ALGUNS OLHARES SOBRE A INTERCULTURALIDADE E O CONCEITO DE LUGAR PARA AS ESCOLAS DA MARÉ Valdecir de Andrade Amorim Dayse Martins Hora 1 Introdução O objetivo geral do trabalho é refletir sobre o ensino da geografia no segundo segmento do ensino fundamental. O objetivo específico visa refletir como os professores entendem e se utilizam do conceito de interculturalidade e o de lugar para a geografia em sua prática pedagógica nas escolas municipais que atendem aos alunos da Maré. Para a concretização de tal objetivo, temos como proposta metodológica uma pesquisa qualitativa, com o uso de entrevistas semi-estruturadas com oito professores que atuam nessas escolas municipais da Maré. Cabe destacar que visando resguardar os princípios éticos da pesquisa, os professores entrevistados receberam nomes fictícios, portanto não correspondentes aos seus nomes verdadeiros. Ao contrário do que uma grande parcela dos alunos e um número expressivo de professores pensa sobre a história e o presente da Maré, o local é marcado por diversos processos de lutas em que os mais fortes (elites e Estado) tentam impor à força suas vontades. Acontece que nem sempre o mais forte consegue curvar os mais fracos (população empobrecida). A Maré é um exemplo disso. Na trajetória histórica desse complexo de favelas houve diversas tentativas de imposições e reações por parte dela, ora perdendo diante da correlação de forças, ora derrotando-as, ora negociando, em um fluxo e refluxo constantes. Acreditamos que muitas dessas lutas resgatadas por meio do conceito de lugar, na geografia, bem como da interculturalidade podem contribuir para as análises e reflexões sobre a aplicabilidade de um currículo democrático. Nelas, a escola que atende a esses princípios pode dar uma grande ajuda a essa parcela da população marginalizada, no caso a Maré. Ou seja, os alunos, a partir dessas reflexões, passariam a ver melhor sua trajetória socioespacial, não apenas de forma marginalizada, mas em uma perspectiva de lutas de parte da sociedade pelo acesso à cidade e à cidadania. Ao tecer essas reflexões, não se pode esquecer que as lógicas dominantes nas escolas, não só da Maré, mas de outros bairros pobres, estão longe de abarcar a importância do lugar para o indivíduo, bem como da ideia de interculturalidade. É muito contraditório situar as escolas como instituições democráticas inseridas em complexas dinâmicas de poder, sabendo que o currículo oficial tem servido para a legitimação de um modelo de sociedade excludente, no qual a escola cumpre um papel importante na manutenção de uma estrutura, que ignora e despreza os saberes e os valores de camadas sociais mais empobrecidas. O conceito de lugar, na geografia, entendido como processo histórico único, não reproduzido em nenhuma parte do mundo, como já dissemos é considerado fundamental em uma escola que atende as populações marginalizadas. Ignorá-lo ou negligenciá-lo é contribuir para reforçar as ideias discriminatórias, não só daqueles que não vivem nesse espaço, mas daqueles que, também, estão nele. Este estudo tentou verificar no currículo oficial de geografia, temas como: urbanização, industrialização e migração, e como eles são tratados pelos professores das escolas municipais que atendem aos alunos do segundo seguimento das escolas da Maré. Esses temas estão diretamente ligados ao processo que levou à ocupação, por exemplo, do Complexo da Maré, foco da presente investigação. Ou seja, a ideia de que, na geografia, o lugar também é, ao mesmo tempo, resistência às tentativas de imposições de outros lugares, mas também sofre influência de outros lugares, tem uma grande importância em todo e qualquer processo socioespacial. A negligência com o lugar do aluno reforça o preconceito e a segregação que a sociedade impõe à população pobre. É como se fosse negado ao estudante conhecer seu próprio processo histórico espacial. A consequência imediata da negligência para os alunos dessa localidade é uma escola pouco atrativa, que valoriza apenas culturas de grupos hegemônicos. Os valores histórico-culturais da população mais pobre, quando retratados são feitos de forma caricatural ou marginalizada. Nesse sentido, uma pergunta se faz necessária: o currículo da disciplina geografia está adequado ao alunado do ensino do 6° ao 9° ano do ensino fundamental das escolas municipais no Complexo da Maré? Para tentar responder a essa questão foi necessária uma revisão bibliográfica sobre a ideia de interculturalidade e da importância do conceito de lugar da geografia nas escolas da Maré. Esses primeiros passos contribuíram significativamente para reflexões sobre a aplicação dos conteúdos de geografia do ensino fundamental nessa localidade. O segundo passo importante, visando ampliar a discussão acerca de um currículo mais democrático foi a entrevista com professores visando compreender a prática docente a partir dos temas ligados aos aspectos socioespaciais da Maré, do currículo, da interculturalidade, do ensino da geografia nas escolas da Maré e dos conceitos da geografia, com foco especial, no de lugar. A partir das entrevistas com os professores, pensamos as possibilidades de um currículo de geografia para o segundo segmento do ensino fundamental em uma perspectiva intercultural como um grande desafio. Acreditamos que essa disciplina pode exercer um papel importante na formação de uma escola verdadeiramente democrática e plural, já que a perspectiva da interculturalidade valoriza as identidades locais. Desta forma, o lugar, que é um conceito importante para a geografia, passa a ter grande relevância na proposta de currículo para as escolas municipais no Complexo da Maré. Com relação à explicitação do referencial teórico, ficou evidente sua importância para o desenvolvimento deste estudo, pois ele solidifica as ideias ou rompe com falsas premissas. As categorias teóricas que fundamentam nosso trabalho são: (1) a perspectiva da interculturalidadea partir de Candau (2008); (2) o conceito de lugar elaborado por Santos (1996), Carlos (2007) e Tuan (1983). A partir de Candau (2008), tentamos compreender a ideia da interculturalidade proposta por ela, conforme discutiremos nesse trabalho mais adiante, bem como a pertinência de considerar a interculturalidade numa escola de origem popular cuja localidade de moradia dos alunos é frequentemente tratada como espaço da não produção de cultura ou de apenas de substrato da sociedade promotora de violência. Tendo como base, principalmente, Santos (1996), Carlos (2007) e Tuan (1983) tentamos observar como os professores compreendem e empregam o conceito de lugar mediados pelos livros didáticos do 6˚ ao 9˚ do Projeto Araribá – Geografia selecionados para este estudo, os cadernos pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação –SME e o currículo de geografia propriamente dito. A dimensão do lugar, no Complexo da Maré, ganha uma grande importância no contexto escolar, tendo em vista que esse conceito está ligado ao cotidiano dos moradores. Com relação aos aspectos metodológicos, cabe ressaltar que a pesquisa se pautou num estudo exploratório, para o qual realizamos um levantamento bibliográfico e entrevistas. O material bibliográfico levantado e a pesquisa de campo contribuíram no sentido de verificar a possibilidade de um currículo de geografia que valorize o lugar (Complexo da Maré) ou simplesmente o ignore. 2 A interculturalidade e o conceito de lugar para o Complexo da Maré Entender a construção do complexo da Maré como processo histórico de lutas de parcela significativa da sociedade que teve negado o acesso à cidade formal, bem como os temas da geografia que podem ser relacionados à Maré na prática pedagógica dos professores têm uma grande relevância no presente estudo. Acreditamos que os resgates desses fatores foram importantes para basear nossas análises e reflexões sobre a aplicabilidade de um currículo democrático, como nos diz Patacho (2011): O desenvolvimento dos currículos terá de ser a partir necessariamente das vivências das crianças e dos jovens, da sua cultura, daquilo que os preocupa, que lhes interessa, sem evitar que o poder seja constitutivo da realidade social. Suas finalidades terão de traduzir os valores democráticos da liberdade, solidariedade e igualdade, no desafio permanente à injustiça social. O repto é enorme. Contudo, não o enfrentar destemidamente terá pesadas conseqüências para a concepção democrática da educação e para a liberdade individual e coletiva nas sociedades contemporâneas. (PATACHO, 2011, p.51). A busca de um currículo democrático já mencionado pressupõe um olhar mais atento sobre a forma de aplicação do conceito de lugar, para a geografia, e como ele está presente nos conteúdos curriculares do ensino fundamental. Que articulação é dada aos pressupostos histórico-sociais da Maré, ao conceito de lugar, ao currículo oficial aplicado nas escolas dessa região e à possibilidade de uma abordagem intercultural dentro da perspectiva de Candau (2008)? Santos (1996) baseia sua reflexão sobre o lugar em função do processo de globalização contemporânea segundo a qual o mundo deixou de ser local-local como nas sociedades tradicionais para ser local-global. Essa mudança ocorreu, sobretudo graças ao desenvolvimento do mundo das técnicas e da informação. Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afirma M.A. de Souza (1995, p.65), “todos os lugares são verdadeiramente mundiais”. Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais. A uma maior glocalidade, corresponde uma maior individualidade. É a esse fenômeno que G. Benko (1990, p.65) denomina “glocalidade” [...] (SANTOS, 1996, p.252). Nesse sentido, o lugar é produto das relações de forças entre os interesses locais e os interesses globais. Não existe um lugar ilhado, alheio aos processos globais, por isso o autor considera que: “deixamos de viver o local-local para vivermos o local-global”. Por outro lado, ele chama nossa atenção para não correr o risco de achar que somente as forças globais devem ser levadas em consideração na qualificação do lugar. Isso se deve ao fato de que se é verdade que o lugar está cada vez mais globalizado, em função do processo técnico-informacional, também é verdade que muitas vezes o lugar reage às imposições dos agentes globais. Ou seja, ora o lugar aceita, ora rejeita, ora dá uma nova cara ao que é imposto pelos agentes globais. A concepção de interculturalidade pressupõe trocas entre os diferentes indivíduos das mais variadas classes sociais, de lugares diversificados e com diferenças histórico-espaciais. Nessas trocas não há espaços para possíveis ideias de superioridade cultural, o que há são trocas, aprendizado e crescimento conjunto, bem como a valorização e o respeito à diferenciação. Candau (2008) expressa seu posicionamento quanto à perspectiva intercultural: [...] Algumas características especificam essa perspectiva. Uma primeira, que considero básica, é a promoção deliberada da interrelação entre diferentes grupos culturais presentes em uma determinada sociedade. Nesse sentido, essa posição situa-se em confronto com todas as visões diferencialistas que favorecem processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas, assim como com as perspectivas assimilacionistas que não valorizam a explicitação da riqueza das diferenças culturais. Em contrapartida, rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Concebe as culturas em contínuo processo de elaboração, de construção e reconstrução. Certamente cada cultura tem suas raízes, mas essas raízes são históricas e dinâmicas. Não fixam as pessoas em determinado padrão cultural (CANDAU, 2008, p.51). Consideramos que a ideia de um currículo mais democrático passa pelo entendimento de alguns pressupostos básicos sobre a ideia da interculturalidade que discuta relações de poder, e o conceito de lugar para o ensino de geografia tanto na perspectiva materialista de Santos (1996) e Carlos (2007), quanto na perspectiva fenomenológica de Tuan (1983). Nesse sentido, a seguir iremos cotejar esses conceitos com o entendimento por parte dos professores entrevistados da pertinência da utilização deles nas escolas da Maré. 3 Com a palavra, o professor: Interculturalidade e sua pertinência na prática pedagógica Ao analisar as falas dos professores percebemos que alguns deles consideram interessante a perspectiva da interculturalidade, porém não a praticam em função da dificuldade de se trabalhar os conteúdos impostos pelo currículo oficial e o pouco tempo para se apropriar dos aspectos socioculturais dos alunos. Há que se ressaltarem as práticas de avaliação mais recentes emanadas da secretaria de educação do Município do Rio de Janeiro com provas elaboradas pelos órgãos centrais sem participação do professorado. Existe um sistema de apostilas pedagógicas que direcionam o trabalho com conceitos e conteúdos que serão objeto da avaliação na referida prova, o que regula de certa forma o trabalho pedagógico do professor que se vê na obrigação de desenvolver aqueles conteúdos previstos que serão objeto na formulação das questões da prova. Entendemos que é preciso divulgar e levar a proposta da interculturalidade para as escolas de ensino fundamental, tendo em vista que a maioria dos professores entrevistados acredita ser muito importante considerar o que o aluno trás de bagagem cultural. De certa forma, a proposta da interculturalidade tem essa preocupação, no entanto, ela vai mais além ao propor uma relação entre culturas diferentes, como o próprio sufixo da palavra (inter) indica. Sendo assim, se difere do conceito de multiculturalismo que alguns professores disseram conhecer. A fala do professor Heitor caminha justamente nesse sentido. Quando perguntado se ele conhecia sobre a discussão da interculturalidade e sua concepção sobre o tema, ele responde: Não conheço muito. O que entendo é do multiculturalismo. Mas, quanto a minha prática pedagógica, posso dizer que a educação é um grande diálogo entre educando e educadores. Também, não acredito que sair sempre do educando significa promover o diálogo. Se você não tirar o aluno de sua zona de conforto, você não o levará a novas experiências, não traz a contradição e as possibilidades de superação da mesma. Minha prática é pautada em minhas experiências com as experiências deles. Aprendo muito com eles e entendo que a partir da sensibilização daquilo que os toca é que o ensino ocorre. A fala do professor Heitor é paradoxal uma vez que ao ser perguntado sobre a ideia de interculturalidade disse: “Não conheço muito. O que entendo é do multiculturalismo”. A falta de clareza por parte do professor sobre a interculturalidade se deve ao que Candau chama de polissemia que existe sobre o termo multiculturalismo. Entretanto, a fala do professor encontra ressonância no que Candau (2008) defende como proposta de interculturalidade: “A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais” (CANDAU, 2008, p.52). O professor entrevistado considera importante o diálogo entre os diferentes para que a partir dele possa haver de fato o ensino e aprendizagem dos sujeitos “aluno” e “professor”.Candau (2008) alerta para o cuidado que se deve ter em relação ao emprego da perspectiva da interculturalidade, uma vez que: [...] as concepções dominantes sobre o diálogo intercultural situamse, em geral, numa perspectiva liberal e focalizam com freqüência as interações entre diferentes grupos socioculturais de modo superficial, sem enfrentar a temática das relações de poder que as perpassam (CANDAU, 2008, p.53). Para Candau (2008, p.54): O desenvolvimento de uma educação intercultural na perspectiva apresentada nesse texto é uma questão complexa, atravessada por tensões e desafios. Exige problematizar diferentes elementos de modo como hoje, em geral, concebemos nossas práticas educativas e sociais. As relações entre direitos humanos, diferenças culturais e educação colocam-nos no horizonte da afirmação da dignidade humana num mundo que aparece não ter mais essa convicção como referência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva alternativa e contra-hegemônica de construção social, política e educacional. A perspectiva intercultural quer promover uma educação para o reconhecimento do outro, o diálogo entre os diferentes grupos sociais. Uma educação para a negociação cultural, o que supõem exercitar o que Santos denomina hermeneutica diatópica. A perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade. Percebemos que há um encontro da fala de Candau com a fala do professor Heitor, uma vez que ambos consideram que a educação é um grande diálogo entre diferentes. Acreditamos que a proposta de interculturalidade defendida por Candau (2008) seja muito apropriada para ser empregada nas escolas da Maré, cujos alunos de certa forma, não tem seus aspectos socioculturais valorizados. Tal fato nem sempre ocorre por uma ação consciente dos professores, pois há uma lógica presente nas estruturas de poder que terminam se colocando como barreiras que cada professor necessita identificar e no seu limite de possibilidades romper. Entretanto, nem sempre é possível. A LDB tem aspectos muito próximos das perspectivas interculturais. Contudo, a interculturalidade aparece na fala dos professores como uma atitude muito mais individual do que um projeto de ensino em geografia. Inclusive, alguns entrevistados disseram trabalhar com o multiculturalismo, evidenciando uma dificuldade no avanço para a concepção da interculturalidade. No entanto, acreditamos que esta interculturalidade se apresenta de maneira pujante na relação entre professor e aluno. É importante salientar que assim como Candau defendemos que a interculturalidade deve discutir as relações de poder existentes. Da mesma forma, essa ideia esteve presente nas falas da maioria dos entrevistados. 4 Com a palavra, o professor: o conceito de lugar nas escolas da Maré A geografia apresenta diversos conceitos que a legitima como ciência. Para tratar da realidade da Maré nas escolas da mesma localidade resolvi identificar nas falas dos professores entrevistados aqueles que eles considerariam mais importantes. Dos diversos conceitos citados, percebemos que dos oito professores entrevistados quatro escolheram o conceito de lugar como o mais importante; dois professores optaram pelo conceito de território; um professor pelo conceito de urbanização; um professor pelo conceito de espaço geográfico. O Professor Heitor faz uma fala que considero importante: “Não sei se eu conseguiria hierarquizar os conceitos, porque acho que dependendo do tema um determinado conceito pode ser mais apropriado que outro”. Na nossa concepção o conceito de lugar deve estar calcado tanto na perspectiva da geografia crítica de Milton Santos e Ana Fani Carlos quanto na proposta fenomenológica de Yi-Fu Tuan. Achamos pertinente para o leitor resgatar aqui um breve quadro do pensamento desses autores sobre o conceito de lugar dentro dos limites propostos para o presente trabalho. Para Santos (1996), o lugar deixou de ser “local-local” para se torna localglobal, e essa mudança ocorreu graças ao desenvolvimento das técnicas ligadas aos transportes e das técnicas ligadas à informação. O lugar para esse autor é produto das relações de forças entre os interesses locais e os interesses globais. Há uma tendência de tentativas de imposições dos agentes globais aos agentes locais. Há momentos em que o lugar cede aos interesses globais; há momentos que resistem às imposições. A resistência da população da Maré contrária à tentativa do governo de remover parte da favela que não ficava situada nas palafitas é um exemplo que vai na linha da ideia de Santos (1996). Esse autor diz ainda: A localidade se opõe à globalidade, mas também se funde com ela. O Mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência, ele pode esconder-se, não pode fazê-lo pela sua existência, que se dá nos lugares. No lugar, nosso próximo, se superpõem, dialeticamente, o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades de espaço e tempo. No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a continuidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 1996, p.258). O Projeto Rio, de 1979, desenvolvido, em pleno governo militar, previa a retirada das palafitas de todo o Complexo da Maré. A população, através das Associações de Moradores, aceitou a retirada das palafitas, mas resistiu a pretensão de se remover áreas não atingidas pelas palafitas. Além disso, os moradores não concordaram com o deslocamento da população das palafitas para lugares distantes da Maré. Essa resistência contribuiu para que essas pessoas fossem assentadas lugares próximos de onde foram removidas. Há que se ressaltar que a remoção para longe da Maré significava dificultar a sobrevivência das famílias das pessoas removidas, tendo em vista as dificuldades com o transporte para o deslocamento para o trabalho, além do que uma parcela significativa vivia de trabalhos nas próprias favelas da Maré. Carlos (2007) caminha na mesma direção de Santos (1996) no que diz respeito a ideia de que não há lugar ilhado no mundo contemporâneo, isso é, o lugar e o global estão em constantes trocas e conflitos de interesses. Entretanto essa autora diz que: [...] é no lugar que se desenvolve a vida em todas as suas dimensões. Também significa pensar a história particular de cada lugar se desenvolvendo, ou melhor, se realizando em uma cultura/tradição/língua/hábitos que lhes são próprios, construídos ao longo da história e o que vem de fora, isto é o que se vai construindo e se impondo como conseqüência do processo de constituição do mundial (CARLOS, 2007, p.17). O lugar para essa autora gera uma identidade, e ela é construída em função dos hábitos e costumes do local. Para Tuan o lugar é a experiência, o que dá a sensação de pertencimento e, portanto, impossível de ser reproduzido, para esse autor cada lugar é único, pois cada um deles passa por processos históricos e afetivos singulares. A esse respeito Tuan diz: [...] Os lugares íntimos são tantos quantos as ocasiões em que as pessoas verdadeiramente estabelecem contato. Como são estes lugares? São transitórios e pessoais. Podem ficar gravados no mais profundo da memória e, cada vez que são lembrados, produzem intensa satisfação, mas não são guardados como instantâneos no álbum de família nem percebidos como símbolos comuns: ladeira, cadeira, cama, sala-de-estar, que permitem explicações detalhadas. Não se podem desenhar nem planejar deliberadamente, com a mínima garantia de êxito, as condições de troca genuína de intimidade (TUAN, 1983, p. 156). Ainda para Tuan: [...] Na experiência, o significado de espaço freqüentemente se funde com o de lugar. “Espaço” é mais abstrato do que “lugar”. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem falar igualmente das qualidades locacionais do espaço. As idéias de “espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensarmos no espaço como algo que permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização se transforme em lugar (TUAN, 1983, p.6). É importante destacar que consideramos todos os conceitos da geografia importantes. São eles que legitimam a geografia como ciência. Entretanto queremos destacar, que o conceito de lugar abordado tanto na perspectiva materialista de Santos (1996) e Carlos (2007) quanto na perspectiva fenomenológica de Tuan (1983) pode dar uma grande contribuição na formação dos alunos das escolas da Maré. Aliás, a pertinência desse conceito, para trabalhar com os alunos, é corroborada pela maioria dos professores entrevistada. A maioria dos professores considerou de forma positiva a aproximação dos temas da geografia com a realidade dos alunos, eles relataram uma melhor compreensão em relação a determinadas atitudes dos alunos. Muitos professores chegam a dizer que aprenderam com os seus alunos e ao mesmo tempo, que foi a partir deles que suas aulas melhoraram. A mudança relatada me parece ser também uma indicação da importância do uso dos conceitos de interculturalidade e de lugar em sala de aula, não somente entre os grupos de alunos, mas entre professor e aluno. O professor não é o dono do conhecimento, como na perspectiva tradicionalista ou da educação bancária de Paulo Freire e sim; mediador do conhecimento. Como mediador também constrói conhecimento com os alunos a partir do que ele sabe e do que os alunos sabem. Mais uma vez, o conceito de lugar na geografia pode ser o suporte para que essa relação ocorra. Acreditamos que a fala da professora Eduarda mereça se destacada: Os conteúdos e os conceitos têm, no meu ver, que fazer sentido tanto para o aluno que tem seus laços de afetividade com seu lugar quanto para o professor que tem os seus e isso só ocorre quando há essa aproximação entre os temas locais e os globais. Caminhamos com a fala dessa professora, uma vez que ela reforça a necessidade de se conhecer a realidade do aluno para que o ensino seja algo que tenha significado para ele. Os temas locais e globais citados como importantes pelo professor são baseados no conceito de lugar preconizado por Santos (1996) e Carlos (2007). Também é possível perceber referencias a valorização do subjetivo, conforme as concepções da fenomenologia de Tuan (1983). Diante das considerações empreendidas aqui, consideramos importante e possível um currículo dentro de uma perspectiva intercultural tendo os conceitos de lugar e de interculturalidade como pontos centrais para as escolas da Maré, o que não exclui outros conceitos que integram o quadro epistemológico da geografia. 5 Referências CANDAU, Maria Vera. Direitos Humanos, Educação e Interculturalidade: As Tensões Entre Igualdade e Diferença.Revista Brasileira de Educação, janeiro-abril, ano/vol. 13, número037,Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, São Paulo, Brasil, p. 45-56, 2008. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/ do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. PATACHO, M. P. (2010). Práticas Educativas Democráticas. Edc. Soc., Campinas,v.32, n 114, p. 39-52, jan.-mar.2011. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço, técnica e tempo, razão e emoção, Hucitec, São Paulo, 1996. TUAN, Yi-fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983.