Insuficiência Cardíaca Nas Cardiopatias Congênitas

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SOCIEDADE
de CARDIOLOGIA do
RIO GRANDE DO SUL
REVISTA da
Artigo
INSUFICIÊNCIA CARDÍACA NAS
CARDIOPATIAS CONGÊNITAS DO ADULTO (CCA)
Estela Suzana K. Horowitz
Cardiologista Pediátrica do Instituto de Cardiologia do RS/ Fundação Universitária de Cardiologia
Responsável pela Unidade de Pós-operatório e Transplantes Cardíacos Pediátricos
Mestre em Cardiologia pela FUC
Endereço para Correspondência:
Av. Princesa Isabel 395
90620-001 Porto Alegre RS
Fone: 3230-3600 Ramal 3782 / 3223-6765
E-mail: [email protected]
Introdução
Cardiopatia congênita, segundo Mitchell et al (1), pode ser definida
como “uma anormalidade estrutural intra-cardíaca ou dos grandes
vasos intra-torácicos com repercussão funcional significativa ou
potencial repercussão funcional” e tem incidência de 8 /1.000 nascidos
vivos, sendo a mais importante malformação congênita (2-4).
As cardiopatias congênitas são anormalidades anatômicas e
hemodinâmicas, com cenários fisiológicos diversos, variando com a
idade, tempo de evolução e ainda os fatores agravantes resultantes
das intervenções.
O progresso das técnicas cirúrgicas para correção de
cardiopatias congênitas e, mais recentemente, o cateterismo
intervencionista modificaram sua história natural e, hoje, em torno de
85% dos nascidos com cardiopatia congênita atinge 16 anos de
idade. Esta população cresce em torno de 5% ao ano. Nos Estados
Unidos, estima-se que existam 1 milhão de adultos com cardiopatia
congênita (5).
No adulto, a etiologia da insuficiência cardíaca por cardiopatia
congênita resulta da história natural de defeitos ainda não corrigidos
cirurgicamente ou das conseqüências e complicações das
intervenções cirúrgicas paliativas ou definitivas. As seqüelas
cirúrgicas podem envolver o sistema de condução, as valvas
cardíacas, os materiais protéticos, o miocárdio, o leito vascular e o
sistema nervoso (2;6;7).
Os principais mecanismos que levam à insuficiência cardíaca no
adulto podem ser classificados em três grupos. O primeiro inclui
aqueles que apresentam cianose crônica, sobrecarga de volume e
outras anormalidades hemodinâmicas, como pacientes com
comunicação interventricular não operada ou com corações
“univentriculares” apenas paliados. O segundo grupo evolui para
insuficiência cardíaca por baixo débito crônico secundário a obstrução
da via de saída ventricular, como ocorre em pacientes com recoarctação da aorta. O terceiro inclui aqueles que desenvolvem
doença coronariana, hipertensão arterial sistêmica ou miocardiopatia
em um coração com cardiopatia congênita pré-existente (6).
Além dessas três categorias, algumas cardiopatias congênitas
são apenas tratadas de maneira paliativa e nunca corrigidas, e os
resíduos e seqüelas dessas intervenções são os substratos para o
desenvolvimento de insuficiência cardíaca em longo prazo. As arritmias,
que infelizmente são uma complicação de cirurgia em plano atrial,
como cirurgia de Mustard, Senning e Fontan, podem agravar a função
ventricular em pacientes submetidos a várias intervenções cirúrgicas.
O ventrículo direito, de modo tradicional chamado de “ventrículo
esquecido”, não deve ser assim considerado em pós-operatório de
múltiplas reconstruções da via de saída ventricular direita. As lesões
regurgitantes, freqüentes em pós-operatório de tetralogia de Fallot,
apesar de bem toleradas por muito tempo, podem evoluir para
disfunção ventricular em longo prazo com fibrose miocárdica. As
múltiplas intervenções cirúrgicas em cardiopatias complexas expõem
o miocárdio a episódios repetidos de isquemia e lesão de reperfusão.
Nos pacientes submetidos à cirurgia de Glenn bidirecional, a separação
do retorno venoso hepático da circulação pulmonar predispõe ao
desenvolvimento de fístulas artério-venosas pulmonares, levando à
sobrecarga volumétrica do ventrículo único funcional (2).
Classificação da Insuficiência Cardíaca na CCA
Apesar das seus limites, a classificação de capacidade funcional
da New York Heart Association (NYHA) tem sido utilizada de maneira
ampla em CCA, permitindo uma linguagem comum nos diversos níveis
de atendimento à saúde (8).
Bolger e colaboradores (9), utilizando esta classificação
funcional, demonstraram que a ativação neurohormonal em CCA tem
correlação com os sintomas de insuficiência cardíaca crônica e com
a severidade da disfunção ventricular e não necessariamente com o
substrato anatômico. Os pacientes com CC tinham níveis
significativamente mais elevados de peptídeo natriurético atrial (ANP),
peptídeo natriurético cerebral (BNP), endotelina (ET-1), noradrenalina,
renina e aldosterona, e estes níveis eram mais alto quanto pior a
classe funcional da NYHA.
Um estudo realizado em Toronto, avaliando a capacidade
aeróbica de um grupo de ACC (10), demonstrou redução de consumo
máximo de oxigênio em adultos com seis cardiopatias distintas:
Revista da Sociedade de Cardiologia do Rio Grande do Sul - Ano XIII nº 03 Set/Out/Nov/Dez 2004
1
comunicação interatrial operada, transposição dos grandes vasos
(TGV) corrigida por meio cirúrgico em plano atrial, transposição
congenitamente corrigida (TGV-CC), tetralogia de Fallot operada,
anomalia de Ebstein e pacientes com fisiologia de Fontan. Todos
tiveram uma VO2 pico < 22 ml/Kg/min, sendo 16 ml/Kg/min nos pacientes
com fisiologia de Fontan. Estes dados se assemelham aos de pacientes
com cardiomiopatia isquêmica ou dilatada em classe funcional III da
NYHA. Tais achados corroboram a hipótese de que a capacidade
física destes pacientes depende muito mais de fatores extracardíacos,
como a musculatura esquelética, do que do estado hemodinâmico.
Mecanismos de Insuficiência Cardíaca na CCA
São muitos os mecanismos que alteram a pré-carga, a póscarga e a contratilidade na CCA (11). A figura 1 resume alguns destes
mecanismos.
1. Disfunção Contrátil
Disfunção contrátil levando à disfunção ventricular não é
incomum em CCA, principalmente nas situações de ventrículo sistêmico
direito ou “único”. Estes ventrículos sofrem uma variedade de insultos
ao longo de sua existência, que incluem isquemia, sobrecarga
pressórica ou volumétrica, cianose e, por vezes, vários episódios de
circulação extracorpórea, levando à fibrose miocárdica, com
conseqüente alteração da contratilidade e do relaxamento.
Pacientes com TGV submetidos à correção cirúrgica em plano
atrial apresentam disfunção do ventrículo direito (VD) sistêmico como
complicação em longo prazo. Estes ventrículos são excessivamente
hipertróficos, com áreas de fibrose por inadequada perfusão
coronariana (12). Alguns trabalhos demonstraram redução da fração
de ejeção do VD sistêmico em 32 a 48% dos casos, e, em 10 a 22%,
era associada à insuficiência cardíaca clínica (11).
Na TGV-CC, a disfunção do VD sistêmico é uma complicação
bem reconhecida. A fração de ejeção em pacientes assintomáticos é
menor do que 40% nos casos não operados. Quando a TGV-CC
ocorre associada à comunicação interventricular e à estenose
pulmonar, 70% dos casos têm disfunção sistólica, sendo insuficiência
cardíaca mais comum que na TGV-CC simples (11;12). Fatores que
pioram a disfunção ventricular incluem isquemia e regurgitação da
valva tricúspide que é sistêmica.
septal atrioventricular e a regurgitação pulmonar severa em pósoperatório de tetralogia de Fallot elevam a pré-carga. Os “shunts”
intracardíacos e os “shunts” sistêmico-pulmonares também sobem a
pré-carga.
3. Alterações da pós—carga
Anormalidades da pós-carga são características das lesões
obstrutivas das vias de saída. Estenose valvar aórtica e coarctação
da aorta são exemplos típicos de elevação da pós-carga ventricular,
reduzindo o débito cardíaco. De modo crônico, esta sobrecarga
pressórica estimula fatores tróficos como angiotensina e aldosterona
resultando em hipertrofia e fibrose com conseqüente alteração do
relaxamento, deteriorando posteriormente a função sistólica (11).
4. Fatores neurohormonais e outros
Há pouco tempo, a ativação de fatores neurohormonais e
citocinas tem sido reconhecida como parte da resposta adaptativa
em CC. Como já mencionado, o trabalho de Bolger et al (9) demonstrou
elevação dos níveis de ANP, BNP, endotelina, renina, aldosterona e
noradrenalina em um espectro de CC correlacionando com a piora da
classe funcional e disfunção ventricular. Os níveis de BNP se
mostraram elevados, não apenas em pacientes com ventrículos
direitos sistêmicos, mas também em pacientes com sobrecarga
pressórica do VD por obstrução subpulmonar. A elevação do BNP
está relacionada à disfunção ventricular direita mesmo em pacientes
assintomáticos (9;11;12).
Além da ativação neurohormonal, o sistema nervoso autônomo
também está alterado na insuficiência cardíaca. Pacientes operados
de tetralogia de Fallot têm redução da variabilidade da freqüência
cardíaca e do barorreflexo. Estes achados estão relacionados ao
grau de regurgitação pulmonar e disfunção ventricular direita (9;11;12).
Manejo da ICC na CCA
Apesar da variedade de lesões e da complexidade hemodinâmica
das CC levando à insuficiência cardíaca, existe escassez de ensaios
clínicos voltados para terapêutica envolvendo este grupo de pacientes.
1.
Pacientes com fisiologia univentricular, que realizaram tratamento
paliativo com as cirurgias do tipo Fontan, são candidatos à disfunção
sistólica. A progressão da disfunção ventricular é um problema
importante neste tipo de paciente (13). Estudos utilizando ressonância
magnética evidenciaram que a fração de ejeção em pacientes em
pós-operatório tardio de Fontan é abaixo do normal, em torno de 49%
(14). Além disso, a função ventricular tende a piorar quando a cirurgia
é realizada em adultos. A prevalência de insuficiência cardíaca clínica
18 anos pós Fontan é de 40% em uma das séries publicadas (13).
Assim como nos ventrículos sistêmicos morfologicamente direitos, o
fluxo coronariano é alterado em pacientes pós-Fontan e é possível
que a isquemia crônica contribua para a disfunção ventricular.
Dilatação e hipertrofia ventricular direita são importantes
dificuldades nos procedimentos cirúrgicos para o alívio das obstruções
da via de saída ventricular direita, como tetralogia de Fallot, estenose
pulmonar crítica, atresia pulmonar, truncus arteriosus. Estes pacientes
também apresentam disfunção ventricular direita e evoluem para
insuficiência cardíaca direita em longo prazo(12).
2. Alterações da pré-carga
Na circulação do tipo Fontan, uma importante característica de
sua fisiologia é a baixa pré-carga, que, associada a uma fração de
ejeção reduzida, leva a um estado crônico de baixo débito. Nesta
fisiologia já foi demonstrado que existe baixa reserva da pré-carga e
da contratilidade com uso de dobutamina (11). Nas cirurgias de Mustard
e Senning, para correção de TGV em plano atrial, os canais venosos
são hipocomplacentes, limitando o enchimento ventricular.
2
As lesões regurgitantes, comuns em pós-operatório de defeito
Revista da Sociedade de Cardiologia do Rio Grande do Sul - Ano XIII nº 03 Set/Out/Nov/Dez 2004
Uso de inibidores da ECA
Iinibidores da ECA têm sido utilizados em crianças com sobrecarga
volumétrica por lesões valvares regurgitantes, com redução das
dimensões ventriculares.
Em pacientes com fisiologia tipo Fontan, alguns estudos
demonstraram que a utilização de inibidores da ECA não causa
melhora da tolerância aos exercícios, nem dos parâmetros
ecocardiográficos, sendo associada à queda do índice cardíaco no
pico máximo do esforço (9;11). São estudos limitados em tamanho,
metodologia questionável, curta duração e podem não estar
demonstrando o real benefício dos inibidores da ECA na preservação
miocárdica e nos sintomas de insuficiência cardíaca.
Provavelmente, os inibidores da ECA são muito mais utilizados
de maneira empírica em CCA do que se tem publicado. Alguns estudos
não controlados demonstraram que, em ventrículos direitos
sistêmicos, os inibidores da ECA melhoram a capacidade aos
esforços. Os inibidores da angiotensina em pacientes com TGV-CC
demonstraram melhorar a fração de ejeção ventricular, reduzir a
regurgitação atrioventricular e favorecer a capacidade funcional
(9;11).
2. Beta-bloqueadores
Não existem evidências para o uso de beta-bloqueadores na
insuficiência cardíaca das CCA.
3. Aplicando as evidências
Em geral, os pacientes com CC são submetidos a exames de
imagem com o intuito de buscar uma etiologia anatômica passível de
correção cirúrgica ou percutânea. Quando não é possível a correção
anatômica, o tratamento clínico pode colaborar.
Em pacientes com corações biventriculares e disfunção
ventricular do ventrículo sistêmico morfologicamente direito ou
esquerdo, os diuréticos devem ser a primeira escolha para o alívio
dos sintomas congestivos. Em pacientes sintomáticos, adicionar
inibidores da ECA e beta-bloqueadores parece uma alternativa razoável,
pelos seus efeitos no remodelamento ventricular, preservação da
função ventricular e redução da morbi-mortalidade. Se os inibidores
da ECA não forem bem tolerados, podem ser substituídos por
bloqueadores da angiotensina. Tratar pacientes assintomáticos com
disfunção ventricular é tarefa mais complicada. É necessário
balancear os benefícios da terapêutica contra a inconveniência de
utilizar medicação crônica, uma vez que há falta de evidências neste
grupo de pacientes.
Aqueles com obstrução do ventrículo subpulmonar também
apresentam um dilema terapêutico. Este grupo é representado pelos
pacientes com tetralogia de Fallot e regurgitação pulmonar severa
levando à disfunção ventricular direita, com anomalia de Ebstein,
com síndrome de Eisenmenger e hipertrofia ventricular direita severa
com disfunção ventricular. Não existem evidências de que os inibidores
da ECA e os betabloqueadores tenham benéfico nestes cenários.
Pacientes com fisiologia do tipo Fontan devem ser manejados
com cuidados. Logo após a cirurgia, a pré-carga é baixa e o uso de
inibidores da ECA deve ser evitado. Entretanto, tardiamente, quando
a disfunção ventricular já se estabeleceu, em especial com
regurgitação de valva atrioventricular documentada, os inibidores da
ECA e betabloqueadores podem oferecer beneficio.
Perspectivas Futuras para CCA
Com o aumento da população adulta com cardiopatia congênita,
a insuficiência cardíaca será cada vez mais um problema clínico de
importância neste grupo de pacientes. Assim como a evolução das
diferentes técnicas cirúrgicas e do cateterismo intervencionista
beneficiou a correção anatômica das cardiopatias congênitas, a
terapêutica clínica, embasada em ensaios clínicos bem delineados,
deve evoluir para a utilização racional da farmacopéia para insuficiência
cardíaca nas cardiopatias congênitas do adulto.
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Figura 1: Mecanismos de Insuficiência Cardíaca na CCA
Adaptado de Vonder Muhll et al. (11)
3
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