1 SABOR DE LIBERDADE (excerto de uma palestra) 1

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SABOR DE LIBERDADE
(excerto de uma palestra) 1
Sangharakshita
O que é o Budismo?
O "Budismo" tem sido descrito como: códice ou sistema de éticas, filosofia
oriental, misticismo oriental, via espiritual, tradição... Algumas pessoas, pelo
menos em certas ocasiões, chegaram mesmo a descrevê-lo como uma religião.
Pior ainda, nos últimos cento e tal anos tem sido descrito como Budismo. Antes
disso aquilo a que hoje chamamos Budismo era simplesmente conhecido como
Dharma ou, mais precisamente, como Dharma-Vinaya: o Princípio e a Prática.
Voltando aos primórdios, verificamos que a melhor definição (ou descrição) de
Budismo foi dada pelo próprio Buda. E deu-a sob uma forma figurativa, i.e. mais
sob a forma de imagem do que de conceitos ou ideias abstractas. Buda disse
simplesmente que o Budismo – ou seja: o Dharma-Vinaya – é um oceano, um
grande e poderoso oceano. O Dharma-Vinaya é descrito desta forma num texto
Pali denominado Udana ou "Versos de Reabilitação".
Assim, o Udana conta-nos que numa noite de Lua cheia o Buda estava sentado
tendo à sua volta um grande número de "bhikkhus". Este termo é geralmente
traduzido como "monge", ou "irmão", mas será talvez melhor traduzido por
"participante", por ser o bhikkhu alguém que participa, ou partilha, com o Buda
e seus discípulos, tanto da comida terrena como da vida espiritual. Estava pois o
Buda rodeado de um grande número de "participantes", sentados em completo
silêncio, não uma ou duas horas, mas toda a noite. Não diziam uma palavra. Não
se mexiam, nem assoavam o nariz. Poderá dizer-se que meditavam juntos, mas
talvez que quem alcança aquele estado já não necessite meditar. Simplesmente
senta-se ali – toda a noite. Então, quando a aurora despontou, ocorreu um certo
incidente e foi na sequência desse acontecimento que o Buda descreveu o
Dharma-Vinaya em termos de um "poderoso oceano". Disse que tal como no
1 Nesta tradução encurta-se a palestra de Sangharakshita suprimindo algumas partes,
nomeadamente sete das "estranhas e maravilhosas coisas" descritas no Udana sobre o Dharma e
o oceano. O corte foi feito antes da frase: "Tal como o imenso oceano tem o sabor de sal, também
o Dharma-Vinaya tem um sabor: o sabor de liberdade".
Como é de esperar num texto de palestra, todas as Notas são do Tradutor (Manuel Alfaia).
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oceano há oito estranhas e maravilhosas coisas, também no Dharma-Vinaya há
oito estranhas e maravilhosas coisas, que então descreveu; mas agora vamos
falar duma só:
Tal como todo o imenso oceano tem o sabor de sal, também o
Dharma-Vinaya tem um sabor: o sabor de liberdade.
O que é este "sabor de liberdade"? O que é liberdade? Provavelmente esta
pergunta ocorre-nos ainda mais frequentemente do que a pergunta inicial "O que
é o Budismo"?
No texto original em Pali o termo aqui traduzido como liberdade é vimutti (em
sânscrito seria vimukti) e pode ser traduzido por "libertação", "emancipação" e
também "liberdade". O termo original correspondente a sabor é "rasa", que
significa "sumo", "sabor", "qualidade especial", "cheiro", "condimento", "prazer",
"propriedade essencial", "extracto" e "essência". Voltaremos a este assunto.
O tema da liberdade é geralmente associado a direitos políticos e civis, pelo que
associamos à palavra liberdade um determinado significado. Mas esta noite, ao
falar sobre o "Sabor de Liberdade", não estou interessado no significado habitual
da palavra liberdade no nosso idioma, mas sim no seu significado como um
equivalente provisório do termo Pali. Estou interessado na liberdade com o
sentido de vimutti; não com vimutti no sentido de liberdade.
O que é então vimutti?
Antes de entrar nesta questão quero falar um pouco da descrição do DharmaVinaya feita pelo Buda em analogia com o imenso oceano. Lembram-se que o
Buda diz que há oito estranhas e maravilhosas coisas acerca do imenso oceano e
oito estranhas e maravilhosas coisas acerca do Dharma-Vinaya, como por
exemplo que cada um deles tem um único sabor. Peço a vossa atenção para os
dois adjectivos "estranho" e "maravilhoso".
Em que sentido é o oceano maravilhoso? Recordemos que o Buda viveu e
ensinou no vale do Ganges, a muitas centenas de quilómetros do mar. Tanto
quanto sabemos, nem ele nem a maior parte dos seus discípulos viu alguma vez o
oceano, só o conhecendo de ouvir contar. Constou-lhes que ali existia uma
imensidade de água, maior que o próprio Ganges. Para eles, portanto, o oceano
era algo estranho e desconhecido. Também para nós é estranho o Dharma-
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Vinaya. Podemos mesmo alargar o conceito e dizer que a vida espiritual é
estranha para nós; que o Não-Condicionado nos é estranho, que o
Transcendental nos é estranho. É algo de que só ouvimos falar. Na verdade, o
próprio Buda é estranho para nós. É o estranho por excelência. Veio de outro
mundo, de outra dimensão. Está talvez à nossa porta, mas nós não o
reconhecemos. Mesmo a própria Comunidade Espiritual nos é estranha se não
somos verdadeiros indivíduos, ou não estamos espiritualmente empenhados.
Assim como o imenso oceano é estranho, também o Dharma-Vinaya é estranho.
Em que sentido é maravilhoso o oceano? É maravilhoso na sua imensidão. É
maravilhoso no seu perpétuo movimento. Nunca descansa; nunca pára, nem um
só momento – nem na menor de suas partículas. É maravilhoso na sua
ininterrupta melodia. É maravilhoso nas suas luzes e cores permanentemente
cambiantes: o azul, o verde e o malva; o púrpura e o ouro. É maravilhoso na sua
incomensurável profundidade. E é particularmente maravilhoso quando o vemos
e, pela primeira vez, nele entramos: mergulhamos e movemos os braços e as
pernas e damo-nos conta de que estamos a nadar no imenso oceano – ou pelo
menos a esbracejar.
O mesmo se passa com o Dharma-Vinaya, excepto que este não é simplesmente
imenso, é infinito. O Dharma-Vinaya, o Princípio e a Prática de Buda, é um
oceano sem margens. Não podemos ver-lhe o fim. E não é algo fixo, rígido,
estático, imóvel, inalterável. Pelo contrário, é cheio de vida, movimento. Adaptase continuamente ás necessidades dos seres viventes. O oceano do DharmaVinaya fala-nos continuamente; canta a sua inimitável música, de forma
indescritivelmente atraente e fascinante. E é tão profundo que nunca lhe
alcançamos o fundo. Assim é maravilhoso o Dharma-Vinaya.
Geralmente não pensamos desta forma sobre o Dharma-Vinaya; mas é assim que
ele é verdadeiramente. O Dharma-Vinaya é maravilhoso. O Buda é maravilhoso.
Como diz Matriceta nos seus "Quinhentos Versos de Devoção":
Que firmeza! Que conduta! Que forma!
Quantas virtudes!
Nos atributos de Buda nada há que não seja maravilhoso.
A Comunidade Espiritual é maravilhosa. A vida espiritual é maravilhosa. É
maravilhoso podermos sentar-nos e meditar juntos. É maravilhoso podermos
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viver em comunidades residenciais, podermos trabalhar em projectos baseados
em Trabalho Ético. Assim o Dharma-Vinaya é realmente maravilhoso; estranho e
maravilhoso.
Mas geralmente não o sentimos como tal. Depois de algum tempo começamos a
sentir o Dharma-Vinaya – ou o Budismo – ou a vida espiritual – como algo velho
e familiar, "águas passadas"; uma fase que atravessámos quando éramos novos e
ingénuos. Embora se costume dizer que a familiaridade traz desrespeito, será
talvez mais adequado dizer que a familiaridade gera indiferença. No caso do
Dharma-Vinaya, a familiaridade só gera indiferença se aquilo com que nos
familiarizámos foram as palavras, os conceitos e as formas externas nas quais o
Dharma-Vinaya se expressa, mas não se identifica. Se nos tornarmos familiares
com o espírito do Dharma-Vinaya, ou, ao menos, tivermos uma prova do seu
sabor, logo o apreciaremos como mais e mais maravilhoso. É pois crucial manter
viva esta sensação, este sentido, de que o Dharma-Vinaya é algo maravilhoso.
Segundo Platão a filosofia começa com um sentimento de maravilha.
Na verdade, não há vida espiritual sem um contínuo sentir de maravilha em
relação ao Dharma-Vinaya. Mas podemos ir ainda mais longe. O Udana vai ainda
mais longe. Depois de descrever as oito estranhas e maravilhosas coisas que há
no Dharma-Vinaya, o Buda diz " Assim, há no Dharma-Vinaya oito estranhas e
maravilhosas coisas cuja contemplação vos traz uma e outra vez as delícias deste
Dharma-Vinaya". Por favor focalizem a vossa atenção que verão duas
importantes facetas desta frase:
A primeira é que os participantes, i.e. os seguidores, os discípulos, vêem uma e
outra vez e sem cansaço as maravilhosas e estranhas qualidades do DharmaVinaya. Tal como algumas pessoas vêem repetidas vezes o mesmo filme sem se
enfastiarem, também os participantes vêem, olham, ouvem o Dharma-Vinaya
sem nunca se cansarem. Na verdade, quanto mais vêem e ouvem o DharmaVinaya mais maravilhoso este lhes parece.
A segunda é que os participantes se deliciam uma e outra vez com o DharmaVinaya. O Dharma-Vinaya é não só maravilhoso mas também delicioso. A vida
espiritual é deliciosa. Meditar é delicioso. Residir em comunidades
espirituais é delicioso. Colaborar numa equipe que se dedica a
Trabalho Ético é delicioso. "Jogar tudo por tudo" é delicioso. Não
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racionalizar os nossos erros e falhas é delicioso. É importante
lembrar que, dia após dia, o Dharma-Vinaya é sempre delicioso; que
o Budismo é uma delícia. Parece-me desnecessário ressaltar como
isto é claramente diferente do conceito habitual de religião e de vida
espiritual.
Mas voltemos à liberdade, i.e. liberdade no sentido de vimutti. O que é então
vimutti? Para melhor responder a esta questão teremos de ver qual o lugar
ocupado por vimutti no esquema completo do auto-desenvolvimento espiritual
budista, o qual é constituído por uma série de "nidanas positivos". Cada um
destes nidanas representa uma etapa do desenvolvimento espiritual. Chamamse nidanas ou "elos" porque cada um surge em consequência do que o precede,
provindo da finalização do antecedente.
Assim: em consequência do sofrimento surge fé e devoção; em consequência da
fé e devoção surge satisfação e deleite; em consequência de satisfação e deleite
surge êxtase; em consequência do êxtase surge a tranquilidade; em consequência
da tranquilidade surge a beatitude; em consequência da beatitude surge samadhi
(o qual é geralmente traduzido por "concentração", mas na verdade significa a
completa integração de todas as energias psico-físicas da pessoa); em
consequência de samadhi surge conhecimento e visão das coisas tal como elas
realmente são; em consequência do conhecimento e visão das coisas tal como
elas
realmente
são
surge
desprendimento2;
em
consequência
do
desprendimento surge imparcialidade; em consequência da imparcialidade surge
vimutti; em consequência de vimutti surge conhecimento da destruição dos
conceitos; e ter conhecimento da destruição dos conceitos é equivalente a
Iluminação. Representa o objectivo e consumação de toda a vida espiritual,
assim como a completa superação da vida mundana e, por conseguinte, a
completa realização do Não-Condicionado e do Transcendental.
Podemos desde já observar que vimutti ocupa um lugar muito alto no esquema
completo do desenvolvimento espiritual. É o penúltimo elo, a penúltima etapa.
Portanto vimutti não é aquilo a que normalmente chamamos liberdade. Está
muito para além de qualquer questão de liberdade política ou civil ou mesmo do
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sentido psicológico comum de liberdade. Tentemos ir mais fundo na
compreensão deste assunto.
Vimos que em consequência do êxtase vem a tranquilidade; em consequência da
tranquilidade surge beatitude; em consequência da beatitude surge samadhi.
Estes quatro nidanas – êxtase, tranquilidade, beatitude, samadhi – representam
o processo daquilo a que usualmente se chama meditação. Meditação no sentido
de real experiência de estados mais elevados de consciência, não meditação
entendida somente como concentração preliminar. É meditação no sentido do
que tecnicamente se chama samatha ou "calma". A próxima etapa, o próximo
nidana, ou elo, depois de samadhi, é conhecimento e visão das coisas tal como
realmente são; e esta etapa, este nidana, é extremamente importante. Na
verdade, a transição de samadhi para conhecimento e visão das coisas tal como
realmente são é absolutamente crucial. Representa um ponto de viragem – é
mesmo o grande ponto de viragem – na vida espiritual. É o ponto no qual a
nossa
mais
requintada,
mais
extática,
mais
beatífica
experiência
do
condicionado, ou mundano, é sucedida pela nossa primeira "experiência" do
Não-Condicionado, do Transcendental. Conhecimento e visão das coisas tal
como realmente são é pois uma forma daquilo a que tecnicamente se chama
vipassana ou Insight3.
Vimutti é a terceira etapa depois de conhecimento e visão das coisas tal como
realmente são; imediatamente antes vêm desprendimento e imparcialidade. O
que significa que não há vimutti sem insight; ou ainda que não há real liberdade
sem insight. A liberdade não pode ser uma coisa cega. Por outro lado, quando
surge o conhecimento e visão das coisas tal como realmente são, algo acontece e
fazemos a crucial transição de calma para insight. Na linguagem tradicional
budista diz-se que "entramos na corrente", que somos Iniciados4; e quando isto
acontece, ou nós o fazemos, ou isto nos acontece - neste caso todas estas
expressões têm o mesmo significado - ao mesmo tempo quebramos, ou são
quebradas, aquilo a que se chama as três cadeias, i.e. as primeiras três cadeias
2No original "disengagement or disentanglement".
3 Por ser de uso internacional corrente, parece melhor conservar o termo inglês. O significado
será: compreensão / reconhecimento / discernimento / percepção.
4 No original: Stream-Enter. Que traduzimos por Iniciado – até que alguém encontre melhor
tradução.
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que nos prendem aos níveis mais baixos, mais grosseiros, da vida mundana.
Passamos a ser aquilo a que tecnicamente se chama Arya Pudgala, ou
Verdadeiro Indivíduo. Assim: somente o Verdadeiro Indivíduo pode ser livre.
Para ser livre, verdadeiramente livre, terá de quebrar as três primeiras cadeias.
Só isso lhe dará o verdadeiro "Sabor de Liberdade".
O que são então as três cadeias? Já falei e escrevi várias vezes e de modo bastante
técnico sobre este assunto, esta noite vou abordá-lo em termos muito gerais e
básicos. Isto é: bem "terra à terra". Nestes termos as três cadeias são: a Cadeia do
Hábito, a Cadeia da Superficialidade e a Cadeia da Indecisão.
A Cadeia do Hábito
O dicionário define hábito como "a tendência ou disposição para actuar de uma
forma particular". Portanto, hábito é uma forma de acção. Mas a acção é uma
parte essencial de nós, não algo simplesmente adicionado. Efectivamente, de
acordo com o Dharma-Vinaya nós somos as nossas acções. Aquilo que
geralmente se pensa de, ou se refere a, uma pessoa é a soma total das suas acções
de corpo, fala e mente; e a pessoa não existe separada disso. O facto de termos
tendência ou disposição para actuar de uma forma particular significa, portanto,
que temos tendência ou disposição para ser dessa forma particular. Portanto nós
não somos só a soma total dos nossos actos: somos a soma total dos nossos
hábitos. Poderíamos mesmo dizer que cada um de nós é simplesmente um hábito
– provavelmente um mau hábito. A pessoa que nós pensamos como Jorge ou
Maria, e reconhecemos como actuando de determinado modo, é simplesmente o
hábito em que determinada corrente de consciência entrou. É como um nó num
pedaço de corda. Mas assim como entrou pode sair. Quebrar a Cadeia do Hábito
significa, essencialmente, sair do hábito de ser um particular tipo de pessoa.
Você simplesmente entrou num hábito. Você não tem de ser do modo que é. Não
é necessário. Quebrar a Cadeia do Hábito significa, portanto, desfazer-se do
velho self5 – do self passado. Significa tornar-se uma Nova Pessoa, um
Verdadeiro Indivíduo, i.e. alguém que é atento, emocionalmente positivo,
responsável, sensível e criativo. Significa tornar-se continuamente criativo –
5De novo preferimos adoptar o termo inglês, por ser de uso internacional corrente. Conforme as
diversas escolas de psicologia, poderíamos traduzir por: eu / ego / personalidade.
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continuamente re-criativo do próprio self. Aliás, na doutrina budista "annata",
ou "não self", não significa que não temos nunca um self, mas sim que temos
sempre um novo self. Idealmente cada novo self deve ser melhor que o anterior.
Não é fácil livrarmo-nos do hábito de ser a espécie de pessoa que éramos, ou
somos. Não é fácil desembaraçarmo-nos do velho self e tornarmo-nos uma Nova
Pessoa. Umas das razões disso são as outras pessoas. Não só entrámos no hábito
de ser de um modo particular, mas também os outros entraram no hábito de nos
experienciar6 como estando no hábito de ser de determinada forma. A soma
total das pessoas que nos experienciam mais tal como nós éramos do que tal
como nós somos é o que chamamos "o grupo". É neste sentido que o grupo é
inimigo do indivíduo, ou seja: o inimigo do Verdadeiro Indivíduo. O grupo não
permitirá ao Verdadeiro Indivíduo emergir das suas fileiras. Insiste em tratá-lo
não como ele é mas sim como ele era, e neste sentido o grupo dirige-se a algo que
já não existe. Acontece vivermos esta situação quando visitamos a família após
uma ausência de vários anos.
Quebrar a Cadeia do Hábito significa portanto tornar-se livre do velho self; livre
do self passado. Significa tornar-se livre do grupo, no sentido de livre da
influência que o grupo exerce por hábito. Evidentemente isto não significa
necessidade de cortar relações com o grupo.
A Cadeia da Superficialidade
A palavra superficialidade deriva de superficial, que é definido como "relativo a,
sendo parte, ou formando, a superfície", "mostrando falta de atenção e cuidado"
e "só exteriormente aparente, não genuíno ou verdadeiro". No presente contexto
superficialidade significa "agindo a partir da superfície de nós próprios" e,
consequentemente, agindo sem atenção ou cuidado e numa aparência que é
exterior, não genuína ou real. Porque agimos deste modo, i. e. superficialmente?
Qual é o motivo da nossa superficialidade? O motivo é estarmos divididos.
Frequentemente o nosso (superficial) consciente racional está separado das
profundezas do emocional inconsciente. Actuamos de acordo com as nossas
convicções intelectuais, sem conseguirmos envolver também as nossas emoções.
Claro que algumas vezes actuamos totalmente segundo a emoção, mas nesses
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casos o nosso racional tenta refrear-nos, talvez desaprovando mesmo. Em
qualquer um dos casos não actuamos inteiros. Não actuamos com a nossa
totalidade e, consequentemente, não actuamos verdadeiramente.
Esta situação é muito comum. A superficialidade é uma das pragas da Idade
Moderna. Já há mais de cem anos Matthew Arnold falou da "nossa pressa
doentia, dos nossos objectivos divididos". Vivemos numa pressa, "numa pressa
doentia", mas estamos divididos quanto aos nossos objectivos. Nada fazemos
verdadeira e realmente: não actuamos com a força total do nosso ser. Quando
amamos, não amamos verdadeiramente e quando odiamos, não odiamos
verdadeiramente. Nem sequer pensamos verdadeiramente. Fazemos tudo isso
pela metade e assim continuamos mesmo quando entramos na vida espiritual e
tentamos seguir o Dharma-Vinaya. Meditamos, comunicamos e trabalhamos só
com uma parte de nós mesmos. Consequentemente, não vamos longe: não
crescemos verdadeiramente, não nos desenvolvemos verdadeiramente. Quando
falamos não agimos com a totalidade do nosso ser. Uma parte de nós vai à frente,
em prospecção, mas a maior parte fica para trás.
Quebrar a Cadeia da Superficialidade significa portanto actuar com a totalidade
de nós próprios: actuar com atenção e cuidado; actuar genuína e
verdadeiramente. Significa, numa palavra, comprometermo-nos com a vida
espiritual – assumir o compromisso perante nós próprios de sermos Verdadeiros
Indivíduos.
6No sentido de conhecer pela experiência (experiencing)
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A Cadeia da Indecisão
Todos sabemos o que é uma pessoa indecisa. Mas o que motiva essa indecisão? A
verdade é que somos indecisos porque não queremos decidir e, sobretudo,
porque não queremos nos comprometer. Contudo esta indecisão é desonesta.
Afinal, a vida espiritual é muito difícil. Crescimento e desenvolvimento são
frequentemente um processo doloroso. Por isso temos tendência a encolher-nos.
Temos tendência a não nos comprometermos. Dizemos que queremos manter as
nossas opções em aberto. Mantemos uma porção de diferentes interesses e
objectivos, nos quais nos podemos recolher e permitimo-nos deambular entre
eles. Permanecemos a todo o custo indecisos, confusos, enevoados, diminuídos,
indistintos, fracos.
Quebrar a Cadeia da Indecisão significa portanto querer pensar claro. Significa
querer pensar realmente nas coisas. Significa querer ver verdadeiramente que
alternativas existem. Significa querer estabelecer prioridades. Significa querer
verdadeiramente escolher o melhor e actuar com todo o nosso ser nessa escolha.
Significa não adiar o momento da decisão.
Estas são portanto as três Cadeias do Hábito, da Superficialidade e da Indecisão
que são quebradas pelo Insight, i.e. pelo conhecimento e visão das coisas tal
como realmente são. Em linguagem menos tradicional diremos que as três
cadeias são quebradas quando nos tornamos criativos – no sentido de autocriativos, ou criativos do próprio novo self – decididos e claros. Quando Insight é
desenvolvido entramos na Corrente que conduz directamente à Iluminação,
tornamo-nos Iniciados, e ser um Iniciado é ser um Verdadeiro Indivíduo. E como
um Verdadeiro Indivíduo podemos experimentar vimutti. Podemos saborear a
Liberdade.
Do que foi dito emergem duas conclusões: A primeira diz-nos que só o
Verdadeiro Indivíduo é verdadeiramente livre; a segunda diz que nos tornamos
um Verdadeiro Indivíduo desenvolvendo Insight, i.e. quebrando as três Cadeias.
Sendo Verdadeiros Indivíduos tornamo-nos criativos, decididos e claros.
Ao falarmos do "Sabor de Liberdade" devemos entender claramente estas duas
conclusões.
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Mas há ainda uma outra conclusão que requer a nossa atenção. O Buda usou a
expressão o "sabor de Liberdade" dizendo: "Tal como o imenso oceano tem o
sabor de sal, também o Dharma-Vinaya tem um sabor: o sabor de liberdade".
Isto significa que o Dharma-Vinaya está totalmente impregnado do sabor de
liberdade. Toda e qualquer parte dele tem o sabor de liberdade. O DharmaVinaya inclui muitas coisas – talvez mais agora do que na época de Buda. Inclui
todos os tipos de ensinamentos, práticas e instituições. Inclui filosofias, técnicas
de concentração, sistemas éticos, rituais, artes – na verdade, todos os tipos de
cultura. Mas em relação a cada uma dessas coisas uma pergunta deve ser feita:
tem o gosto de Liberdade? Ajuda-nos, directa ou indirectamente, a tornarmo-nos
Livres: Vimutta? Ajuda-nos a desenvolver Insight – a quebrar as três cadeias – a
tornarmo-nos Verdadeiros Indivíduos – a Entrar na Corrente? Porque se assim
não fôr, não fazem parte do ensinamento de Buda, não pertencem ao DharmaVinaya.
Vimos o que significa Liberdade, ou vimutti, e o significado de "sabor de
Liberdade", mas ainda não vimos qual é o significado de "sabor". É interessante
observar que o Buda usa o termo "sabor" neste contexto e que fala não da ideia
ou conceito de Liberdade mas de "sabor de Liberdade". Podemos presumir que
Buda descreveu certas qualidades do oceano para enfatizar as correspondentes
qualidades do Dharma-Vinaya. Assim, falou do imenso oceano como tendo o
gosto de sal porque quis tornar claro que o Dharma-Vinaya tem o sabor de
Liberdade ou para mostrar que a Liberdade tem algo que deve ser saboreado, i.e.
algo que deve ser realmente experimentado.
Vimos que o termo Pali para sabor é rasa e a primeira equivalência de rasa é
sumo. O sumo é líquido, é algo que flúi, que não tem forma fixa, tal como a
Liberdade, ou vimutti. É algo que não é fixo, nem definitivo – nem condicionado.
Pelo contrário é algo Absoluto e Incondicionado, tal como o Dharma-Vinaya. O
Dharma-Vinaya tem o sabor de Liberdade; está impregnado do sabor de
Liberdade e é de facto um ininterrupto fluir de estados espirituais e
transcendentais. Mas embora este fluir possa ser cristalizado em diversos
ensinamentos, práticas, etc. não deve ser confundido com eles. Além de sumo,
rasa significa sabor, e o sabor pertence, evidentemente, ao domínio da
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experiência imediata. Dizer que o Dharma-Vinaya tem o sabor de Liberdade é
equivalente a dizer que se praticarmos o Dharma-Vinaya teremos a experiência
directa de Liberdade, ou que nos tornaremos Livres. Prosseguindo: rasa também
significa qualidade especial. A experiência directa de Liberdade é a qualidade
especial do Dharma-Vinaya, i.e. a qualidade pela qual podemos reconhecê-lo. Se
não tiver esta qualidade não é Dharma-Vinaya, tal como se algo não fôr doce não
pode ser açúcar. Esta qualidade especial dá ao Dharma-Vinaya o seu aroma
particular – e rasa também significa aroma. Com a prática começamos a
apreciar este aroma, a deliciarmo-nos, a ter prazer com ele. E rasa significa
também delícia e prazer. Assim como propriedade essencial; e a experiência de
Liberdade é uma parte essencial do Dharma-Vinaya, e não há Dharma-Vinaya
sem ela. Seja o que fôr que tivermos, se não experimentarmos Liberdade não
temos Dharma-Vinaya. Finalmente: rasa significa extracto e essência. Se
fervermos e voltarmos a ferver o imenso oceano do Dharma-Vinaya até o
reduzirmos a uma simples gota, essa gota será Liberdade, ou seja vimutti.
Iniciámos esta palestra com uma imagem, vamos pois terminar também com
uma imagem. A imagem de algo tão grande quanto o imenso oceano, ou ainda
maior. Imaginemos o céu: de infinita extensão, côr azul profundo e
perfeitamente puro. No interior desta imagem há outra. Vemos uma figura
voando no céu. É uma figura feminina, nua e vermelha. Os seus longos e negros
cabelos ondulam atrás dela, a face está erguida em êxtase e há um sorriso nos
seus lábios. Na tradição Budista chamam-na Dakini, ou "Senhora do Espaço", a
materialização da energia espiritual de Buda. Ela é absolutamente livre, livre de
voar em qualquer direcção: norte, sul, este, oeste, zénite e nadir. É livre mesmo
de se imobilizar. É sua a liberdade do espaço infinito. Ela delicia-se com o sabor
de Liberdade.
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