ALGUNS OLHARES SOBRE A INTERCULTURALIDADE E O

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ALGUNS OLHARES SOBRE A INTERCULTURALIDADE E O CONCEITO DE
LUGAR PARA AS ESCOLAS DA MARÉ
Valdecir de Andrade Amorim
Dayse Martins Hora
1 Introdução
O objetivo geral do trabalho é refletir sobre o ensino da geografia no segundo
segmento do ensino fundamental. O objetivo específico visa refletir como os
professores entendem e se utilizam do conceito de interculturalidade e o de lugar para
a geografia em sua prática pedagógica nas escolas municipais que atendem aos
alunos da Maré. Para a concretização de tal objetivo, temos como proposta
metodológica uma pesquisa qualitativa, com o uso de entrevistas semi-estruturadas
com oito professores que atuam nessas escolas municipais da Maré. Cabe destacar
que visando resguardar os princípios éticos da pesquisa, os professores entrevistados
receberam nomes fictícios, portanto não correspondentes aos seus nomes
verdadeiros.
Ao contrário do que uma grande parcela dos alunos e um número expressivo
de professores pensa sobre a história e o presente da Maré, o local é marcado por
diversos processos de lutas em que os mais fortes (elites e Estado) tentam impor à
força suas vontades. Acontece que nem sempre o mais forte consegue curvar os mais
fracos (população empobrecida). A Maré é um exemplo disso. Na trajetória histórica
desse complexo de favelas houve diversas tentativas de imposições e reações por
parte dela, ora perdendo diante da correlação de forças, ora derrotando-as, ora
negociando, em um fluxo e refluxo constantes.
Acreditamos que muitas dessas lutas resgatadas por meio do conceito de
lugar, na geografia, bem como da interculturalidade podem contribuir para as análises
e reflexões sobre a aplicabilidade de um currículo democrático. Nelas, a escola que
atende a esses princípios pode dar uma grande ajuda a essa parcela da população
marginalizada, no caso a Maré. Ou seja, os alunos, a partir dessas reflexões,
passariam a ver melhor sua trajetória socioespacial, não apenas de forma
marginalizada, mas em uma perspectiva de lutas de parte da sociedade pelo acesso à
cidade e à cidadania.
Ao tecer essas reflexões, não se pode esquecer que as lógicas dominantes
nas escolas, não só da Maré, mas de outros bairros pobres, estão longe de abarcar a
importância do lugar para o indivíduo, bem como da ideia de interculturalidade.
É muito contraditório situar as escolas como instituições democráticas
inseridas em complexas dinâmicas de poder, sabendo que o currículo oficial tem
servido para a legitimação de um modelo de sociedade excludente, no qual a escola
cumpre um papel importante na manutenção de uma estrutura, que ignora e despreza
os saberes e os valores de camadas sociais mais empobrecidas.
O conceito de lugar, na geografia, entendido como processo histórico único,
não reproduzido em nenhuma parte do mundo, como já dissemos é considerado
fundamental em uma escola que atende as populações marginalizadas. Ignorá-lo ou
negligenciá-lo é contribuir para reforçar as ideias discriminatórias, não só daqueles
que não vivem nesse espaço, mas daqueles que, também, estão nele.
Este estudo tentou verificar no currículo oficial de geografia, temas como:
urbanização, industrialização e migração, e como eles são tratados pelos professores
das escolas municipais que atendem aos alunos do segundo seguimento das escolas
da Maré. Esses temas estão diretamente ligados ao processo que levou à ocupação,
por exemplo, do Complexo da Maré, foco da presente investigação. Ou seja, a ideia de
que, na geografia, o lugar também é, ao mesmo tempo, resistência às tentativas de
imposições de outros lugares, mas também sofre influência de outros lugares, tem
uma grande importância em todo e qualquer processo socioespacial. A negligência
com o lugar do aluno reforça o preconceito e a segregação que a sociedade impõe à
população pobre. É como se fosse negado ao estudante conhecer seu próprio
processo histórico espacial.
A consequência imediata da negligência para os alunos dessa localidade é
uma escola pouco atrativa, que valoriza apenas culturas de grupos hegemônicos. Os
valores histórico-culturais da população mais pobre, quando retratados são feitos de
forma caricatural ou marginalizada. Nesse sentido, uma pergunta se faz necessária: o
currículo da disciplina geografia está adequado ao alunado do ensino do 6° ao 9° ano
do ensino fundamental das escolas municipais no Complexo da Maré? Para tentar
responder a essa questão foi necessária uma revisão bibliográfica sobre a ideia de
interculturalidade e da importância do conceito de lugar da geografia nas escolas da
Maré. Esses primeiros passos contribuíram significativamente para reflexões sobre a
aplicação dos conteúdos de geografia do ensino fundamental nessa localidade.
O segundo passo importante, visando ampliar a discussão acerca de um
currículo mais democrático foi a entrevista com professores visando compreender a
prática docente a partir dos temas ligados aos aspectos socioespaciais da Maré, do
currículo, da interculturalidade, do ensino da geografia nas escolas da Maré e dos
conceitos da geografia, com foco especial, no de lugar. A partir das entrevistas com os
professores, pensamos as possibilidades de um currículo de geografia para o segundo
segmento do ensino fundamental em uma perspectiva intercultural como um grande
desafio. Acreditamos que essa disciplina pode exercer um papel importante na
formação de uma escola verdadeiramente democrática e plural, já que a perspectiva
da interculturalidade valoriza as identidades locais. Desta forma, o lugar, que é um
conceito importante para a geografia, passa a ter grande relevância na proposta de
currículo para as escolas municipais no Complexo da Maré.
Com relação à explicitação do referencial teórico, ficou evidente sua
importância para o desenvolvimento deste estudo, pois ele solidifica as ideias ou
rompe com falsas premissas. As categorias teóricas que fundamentam nosso trabalho
são: (1) a perspectiva da interculturalidadea partir de Candau (2008); (2) o conceito de
lugar elaborado por Santos (1996), Carlos (2007) e Tuan (1983).
A
partir
de
Candau
(2008),
tentamos
compreender
a
ideia
da
interculturalidade proposta por ela, conforme discutiremos nesse trabalho mais
adiante, bem como a pertinência de considerar a interculturalidade numa escola de
origem popular cuja localidade de moradia dos alunos é frequentemente tratada como
espaço da não produção de cultura ou de apenas de substrato da sociedade
promotora de violência.
Tendo como base, principalmente, Santos (1996), Carlos (2007) e Tuan
(1983) tentamos observar como os professores compreendem e empregam o conceito
de lugar mediados pelos livros didáticos do 6˚ ao 9˚ do Projeto Araribá – Geografia
selecionados para este estudo, os cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de
Educação –SME e o currículo de geografia propriamente dito. A dimensão do lugar, no
Complexo da Maré, ganha uma grande importância no contexto escolar, tendo em
vista que esse conceito está ligado ao cotidiano dos moradores.
Com relação aos aspectos metodológicos, cabe ressaltar que a pesquisa se
pautou num estudo exploratório, para o qual realizamos um levantamento bibliográfico
e entrevistas.
O material bibliográfico levantado e a pesquisa de campo contribuíram no
sentido de verificar a possibilidade de um currículo de geografia que valorize o lugar
(Complexo da Maré) ou simplesmente o ignore.
2 A interculturalidade e o conceito de lugar para o Complexo da Maré
Entender a construção do complexo da Maré como processo histórico de
lutas de parcela significativa da sociedade que teve negado o acesso à cidade formal,
bem como os temas da geografia que podem ser relacionados à Maré na prática
pedagógica dos professores têm uma grande relevância no presente estudo.
Acreditamos que os resgates desses fatores foram importantes para basear nossas
análises e reflexões sobre a aplicabilidade de um currículo democrático, como nos diz
Patacho (2011):
O desenvolvimento dos currículos terá de ser a partir
necessariamente das vivências das crianças e dos jovens, da sua
cultura, daquilo que os preocupa, que lhes interessa, sem evitar que o
poder seja constitutivo da realidade social. Suas finalidades terão de
traduzir os valores democráticos da liberdade, solidariedade e
igualdade, no desafio permanente à injustiça social. O repto é
enorme. Contudo, não o enfrentar destemidamente terá pesadas
conseqüências para a concepção democrática da educação e para a
liberdade individual e coletiva nas sociedades contemporâneas.
(PATACHO, 2011, p.51).
A busca de um currículo democrático já mencionado pressupõe um olhar
mais atento sobre a forma de aplicação do conceito de lugar, para a geografia, e como
ele está presente nos conteúdos curriculares do ensino fundamental.
Que articulação é dada aos pressupostos histórico-sociais da Maré, ao
conceito de lugar, ao currículo oficial aplicado nas escolas dessa região e à
possibilidade de uma abordagem intercultural dentro da perspectiva de Candau
(2008)?
Santos (1996) baseia sua reflexão sobre o lugar em função do processo de
globalização contemporânea segundo a qual o mundo deixou de ser local-local como
nas sociedades tradicionais para ser local-global. Essa mudança ocorreu, sobretudo
graças ao desenvolvimento do mundo das técnicas e da informação.
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afirma M.A. de
Souza (1995, p.65), “todos os lugares são verdadeiramente
mundiais”. Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa
comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos
demais. A uma maior glocalidade, corresponde uma maior
individualidade. É a esse fenômeno que G. Benko (1990, p.65)
denomina “glocalidade” [...] (SANTOS, 1996, p.252).
Nesse sentido, o lugar é produto das relações de forças entre os interesses
locais e os interesses globais. Não existe um lugar ilhado, alheio aos processos
globais, por isso o autor considera que: “deixamos de viver o local-local para vivermos
o local-global”. Por outro lado, ele chama nossa atenção para não correr o risco de
achar que somente as forças globais devem ser levadas em consideração na
qualificação do lugar. Isso se deve ao fato de que se é verdade que o lugar está cada
vez mais globalizado, em função do processo técnico-informacional, também é
verdade que muitas vezes o lugar reage às imposições dos agentes globais. Ou seja,
ora o lugar aceita, ora rejeita, ora dá uma nova cara ao que é imposto pelos agentes
globais.
A concepção de interculturalidade pressupõe trocas entre os diferentes
indivíduos das mais variadas classes sociais, de lugares diversificados e com
diferenças histórico-espaciais. Nessas trocas não há espaços para possíveis ideias de
superioridade cultural, o que há são trocas, aprendizado e crescimento conjunto, bem
como a valorização e o respeito à diferenciação. Candau (2008) expressa seu
posicionamento quanto à perspectiva intercultural:
[...] Algumas características especificam essa perspectiva. Uma
primeira, que considero básica, é a promoção deliberada da interrelação entre diferentes grupos culturais presentes em uma
determinada sociedade. Nesse sentido, essa posição situa-se em
confronto com todas as visões diferencialistas que favorecem
processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas,
assim como com as perspectivas assimilacionistas que não valorizam
a explicitação da riqueza das diferenças culturais.
Em contrapartida, rompe com uma visão essencialista das culturas e
das identidades culturais. Concebe as culturas em contínuo processo
de elaboração, de construção e reconstrução. Certamente cada
cultura tem suas raízes, mas essas raízes são históricas e dinâmicas.
Não fixam as pessoas em determinado padrão cultural (CANDAU,
2008, p.51).
Consideramos que a ideia de um currículo mais democrático passa pelo
entendimento de alguns pressupostos básicos sobre a ideia da interculturalidade que
discuta relações de poder, e o conceito de lugar para o ensino de geografia tanto na
perspectiva materialista de Santos (1996) e Carlos (2007), quanto na perspectiva
fenomenológica de Tuan (1983). Nesse sentido, a seguir iremos cotejar esses
conceitos com o entendimento por parte dos professores entrevistados da pertinência
da utilização deles nas escolas da Maré.
3 Com a palavra, o professor: Interculturalidade e sua pertinência na prática
pedagógica
Ao analisar as falas dos professores percebemos que alguns deles
consideram interessante a perspectiva da interculturalidade, porém não a praticam em
função da dificuldade de se trabalhar os conteúdos impostos pelo currículo oficial e o
pouco tempo para se apropriar dos aspectos socioculturais dos alunos. Há que se
ressaltarem as práticas de avaliação mais recentes emanadas da secretaria de
educação do Município do Rio de Janeiro com provas elaboradas pelos órgãos
centrais sem participação do professorado. Existe um sistema de apostilas
pedagógicas que direcionam o trabalho com conceitos e conteúdos que serão objeto
da avaliação na referida prova, o que regula de certa forma o trabalho pedagógico do
professor que se vê na obrigação de desenvolver aqueles conteúdos previstos que
serão objeto na formulação das questões da prova.
Entendemos que é preciso divulgar e levar a proposta da interculturalidade
para as escolas de ensino fundamental, tendo em vista que a maioria dos professores
entrevistados acredita ser muito importante considerar o que o aluno trás de bagagem
cultural. De certa forma, a proposta da interculturalidade tem essa preocupação, no
entanto, ela vai mais além ao propor uma relação entre culturas diferentes, como o
próprio sufixo da palavra (inter) indica. Sendo assim, se difere do conceito de
multiculturalismo que alguns professores disseram conhecer.
A fala do professor Heitor caminha justamente nesse sentido. Quando
perguntado se ele conhecia sobre a discussão da interculturalidade e sua concepção
sobre o tema, ele responde:
Não conheço muito. O que entendo é do multiculturalismo. Mas,
quanto a minha prática pedagógica, posso dizer que a educação é
um grande diálogo entre educando e educadores. Também, não
acredito que sair sempre do educando significa promover o diálogo.
Se você não tirar o aluno de sua zona de conforto, você não o levará
a novas experiências, não traz a contradição e as possibilidades de
superação da mesma. Minha prática é pautada em minhas
experiências com as experiências deles. Aprendo muito com eles e
entendo que a partir da sensibilização daquilo que os toca é que o
ensino ocorre.
A fala do professor Heitor é paradoxal uma vez que ao ser perguntado sobre
a ideia de interculturalidade disse: “Não conheço muito. O que entendo é do
multiculturalismo”. A falta de clareza por parte do professor sobre a interculturalidade
se deve ao que Candau chama de polissemia que existe sobre o termo
multiculturalismo. Entretanto, a fala do professor encontra ressonância no que Candau
(2008) defende como proposta de interculturalidade: “A perspectiva intercultural que
defendo quer promover uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o
diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais” (CANDAU, 2008, p.52). O
professor entrevistado considera importante o diálogo entre os diferentes para que a
partir dele possa haver de fato o ensino e aprendizagem dos sujeitos “aluno” e
“professor”.Candau (2008) alerta para o cuidado que se deve ter em relação ao
emprego da perspectiva da interculturalidade, uma vez que:
[...] as concepções dominantes sobre o diálogo intercultural situamse, em geral, numa perspectiva liberal e focalizam com freqüência as
interações entre diferentes grupos socioculturais de modo superficial,
sem enfrentar a temática das relações de poder que as perpassam
(CANDAU, 2008, p.53).
Para Candau (2008, p.54):
O desenvolvimento de uma educação intercultural na perspectiva
apresentada nesse texto é uma questão complexa, atravessada por
tensões e desafios. Exige problematizar diferentes elementos de
modo como hoje, em geral, concebemos nossas práticas educativas
e sociais. As relações entre direitos humanos, diferenças culturais e
educação colocam-nos no horizonte da afirmação da dignidade
humana num mundo que aparece não ter mais essa convicção como
referência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva
alternativa e contra-hegemônica de construção social, política e
educacional.
A perspectiva intercultural quer promover uma educação para o
reconhecimento do outro, o diálogo entre os diferentes grupos
sociais. Uma educação para a negociação cultural, o que supõem
exercitar o que Santos denomina hermeneutica diatópica. A
perspectiva intercultural está orientada à construção de uma
sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de
igualdade com políticas de identidade.
Percebemos que há um encontro da fala de Candau com a fala do professor
Heitor, uma vez que ambos consideram que a educação é um grande diálogo entre
diferentes.
Acreditamos que a proposta de interculturalidade defendida por Candau
(2008) seja muito apropriada para ser empregada nas escolas da Maré, cujos alunos
de certa forma, não tem seus aspectos socioculturais valorizados. Tal fato nem
sempre ocorre por uma ação consciente dos professores, pois há uma lógica presente
nas estruturas de poder que terminam se colocando como barreiras que cada
professor necessita identificar e no seu limite de possibilidades romper. Entretanto,
nem sempre é possível.
A LDB tem aspectos muito próximos das perspectivas interculturais. Contudo,
a interculturalidade aparece na fala dos professores como uma atitude muito mais
individual do que um projeto de ensino em geografia. Inclusive, alguns entrevistados
disseram trabalhar com o multiculturalismo, evidenciando uma dificuldade no avanço
para a concepção da interculturalidade. No entanto, acreditamos que esta
interculturalidade se apresenta de maneira pujante na relação entre professor e aluno.
É importante salientar que assim como Candau defendemos que a
interculturalidade deve discutir as relações de poder existentes. Da mesma forma,
essa ideia esteve presente nas falas da maioria dos entrevistados.
4 Com a palavra, o professor: o conceito de lugar nas escolas da Maré
A geografia apresenta diversos conceitos que a legitima como ciência. Para
tratar da realidade da Maré nas escolas da mesma localidade resolvi identificar nas
falas dos professores entrevistados aqueles que eles considerariam mais importantes.
Dos diversos conceitos citados, percebemos que dos oito professores
entrevistados quatro escolheram o conceito de lugar como o mais importante; dois
professores optaram pelo conceito de território; um professor pelo conceito de
urbanização; um professor pelo conceito de espaço geográfico. O Professor Heitor faz
uma fala que considero importante: “Não sei se eu conseguiria hierarquizar os
conceitos, porque acho que dependendo do tema um determinado conceito pode ser
mais apropriado que outro”.
Na nossa concepção o conceito de lugar deve estar calcado tanto na
perspectiva da geografia crítica de Milton Santos e Ana Fani Carlos quanto na
proposta fenomenológica de Yi-Fu Tuan. Achamos pertinente para o leitor resgatar
aqui um breve quadro do pensamento desses autores sobre o conceito de lugar dentro
dos limites propostos para o presente trabalho.
Para Santos (1996), o lugar deixou de ser “local-local” para se torna localglobal, e essa mudança ocorreu graças ao desenvolvimento das técnicas ligadas aos
transportes e das técnicas ligadas à informação. O lugar para esse autor é produto das
relações de forças entre os interesses locais e os interesses globais. Há uma
tendência de tentativas de imposições dos agentes globais aos agentes locais. Há
momentos em que o lugar cede aos interesses globais; há momentos que resistem às
imposições. A resistência da população da Maré contrária à tentativa do governo de
remover parte da favela que não ficava situada nas palafitas é um exemplo que vai na
linha da ideia de Santos (1996). Esse autor diz ainda:
A localidade se opõe à globalidade, mas também se funde com ela. O
Mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência,
ele pode esconder-se, não pode fazê-lo pela sua existência, que se
dá nos lugares. No lugar, nosso próximo, se superpõem,
dialeticamente, o eixo das sucessões, que transmite os tempos
externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é
o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando,
definitivamente, as noções e as realidades de espaço e tempo.
No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas,
firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em
comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se
individualiza; e porque a continuidade é criadora de comunhão, a
política se territorializa, com o confronto entre organização e
espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao
mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações
condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões
humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais
diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade
(SANTOS, 1996, p.258).
O Projeto Rio, de 1979, desenvolvido, em pleno governo militar, previa a
retirada das palafitas de todo o Complexo da Maré. A população, através das
Associações de Moradores, aceitou a retirada das palafitas, mas resistiu a pretensão
de se remover áreas não atingidas pelas palafitas. Além disso, os moradores não
concordaram com o deslocamento da população das palafitas para lugares distantes
da Maré. Essa resistência contribuiu para que essas pessoas fossem assentadas
lugares próximos de onde foram removidas. Há que se ressaltar que a remoção para
longe da Maré significava dificultar a sobrevivência das famílias das pessoas
removidas, tendo em vista as dificuldades com o transporte para o deslocamento para
o trabalho, além do que uma parcela significativa vivia de trabalhos nas próprias
favelas da Maré.
Carlos (2007) caminha na mesma direção de Santos (1996) no que diz
respeito a ideia de que não há lugar ilhado no mundo contemporâneo, isso é, o lugar e
o global estão em constantes trocas e conflitos de interesses. Entretanto essa autora
diz que:
[...] é no lugar que se desenvolve a vida em todas as suas
dimensões. Também significa pensar a história particular de cada
lugar se desenvolvendo, ou melhor, se realizando em uma
cultura/tradição/língua/hábitos que lhes são próprios, construídos ao
longo da história e o que vem de fora, isto é o que se vai construindo
e se impondo como conseqüência do processo de constituição do
mundial (CARLOS, 2007, p.17).
O lugar para essa autora gera uma identidade, e ela é construída em função
dos hábitos e costumes do local. Para Tuan o lugar é a experiência, o que dá a
sensação de pertencimento e, portanto, impossível de ser reproduzido, para esse
autor cada lugar é único, pois cada um deles passa por processos históricos e afetivos
singulares. A esse respeito Tuan diz:
[...] Os lugares íntimos são tantos quantos as ocasiões em que as
pessoas verdadeiramente estabelecem contato. Como são estes
lugares? São transitórios e pessoais. Podem ficar gravados no mais
profundo da memória e, cada vez que são lembrados, produzem
intensa satisfação, mas não são guardados como instantâneos no
álbum de família nem percebidos como símbolos comuns: ladeira,
cadeira, cama, sala-de-estar, que permitem explicações detalhadas.
Não se podem desenhar nem planejar deliberadamente, com a
mínima garantia de êxito, as condições de troca genuína de
intimidade (TUAN, 1983, p. 156).
Ainda para Tuan:
[...] Na experiência, o significado de espaço freqüentemente se funde
com o de lugar. “Espaço” é mais abstrato do que “lugar”. O que
começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à
medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. Os
arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem falar
igualmente das qualidades locacionais do espaço. As idéias de
“espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir
da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão,
da liberdade e da ameaça do espaço, e vice-versa. Além disso, se
pensarmos no espaço como algo que permite movimento, então lugar
é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização se
transforme em lugar (TUAN, 1983, p.6).
É importante destacar que consideramos todos os conceitos da geografia
importantes. São eles que legitimam a geografia como ciência. Entretanto queremos
destacar, que o conceito de lugar abordado tanto na perspectiva materialista de
Santos (1996) e Carlos (2007) quanto na perspectiva fenomenológica de Tuan (1983)
pode dar uma grande contribuição na formação dos alunos das escolas da Maré.
Aliás, a pertinência desse conceito, para trabalhar com os alunos, é corroborada pela
maioria dos professores entrevistada.
A maioria dos professores considerou de forma positiva a aproximação dos
temas da geografia com a realidade dos alunos, eles relataram uma melhor
compreensão em relação a determinadas atitudes dos alunos. Muitos professores
chegam a dizer que aprenderam com os seus alunos e ao mesmo tempo, que foi a
partir deles que suas aulas melhoraram. A mudança relatada me parece ser também
uma indicação da importância do uso dos conceitos de interculturalidade e de lugar em
sala de aula, não somente entre os grupos de alunos, mas entre professor e aluno. O
professor não é o dono do conhecimento, como na perspectiva tradicionalista ou da
educação bancária de Paulo Freire e sim; mediador do conhecimento. Como mediador
também constrói conhecimento com os alunos a partir do que ele sabe e do que os
alunos sabem. Mais uma vez, o conceito de lugar na geografia pode ser o suporte
para que essa relação ocorra. Acreditamos que a fala da professora Eduarda mereça
se destacada:
Os conteúdos e os conceitos têm, no meu ver, que fazer sentido tanto
para o aluno que tem seus laços de afetividade com seu lugar quanto
para o professor que tem os seus e isso só ocorre quando há essa
aproximação entre os temas locais e os globais.
Caminhamos com a fala dessa professora, uma vez que ela reforça a
necessidade de se conhecer a realidade do aluno para que o ensino seja algo que
tenha significado para ele. Os temas locais e globais citados como importantes pelo
professor são baseados no conceito de lugar preconizado por Santos (1996) e Carlos
(2007). Também é possível perceber referencias a valorização do subjetivo, conforme
as concepções da fenomenologia de Tuan (1983).
Diante das considerações empreendidas aqui, consideramos importante e
possível um currículo dentro de uma perspectiva intercultural tendo os conceitos de
lugar e de interculturalidade como pontos centrais para as escolas da Maré, o que não
exclui outros conceitos que integram o quadro epistemológico da geografia.
5 Referências
CANDAU, Maria Vera. Direitos Humanos, Educação e Interculturalidade: As Tensões
Entre Igualdade e Diferença.Revista Brasileira de Educação, janeiro-abril, ano/vol. 13,
número037,Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, São
Paulo, Brasil, p. 45-56, 2008.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/ do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.
PATACHO,
M.
P.
(2010).
Práticas
Educativas
Democráticas.
Edc.
Soc.,
Campinas,v.32, n 114, p. 39-52, jan.-mar.2011.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço, técnica e tempo, razão e emoção, Hucitec,
São Paulo, 1996.
TUAN, Yi-fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983.
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