Introdução à Lógica

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Introdução à Lógica
Prof. João Borba
A Lógica é a área da filosofia que estuda as inferências.
Quando pensamos a respeito das coisas, fazemos sempre muitas inferências. Mas o que é
fazer uma inferência? Fazer uma inferência é extrair um pensamento de outro. Quando
observamos algum fato ou uma situação, formamos pensamentos a respeito (por exemplo,
formamos uma imagem mental de como esse fato é ou de como essa situação é). Se raciocinamos
e extraímos desses pensamentos uma conclusão — por exemplo a respeito de algum outro fato ou
situação, ou a respeito de como esse mesmo fato ou situação que observamos será o futuro —
estamos fazendo uma inferência. Se deduzimos a partir de um fato ou situação alguma outra coisa,
mesmo que nosso raciocínio ainda não tenha chegado a nenhuma conclusão, também estamos
fazendo uma inferência. Em outras palavras, inferir é raciocinar, ou seja, desenvolver um
pensamento a partir de outro — e portanto podemos dizer que a Lógica estuda como são ou como
devem ser os raciocínios.
Os filósofos perceberam, desde a antiguidade, que mesmo não podendo observar certas
coisas, podíamos descobrir muito sobre elas usando apenas o raciocínio, desde que
raciocinássemos da maneira correta — pois um raciocínio completamente maluco, sem nenhuma
regra de funcionamento, pode chegar a qualquer conclusão, tanto verdadeira quanto falsa, e não
saberá diferenciar o que é verdadeiro do que é falso. Foi a partir dessa noção que Aristóteles
desenvolveu a Lógica. Quando um raciocínio serve para chegar a qualquer conclusão, não
importa qual, os lógicos costumam dizer que é um raciocínio banal, “trivial”, sem nenhuma
importância, porque não ajuda a chegar a conclusões verdadeiras, e continuamos dependendo da
observação para saber se nossas conclusões a partir dele não foram falsas. Mas se encontrarmos
um modo de raciocinar que seja infalível, não precisaremos observar mais nada além do ponto de
partida. Chegaremos a uma conclusão verdadeira usando apenas o raciocínio.
O que existe de especial em certas maneiras de raciocinar para elas não serem “triviais”, é
justamente que elas são tão corretas e bem-estruturadas que são infalíveis: se o ponto partida for
verdadeiro e se seguirmos direito as suas regras de funcionamento, sempre chegaremos em uma
conclusão verdadeira, mesmo que seja um raciocínio longuíssimo, com mais de duzentos
pensamentos encadeados uns aos outros sem fazermos nenhuma experiência ou observação da
realidade no meio do caminho.
Mesmo que sejam mil pensamentos encadeados assim, sem nenhuma experiência ou
observação no meio do caminho para comprová-los, ou dez mil, ou dois milhões — ou quantos
quisermos imaginar — se o ponto de partida foi verdadeiro e as regras de raciocínio forem
perfeitamente estruturadas (e não “triviais”), e forem usadas corretamente do começo ao fim,
chegaremos necessariamente a uma conclusão verdadeira. Hoje em dia os cientistas usam muito a
Lógica, antes e depois de fazerem os seus experimentos em laboratorio, e às vezes vemos em um
filme algum deles anotando uma porção de fórmulas estranhas em uma lousa: são fórmulas
lógicas, que usam o que vai ser explicado nesta apostila. Mas os cientistas nem sempre usam
exatamente a mesma lógica, porque existe uma que é a básica, usada por todos, mas existem
também muitas variações dela e muitas lógicas “alternativas”, às quais um cientista pode recorrer
às vezes, quando a lógica básica não é suficiente para organizar as idéias da teoria que ele está
desenvolvendo. Se essas idéias forem ligadas de uma maneira muito incomum, talvez ele precise
de uma lógica diferente. Mas para poder raciocinar corretamente sobre algum assunto, o cientista
não pode se apoiar só na lógica, ele precisa também dos seus experimentos. A lógica pura sozinha,
sem nenhuma referência às coisas que existem fora dela, não serve para desenvolver qualquer
pensamento a respeito de qualquer coisa que se queira estudar. Uma lógica é sempre feita para
servir especificamente só para um certo tipo de pensamento.
De qualquer modo, se existem lógicas diferentes, isso quer dizer então que, por incrível que
pareça, ao longo da História os filósofos da área de Lógica conseguiram desenvolver,
principalmente a partir do século XIX, muitas formas de raciocínio diferentes umas das outras que
são todas absolutamente infalíveis, apesar de, como já foi dito, sozinhas não servirem para
desenvolvermos qualquer tipo de pensamento, nem pensamentos a respeito de qualquer assunto.
Cada uma delas é perfeita desde que seja utilizada para raciocinarmos sobre o tipo de coisas para o
qual foi feita.
O grande desenvolvimento da lógica no século XIX aconteceu quando ela foi ligada à
matemática. Os filósofos começaram a usar a matemática para criar estruturas de raciocínio
perfeitas — usando principalmente a Teoria dos Conjuntos da matemática. Hoje existe uma
estrutura de raciocínio (apoiada na Teoria dos Conjuntos) que é chamada de Lógica Clássica — se
quisermos chamá-la por um nome mais preciso, podemos dizer que é a Lógica Matemática
Elementar de Primeira Ordem — e quase todos os lógicos a usam como sua principal referência,
seja para concordar com ela, utilizando-a ou aperfeiçoando-a, seja para discordar, propondo
alterações menores ou maiores, ou criando lógicas “alternativas”.
Pode-se perceber, então, que o processo de desenvolvimento da lógica está muito ligado à
nossa capacidade de abstração, ou seja, de abstrair (subtrair, tirar) o nosso pensamento de dentro
do mundo onde existem os conteúdos sobre os quais estamos falando, para lidarmos apenas com
os nossos raciocínios em estado puro, sem dependermos da observação e da experiência, como se
estivéssemos “fora do mundo”. A lógica pura, considerada geralmente a parte mais avançada da
lógica, não se importa nem mesmo com o ponto de partida: não precisamos nem mesmo saber de
quê se trata, ou sobre o quê estamos raciocinando afinal, desde que saibamos que é algo
verdadeiro — que podemos chamar por exemplo de “x”, usando uma variável, como na
matemática.
Isso quer dizer que a lógica procura se abstrair dos conteúdos, ou seja, afastar-se deles,
ignorá-los, para trabalhar apenas com a forma dos raciocínios. Por isso dizemos que a lógica é
formal: ela procura desenvolver raciocínios apenas e puramente formais, é a área mais abstrata de
toda a filosofia, e ao mesmo tempo, curiosamente, a mais prática. É a partir da lógica que surgiram
as linguagens usadas na programação de computadores, por exemplo. Na verdade, essa idéia de se
inventar uma língua que sirva para dizer coisas matematicamente exatas, com absoluta precisão,
foi criada e desenvolvida justamente pelos lógicos do século XIX, e é exatamente o que mais
caracteriza a principal atividade dos lógicos de hoje: são manipuladores e desenvolvedores de
linguagens formais, criadas e estruturadas especialmente para o desenvolvimento de raciocínios
corretos, capazes de chegar a conclusões verdadeiras que não precisam ser checadas pela
observação. E essas linguagens artificiais geralmente são muito mais simples do que a linguagem
natural que costumamos usar no nosso dia-a-dia para nos comunicarmos (por exemplo o
português, no caso do Brasil).
Na Lógica Clássica, todas as palavras e todos os nomes que servem para reconhecermos
alguma coisa são letras isoladas, “a”, “b”, “c” etc. Se quisermos lembrar o que significam (coisa
que para os lógicos nem sempre é necessária), podemos fazer um índice e consultá-lo sempre que
preciso, indicando o que cada letra quer dizer. Algumas letras serão as variáveis (como na
matemática) — por exemplo “x”, “y” e “z”. As variáveis não são nomes de nada especificamente,
funcionando como espaços em aberto podem ser “preenchidos” por significados diferentes,
dependendo do caso, como na matemática. Todas essas letras minúsculas costumam ser chamadas
pelos lógicos de “termos”.
Quando queremos dizer que alguma coisa tem uma característica, ou está relacionada com
outra de certa maneira, usamos uma letra maiúscula para indicar essa característica — por
exemplo “G” para dizer que algo é “grande”, ou “M” para dizer que alguma coisa é “maior do
que” outra. Então, “Ga” quer dizer que aquilo que estamos chamando de “a” é “grande”, e “Mab”
quer dizer que aquilo que estamos chamando de “a” é “maior do que” aquilo que chamamos de
“b”. E assim por diante. Os lógicos costumam chamar essas características e relações de
“predicados”. A lógica trabalha, então, com termos e com predicados a respeito desses termos. As
letras minúsculas e maiúsculas, que usamos para esses termos e predicados, simplificam a
descrição das coisas de uma maneira que fiquem mais “formais”, menos ligadas ao conteúdo, para
poderem sem melhor utilizadas na lógica.
Mas existem alguns predicados na lógica que são especiais. São chamados de predicados
lógicos, e ajudam a garantir a perfeição dos raciocínios, porque servem para raciocinarmos a
respeito das coisas e não só para simplificarmos a descrição delas e transformá-las em abstrações
formais. Na Lógica Clássica, os predicados lógicos são apenas 7: negação (¬), conjunção (&),
disjunção (−), implicação (), co-implicação (↔), quantificação existencial (x) e quantificação
universal (…x). Cada um deles tem um símbolo, que geralmente é aquele que está indicado nos
parênteses. Mas o que querem dizer essas coisas?
O símbolo “¬” quer dizer “não”. Então, quando um lógico diz “¬Ga”, ele está dizendo que
não existe a característica “G” naquilo que chamamos de “a”, e quando diz “¬Mab”, está dizendo
que não existe a relação “M” entre aquilo que chamamos de “a” e aquilo que chamamos de “b” (se
“M” é a relação “...é maior do que...”, “¬Mab” significa que “a” não é maior do que “b”).
O símbolo “&” quer dizer “e”, e se o lógico diz “Gb & Mab”, está dizendo que “b” tem a
característica “G” e a relação que existe entre “a” e “b” é aquela que chamamos de “M”, ou seja,
as duas coisas são verdadeiras conjuntamente (por isso o operador lógico “&” é chamado de
“conjunção”).
O símbolo “−” (disjunção) quer dizer “e/ou”. Quando o lógico diz “Ga − Gb”, quer dizer
que ou “a” tem a característica “G”, ou “b” é que tem essa característica, ou então “a” e “b” têm
essa característica ao mesmo tempo.
O símbolo “” (implicação) quer dizer que uma coisa implica outra, ou seja, “se...,
então...”. Isso quer dizer que se (e somente se) tal coisa é verdadeira, então podemos dizer que tal
outra também é. Quando o lógico diz “Ga Gb”, está dizendo que se, e somente se, “a” tem a
característica “G”, é que poderemos dizer que “b” também tem essa característica, ou seja, “b” só
tem a característica “G” se “a” tiver essa característica. O segundo termo da fórmula (“b”) depende
do primeiro (“a”) — os lógicos costumam dizer que o segundo termo “está condicionado” ao
primeiro, porque o primeiro é que determina as condições do segundo).
O símbolo “↔” (co-implicação) quer dizer que os dois termos se implicam mutuamente. É
como se tivéssemos “” e ao mesmo tempo “”, e o resultado disto acaba sendo muito parecido
com o do operador “=” da matemática, por isso às vezes os lógicos chamam a co-implicação de
“equivalência”.
Os quantificadores (…x e x) são colocados sempre no começo de uma fórmula, e servem
para dizer se alguma coisa vale para todos os termos de uma fórmula ou para pelo menos um dos
termos da fórmula. “…x” quer dizer “para todo x vale o que está dito na fórmula que vem depois
do(s) quantificadore(s)” e “x” quer dizer “existe pelo menos um x para o qual vale o que está dito
na fórmula que vem depois do(s) quantificadore(s)”.
Então, se por exemplo o lógico diz “…xyy (Gx & Pxyz)”, está dizendo que para todo “x”
e para todo “y” (ou seja, para qualquer coisa que coloquemos no lugar da variável “x” e qualquer
coisa que coloquemos no lugar da variável “y”), vale a fórmula “Gx & Pxyz” (ou seja, “x” terá a
característica “G” e ao mesmo tempo existirá a relação “P” entre “x”, “y” e “z”); e que além disto,
existe pelo menos uma coisa que, se a colocarmos no lugar da variável “z”, a mesma fórmula vale
para ela. Parece complicado, mas se notarmos que não chegamos nem em dez páginas e já
explicamos quase toda a “gramática” dessa linguagem formal que é a Lógica Clássica,
perceberemos que ela incomparavelmente mais mais simples do que a língua portuguesa que
falamos todos os dias, por exemplo. A única dificuldade é que não estamos acostumados a usar a
linguagem lógica o tempo todo.
A lógica, traduzindo os nossos pensamentos nessa sua linguagem, constrói “fórmulas” de
raciocínio e faz “cálculos” com essas fórmulas para extrair conclusões ou examinar se elas são
verdadeiras ou falsas sem precisar recorrer à experiência e à observação do mundo. Os predicados
lógicos ( “¬”, “&”, “−”, “”, “↔”, “x” e “…x”) ajudam a fazer esses cálculos, por isso, às vezes
eles também são chamados de “operadores lógicos”, como aqueles operadores que servem para
fazermos operações na matemática (“+”, “–” etc.).
De que maneira são feitos esses cálculos?
Os lógicos fixaram uma tabela de verdade para cada um desses predicados lógicos, com os
sinais “V”, de “verdadeiro”, ou “F” de “falso” indicando em que situação um raciocínio feito com
eles leva a uma conclusão verdadeira e em que situação leva a uma conclusão falsa. Não vamos
detalhar isso aqui, mas só para termos um exemplo, vejamos as tabelas da negação e da
conjunção.
Quando dizemos alguma coisa, o que estamos dizendo pode ser verdadeiro ou falso,
portanto, a princípio existem duas possibilidades. Vamos chamar isso que estamos dizendo de “S”.
É possível que “S” seja verdadeiro ou falso (V ou F). Se “S” for verdadeiro, a negação de “S” (ou
seja, “¬S”) deve automaticamente ser falsa, e vice-versa, e não precisamos observar nada no
mundo ou fazermos alguma experiência para termos certeza disso. Então, a tabela de verdade da
negação é:
S
V
F
¬S
F
V
No caso da conjunção (&), se dizemos dizemos duas coisas conjuntamente (vamos chamálas de “S” e “T”), o conjunto do que estamos dizendo só será verdadeiro se as duas coisas forem
verdadeiras. Se uma for falsa, o conjunto “S & T” é falso.
Por exemplo: se dizemos “Sócrates foi um filósofo da China antiga e Haroldo é filósofo
também”, isso é verdadeiro ou falso? Não conhecemos Haroldo para saber, mas isso para o lógico
não importa, o que importa é a forma daquilo que dissemos, ou seja, que o que dissemos é
composto por duas afirmações (uma sobre o termo “Sócrates”, dizendo que ele tem a característica
“filósofo da China antiga” e outra sobre o termo “Haroldo”, dizendo que ele tem a característica
“filósofo”).
Se chamássemos Sócrates de “s”, Haroldo de “h”, a característica “filósofo da China
antiga” de “C” e a característica “filósofo” por exemplo de “P” (a letra não precisa ter dada a ver
necessariamente com o nome original), a tradução disto para a lógica seria “Cs & Ph”. Essa
fórmula — “Cs & Ph” — pode ser verdadeira ou falsa. Mas ela é composta por outras duas
fórmulas (outras duas afirmações) e cada uma delas também pode ser verdadeira ou falsa (V ou F).
Para fazer a tabela, temos de considerar todas as possibilidades.
Mas como essa deve ser a tabela de verdade do operador “&” em qualquer coisa que
dissermos usando esse operador, e não só para isso que dissemos, ao invés de “Gs” e “Ph” vamos
dizer “R” para qualquer coisa que venha antes do “&” em uma fórmula (que neste caso
especificamente seria “Cs”), e “S” para qualquer coisa que venha depois do “&” (que neste caso
especificamente seria “Ph”). Então, a tabela de verdade da conjunção “&” seria:
R
V
V
F
F
S
V
F
V
F
R&S
V
F
F
F
Ou seja, se “R” (a primeira parte do que dissemos) é verdadeiro e “S” (a segunda parte)
também é verdadeiro, então o conjunto do que dissemos (“R&S”) é verdadeiro. Se a primeira parte
do que dissemos (“R”) é verdadeira, mas a segunda parte (“S”) é falsa, então o conjunto do que
dissemos é falso, e assim por diante. No caso específico daquilo que dissemos, sabemos por
observação da realidade (ou pelo que os historiadores e filósofos observaram na realidade) que é
falso que Sócrates foi um filósofo da China antiga, porque ele era grego, e não chinês, mas não
conhecemos Haroldo. Então sabemos de saída que “R” é falso, mas não sabemos de “S”. Mesmo
assim, se “R” é falso, só sobram duas alternativas: ou “S” também é falso (no caso de Haroldo não
ser filósofo como dissemos), ou “S” é verdadeiro, mas basta olharmos a tabela para percebermos,
sem precisarmos observar mais nada na realidade, que em qualquer um dos dois casos “R&S” é
falso.
É desse modo que funcionam os cálculos da lógica.
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