R esumo - Fapese

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Revista da Fapese, v.4, n. 1, p. 33-40, jan./jun. 2008
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Niilismo Oriental e Cristianismo: Reflexões a partir
do Pensamento de Keiji Nishitani
R e s u m o
Cícero Cunha Bezerra*
E
ste ensaio tem como objetivo pensar a relação existente entre
o Zen Budismo e o Cristianismo a partir dos conceitos de Kénosis
(nadificação) e Sunyata (vacuidade) presentes na obra A reli-
gião e o nada de K. Nishitani. De modo geral, o que proponho é
uma aproximação entre a tradição oriental zen budista e a experi-
ência primitiva cristã da vida como abertura e vazio, simbolicamente representada na figura de Cristo. K. Nishitani, último diri-
gente da renomada Escola de Kioto, estudou Filosofia na Alemanha
e publicou diversos trabalhos que formam uma obra exemplar quan-
do tratamos da harmonia entre a Filosofia ocidental e o pensamento budista.
PALAVRAS-CHAVE: Niilismo; Zen; Cristianismo; Vazio.
*
Doutor em Filosofia pela Universidade de Salamanca/Espanha. Professor
Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.
Email: [email protected]
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Cícero Cunha Bezerra
1. Considerações iniciais
A discussão sobre a escola de Kioto requer algumas
advertências. A primeira consiste em sabermos que, se
permanecemos na compreensão de que a Filosofia é
um privilégio exclusivamente do velho mundo europeu, pensamento a meu ver superado, inviabilizamos
qualquer tentativa de aproximação com o pensamento
japonês. A segunda é de ordem teórica, isto é, para os
que aceitam o desafio de entender a Filosofia, feita no
Japão, é preciso, antes de qualquer coisa, tentar compreender, pese os limites impostos pela língua, a profunda relação, mas não identificação, entre o pensamento filosófico produzido pelos pensadores de Kioto e o
conteúdo religioso que perfaz a reflexão dos seus textos.
Com isso quero dizer que, embora os três grandes
representantes da escola de Kioto (Nishida, Tanabe e
Nishitani) sejam budistas, o fim das suas reflexões não
é o budismo em si, ou seja, não estamos frente a um
pensamento apologético nem conflitivo entre Religião e
Filosofia. Ao contrário, pelo fato de não existir dicotomia
entre o conteúdo religioso e o filosófico, a vida, mas
que a teoria, é o fim último de todo pensar.
xões elaboradas nos últimos anos, a escola de Kioto se
define por um corpo crítico, sistematizado, copilado e
transmitido que teve sua raiz no budismo Kukai do
século IX (Heising, 2002, p. 30). Cumpre dizer que,
embora o conhecimento ocidental sobre o pensamento japonês seja bastante limitado, o inverso não é verdadeiro. O Japão desde 1859, com a abertura ao Ocidente, manteve seu projeto de interesse pelas artes,
Filosofia e pela cultura ocidental como um todo. O
intercambio entre professores europeus fortaleceu os
laços e o diálogo entre esses dois mundos. A interação
entre o pensamento filosófico ocidental e japonês teve
tanta importância que foi necessário criar um vocabulário novo, uma escritura nova, aproximando-se da tradição oriental que, paradoxalmente, como observa J.
Heising os textos se tornaram mais acessível para um
leitor ocidental que para um japonês (Ibidem, p. 42).
Voltando ao nosso tema, Nishida Kitarô, o primeiro
a propor uma contribuição oriental à tradição filosófica
ocidental, submeteu o budismo aos rigores da Filosofia
e compreendeu que Filosofia não começa por “saber”
coisas através de uma lógica objetiva, mas por “conhecer” coisas através de uma experiência “imediata” ou
“pura”. Por outro lado, a Filosofia também não finda na
inefabilidade da experiência imediata, mas, a partir desta,
tenta expressar, de maneira mais clara possível, a estrutura da realidade, o lugar e a ação humana dentro dela
(Heising, 1999, p. 1). Mestre tradicional do Rinzai Zen1,
Nishida jamais saiu do Japão, no entanto, estimulou
seus discípulos a estudarem na Alemanha com E.
Husserl, Cohen, Natorp e Heidegger.
Neste sentido, a escola de Kioto pode ser pensada
como um marco decisivo na história das idéias. As
reflexões aportadas por Nishida Kitarô (1870-1945),
Tanabe Hajime (1885-1962) e Keiji Nishitani (1900-1990)
mudaram radicalmente os estudos filosóficos e têm
muito a contribuir para uma reflexão no campo da
Filosofia e das Ciências da Religião. Surgida como
escola em 1932, o pensamento filosófico produzido
em Kioto permaneceu, por questões políticas durante
o pós-guerra, na escuridão até os anos setenta. Graças
a inúmeros teólogos, filósofos, artistas e músicos como,
por exemplo, J.Cage, a Filosofia de Kioto assumiu uma
nova força nos últimos tempos.
Por um lado, Tanabe, discípulo de Nishida,
aprofundou seus estudos na lógica e na dialética de
Hegel e, por outro, Nishitani se debruçou no pensamento cristão, principalmente, na leitura dos místicos
e existencialistas europeus.
Por que podemos falar com segurança de uma escola filosófica japonesa? Além das profundas refle-
Como disse anteriormente, os filósofos de Kioto
não aceitam a distinção entre Filosofia e Religião jus-
1
A escola Rinzai forma junto com a Soto Zen as duas grandes vertentes do Zen budismo japonês. Introduzida por no Japão
por Eisai (1141-1215), o Rinzai zen passou a ser praticado pelo samurais e se popularizou rapidamente graças a sua
austeridade e força contemplativa.
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tamente pelo fato de que, no budismo, a Filosofia não
é nem especulação nem contemplação metafísica, mas,
como bem observa J. Heising, uma metanoia, uma conversão dentro do pensamento reflexivo que aponta para
um regresso ao verdadeiro eu, ou como diria Suzuki,
ao não-eu (an·tman)2.
O problema posto pelos filósofos japoneses de
Kioto consiste, precisamente, em reconstruir, de modo
satisfatório, um pensamento capaz de resgatar idéias
que foram usurpadas pelos modelos ocidentais sem
cair na trama do budismo em si. No fundo estamos
próximos de uma concepção, cara aos gregos, de que:
se um pensamento não muda o modo de ver as coisas
da vida não é um pensar no sentido pleno da palavra
(Heising, 2002, p. 38).
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Durante oito anos se dedica a ensinar Filosofia em
escolas públicas e traduz obras de pensadores como a
de Schelling (ensaio sobre a liberdade humana e a Filosofia e a religião), além de publicar diversos trabalhos
sobre a estética de Kant, sobre o idealismo e sobre Plotino.
Escreveu uma história da mística que o converteu em
professor assistente da Escola de Kioto. Publicou durante dois anos obras sobre Aristóteles e W. Dilthey.
Um fato extremamente curioso é que nenhum pensador da escola de Kioto confessou a sua crença em
um ser divino. Contrariamente ao pensamento ontoteo-logico ocidental, os filósofos de Kioto falam de
Deus, mas não da Idéia de um Deus, nem como realidade metafísica, nem ontológica objetiva, nem ficção
subjetiva. Deus, mais que um ser ou substância, é uma
imagem para referir-se a uma experiência da consciência com a realidade (Ibidem, p. 40).
Ao contrário de outros membros da Escola,
Nishitani só se dedicou ao Zen em 1936 graças ao
contato e influência de Daisetz Teitaro Suzuki. O contato com o Zen o fez perceber aquilo que ele mesmo
classifica de experiência direta. Foi neste período que
recebeu o nome laico de Keisei “a voz do rio do vale”.
Aos 37 anos, recebeu uma bolsa de estudos para desenvolver pesquisa em Paris com H. Bérgson, no entanto, pela debilidade física de Bérgson, o encontro
não se realizou e Nishitani partiu para Freiburg onde
manteve contato, durante dois anos, com Martin
Heidegger. Durante sua permanência na Alemanha
publicou e expôs uma conferência, em alemão, sobre
a relação entre a obra assim falou Zaratustra de
Nietzsche e o pensamento de M. Eckhart. Com a explosão da segunda guerra mundial foi obrigado a
retornar ao Japão.
2. Nishitani : “a voz do rio do vale”
2.1 O PENSAR A PARTIR DA VACUIDADE
Nishitani nasceu em 27 de fevereiro de 1900 e
desde jovem lia obras de Dostoievski, Nietzsche, São
Francisco de Assis e a Bíblia. Seu futuro estava divido em três projetos: estudar Direito na universidade Imperial de Tókio, ingressar no estudo da Filosofia em Kioto ou ser monge Zen. Movido por uma
questão, que ele mesmo define como sendo de vida
ou de morte, optou pela Filosofia e passou a estudar sob a orientação de Nishida com quem desenvolveu um profundo trabalho de graduação sobre
Schelling.
Antes de adentramos no tema do niilismo em K.
Nishitani, cumpre fazer um breve intróito ao conceito
de Niilismo. Niilismo do latim nihil (nada) pode ser
definido como incerteza e precariedade da situação do
homem contemporâneo que, como nos observa F. Volpi,
“lembra a um andarilho que há muito caminha numa
área congelada e, de repente, com o degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil
pedaços. Rompido a estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se difícil prosseguir o caminho” (Volpi, 1999, p. 7).
2
Sobre o sentido originário do Zen ver: SUZUKI, S. Zen Mind, Beginner’s Mind, trad. Odete Lara, São Paulo: Palas Atena,
1994
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De modo que nihil, no sentido que aqui me interessa, significa perda de sentido de toda e qualquer
fundamentação. Este diagnóstico presente, já na reflexão que marca o início do idealismo alemão, assume
sua força na Literatura, Arte e Filosofia, principalmente, nietzscheana. Niilismo passa a ser sinônimo para
falta de finalidade. A pergunta pelo sentido ou do “para
quê?” carece de resposta (Ibidem, p. 9). No entanto, se
Nietzsche serve de referência para o tema do niilismo,
não devemos esquecer que esta idéia tem origem anterior. A mística medieval, Dionísio Pseudo Areopagita
e M. Eckhart, para citar somente alguns nomes, pode
ser caracterizada, inegavelmente, como a primeira manifestação, no pensamento ocidental, de uma reflexão
que ousou pensar a realidade a partir do nihil como
“fundamento-sem-fundo”.
Dada à natureza desta nossa reflexão, fico somente
com uma idéia sobre o niilismo: niilismo é sinônimo
de “esvaziamento dos valores supremos”.
Deste modo, como podemos pensar, a partir de
Nishitani, em um diálogo entre o pensamento filosófico ocidental e a tradição oriental? Se for correto que a
Filosofia ocidental se estrutura a partir de um pensamento iniciado com os gregos de que o ser é razão que
culmina na dúvida hiperbólica cartesiana, para
Nishitani, o processo segue uma “lógica” inversa, isto
é, a Filosofia deve nascer justamente da certeza da
impotência e desesperação niilista sobre a condição
humana, passar à dúvida e só então ascender à contemplação da vacuidade (Heising, 2002, p. 242).
É importante observar que o pensamento de
Nishitani está profundamente marcado pela sua decepção frente à Filosofia acadêmica, bem como, ao seu
tempo. Para o filósofo de Kioto, a perda de identidade
de muitos intelectuais japoneses somada ao mal estar
generalizado pela carência de uma Filosofia genuína e
3
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menos fragmentada, característica do pós-guerra, consumou-se na completa degradação espiritual. Neste seu
percurso crítico foram decisivas as leituras de
Nietzsche e Dostoievski.
Para Nishitani, a Filosofia nasce da desesperação
niilista da condição humana. Um fato importante que
o aproxima profundamente de Nietzsche é que seu
interesse pelo niilismo, mais que uma maneira de se
aprofundar no “sem sentido,” teve um aspecto radicalmente positivo, isto é, confrontar as respostas religiosas ou éticas com o “sem sentido” e eliminá-las. Dito
de outro modo, superar o niilismo atravessando seu
centro3. E qual seria a expressão máxima deste centro?
Ora, se o niilismo assume sua forma mais radical no
cristianismo,para Nishitani, não seria “no cristianismo”, mas na Religião. E o que seria Religião?
3. A experiência religiosa como despertar
Nishitani define a Religião como: “o despertar de
uma subjetividade originária”. Subjetividade entendida como “eu”, como “si mesmo” ou “mesmidade”. É
importante observar que ele usa a expressão “originária” e não “fundamental”. Isto é, a experiência religiosa, para Nishitani, não possui nenhum fundamento.
É sem fundamento. Na obra publicada em 1937 cujo
título é A religião, a historia e a cultura, Nishitani
aborda o problema da religião a partir do conceito do
“nada absoluto” que implica na negação do ego e de
toda egolatria que caracteriza a humanidade e seu
antropocentrismo.
A subjetividade originária que se manifesta como o
sem ego está muito próximo daquilo que os místicos
medievais nomearam de fundo-sem-fundo da alma4.
De maneira que esta visão da subjetividade, pautada
numa ausência de fundamento, é chave para uma nova
Sobre a necessidade de superação do niilismo via seu próprio centro, ver: VATTIMO, G. Dopo la cristianità, per um
cristianesimo non religioso. Roma: Garzanti, 2002.
Mestre Eckhart no seu poema Granum sinapis diz: Oh, alma minha, sai fora, Deus entra! Submerge todo meu ser no
nada de Deus. Submerge no caudal sem fundo! Cf. ECKHART, M. El fruto de la nada, trad. Amador Veja, Madrid:
Siruela, 1998, p. 142.
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Niilismo Oriental e Cristianismo
compreensão do homem e da vida em que categorias
como liberdade e dependência, bem e mal, racional e
irracional não são aplicáveis. E o que é mais importante, nem tão pouco são aplicáveis categorias ordinárias da fé religiosa (Heising, 2002, p. 247).
Cumpre dizer que esta vida, ao contrário do que
comumente se entende, não está em um além mundo,
mas se encontra no que K. Nishitani chama de “outra
margem” deste mesmo mundo. Esta idéia, absorvida
do seu mestre Nishida, aponta para uma “prática pura”
que se revela no profundo amor pela vida mesma. Infinitamente longe de toda religião e de todo ego, o homem encontra uma nova “face de deus” totalmente
outra. Em uma das mais difíceis e importantes definições dadas por Nishitani lemos que:
“A mesmidade absoluta, descrita em termos
de “nem eu nem outro”, é o si mesmo do
homem cuja “pele e ossos se uniram”, sua
consciência real e sua existência pessoal com
suas atividades vivas. No entanto, ao mesmo tempo, é sempre extático no centro de
todas essas atividades (...) Em cada momento da atividade humana é absolutamente
morte-em-na-vida, vida-em-na-morte; serem-no-nada, nada-em-no-ser absolutamente” (Nishitani, 1999, 126).
É importante observar que, para Nishitani, ao contrário do pensamento japonês, o pensamento filosófico ocidental ousou assumir e criticar radicalmente o
niilismo. Frente à falta de sentido, pensada particularmente em Nietzsche, a Filosofia ocidental propôs uma
saída criativa como superação. Uma saída que tem como
princípio e fim a própria vida. Uma experiência da
transcendência que não se perde na negatividade de
um além mundo. O niilismo oriental, ao contrário,
absorveu a tecnologia e as estruturas sociais do mundo moderno e se converteu numa niilidade negativa e
vazia.
K. Nishitani ver neste processo de “nadificação” a
perda de todos os elementos espirituais formulados
pelo budismo e confucionismo. Por isso, postula a
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necessidade de um retorno à tradição. Tradição entendida como experiência capaz de construir um futuro
melhor e não simplesmente como passado. Finalmente, a superação do niilismo, via o espiritual, implica
uma nova experiência da religião. Necessidade de uma
nova experiência da religião quer dizer, uma vivencia
religiosa diferente dos sistemas clássicos do século
XIX baseado em algo imanente ao individuo como a
razão, intuição ou sentimento (Ibidem, p. 51).
Essa nova experiência reside, no caso do pensamento japonês, no Zen e sua concepção da “Grande
dúvida” como espelho concreto da “niilidade”. O nada
é mais real do que eu ou o mundo a que pertenço. Diz
Nishitani: “ A pessoa é constituída unissonamente com
o nada absoluto como aquilo em que o nada absoluto
se manifesta; é atualizado como uma Forma sem Forma” (Ibidem, p. 122). Esta compreensão não se enquadra em ato de fé, mas implica um despertar não
subjetivo para a vacuidade absoluta (sunyata) em que,
como vimos anteriormente, o eu se manifesta como
não-eu e o mundo como não-mundo (Ibidem, p. 126).
Estamos, portanto, frente a um pensamento em que
a dicotomia sujeito/objeto se revela como ilusória
(prajna) frente à vacuidade que é nossa própria
“mesmidade”. A superação entre mundo fenomênico
e nooumênico pode ser expressa do seguinte modo:
quando as aves voam e os peixes nadam, quando o
fogo queima e a água lava, não fazem como um passatempo, mas sendo o que são. Do mesmo modo a mente, sendo o que é, é despertada (Samadhi). O despertar para o mundo ou o ir “para a outra margem” é
imagem de uma compreensão da realidade que permite que a coisa seja o que é e a fixa no seu próprio
terreno, ou seja, em si mesmo, e isto é pertencer ao
todo.
Um fato interessante é que Nishitani se interessou, não somente pelos filósofos ocidentais, mas também pela mística e pelo pensamento de Francisco de
Assis. Na obra A religião e o nada o cita como modelo de perfeita unidade. Ao analisar um dado da vida
de Francisco de Assis, que teria sofrido um grave
ferimento em um dos olhos necessitando, para evitar
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a infecção, a aplicação do cautério; Nishitani louva a
postura de desprendimento e entrega assumida pelo
monge. Conta Nishitani que, ferido e tendo que se
submeter ao doloroso tratamento, Francisco de Assis, estando diante de uma tocha de fogo, fez o sinal
da cruz com a finalidade de solicitar o amor de seu
querido irmão fogo e sorriu enquanto o médico queimava sua face (Ibidem, p. 352). Este amor, de Francisco de Assis pelo fogo, a quem o chama de “irmão”, teve lugar, segundo Nishitani, ali onde o homem esvaziou-se a si mesmo. Diz ele: “Quando o
médico aplicou o cautério, levando-lhe do lóbulo da
orelha a sobrancelha, são Francisco sorriu suavemente, como uma criança que sente a caricia da mão de
sua mãe” (Ibidem).
Este exemplo, símbolo de resistência, mas principalmente de uma vivência particular difícil de ser compreendida por nós, homens submetidos ao ritmo
avassalador da técnica, representa um perfeito equilíbrio entre o Zen budismo e o cristianismo. Equilíbrio
que se pauta na visão da vida através de um ponto de
vista (vacuidade) que nos liberta de toda a tendência
objetivista. É nesta perspectiva que cristo é pensado
como símbolo de morte e vida. Cristo fala, segundo
Nishitani como uma espada: “Não penseis que vim
trazer paz, eu vim trazer a espada” (Mt. 10,34). Para o
Zen budismo, a espada que mata o homem é a que da
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vida posto que nega o egocentrismo e abre espaço para
a niilidade e a morte espiritual.
Estamos diante de um pensamento que postula o
renascimento de uma concepção de mundo surgida
da negação absoluta (Nada) em que a fé não é, como
diz K. Nishitani, meramente um ato consciente do eu,
mas uma atualização, no interior do eu, da realidade.
Realidade entendida como “outra margem” definida
como sams·ra-no-nirv·na em que morte e vida se desfazem e emerge o verdadeiro eu. É importante ressaltar que o campo da vacuidade é definido pelo nãoego, pela não dualidade do eu e do outro. De modo
que, como diz o próprio Nishitani, antes de cruzar a
“margem” é necessário “levar os outros”. Esta afirmação aponta para a existência de uma compaixão natural baseada no não-ego em que cada coisa entre as
demais é um centro (Nishitani, 1999, p. 329). Para
concluir, cito uma das mais belas passagens da obra A
religião e o nada:
“Se encontrares Buda, mate-o; se encontrares
um patriarca, mate-o; se encontrares um sábio, mate-o; se encontrares seu pai ou sua
mãe, mate-os; se encontrares seus parentes,
mate-os; somente então obterás a libertação e
morarás na completa liberdade emancipadora,
livre de todas as coisas” (Ibidem, p. 329).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Escuela de Kyoto. Barcelona: Helder, 2002.
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Bouso García, Madrid: Siruela, 1999.
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VOLPI, F. Il nichilismo, trad. Aldo Vannucchi, São
Paulo: Loyola, 1999.
ECKHART, M. El fruto de la nada, trad. Amador Veja,
Madrid: Siruela, 1998.
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