40 ARTIGO ORIGINAL Luis Fernando Bouzas1 Mirna Calazans2 Tumores sólidos e hematológicos na infância e na adolescência – Parte I INTRODUÇÃO O diagnóstico de neoplasia maligna em crianças é raro, sendo que na maioria dos casos ela se origina de tecidos germinativos, ao contrário do que ocorre em adultos, quando se origina mais freqüentemente de tecidos epiteliais. Nas crianças, essa origem mais comum determina altas taxas de sobrevida a longo prazo e cura, uma vez que esses tumores apresentam alta sensibilidade a quimioterapia e radioterapia. Os excelentes resultados atingidos na população pediátrica são conseqüência do tratamento multidisciplinar efetivo e dos esforços que os grandes grupos cooperativos desenvolvem na progressão dos estudos clínicos controlados. Os sintomas e o exame físico são de extrema relevância no reconhecimento das doenças malignas em crianças e adolescentes. Dessa forma, é de especial importância a participação do pediatra e do cirurgião pediátrico para que o diagnóstico e as intervenções de urgência pertinentes a cada caso sejam realizados o mais cedo possível. Assim, o paciente poderá ser encaminhado ao especialista em oncologia pediátrica em estágio ainda precoce de sua doença. O objetivo desse artigo é descrever os principais achados clínicos e laboratoriais relacionados às neoplasias da infância e adolescência, no intuito de facilitar o reconhecimento dessas patologias pelo profissional que realizará o primeiro atendimento médico desses pacientes. Portanto não abordaremos aspectos relacionadas a estaqueamento, tratamento e prognóstico dessas doenças. Médico; pediatra; membro do Comitê de Oncohematologia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ); presidente da Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO); mestre em Hematologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); diretor do Centro de Transplante de Medula Óssea do Instituto Nacional de Câncer (INCa). 2 Médica hematologista do Centro de Transplante de Medula Óssea do INCa. 1 volume 4 nº 1 fevereiro 2007 A IMPORTÂNCIA DA DETECÇÃO PRECOCE O prognóstico da doença maligna na infância depende primariamente do tipo do tumor, da extensão da doença ao diagnóstico e da rápida resposta ao tratamento. Como a maioria dos tumores é passível de cura, o diagnóstico precoce é de especial importância. Além disso, geralmente nas doenças em estágios iniciais, o tratamento indicado, apesar de curativo, é menos agressivo do que o utilizado em estágios mais avançados da mesma patologia. Nas crianças esse aspecto assume grande relevância por tratar-se de uma população cuja sobrevida é longa, e o objetivo é evitar, sempre dentro do possível, mutilações ou patologias secundárias ao tratamento indicado. A história e o exame clínico devem ser orientados pela idade do paciente, uma vez que os diferentes subtipos de neoplasia na criança geralmente ocorrem em grupos etários específicos. Por exemplo, os tumores embrionários, incluindo o neuroblastoma, geralmente ocorrem nos primeiros 2 anos de vida. A incidência de leucemia linfoblástica aguda, linfomas não-Hodgkin (LNH) e gliomas aumenta entre os 2 e 5 anos de idade. Durante a adolescência predominam os tumores ósseos, gonadais e de tecidos conectivos, além da doença de Hodgkin (DH). Dessa forma, em lactentes deve-se dar especial atenção ao possível diagnóstico de tumores embrionários ou intra-abdominais, como tumor de Wilms, retinoblastoma, teratoma, neuroblastoma e neoplasias hepáticas. Nas idades pré-escolar e escolar precoce as leucemias, os linfomas e os tumores neurológicos devem ser investigados, levando-se em consideração o quadro clínico. Nos adolescentes, os sarcomas e os tumores germinativos são as neoplasias mais comuns (Tabela 1). Adolescência & Saúde Bouzas & Calazans TUMORES SÓLIDOS E HEMATOLÓGICOS NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA − Parte 1 Tabela 1 TIPOS DE MALIGNIDADE MAIS COMUNS EM CRIANÇAS COM O PICO DE IDADE AO DIAGNÓSTICO E INCIDÊNCIA NOS EUA Malignidade Pico de idade (anos) Taxa de incidência (milhão/ano) 2-5 24,7 Constante 5 Leucemia Linfocítica aguda Não-linfocítica aguda 41 as de 5 e 14 anos. As doenças neoplásicas mais comumente diagnosticadas incluem leucemia aguda, LNH, DH e tumores primários do sistema nervoso central (SNC). Entre os tumores sólidos pediátricos mais comuns estão o neuroblastoma, o tumor de Wilms, o rabdomiossarcoma e o retinoblastoma(11) (Tabela 1). LEUCEMIAS AGUDAS Linfomas Não-Hodgkin 6-16 9,3 Hodgkin > 10 7,5 Constante 13,4 Meduloblastomas 5-10 4.9 Ependimoma <5 2,1 Neuroblastoma <3 8 Tumor de Wilms <5 6,9 Retinoblastoma <3 3 2-6 e 14-18 3,7 Sarcoma de Ewing/PNET 10-18 2,1 Osteossarcoma 10-18 3,1 Hepatoblastoma <2 1,6 < 2 e > 14 0,4 Tumores de SNC Gliomas Tumores sólidos Rabdomiossarcoma Tumores de células germinativas Fonte: Surgical Clinics of North América. W. B. Saunder Co. 2000; 80(2). SNC = sistema nervoso central; PNET = primitive neuroectodermal tumor. Estima-se que no ano de 2007 ocorrerão 472.050 casos novos de câncer no Brasil. Uma vez que o percentual dos tumores infantis observados pelos registros de câncer de base populacional brasileiros variou de 1% a 4%, depreende-se que os tumores infantis deverão corresponder a valores compreendidos entre 4.700 e 19 mil casos novos(12). EPIDEMIOLOGIA As neoplasias malignas são a terceira causa de morte em crianças de 1 a 4 anos e a segunda entre Adolescência & Saúde A leucemia é a neoplasia mais comum na infância, sendo que aproximadamente 2.500 novos casos são diagnosticados nos EUA por ano(10). Em 75% desses casos o diagnóstico é de leucemia linfocítica aguda (LLA), e em 20%, de leucemia mielóide aguda (LMA). O pico de incidência da leucemia aguda na criança ocorre aos 4 anos, devido principalmente à LLA, que é mais comum em meninos. A incidência de LMA é constante durante toda a infância, com um discreto pico nos primeiros anos de vida e na adolescência tardia. Geralmente as crianças com diagnóstico de leucemia aguda são inicialmente levadas ao atendimento médico devido a sinais e sintomas relacionados a hematopoese ineficaz, secundária à infiltração da medula óssea por células com características blásticas. Esses sintomas incluem febre ou infecção devido à neutropenia, fadiga e palidez devidas à anemia e sangramento secundário à trombocitopenia. A dor óssea também é uma queixa freqüente, sendo mais comum nos casos de LLA, estando geralmente associada à elevação do periósteo e, mais raramente, a microfraturas e necrose óssea. Os achados radiológicos clássicos incluem bandas radioluscentes nas metáfases, elevação do periósteo e lesões líticas, todas elas mais bem observadas nas áreas dos ossos longos, próximas a joelhos, tornozelos e punhos. Linfadenomegalia e hepatoesplenomegalia também podem ser encontradas. Outra queixa menos freqüente é a de dor abdominal, que pode ser secundária a hepatoesplenomegalia, sangramento gastrointestinal ou, menos freqüentemente, a infiltração leucêmica da parede intestinal. A leucemia extramedular acometendo o SNC, a pele e os testículos é rara, exceto em bebês. Os pacientes com volume 4 nº 1 fevereiro 2007 42 TUMORES SÓLIDOS E HEMATOLÓGICOS NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA − Parte 1 infiltração leucêmica do SNC apresentam aumento da pressão intracraniana e paralisia de nervos cranianos (mais comumente dos sexto e sétimo pares), e o diagnóstico é feito através do exame do liquor. Pacientes com leucometria total superior a 200 mil leucócitos por milímetro cúbico apresentam risco aumentado de desenvolver leucostase, o que também pode acarretar alterações neurológicas(2). As lesões cutâneas associadas à leucemia geralmente apresentam-se como nódulos subcutâneos azulacizentados ou de coloração salmão(4). O comprometimento testicular pela leucemia comumente se apresenta como um aumento uni ou bilateral da gônada, que se mostra firme e indolor. O diagnóstico deve ser confirmado por biópsia testicular. Os tumores sólidos compostos por células blásticas mielóides são chamados de cloromas ou sarcomas granulocíticos, e podem ocorrer em 5% dos pacientes com LMA, tanto simultaneamente com o comprometimento medular, como surgir como primeira manifestação da leucemia semanas ou meses antes de ocorrer o aumento do número de blastos na medula óssea(4, 8). Essas lesões acontecem mais freqüentemente no SNC (cerebral ou epidural), em ossos e tecido mole da cabeça (principalmente órbita) e pescoço. O hemograma do paciente com leucemia aguda geralmente apresenta alterações como anemia normocítica com hemácias em lágrima e eritroblastos, trombocitopenia e leucocitose, com neutropenia e blastos no sangue periférico. Também ao diagnóstico podemos observar alterações metabólicas compatíveis com a síndrome da lise tumoral e coagulação intravascular disseminada ou fibrinólise. O paciente com suspeita clínica de leucemia aguda deve ser encaminhado ao hematologista o mais brevemente possível. LINFOMA NÃO-HODGKIN Os linfomas são a terceira causa mais freqüente de malignidade na infância, correspondendo a aproximadamente 10% das neoplasias diagnosticadas nas crianças(9). Cerca de dois terços dos casos são de LNH, sendo o restante de DH. Os subtipos histológicos de LNH mais comuns na infância volume 4 nº 1 fevereiro 2007 Bouzas & Calazans são os linfomas linfoblástico B e T, de Burkitt, anaplásico de grandes células e de grandes células B. A idade média ao diagnóstico é de 11 anos, não ocorrendo um grande pico na curva de incidência. A doença é mais comum em meninos, e a maioria das crianças que desenvolvem o LNH está previamente saudável. No entanto alguns estudos encontraram vários fatores de risco associados à doença. Por exemplo, em alguns pacientes com imunodeficiência adquirida, tanto secundária ao vírus HIV quanto à terapia imunossupressora, o DNA do vírus Epstein-Barr (EBV) foi identificado no tecido tumoral, indicando a associação desse patógeno com a doença(5). O linfoma linfoblástico representa 30% dos LNHs da infância. Ele apresenta várias características clínicas e laboratoriais semelhantes ao LLA, sendo que o diagnóstico diferencial geralmente é arbitrário. Se ao estaqueamento inicial o aspirado de medula óssea apresentar mais de 25% de blastos, o diagnóstico a ser considerado é o de LLA, ao invés de estádio IV do linfoma linfoblástico. Geralmente os pacientes são levados ao pediatra devido ao surgimento rápido de linfadenomegalia cervical e mediastinal(9). Uma apresentação clínica típica é do adolescente masculino com insuficiência respiratória secundária à massa mediastinal anterior, com ou sem derrame pleural. Queixas freqüentes desses pacientes incluem tosse e evidências da síndrome da veia cava superior. Por tratar-se de uma doença aguda e de comportamento agressivo, medidas devem ser rapidamente adotadas para que o diagnóstico e o tratamento inicial sejam iniciados o mais brevemente possível. O pediatra deve procurar realizar o procedimento menos invasivo possível, e o hematologista pediátrico deve ser chamado para a avaliação assim que a doença for suspeitada. A hematoscopia do sangue periférico e do aspirado de medula óssea deve ser feita antes de qualquer procedimento invasivo. Se houver derrame pleural, ele pode ser avaliado em relação à presença de células malignas. Se o estudo da medula óssea e do líquido pleural não for diagnóstico, deve-se realizar uma biópsia de um linfonodo comprometido, de preferência aqueles localizados em cadeias periféricas e de fácil acesso. O uso de irradiação ou de Adolescência & Saúde Bouzas & Calazans TUMORES SÓLIDOS E HEMATOLÓGICOS NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA − Parte 1 corticosteróides antes da obtenção de um tecido por biópsia deve ser evitado para que o diagnóstico final não seja prejudicado. O linfoma de Burkitt corresponde a, aproximadamente, 40% dos diagnósticos de LNH em crianças(11). A forma endêmica é a mais comum, porém está praticamente restrita à África e associada ao EBV em 95% dos casos. A forma esporádica é rara, estando associada ao EBV em 15% dos casos(12). O sítio de acometimento mais comum na forma esporádica é o abdome, geralmente se apresentando como uma massa no quadrante inferior direito ou como um abdome agudo, secundário a intussuscepção ileocecal. Esse tipo de apresentação ocorre mais freqüentemente entre os 5 e 10 anos de idade. Geralmente a laparotomia exploradora está indicada. O tratamento indicado é a ressecção cirúrgica completa do segmento intestinal comprometido, além do mesentério associado. No entanto a maioria dos pacientes apresenta uma lesão não-ressecável, podendo comprometer o mesentério, o retroperitônio, os rins, os ovários e as superfícies peritoneais, o que geralmente está associado a ascite maligna. Para fins diagnósticos deve-se dar preferência aos métodos menos invasivos, porém sem grande demanda de tempo, uma vez que a doença apresenta comportamento agressivo, com crescimento tumoral rápido e distúrbios hidroeletrolíticos freqüentes (síndrome da lise tumoral). A avaliação de possível líquido pleural ou ascite deve ser realizada para a pesquisa de células tumorais. Exames de imagem devem incluir tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM) para avaliação do sítio primário da doença. Pacientes com tumores primários na cabeça e no pescoço podem ter doença não detectada no abdome (especialmente comprometendo os rins), também devendo ser avaliados com exames de imagem do abdome. Os linfomas de grandes células constituem aproximadamente 30% dos linfomas na infância, sendo que 30% deles são classificados como anaplásicos de grandes células, mais freqüentemente com fenótipo de células T(9), o qual tende a comprometer tanto os linfonodos como os sítios extranodais, incluindo pele, tecidos moles, pulmão e ossos. Os linfomas difusos de grandes células B compromeAdolescência & Saúde 43 tem mais comumente os linfonodos periféricos, o mediastino anterior, os ossos e o abdome. O tratamento quimioterápico agressivo é obrigatório na maioria dos casos de linfoma. DOENÇA DE HODGKIN Aproximadamente 10% a 15% de todos os casos de DH ocorrem em pacientes com menos de 16 anos(3). Em países industrializados o pico de incidência é bimodal, sendo o primeiro pico entre 20 e 30 anos de idade e o segundo, mais tardiamente na vida adulta. A doença é rara antes dos 5 anos e a maioria dos casos pediátricos acomete pacientes acima dos 11 anos de idade(3). Antes dos 10 anos é mais comum em meninos e na adolescência a incidência é igual em ambos os sexos. Geralmente a doença se apresenta com comprometimento de linfonodos supradiafragmáticos. A doença com comprometimento mediastinal pode se apresentar com tosse e dispnéia ou como a síndrome da veia cava superior(6). Aproximadamente um terço dos pacientes tem febre, sudorese noturna e perda de peso superior a 10% do peso corporal nos últimos seis meses (sintomas B). Cerca de 90% das crianças mostram linfonodomegalia cervical indolor e 60% têm comprometimento de linfonodos do mediastino anterior, paratraqueais ou peri-hilares. O comprometimento infradiafragmático isolado é raro. O diagnóstico de DH deve ser dado através de biópsia de linfonodo ou outro tecido comprometido. CONCLUSÃO O diagnóstico precoce das neoplasias malignas nas crianças é de suma importância, uma vez que aproximadamente 70% dos tumores são potencialmente curáveis. Portanto os profissionais que lidam com essa população de pacientes devem ter alto índice de suspeição diante de um caso sugestivo. O diagnóstico e o tratamento da criança com câncer devem ser cuidadosamente orientados e explicados aos pais e, se a criança possuir idade para tal, também com ela. Uma explanação clara e honesvolume 4 nº 1 fevereiro 2007 44 TUMORES SÓLIDOS E HEMATOLÓGICOS NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA − Parte 1 ta é necessária, e informações importantes como a necessidade de intervenções com possíveis seqüelas definitivas devem ser elucidadas. Sempre que possível, a criança e seus familiares devem ser acompanhados por uma equipe multidisciplinar, também envolvendo profissionais como assistentes sociais, Bouzas & Calazans psicólogos e psiquiatras pediátricos e professores capacitados para lidar com crianças com diagnóstico de câncer. Assim, sentimentos e ações comuns durante todo o tratamento, como ansiedade, raiva, culpa e depressão, podem ser compreendidos e trabalhados de forma mais adequada. REFERÊNCIAS 1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2006: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA. 2005; 31-7. 2. Bunin NJ, Pui CH. Differing complications of hyperleukocytosis in children with acute lymphoblastic or acute nonlymphoblastic leukemia. J Clin Oncol. 1985; 3: 1590. 3. Cleary S, Link M, Donaldson S. Hodgkin’s disease in the very young. Int J Radiat Oncol Biol Phys. 1994; 28: 77. 4. Ebb DH, Weinstein HJ. Diagnosis and treatment of chilhood acute myelogenous leukemia. Pediatr Clin North Am. 1997; 44: 847. 5. Green M, Michaels MG, Webber AS, Rowe D, Reyes J. The managemant of Epstein Barr virus associated post-transplant lymphoproliferative disorders in pediatric solid-organ transplant recipients. 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