposta clínica. A segunda etapa do tratamento diz respeito às te- J Bras Nefrol 2003;25(2):112-6 115 rapias de substituição renal. O tratamento definitivo da oxalose mais freqüentemente recomendado é o transplante concomitante de rim e fígado.2,3,6,8,12-14 A diálise, independente da modalidade utilizada, não é capaz de remover satisfatoriamente o oxalato da corrente sangüínea, consistindo-se apenas em uma medida paliativa nos casos de IRC terminal.2,3,8 A necessidade de transplante hepatorrenal se deve ao fato de haver alta recorrência de doença nos transplantes isolados de rim e uma baixa sobrevida dos pacientes (de 15% a 25% em três anos).12 Além disso, por ser o fígado responsável pela metabolização do glioxilato, sua substituição é o primeiro passo para a reposição terapêutica da AGAT, evitando-se, conseqüentemente, a deposição de oxalato no rim transplantado. Os estudos europeus têm mostrado um claro benefício do transplante hepatorrenal comparado ao transplante isolado do rim,12,14 detectando uma sobrevida de aproximadamente 80% em cinco anos e 70% em dez anos. Por outro lado, Saborio & Scheinnan,15 analisando dados referentes a 280 pacientes nos Estados Unidos, observou uma maior sobrevida naqueles submetidos a transplante renal isolado quando comparada ao tratamento conservador e ao transplante hepatorrenal.15 Concluindo, à semelhança de outros países em desenvolvimento, não há dados referentes ao número de casos transplantados em nosso meio. Como já mencionado, o diagnóstico só é feito em um número limitado de pacientes. Diante disso, torna-se importante um conhecimento desta enfermidade por parte dos nefrologistas que se deparam com tais casos. R e f e r ê n c i a s 1. Barratt TM, Danpure CJ. Hyperoxaluria. In: Barrat TM, Avner ED, Harmon WE, editors. Pediatric nephrology. 4th ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins; 1999. p. 609-19. 2. Cochat P, Basmaison O. Current aproaches to the management of primary hyperoxaluia. Arch Dis Child 2000;82:470-3. 3. Byrd DJ, Latta K. Hyperoxaluria. In: Blaw N, Duran M, Blaskovics ME, editors. 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