AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO CONCEITO DE DOENÇA MENTAL ILMA APARECIDA GOULART DE SOUZA BRITTO Resumo: o conceito de doença mental não nos remete a uma descoberta da medicina, mas a uma realidade constituída de inúmeros fatores. O problema da transformação de loucura em doença mental se impõe incisivamente para aquele que não se exime em compreender os diversos aspectos dessa construção. Considerando-se práticas de exclusão e confinamento, buscou-se acompanhar a forma como essa temática se evidencia nas obras de Foucault e Szasz. Palavras-chave: doença mental, exclusão social, história de loucura D esde o Renascimento, o comportamento humano tem se tornado matéria especulativa das religiões, das filosofias e das ciências. Os comportamentos-problema foram explicados de diferentes maneiras, em diferentes momentos. O modo como as pessoas reagem ao que estabelecem como anormalidade depende de seus valores e suas suposições sobre o comportamento humano. A falta de conhecimento sobre os determinantes do comportamento produz soluções inadequadas até porque o comportamento não é matéria de simples compreensão. 15 Nada seria mais central para o homem que o conhecimento de suas próprias ações. Coleman (1950) relata que nos primeiros escritos dos chineses, egípcios, hebreus e gregos já havia a demonstração de que eles atribuíam aos comportamentos-problemas ações de demônios que tomavam posse do indivíduo. Eram comuns crenças em bruxaria, magia e feitiçaria. Essa posição deu origem a um grande espaço para as concepções místicas sobre a complexidade do comportamento humano e abertura para o enquadramento, nesta categoria, de um grande número de atividades de caráter ritual ou curativo pré-cristão. Tais concepções dos determinantes do comportamento humano também ditavam o tipo de tratamento aplicado. O tratamento mais usual era o exorcismo dos espíritos e demônios, preconizado pelo Malleus Maleficarum (O martelo das bruxas), que era o manual de caça às bruxas, utilizado pelos religiosos como guia técnico de exorcismo. Assim, o manual igualava comportamento-problema com possessão demoníaca e supunha-se que as pessoas com tais comportamentos fossem agentes do demônio — não meramente suas vítimas —, chamadas de bruxas. Essa posição era dominante. Aquele que a contrariasse correria o risco de ser queimado vivo, tal como acontecia com as pessoas rotuladas de bruxas. o o. MICHEL FOUCAULT E A HISTÓRIA DA LOUCURA O filósofo historiador Michel Foucault descreveu as práticas médicas, judiciárias e a sexualidade. Foi também teórico do confinamento, da normalização, da polftica, do controle social e da moral. Em suas obras evidenciam-se duas transformações na cultura ocidental. Uma dá-se em meados do século XVII e determina o Renascimento e início do período Idade Clássica, que vai até o final do século XVIII. No final deste e início do século XIX, dá-se uma nova transformação, que determina o fim da Idade Clássica e inicia a Modernidade. Fazendo uso do método arqueológico, a questão para Foucault (1961, 1978a, 1987) era, com base em um problema, perguntar se não seria possível fazer de outro modo. Assim, Foucault analisou as estruturas de poder que 158 regulam certas práticas, fazendo disso uma genealogia. o o ci. "E '3 o o 3e í Nessa perspectiva, a questão era saber como e por que a loucura em um dado momento foi problematizada por meio de uma certa prática institucional, e como é que um saber pode ser constituído por práticas discursivas e não-discursivas, em que o enunciado era: o que a loucura colocava aos outros? No livro A história da loucura, pode-se observar que a loucura foi descrita, nos trabalhos de Foucault (1961, 1978a), não como um dado, mas como uma percepção. Foram as práticas em relação aos problemas comportamentais que construíram a loucura, e esta, por sua vez, tomou possível a construção de um novo saber e de uma nova prática. Este é um tema pertinente na medida em que a loucura foi colocada, segundo os termos da complexidade das atividades humanas, em sua constituição. Foucault (1961, 1978a) descreveu as contingências históricas que possibilitaram as regras e as práticas sociais que dizem respeito ao louco, transformado em doente mental no interior da instituição psiquiátrica. No Renascimento, o espaço dos problemas humanos era a nau dos loucos, um barco que navegava ao longo dos rios e levava a loucura de uma cidade para outra. Conseqüentemente, a nau dos loucos já assinalava a exclusão da loucura, confiada aos marinheiros para, com certeza, evitar que eles ficassem vagando, indefinidamente, entre os muros da cidade. Para ser considerado 7,3 riD. louco era suficiente ser abandonado, miserável, pobre, não desefado pelos pais ou pela sociedade. Em meados do século XVII, Foucault (1961, 1978) mostra N uma nova forma de perceber a loucura, que passou a ser administrada por uma instituição criada por decreto de Luiz XIV, em Paris, a 27 de abril de 1656, intitulada Hospital Geral. É o momento da grande internação. Pode-se entender esse evento da nova Lr) maneira de tratar os problemas humanos, na descrição da dúvida / - cartesiana: porque eu que penso, não posso estar louco, tendo em Z.7) Descartes o grande marco filosófico; o momento em que a loucu.d ra vai ser excluída da razão, por ser a condição de impossibilidade do pensamento, ou seja, a desrazão. Foucault (1961, 1978a) aponta para uma população heteroi gênea, com base nos registros das casas de internamento, percebidas pela Idade Clássica como possuidoras da desrazão: era o vagabundo, o debochado, o enfermo, o espírito arruinado, o imffil becil, o pródigo, o libertino, o filho ingrato, o mágico, o insano, o 159 21 herege, o criminoso, o blasfemador, a prostituta, o pai dissipador, o suicida, o devasso, o homossexual, o ilusionista ou tudo isso numa única palavra: louco. Com essa percepção social, houve a divisão entre razão e desrazão, normal e anormal, sadio e mórbido, que foram reduzidos à simples fórmula: serem internados. Examinando o interior do Hospital Geral, Foucault (1961, 1978a) mostra que nele encontrava-se a forma de como se estabelecia o exercício do poder naquela época. Em seu funcionamento, o Hospital Geral era uma estrutura semi-jurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decidia, julgava e executava, tornando-se um estranho poder entre a política e a justiça nos limites da lei. A ordem era a repressão. E ali eram internados todos aqueles que apresentavam problemas para a sociedade. Alguns anos depois de sua fundação, só o Hospital Geral de Paris tinha seiscentas pessoas e abrigava, aproximadamente, um por cento da população parisiense. A construção de hospitais gerais foi uma prática adotada na cultura ocidental. No final do século XVIII, o internamento ganha o status de instituição curativa, uma vez que se propõe a conduzir a loucura à razão, ou seja, quando se passa a perceber a loucura como alienação. Assim, dar-se-á a ruptura definitiva com o modelo do Hospital Geral e o passo essencial para o surgimento do Asilo, fazendo surgir o advento de uma nova modalidade da medicina. A função médica nos asilos foi introduzida no dia 25 de agosto de 1793, com a entrada do médico francês Philippe Pinel para as enfermarias do Bicêtre, em Paris, onde começava a ser percebido que o comportamento-problema deveria ser tratado pela medicina: assim, nasceu a psiquiatria e, com ela, o conceito de doença mental. Esse fato passou .a ser considerado pela história como a Primeira Revolução Psiquiátrica. O asilo, em sua estrutura e seus procedimentos, aparece como uma instituição integrante da ordem social. Assim como o grande internamento foi um fato da Idade Clássica, o asilo é um fato do final do século XVIII, fazendo parte da nova forma com que a sociedade agora se expressa. A vida asilar permite o nascimento daquela estrutura como um espaço onde se busca a origem da loucura nas causas orgânicas ou nas disposições hereditárias, fato 160 que ainda continua sendo registrado nos dias atuais. Desse modo, Foucault (1961, 1978a) demonstra que a psiquiatria é uma ciência recente e que o conceito de doença mental tem mais ou menos duzentos anos, como também a intervenção da medicina com relação ao comportamento humano complexo, em vez de ser atemporal, é historicamente datada. Comentando o trabalho de Foucault, Machado (1981) afir ma que as condições de possibilidade histórica da psiquiatria, antes de serem teóricas, são institucionais, pois a prática asilar foi essencial para o seu surgimento. Desse modo, a produção teórica sobre a loucura pode ser considerada como o contrário de um conhecimento: O curioso e paradoxal, é que todo esse processo histórico se realiza com o objetivo de subordinar a loucura justamente à razão e à verdade. Paradoxal porque é como se fosse preciso uma suposta ciência para possibilitar o maior domínio da razão sobre a loucura. De todo modo, o que demonstra Foucault é que o saber sobre a loucura não é o itinerário da razão para a verdade, como é a ciência para a epistemologia, mas a progressiva descaracterização e dominação da loucura para sua, cada vez maior, integração à ordem da razão. Eis o que é a história da loucura: a história da fabricação de uma grande mentira (MACHADO, 1981, p. 95). Foucault (1987, p.104) afirma que "faz a história do presente". A história da loucura apresenta inúmeras ilustrações .8 das práticas locais e regionais, com análises dos problemas no presente que possibilitaram encontrar fatos arqueológicos em A relação à loucura desde a Renascença até à Modernidade. A arma foi à crítica; a matéria foi à história. Foucault trabalhou - criticamente sobre o material histórico a ponto de perguntar se a única coisa a fazer, em face de loucura, seria excluí-la como forma de desrazão, dar-lhe o rótulo de alienação e, logo depois, E transformá-la em doença mental. Foucault (1978b) demonstrou que essas práticas, instauradas no começo do século XIX, definiram as condições de uma .8 nova experiência da loucura, cujo estilo e postura foram inéditos effi l) diante das experiências anteriores. Pois, com esse novo estatuto fie da loucura, adquirido pelas transformações, tanto no nível do co0 ("1 nhecimento quanto da percepção, preparou o caminho para o desenvolvimento da psiquiatria. A loucura percebida como doença mental legitimou, posteriormente, um sistema de práticas organizadas teoricamente em torno dela própria: organização da rede médica, sistemas de profilaxia e detecção, forma de assistência, distribuição dos cuidados, critérios de cura, definição da incapacidade civil do doente e de sua irresponsabilidade penal. foi acrescentado o recente critério da função corpórea; da mesma forma que a primeira era detectada através da observação do corpo do paciente, a última era detectada pela observação de seu comportamento. Portanto, se na medicina moderna nova doenças foram descobertas, na psiquiatria moderna elas foram inventadas (SZASZ, 1980, p. 234). THOMAS SZASZ E O MITO DA DOENÇA MENTAL Szasz (1960; 1980) põe em dúvida a psiquiatria e o conceito de doença mental criado por ela. Psiquiatra e professor de psiquiatria da Universidade de Nova Iorque, Szasz é contra o corpo conceituai dessa ciência, esclarecendo que não há nem pode haver doença mental. Os médicos, afirma ele, são treinados para tratar de doenças corporais e não de comportamentos-problemas. Mais do que isso, Szasz (1960; 1980) faz uma análise demolidora dos conceitos tradicionais da psicopatologia e não deixa dúvidas de que o próprio conceito de doença mental é, simplesmente, um mito. O que significa, hoje, rotular alguém de doente mental? Significa dizer que essa pessoa apresenta comportamentos complexos, estranhos ou que ferem alguma norma social estabelecida. Assim, é necessário compreender as práticas psiquiátricas atuais, conhecer como e o porquê do surgimento do conceito de doença mental e a maneira que ele funciona nos dias de hoje. Szasz (1980) reconhece a utilidade do sentido histórico originado na identidade histórica da medicina com a psiquiatria no século XIX. Porém, hoje, na sua opinião, as classificações e rotulações da psiquiatria são cientificamente inúteis e socialmente prejudiciais, uma vez que os diagnósticos médicos dão nomes às doenças genuínas e os diag= nósticos psiquiátricos estão estigmatizando rótulos: 162 É importante compreender claramente que a moderna psiquiatria — e a identificação das novas doenças psiquiátricas — não começou pela identificação de tais doenças através dos métodos estabelecidos pela patologia, mas pela criação de um novo critério sobre o que constitui a doença: ao critério estabelecido de alteração detectável da estrutura corpórea o ra 0) Oco O. w o o o C N. N C‘i o (Ni" ir) LO - O. C7, c E . (5 o oo O í í Szasz (1980) mostra-se insatisfeito com os fundamentos médicos e com as descrições conceituais da psiquiatria. Esclarece que, embora tais fundamentos não tenham origem recente, pouco se fez para esclarecer o problema. Ao contrário, no contexto psiquiátrico, é quase indelicado perguntar o que é uma doença mental. Em outros contextos, a doença mental é, com freqüência, considerada o que quer que os psiquiatras digam que ela seja. Desse modo, a resposta à pergunta quem é mentalmente doente responde-se que são aqueles que estão internados em hospitais psiquiátricos ou que consultam psiquiatras. Embora diferentes entre si, os estudos de Foucault e Szasz inauguram a reflexão crítica das práticas psiquiátricas contemporâneas, nas quais adjetivos como louco, alienado, doente mental são usados nas verbalizações das pessoas para designar aqueles que se comportam desadaptativamente. Assim, os comportamentos fóbicos, os estados de ansiedade, o estado emocional negativo, as dificuldades de adaptação, a delinqüência, a ação suicida, entre outros problemas humanos, foram classificados como doenças mentais Isso é problemático, pois a ciência do comportamento, ao se apresentar, já encontra seu lugar ocupado não com critérios epistemológicos, e, mais grave que isso, com o comportamento humano rotulado, estigmatizado, condenando pessoas com comportamentos-problemas, não considerando tais comportamentos um mal biológico. Temos em Foucault e Szasz a crítica atual do conceito de doença mental. Esses autores procuram avançar teorizações quanto à prática da psiquiatria em relação à doença mental por uma perspectiva histórica: na ciência, quanto ao método; na política, quanto às formas de, dominação, repressão e controle; e, na própria história, quanto à forma de interpretá-la pela reflexão filosófica e crítica. Contra a continuidade do conceito de doença mental, vimos que Foucault pergunta e narra o que era antes; mostra as transfor- 1 • 164 mações das práticas em relação à loucura, numa divisão histórica em três períodos: no Renascimento a loucura era exilada; na Época Clássica era enclausurada e na Modernidade é medicalizada. Szasz pergunta e explica como a doença mental existe e é agora. Foucault narra o passado, Szasz explica o presente. Foucault desmascara o gesto libertador de Pinel e destrói a postura ufanista dos historiadores da psiquiatria. Szasz, porém, reconhece a utilidade histórica dessa postura. Foucault mostra as contradições e irracionalidades produzidas pela família, pelos poderes jurídicos e religiosos para justificar a dominação da loucura pela psiquiatria. Szasz, por outro lado, é contra qualquer tipo de intervenção involuntária às pessoas e ao suposto doente mental. Declara-se favorável à psiquiatria como uma ciência à qual as pessoas podem recorrer, voluntariamente, para receberem uma ajuda que viabilize a resolução de seus problemas existenciais, por meio da psicoterapia, com o consentimento declarado da pessoa. É evidente que teoricamente Foucault e Szasz são muito diferentes. Ambos trabalham com conceitos, perspectivas e pressupostos diferentes. Entretanto, ambos procuram avançar teorizações quanto à prática psiquiátrica em relação ao doente mental mediante perspectivas igualmente críticas. Diante disso, uma questão emerge: feita a crítica teórica e política do conceito de doença mental, qual é o resultado? Foucault fala como filósofo; Szasz fala como psiquiatra. Seus objetivos são os mesmos? Será possível pensar numa prática nova com base em autores tão diferentes? O problema etiológico das doenças mentais denota que se quisermos compreender bem as razões e o alcance das afirmações psiquiátricas encontradas nos atuais compêndios de psiquiatria, não poderemos nos esquecer, como afirma Pessoti (1996, p.9), que o "manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como especialidade médica", isto é, o esquema gerador do desenvolvimento da psiquiatria foi a construção de lugares para internar e lidar com a loucura. Ainda assim, mesmo com o 'resultado de seu complexo desenvolvimento histórico, a psiquiatria tornou-se um ramo da medicina. Esse domínio foi sustentado pelos pressupostos orgânicos e, por meio dele, a medicina psiquiátrica penetrava na área do comportamento humano, procurando construir seu próprio saber, no qual delimitaria suas práticas, tornando-as consistentes com a perspectiva médica. Quem poderia se opor, por exemplo, à possibilidade da hipótese orgânica como justificativa para a esquizofrenia, após a descoberta da origem sifilítica da paresia, como orgânica, durante as décadas formativas da psiquiatria? Szasz (1978) afirma que com a neurosífilis como paradigma, a psiquiatria passou a fornecer o diagnóstico, estudar e tratar as doençaS mentais, isto é, a crença de processos biológicos dentro da cabeça dos pacientes, manifestados em seus comportamentos-problemas. A ciência busca relações ordenadas entre eventos r; tarais. Desse modo, as propostas científicas a respeito da esquizofrenia não são sustentadas por provas, pois a proposta de que a paralisia geral é uma infecção sifilítica é corroborada com a presença da bactéria Treponema pallidum no cérebro. Na esquizofrenia a fisiopatologia é substituída por linguagem e história de vida. Assim, foi provado que a paresia é a manifestação de uma doença e declarado que a esquizofrenia é uma doença. O problema para a psiquiatria permanece, isto é, a falta de comprovação empírica da hipótese orgânica. Se a esquizofrenia afetasse o cérebro, não estaríamos diante de uma doença cerebral? E se descreve delírios, alucinações, comportamento ou discurso desorganizado e dificuldades emocionais, estamos nos referindo, então, a comportamentos humanos complexos e não a disfunções orgânicas. Kraepelin (1979), um dos predecessores do sistema de diagQ nóstico nosológico na psiquiatria, afirmou, no início do século XX, que, nos termos mais estritos, não se pode falar da mente N adoecendo, afirmando serem os distúrbios nas bases físicas da f, vida mental que deveriam ocupar a maior atenção dos estudos a serem desenvolvidos. Afirmou ainda que as lições para entender tal patologia deviam ser retiradas desse novo departamento da Z medicina, já que a insanidade, em suas fôrmas mais brandas, acar— a retava o maior sofrimento que os médicos teriam que encontrar. '07) Alertou que o número de loucos, naquele momento, na Alema• ro era de duzentos mil e que, aparentemente, aumentava com a mais infortunada rapidez. Tal fato, supunha, era uma conseqüêngo cia da crescente degeneração da raça humana, ao lado do abuso do álcool e da infecção sifilítica. Intimidou, ao declarar que tono dos os insanos são perigosos, a seus vizinhos e, mais ainda, a eles mesmos. Desse modo, os comportamentos complexos foram ro• tulados de psicóticos, paranóicos. E como as pessoas que assim o se comportavam eram jovens, ele diagnosticou-as como portadoras da dementia praecox (demência precoce). Em 1911, Bleuler propõe o termo esquizofrenia para descrever classes de comportamentos as quais acreditava possuir uma base física. Acreditava que os mecanismos psíquicos eram uma certa predisposição do cérebro, e que a esquizofrenia era uma doença em processo, para a qual as explicações psicológicas eram insuficientes. Para as manifestações dos sinais de esquizofrenia, os sintomas pareciam indicar lesões fisiológicas. Em seu texto A fisiogênese e a psicogênese na esquizofrenia, Bleuler (1979) declara: Muitos delírios de grandeza decorrem quando o processo de pensamento tornou-se tão desintegrado ou, em geral, tão ilógico que o paciente não nota mais as flagrantes contradições com a realidade. Isso ocorre freqüentemente após anos de delírios de perseguição. Então ele é o imperador, Papa, Cristo, ou mesmo o próprio Deus; ele não apenas está indo fazer invenções, mas realmente as fez. Aqui, podemos nitidamente perceber como o desenvolvimento psíquico dos delírios depende do avanço da lesão primária. O fato é que até a presente data não foi provada a presença daquela lesão primária no cérebro das pessoas rotuladas de esquizofrênicas. Algumas questões atravessam, portanto, as afirmações psiquiátricas sobre a natureza dessas definições, que não são mais do que duas faces de uma mesma interrogação, que podem ser aplicadas a uma ou a outra: o que é uma doença mental? Se esta se localiza no corpo, coloca-se de imediato a segunda interrogação: onde? Em algum órgão, numa parte escura e secreta do cérebro, ou, então, disseminada por todo o organismo? Como pode a medicina, uma ciência empírica que realiza diagnósticos com base em fatos laboratoriais, aceitar, em seus domínios, 'uma ciência que diagnostica doenças mentais, fatos não-físicos? Como uma droga, uma substância física, pode melhorar a mente, agência não-física? As tentativas de ajustar as práticas institucionais da doença mental ao modelo médico parecem deixar perplexos tanto os criticos da psiquiatria quanto outros pesquisadores sociais interes, 166 sados, mais especificamente, em acompanhar as implicações dos vários critérios diagnósticos para determinar a etiologia das doenças mentais. Rosenhan (1973) conseguiu internar oito pseudopacientes (quatro psicólogos, um psiquiatra, um pediatra, um pintor e uma dona de casa) em diferentes hospitais psiquiátricos com a queixa de "ouvir vozes". Ao serem indagados sobre tais vozes, respondiam que elas não eram claras, mas pareciam algumas coisas como vazio, oco e pancada. Além disso, todas as outras informações dadas aos psiquiatras eram absolutamente verdadeiras. Todos eles foram admitidos como pacientes e diagnosticados como portadores de esquizofrenia. Uma vez admitidos, os pseudopacientes cessaram de simular quaisquer sintomas e comportaram-se normalmente. Mesmo assim permaneceram na instituição pelo período de sete a cinqüenta e dois dias e receberam, ao todo, duas mil e cem pílulas de medicamentos. O paradoxal, no entanto, foi que os outros pacientes logo reconheceram os falsos pacientes, embora a equipe do hospital não os visse assim. Ao contrário, quando um dos pseudopacientes — será que só estes seriam pseudopacientes? — sentou-se do lado de fora da sala de refeições meia hora antes do almoço, esse comportamento foi interpretado como a natureza aquisitiva oral da síndrome. T, (.) Além de tudo isso, Rosenhan (1973) revelou a um dos hos(2. pitais o que fizera e disse que repetiria a experiência nos próximos três meses. Assim, sendo avisada quanto aos falsos pacientes, g N nunca enviada, a equipe daquele hospital rotulou cento e noventa e três pessoas como prováveis pseudopacientes. c‘r O trabalho conduzido pela psiquiatria, e que a sociedade rei. g. conhece como necessário, parece inadequado. Quando se obseronhece c va o que realmente acontece no interior de um hospital ri psiquiátrico, encontram-se verdadeiros absurdos. As tentativas • de tratar a doença mental vão desde as idéias bizarras, porque • não definem se elas seriam causadas por alguma anormalidade .aï a no cérebro dos pacientes, à prática de punições, eletrochoques, ooi psicocirurgias ou uso e abuso de medicamentos. Estudos siste4 máticos sobre as etiologias dos transtornos mentais não-somente têm falhado em dar as respostas para o problema, como há uma expectativa considerável de que o problema em si mesmo talvez ainda não tenha sido formulado corretamente. g. Quando nos voltamos para os achados laboratoriais associados apresentados no manual da última edição da Associação América de Psiquiatria, o DSM-IV-TR (2002), deparamo-nos, de fato, com uma estranha situação: a psiquiatria é o tratamento das doenças mentais sem etiologias comprovadas. No entanto, após duzentos anos da formulação de seus princípios fundamentais, os debates ainda permanecem igualmente intensos e uma sensação de mal-estar é compartilhada por seus especialistas. Szasz (1978, p. 31) afirma que a psiquiatria veio substituir o que antes era conhecido como medicina de loucos, controlando não doenças, mas desvios; e nesta transformação pseudocientífica do médico alienista em psiquiatra, a psiquiatria passou a ser — e é hoje aceita em toda parte — o estudo 'cientifico' do mau comportamento e sua administração médica. Esse fato é, no mínimo, estranho na história das ciências. Alguns elementos permitirãó melhor compreendê-lo. Por volta da comemoração dos cem anos da psiquiatria, Kraepelin (apud SZASZ, 1978, p. 54), no início do século XX, sustentava: A maioria das doenças mentais é hoje obscura. Mas ninguém negará que novas pesquisas desvendarão novos fatos numa ciência tão jovem quanto a nossa; a esse respeito, as doenças produzidas pelas sífilis constituem uma lição concreta. É lógico supor que teremos êxito na descoberta de muitos outros tipos de insanidade mental que podem ser evitados — talvez até curados — embora não disponhamos, atualmente, da mais tênue pista. A hipótese fundamental da psiquiatria, no início deste século, foi que o trabalho científico empírico descobriria um diagnóstico laboratorial para a maioria das doenças mentais Todavia, a atribuição de uma fisiopatologia orgânica como etiologia para a esquizofrenia não se sustenta até a presente data. Para comprends blma,coniderspxmlo,quehj se investiga sobre as anormalidades no ,cérebro das pessoas 168 diagnosticadas como esquizofrênicas. Embora a hipótese dopamínica da esquizofrenia tenha estimulado as pesquisas sobre a esquizofrenia por mais de duas décadas e continue sendo a hipótese neuroquímica principal, ela apresenta dois problemas. Em primeiro lugar, os antagonistas da dopamina são efetivos para o tratamento de virtualmente qualquer paciente psicótico e severamente agitado, não importando o diagnóstico. Não é possível, portanto, concluir que a hiperatividade dopaminérgica seja exclusividade da esquizofrenia. Em segundo lugar, os dados eletrofisiológicos sugerem que os neurônios dopaminérgicos podem aumentar sua taxa em resposta à exposição em longo prazo a drogas antipsicóticas (KAPLAN; SADOCK; GREBB, 1997). Anormalidades estruturais demonstradas através da tomografia computadorizada no diagnóstico da esquizofrenia são limitadas, isto é, os resultados — aumento dos ventrículos laterais e do terceiro ventrículo, algum grau de redução do volume cortical — não são específicos dos processos patológicos da esquizofrenia. Os ventrículos estão mais aumentados em pacientes que foram expostos aos neurolépticos ou à sua retirada (KAPLAN et a1., 1997). Também com o uso da imagem por ressonância magnética e com a espectroscopia por ressonância magnética, entre outros, a situação não é muito diferente, pois a inclusão de achados laboratoriais anormais encontrados em grupos de indivíduos com esquizofrenia podem ser narrados como uma complicação da esquizofrenia ou de seu I tratamento (DSM -IV-TR, 2002, p. 310). Em 1991, o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA dedicou um número especial à esquizofrenia, a uma questão formulada pelo próprio instituto, ou seja, se a esquizofrenia é causada por um defeito químico. Em relação a isso, encontramos a seguinte resposta: Apesar de não estar estabelecida ainda com certeza nenhuma causa neuroquímica para a esquizofrenia, o conhecimento básico sobre a química cerebral e sua relação com esta doença está progredindo rapidamente. Há muito tempo se pensa que os neurotransmissores — substâncias que possibilitam a comunicação entre as células nervosas — intervem no desen- COLEMAN, J. C. Abnormal psychology and modern life. New York: Applenton, 1950. volvimento da esquizofrenia. É possível que esta doença esteja associada a algum desequilíbrio dos complexos interrelacionados do cérebro. embora não tenhamos respostas definitivas, esta área de pesquisa da esquizofrenia é muito ativa e promissora (INSM, 1991, p. 9). DSM — IV — TR. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria. Porto Alegre: Artmed, 2002. FOUCAULT, M. Historie de la folie à l'age classic. Paris: Plon, 1961. FOUCAULT, M. A história da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978a. Depois de quase um século, durante o qual a psiquiatria usou 'as terapias físicas — como o eletrochoque, o choque insulínico, a lobotomia e, desde década de 1950, os neurolépticos — baseada na crença de que a esquizofrenia se deve a uma falha neuroquímica, ela é apresentada para a psiquiatria contemporânea como uma entidade médica cujos achados laboratoriais diagnósticos ainda não foram identificados (DSM-IV-TR, 2002). Na história da psicologia, a tendência a falar em termos mentalistas sempre precedeu o falar em termos de relações. Pouca ênfase foi dada ao comportamento em si. Desse modo, o comportamento foi relegado à posição de um simples modo de expressão da atividade mental ou a sintomas de uma perturbação subjacente (SKINNER, 1976). Todavia, pode-se questionar: sintomas do quê? Na medicina constata-se que uma pele ressequida é um sintoma de dieta, de ingestão insuficiente de água ou de secreção endócrina. Tais eventos são observáveis e mensuráveis, podem ser manipulados e seus efeitos sobre a pele podem ser observados. Não são construtor hipotéticos, inventados para explicar a existência do sintoma (REESE, 1978). O que se observa na esquizofrenia são classes de comportamentos-problemas que devem ser estudados por uma ciência natural do comportamento. Skinner (1979) afirma que o comportamento do esquizofrênico é simplesmente parte e parcela do comportamento humano e, assim, deve permanecer firmemente ao lado da ciência do comportamento, desde que se considere como objeto de estudo a atividade do indivíduo como um todo em termos de eventos externos e internos que agem sobre ele. Referências 170 BLEULER, E. A fisiogênese e a psicogênese na esquizofrenia. In: MILLON, T. (Ed.). Teorias da psicopatologia e personalidade. Rio de Janeiro: Interamericana, 1979. FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978b. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. INSM. Instituto Nacional de Saúde Mental (Usa)/Sociedade Brasileira de Psiquiatria. Esquizofrenia: perguntas e respostas, 1991. KAPLAN, H. I; SADOCK, B. J.; GREBB, J. A. Compêndio de psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. KRAEPELIN, E. Psiquiatria clínica. In: MILLON, T. (Ed ). Teorias da psicopatologia e da personalidade. 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São Paulo: Editora 34, 1996. a Abstract: the concept of mental illness doesn't lead us to any discovery of '5 medicine, but to a reality which is formed by different factors. The issue of turning insanity into mental illness is addressed for that one who doesn't avoid to understand the diverse aspect of this process. Considering exclusion and confinement practices, it was aimed to understand the way this issue is recognized by Foucault and Szasz. e o Key words: mental illness, social exclusion, historical issue of insanity ILMA APARECIDA GOULART DE SOUZA BRITTO Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Goiás.'E-mail: [email protected] 172