PARECER COREN-SP 068/2013 – CT PRCI n° 102.620 Ticket 299.898 Ementa: Transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová. 1. Do fato Profissional de enfermagem relata fato de representante legal de paciente Testemunha de Jeová, não autorizar (expressa e verbalmente) transfusão de sangue em virtude de convicção religiosa. Questiona qual conduta deverá ser adotada pelo profissional, ante a prescrição e orientação médica para que seja realizada a transfusão sanguínea, e ainda, se o profissional poderá se recusar a realizar a instalação do material a ser transfundido. 2. Da fundamentação e análise Conforme o questionamento suscitado se faz necessário alguns apontamentos no que diz respeito aos direitos fundamentais envolvidos na situação, quais sejam, a Liberdade Religiosa, direito a uma vida digna, direito a autonomia individual, além de outros pressupostos encontrados na legislação específica da categoria profissional em debate. Assim, como definição, temos que os direitos fundamentais constituem, na atualidade, conceito que engloba os direitos humanos universais e os direitos nacionais do cidadão garantidos pela Constituição, contra os abusos que possam vir a ser cometidos tanto pelo Estado, quanto por particulares. Sendo que, dada sua magnitude universal, têm natureza constitucional e prevalecem sobre os interesses públicos e particulares e os interesses do Estado (NERY JUNIOR, 2009). Desta maneira, ante o conflito existente entre os direitos fundamentais do direito à liberdade religiosa e à vida, certamente teremos diversidade de opiniões, no entanto, cabe-nos tentar clarear o entendimento profissional, bem como indicar seu respaldo quanto à tomada de decisão em tais casos. Neste sentido, o Boletim Informativo 200, da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, entendeu que: [...] 1. A liberdade de religião é uma das liberdades básicas do indivíduo, constituindo uma escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana. 3.para a gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno, o que significa dizer válido, inequívoco, livre e informado. [...](RIO DE JANEIRO, 2010, p.4) Ou seja, segundo o parecer, recusa a determinados tratamentos médicos, em nome de convicção religiosa deve ser respeitada, ’não cabendo ao Estado avaliar o mérito da convicção religiosa, bastando constatar a sua seriedade’. Em outras palavras, o que interessa não seria o certo ou desacerto do dogma sustentado pelas Testemunhas de Jeová, mas sim o direito, ostentado por cada um de seus membros, de orientar sua própria vida segundo esse padrão ético ou abandoná-lo a qualquer momento, segundo sua própria convicção. A proteção seletiva a determinados dogmas religiosos equivaleria à negação da liberdade de religião e do pluralismo, violando a exigência de diferentes grupos sociais tratados com igual consideração e respeito. A única avaliação legítima de que se pode cogitar diz respeito à seriedade do fundamento religioso ou do que pode ser razoavelmente qualificado como religião (RIO DE JANEIRO, 2010). Por certo que todo ser humano tem seu direito à vida resguardado, em casos específicos, há que se resguardar o direito a uma vida digna, vez que indivíduos adeptos desta religião (Testemunhas de Jeová), aceitam e se submetem a todo ensinamento que lhes é ministrado, sob pena até mesmo de serem excluídos em caso de descumprimento de tais preceitos, o que poderia causar-lhes irreparáveis danos à moral, além do dano religioso, bem como existencial (FRANÇA et al., 2008). Ainda sob o prisma do direito à religião, muito antes de tal direito estar resguardado de forma constitucional, cabe lembrar que a garantia já existia expressamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos: [...] Artigo XVIII Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular. [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948) Assim, nos dizeres de Claudio da Silva Leiria (2011), a liberdade de religião, conforme o dispositivo constitucional, não abrange apenas o direito de crer em uma doutrina, mas também o de exercer os preceitos da fé professada. Nessa última hipótese se insere o expressar a fé em todos os aspectos da vida, seja fazendo proselitismo, demonstrando a fé em público, escrevendo e compondo músicas a respeito, bem como recusando tratamentos médicos específicos. Desta forma, levando-se em consideração a liberdade religiosa, além da autonomia de vontade que tem todo ser humano, bem como o mandamento constitucional onde consta que, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, temos que, não seria possível obrigar o paciente a se submeter a transfusão de sangue, vez que a recusa é seriamente motivada em suas convicções. Já o Código de Ética Médica, em seus princípios fundamentais, inciso VI, insere a normativa de que o médico deve guardar absoluto respeito pelo ser humano , além de atuar sempre em seu benefício. Jamais utilizar seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). Por sua vez, o médico não poderá deixar de tratar qualquer pessoa se comprovado o risco iminente de morte, mesmo porque isso feriria seu juramento hipocrático. Neste sentido: [...] É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. [...] Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la. [...] RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES É vedado ao médico: Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. [...] (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). Desta maneira, ante a visão ética e legal do profissional de medicina, o amparo para o tratamento do indivíduo que necessita de transfusão de sangue e se recusa a recebê-la, está inserido no próprio Código de Ética Profissional, desde que demonstrado realmente que a pessoa a ser tratada está em risco iminente de morte e que não exista outro tratamento alternativo eficaz. No que tange ao profissional de enfermagem, a Resolução do Conselho Federal de Enfermagem 311 de 2007, a qual aprova a reformulação do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, traz em seu artigo 10 a possibilidade do profissional de recusar-se a executar atividades que não sejam de sua competência técnica, científica, ética e legal. No mesmo código, temos em seus Princípios Fundamentais, o fato de que o profissional de enfermagem atua na promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, com autonomia e em consonância com os preceitos éticos e legais, e ainda, com respeito a vida, a dignidade e os direitos humanos, em todas as suas dimensões (COFEN, 2007). Ou seja, ainda que o profissional deva respeitar a decisão tomada pelo paciente ou seu representante legal, o bem maior tutelado será o direito à vida, o qual os profissionais de enfermagem não devem medir esforços para proteger. Sendo tal afirmativa confirmada pelos artigos abaixo transcritos do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem- CEPE: [...] PROIBIÇÕES Art. 26 - Negar assistência de enfermagem em qualquer situação que se caracterize como urgência ou emergência. Art. 27 - Executar ou participar da assistência à saúde sem o consentimento da pessoa ou de seu representante legal, exceto em iminente risco de morte. [...] (COFEN, 2007). 3. Da Conclusão Ante o acima exposto, e conforme a legislação pertinente ao assunto, conclui-se que todo ser humano deve ter seu direito de decisão respeitado, isso por se tratar de um direito fundamental, no entanto, tal direito não poderá sobrepujar o direito à vida, que é o bem maior de todos. Assim, ante a recusa do indivíduo, ou de seu representante legal em receber transfusão de sangue, em se tratando de comprovado risco iminente de morte, o profissional de enfermagem está autorizado a administrar o material a ser transfundido, desde que devidamente prescrito pelo médico. Ressalve-se ainda o fato de que o profissional de enfermagem poderá se recusar a realizar a transfusão por motivos de convicção pessoal e ética. É o parecer. Referências CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM. RESOLUÇÃO COFEN-311/2007. Aprova a Reformulação do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Disponível em: < http://novo.portalcofen.gov.br/resoluo-cofen-3112007_4345.html >. Acesso em: 07 de Out. 2013. ______. CÓDIGO DE ÉTICA DOS PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM. Disponível em: < http://novo.portalcofen.gov.br/wp-content/uploads/2012/03 /resolucao_311_anexo.pdf >. Acesso em: 07 de Out. 2013. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM Nº 1931/2009. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em: < http://www.portalmedico.org.br resolucoes/cfm/2009/1931_2009.htm >. Acesso em: 07 de Out. 2013. FRANÇA, Inacia Sátiro Xavier de. BAPTISTA, Rosilene Santos. BRITO, Virgínia Rosana de Sousa. Dilemas Éticos na hemotransfusão em Testemunhas de Jeová uma análise jurídico-bioética. 2008. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ape/ v21n3/pt_19.pdf >. Acesso em: 06 de Out. 2013. LEIRIA, Claudio da Silva. Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová. Uma gravíssima violação de direitos humanos. 2011. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/ 30206-30871-1-PB.pdf >. Acesso em> 06 de Out. 2013. NERY JUNIOR. Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 2 ed. Revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil. Declaração Universal Dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_HumanosVersoInternet.pdf >. Acesso em: 06 de Out. 2013. RIO DE JANEIRO. Procuradoria Geral do Estado. Boletim Informativo 200. Maio 2010. Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/166950/DLFE26918.pdf/Boletim200.pdf >. Acesso em: 07 de Out. 2013. São Paulo, 08 de Outubro de 2013. Câmara Técnica de Legislação e Normas Relator Revisor Alessandro Lopes Andrighetto Prof. Dr. Paulo Cobellis Gomes Enfermeiro Enfermeiro COREN-SP 73.104 COREN-SP 15.838 Aprovado em 23/10/2013 na 39ª Reunião da Câmara Técnica. Homologado pelo Plenário do COREN-SP na 858ª. Reunião Plenária Ordinária.