Texto - Liceu Albert Sabin

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SUGESTÃO DE LEITURA – Prof. Marcelo Góes
Sociedade drogada
Civilização drogada, sociedade enferma, doentia,
neurótica, psicótica, autodestrutiva. Talvez, quem sabe, a
caminho da implosão. É onde vivemos.
Não é de hoje que desconfio – e parece (ou estou
certo) que muitos outros também – de que esse problema das
drogas nas sociedades modernas está sendo muito mal
entendido e tratado. Todas essas campanhas contra a droga e
seus usuários, com suas ramificações tentaculares pelo
rendoso mercado desse produto – a droga – estão, acredito eu,
resultando inúteis, ou quase. Para cada drogado “curado”(?),
certamente estão surgindo muitos milhares ou mesmo milhões
de novos usuários que entram e aderem à ciranda das drogas.
Palmadas, palmatórias, reprimendas, ficar ajoelhado sobre o
milho no canto da sala de aula, papos compreensivos ou
amigáveis, prisão domiciliar ou não, sermão moral e religião,
psicologia e divã psicanalítico de nada adiantam, nessa altura
dos acontecimentos históricos nacionais e internacionais,
penso eu. A própria campanha contra o fumo (e a próxima, ao
que parece, sobre o álcool e quem sabe, em futuro próximo,
contra o beijo e o sexo) são, em essência, duvidosas na sua
histeria maluca obsessiva – esta última, sim, a “histeria de
massa, de Estado e de empresa” -, uma droga muito perigosa e
ainda não reconhecida de todo.
E não confio muito nas estatísticas e nos diagnósticos
da medicina, tão voláteis e incertos, que ora sustentam uma
coisa, ora outra. O que fazia mal ontem já não faz tanto assim e
o que faz bem hoje é veneno. Cautela com estatísticas e
diagnósticos. E o pior de tudo é que vivemos todos hoje sob o
império da medicalização e da medição estatística, do
nascimento à velhice e à morte.
Bem, é sabido que o homem (ou a “raça humana”, se
preferem) desde sempre fumou, se drogou, se embriagou,
sempre foi supersticioso, místico, exagerado, violento, brutal,
letal, cientista, poeta, artista e sonhador – e tudo ao mesmo
tempo. Tenho, por exemplo, dúvidas se o pai da ciência política
foi mesmo Maquiavel, com O Príncipe, ou Macbeth, do mestre
Shakespeare, consultando as feiticeiras para saber de seu
destino como rei. Aliás, o próprio Maquiavel dizia que os
homens são mais fiéis aos seus preconceitos do que aos seus
princípios... A mente racional não tem esse poder todo que se
imagina.
O fenômeno das drogas como peste ou pandemia é
coisa relativamente recente, fenômeno típico da moderna
sociedade capitalista de massas. A droga hoje, como disse é
uma mercadoria, produto mercadológico – e o mercado,
quanto mais livre e desimpedido for, mais sagrado e
fundamental ele é na economia moderna. Produz tudo para
todos os gostos e necessidades, reais ou inventadas. Na
sociedade consumista, quem não consome não existe. As
pessoas hoje se identificam e avaliam pelo que consomem. E a
cada dia novos produtos são lançados e divulgados com tal
furor por mais sofisticadas tecnologias de comunicação, que se
torna praticamente impossível viver sem eles. Eles nos são
impostos pela propaganda massiva, invasiva e agressiva ou pela
sedução. Quem não entra no jogo torna-se logo um ser
descartável, desprezível, solitário – um extravagante a quem
não se deve dar ouvidos.
As drogas, ao mesmo tempo em que são combatidas –
chamam-se elas crak, maconha, cocaína, morfina, heroína,
ópio, extasy, cigarro e agora a obesidade (que já está sendo
considerada uma droga, com suas anorexias e bulimias) -, são
estimuladas, por outros meios e métodos, por seu mercado
produtor. Combate-se e estimula-se, em uma sociedade que
perdeu o sentido e o horizonte da vida.
Vejam-se, por exemplo, o automóvel e a motocicleta,
hoje verdadeiros ícones e vícios de massa, inteiramente
fetichizados. O mesmo com as top-models, parâmetros
mercadológicos do vestir, do desfilar (leia-se, do caminhar) e da
postura corpórea. Elas dizem: é assim que se veste, é assim que
se anda. A Internet é outra droga potencial ou já efetiva,
apesar de seus supostos benefícios. Netviciados ou internautas
enlouquecidos ou idiotizados proliferam. Todos esses,
automóveis, motocicletas, Internet, top-models, escritórios
modernos, televisões, a Cola-Cola (sic), a Pepsi e o McDonald’s,
tudo isso provoca alucinações, manias e obsessões tão
perigosas e alienantes como o crak, a cocaína e a heroína. Tudo
isso alucina.
A minha conclusão é que a “doença das drogas” é uma
doença de toda a nossa sociedade, somos todos drogados, de
alguma forma. Tudo é droga ou pode se transformar em droga
amanhã, se o mercado antever aí possibilidades de bons
investimentos e lucros. É sabido que o narcotráfico constitui
um dos negócios mais rendosos do mundo. A própria moeda é
uma droga muito perigosa, cuidado! E o futebol é mania a ser
evitada a todo custo. A religião, se bebida em excesso, pode
levar a rumos desconhecidos e perigosos de mau delírio. E a
política é droga falsificada! Ópio do povo, como dizia Marx.
Não sou contra o combate às drogas, em geral. Só
gostaria que percebessem que o seu uso massificado,
imoderado, alucinado, alienante, obsessivo, mercadológico e
ideológico tem raízes mais profundas e mais complexas do que
se costuma pensar e dizer. E isso não se refere às drogas, como
tais, mas também às drogas “travestidas” de sociabilidade de
mercado.
Antigamente, muito antigamente, havia medida,
oportunidade, método e sentido criativo e transcendente no
uso das drogas e então elas eram um fator de coesão e
identidade social, de sonho e libertação. Como dizia Aldous
Huxley, elas eram as “portas da percepção” para um outro
mundo, tão belo e maravilhoso como este que vemos e ao qual
assistimos, mas que está escondido dentro de nós, como uma
rara pedra preciosa.
Somos muito mais do que apenas parecemos ser. É
lamentável que tudo esteja sendo transformado em peste.
(Jarbas Medeiros. Caros Amigos – agosto de 2003, nº 77, p.
26).
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