o consolo da filosofia

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Alain de Botton
O CONSOLO DA
FILOSOFIA
Tradução de
Joaquim N. Gil
Revisão técnica
Maria Olga Afonso dos Reis
5.a edição
ÍNDICE
O Consolo da Filosofia para
I.
II.
III.
IV.
V.
VI.
A impopularidade................................................................
9
A falta de dinheiro............................................................... 57
A frustração ......................................................................... 93
A inadaptação...................................................................... 137
Um coração destroçado ....................................................... 201
As dificuldades .................................................................... 239
I
O CONSOLO
PARA A IMPOPULARIDADE
1
Há alguns anos, durante um rigoroso Inverno em Nova Iorque,
tendo uma tarde livre antes de apanhar o voo para Londres, dei comigo
numa galeria deserta do andar superior do Metropolitan Museum of
Art. Estava brilhantemente iluminada e para além do suave zumbido
do sistema de aquecimento montado debaixo do soalho, completamente em silêncio. Sobrecarregado com uma indigestão de quadros das
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O CONSOLO DA FILOSOFIA
galerias Impressionistas, procurava um sinal do caminho para a cafetaria – onde esperava conseguir tomar um copo de uma certa variedade de leite achocolatado da qual nessa altura era extremamente
guloso – quando o meu olhar foi atraído por uma tela. A etiqueta
explicava que havia sido pintada em Paris no Outono de 1786 por Jacques-Louis David, quando tinha trinta e oito anos.
Sócrates condenado à morte pelo povo de Atenas, prepara-se para
beber uma taça de cicuta, rodeado pelos seus amigos inconsoláveis. Na
Primavera de 399 a.C., três cidadãos atenienses puseram uma acção
na justiça contra o filósofo. Acusaram-no de se negar a adorar os deuses da cidade, de introduzir novidades religiosas e de corromper os
jovens de Atenas – e tal era a gravidade das suas acusações que foi
pedida a pena de morte.
Sócrates respondeu com lendária rectidão. Embora lhe fosse concedida uma oportunidade de renunciar em tribunal à sua filosofia,
optara por aquilo que ele acreditava ser verdade em vez de escolher
aquilo que sabia ser popular. Segundo o relato de Platão, dirigira-se ao
júri em tom de desafio:
Enquanto respirar e for dono das minhas faculdades, nunca deixarei de
praticar a filosofia, de vos exortar e de dizer a verdade a todos aqueles que
encontre… E assim, meus senhores… quer seja ou não absolvido por vós,
sabeis que não vou alterar a minha conduta, nem que tenha que sofrer
cem mortes.
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O CONSOLO PARA A IMPOPULARIDADE
E assim foi conduzido para uma prisão ateniense, tendo a sua morte
marcado um momento definitivo na história da filosofia.
Um indício do seu significado poderá ter sido a frequência com que
foi pintado. Em 1650 o pintor francês Charles-Alphonse Dufresnoy
terminou o quadro Morte de Sócrates, que agora se encontra exposto
na Galleria Palatina (onde não há nenhuma cafetaria).
O século dezoito testemunhou o zénite do interesse na morte de
Sócrates, em especial depois de Diderot ter chamado a atenção para o
seu potencial em termos de pintura, numa passagem do Tratado sobre
a Poesia Dramática.
Étienne de Lavallée-Poussin,
c. 1760
Jacques Philippe Joseph
de Saint-Quentin, 1762
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O CONSOLO DA FILOSOFIA
Pierre Peyron, 1790
Jacques-Louis David recebeu a sua encomenda na Primavera de
1786 da parte de Charles-Michel Trudaine de la Sablière, um membro rico e distinto do Parlamento e um académico com profundos
conhecimentos sobre a história da Grécia. As condições foram generosas, seis mil libras pagas antecipadamente, com um pagamento final
de 3.000 libras à entrega (Luís XVI pagou apenas 6.000 libras para
um quadro muito maior, O Juramento de Horácio). Quando o quadro
foi apresentado no Salão de 1787, foi de imediato considerado como o
melhor dos quadros sobre o fim de Sócrates. Na opinião de Sir Joshua
Reynolds, era «o mais requintado e admirável esforço de arte desde o
aparecimento da Capella Sistina, e da Stanze de Rafael. O quadro teria
honrado Atenas na época de Péricles».
Comprei cinco postais de David no balcão de recordações do
museu e mais tarde, enquanto voava sobre os campos gelados de Newfoundland (que haviam passado a um verde luminoso graças a uma
lua cheia e a um céu sem nuvens) examinava um deles enquanto debicava um triste jantar que a hospedeira colocara na mesinha à minha
frente durante uma soneca que devia ter evitado.
Platão está sentado aos pés da cama, uma pena e um pergaminho
a seu lado, silenciosa testemunha da injustiça do Estado. Tinha vinte
e nove anos quando Sócrates morreu, mas David transformou-o num
homem de idade, de cabelos grisalhos e aspecto grave. Junto da porta
da cela a esposa de Sócrates, Xantipa é escoltada para fora da cela pelos
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O CONSOLO PARA A IMPOPULARIDADE
guardas. São representados sete amigos em várias atitudes de lamentação. O companheiro mais íntimo de Sócrates, Críton, sentado ao seu
lado, olha para o mestre com devoção e preocupação. Mas o filósofo,
direito como um fuso, com tronco e bíceps de atleta, não mostra nem
apreensão nem mágoa. O facto de um grande número de Atenienses
o terem acusado de ser louco não o abalou nas suas convicções. David
havia planeado representar Sócrates no acto de engolir o veneno, mas
o poeta André Chénier sugeriu que se verificaria uma tensão muito
mais dramática se fosse pintado concluindo um tema filosófico ao
mesmo tempo que estendia serenamente a mão para a taça de cicuta
que colocaria um fim à sua vida, simbolizando ao mesmo tempo obediência às leis de Atenas e fidelidade ao seu chamamento. São testemunhados os últimos momentos edificantes de um ser transcendente.
Se o postal me atingia de uma forma tão enérgica, era talvez porque
o comportamento que representava contrastava de uma forma tão
nítida com o meu próprio comportamento. Em conversas, a minha
prioridade era de que gostassem de mim, muito mais do que dizer a
verdade. Um desejo de agradar levava-me a rir de piadas sem graça,
fazendo lembrar um pai na noite de abertura de uma peça escolar. Com
estranhos adoptava a maneira servil de um porteiro de um hotel que
cumprimenta clientes ricos – um entusiasmo salival nascido de um
mórbido e indiscriminado desejo de afeição. Procurava a aprovação de
pessoas importantes, e depois de encontros com eles, ficava roído
de preocupação pensando se eles me teriam achado aceitável. Quando
passava pela alfândega ou passava por carros de polícia, sentia um desejo
confuso de que os agentes uniformizados pensassem bem de mim.
Mas o filósofo não se preocupara com a impopularidade e a condenação do Estado. Não renegara os seus pensamentos porque outros
se haviam queixado. Mais ainda, a sua confiança surgira de uma fonte
muito mais profunda do que simples exaltação ou teimosia com aparência de coragem. Usara como único recurso a filosofia. A filosofia
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O CONSOLO DA FILOSOFIA
dera a Sócrates convicções que lhe haviam permitido ter uma confiança racional, contrastando com a confiança histérica, sempre que
era confrontado com a desaprovação.
Nessa noite, acima das terras geladas, uma tal independência de
espírito era uma revelação e um incitamento. Prometia um contrapeso
para uma tendência indolente de seguir práticas e ideias socialmente
sancionadas. Na vida e morte de Sócrates encontramos um convite
para um cepticismo inteligente.
E de um modo mais geral, o tema do qual o filósofo grego era o
símbolo supremo, parecia apresentar um convite para assumir uma
tarefa ao mesmo tempo profunda e ridícula: conseguir a sabedoria através da filosofia. Apesar das enormes diferenças entre os inúmeros pensadores descritos como filósofos ao longo dos tempos (pessoas na realidade tão diferentes que se se tivessem reunido num cocktail gigante,
não teriam nada para dizer uns aos outros e muito provavelmente
começariam a agredir-se depois de alguns copos), parecia possível distinguir um pequeno grupo de homens, separados por séculos, compartilhando uma fidelidade sem peias a uma filosofia sugerida pela etimologia grega da palavra – philo, amor; sophia, sabedoria – um grupo
reunido por um interesse comum em afirmar algumas coisas reconfortantes e práticas sobre as causas das nossas maiores preocupações.
Era para esses homens que eu me voltaria.
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2
Qualquer sociedade tem uma noção sobre aquilo em que deve acreditar e sobre o modo como cada indivíduo se deve comportar para evitar suspeitas e impopularidade. Para algumas dessas convenções sociais
encontramos formulações explícitas num código legal, outras são mais
intuitivamente aceites num mais vasto corpo de juízos éticos e práticos
descritos no seu conjunto como senso comum, que dita o que é que devemos vestir, quais os valores financeiros que devemos adoptar, quem é
que devemos considerar, qual a etiqueta que devemos seguir e qual o
tipo de vida doméstica que devemos escolher. Começar a questionar
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O CONSOLO DA FILOSOFIA
estas convenções poderia parecer bizarro, até mesmo agressivo. Se o
senso comum é excluído das questões, é porque os seus juízos se apresentam manifestamente como demasiado sensíveis para serem considerados como alvos de escrutínio.
Seria dificilmente aceitável, por exemplo, perguntar no decorrer de
uma conversa normal qual é a definição da nossa sociedade sobre a
finalidade do trabalho. Ou pedir a um homem e a uma mulher que
se casaram recentemente para explicarem em detalhe as razões que se
encontram por detrás da sua decisão.
Ou pedir a pessoas em férias para explicarem em pormenor as
razões da sua viagem.
Os antigos Gregos tinham o mesmo número de convenções de
senso comum e também se teriam agarrado a elas de forma tenaz.
Um fim-de-semana, quando bisbilhotava num alfarrabista em Bloomsbury, fui encontrar uma série de livros de história que originalmente se destinavam a crianças, contendo imensas fotografias e belas
ilustrações. A série incluía See Inside an Egyptian Town [Visite uma
cidade egípcia], See Inside a Castle [Visite um castelo] e um volume
que comprei juntamente com uma enciclopédia de plantas venenosas, See Inside an Ancient Greek Town [Visite uma antiga cidade
grega].
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O CONSOLO PARA A IMPOPULARIDADE
Havia informação sobre o modo de vestir que seria considerado
como normal nas cidades-estado da Grécia no século cinco a.C.
O livro explicava que os Gregos tinham acreditado em muitos deuses, deuses do amor, da caça e da guerra, deuses com poderes sobre as
colheitas, o fogo e o mar. Antes de embarcarem em qualquer aventura
rezavam aos seus deuses num templo ou num altar em casa, e sacrificavam animais em sua honra. Era uma prática que se tornava dispendiosa: Atena custava uma vaca; Ártemis e Afrodite uma cabra; Asclépio uma galinha ou um galo.
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O CONSOLO DA FILOSOFIA
Os Gregos aceitavam de bom grado a posse de escravos. No século
cinco a.C, só em Atenas, havia quase que em permanência oitenta a
cem mil escravos, um escravo para cada três homens da população livre.
Os Gregos também foram acentuadamente militaristas, tendo uma
grande adoração pela coragem no campo de batalha. Para ser considerado como um homem adequado, um indivíduo teria que saber
como cortar as cabeças dos adversários. O soldado ateniense terminando a carreira de um Persa (pintura de um prato por alturas da
Segunda Guerra Persa) indicava o comportamento apropriado.
As mulheres encontravam-se totalmente sob o domínio dos seus
maridos e dos seus pais. Não tomavam parte na política ou na vida
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O CONSOLO PARA A IMPOPULARIDADE
pública e não lhes era permitido nem herdar propriedades nem possuir dinheiro. Casavam-se normalmente aos treze anos e os maridos
eram escolhidos pelos pais, sem qualquer consideração pela sua compatibilidade emocional.
Nada disso poderia ter parecido notável para os contemporâneos
de Sócrates. Teriam ficado confusos e irritados se lhes fosse perguntado porque é que sacrificavam galos a Asclépio ou porque é que os
homens precisavam de matar para serem considerados como virtuosos. Teria parecido tão obtuso como pensar porque é que a Primavera
se seguia ao Inverno ou porque é que o gelo era frio.
Mas não é só a hostilidade dos outros que nos poderá impedir de
questionar o status quo. A nossa vontade de duvidar poderá ser também poderosamente minada por um sentimento interior de que as convenções sociais devem ter uma base sólida, mesmo que não estejamos
muito certos das razões pelas quais isto deva acontecer, porque foram
adoptadas por um grande número de pessoas durante muito tempo.
Não parece plausível que a nossa sociedade possa estar profundamente
errada a respeito daquilo que acredita e que ao mesmo tempo esteja-
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mos sozinhos em notar o facto. Abafamos as nossas dúvidas e seguimos
o rebanho porque não somos capazes de nos concebermos como pioneiros do até agora desconhecido, das verdades difíceis.
É a tentativa de ultrapassarmos a nossa docilidade que poderá fazer
com que nos voltemos para o filósofo.
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