3/5/2016 Revista Conceito Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa Conceito. Revista de Filosofia e Ciências do Homem Concept. Journal of Philosophy and Human Sciences Editorial, José Luís Câmara Leme e Nuno Nabais Dossier Loucura e Desrazão: Apresentação, Nuno Nabais ­ p. 13 A Desrazão, O Cristianismo e o Homem Europeu. Um programa esquecido na filosofia de Michel Foucault, José Luís Câmara Leme ­ p. 19 A Constituição da Psiquiatria no Brasil, Roberto Machado ­ p. 53 Juliano Moreira e a Metamorfose da Psiquiatria Brasileira, Vera Portocarrero ­ p. 69 Vozes da Desrazão no Teatro da Loucura, Peter Pál Pelbart ­ p. 101 Fulgurações do Teatro em Histoire de la folie, Nuno Melim ­ p. 113 A Loucura Feminina nos Inícios do Séc. XX: Dois estudos de caso, Rita Garnel ­ p. 127 Um Ensaio sobre a Escrita: Húmus, de Raul Brandão, Patrícia San Payo ­ p. 143 Da Histeria à Neurastenia (Quental e Pessoa), Jerónimo Pizarro Jaramillo ­ p. 167 O Governo da Real Casa Pia de Lisboa (1780­1807), José Subtil ­ p. 183 OInconsciente na Filosofia de F. W. J. Schelling, Teresa Pedro ­p. 205 Conversações A Obra de Foucault. Entrevista com Antonio Negri ­ p. 227 Entre o Anjo e a Besta. Entrevista com António Vieira ­ p. 241 Recensões Peter Szondi, Ensaio sobre o Trágico, Victor Gonçalves ­ p. 253 Mauro Carbone, Una deformazione senza precedenti, Davide Scarso ­ p. 259 Clássicos "Loucura", Voltaire ­ p. 265 Editorial Conceito é uma revista de Filosofia e Ciências do Homem. Ela resulta da colaboração entre dois centros, o Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa file:///C:/Users/mmira/Desktop/Revista%20Conceito.html 1/4 3/5/2016 Revista Conceito e o Centro de História e Filosofia da Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Aqui a Filosofia toma para si a tarefa de criar e esclarecer um espaço onde as realidades do humano ­ e do inumano se tornem ao mesmo tempo um problema, programa e facto de conhecimento. Há movimentos de interdisciplinaridade que resultam apenas do encontro e cruzamento de saberes. Fundados na boa vontade e na curiosidade, nunca chegam a efectivar­se na constituição de um domínio de estudo preciso. Carecem de uma ontologia própria, de um plano de entendimento comum, e de um mesmo critério de inteligibilidade dos seus objectos. É muitas vezes o trabalho do conceito que permite passar dessa aspiração à coisa mesma. Mais do que um termo no interior de um léxico, e menos do que uma tese numa teoria, o conceito recorta territórios da experiência segundo pregnâncias descritivas e explicativas que podem ser partilhadas por modelos diferentes de conhecimento. Por isso, a criação de conceitos é sempre um exercício a várias vozes. Se define o trabalho por excelência da filosofia, na procura da boa definição e da iluminação exacta, a criação de conceitos só cumpre essa tradição inventada por Platão e Aristóteles se nela se vierem cristalizar as percepções das ciências do nosso tempo. Compreende­se que as grandes revoluções científicas tenham sido quase sempre acontecimentos interdisciplinares em torno de novos conceitos. Desde o conceito de infinito da revolução copernicana, ao conceito de inteligência artificial das ciências cognitivas, o nosso conhecimento cresce ao ritmo do conceito. E esses conceitos têm sempre a forma de uma polifonia. Talvez o vazio teórico que nos últimos 20 anos se vem instalando no interior das ciências do homem seja também a consequência de uma demissão da filosofia da sua vocação para recortar com rigor territórios desse pensável que habita os campos inevitavelmente interdisciplinares da sociologia, da antropologia, da psiquiatria, da linguística, da teoria da literatura, da história, do direito ou da economia. O programa da revista é assim o do anfitrião cortês: o que abre as portas da sua casa e solicita os convidados a dialogar entre si e se participa no diálogo, fá­lo sempre como se também de outro convidado se tratasse. Esta casa chama­se Conceito. José Luís Câmara Leme e Nuno Nabais Dossier ­ Loucura e Desrazão: Apresentação O primeiro número da revista CONCEITO implicou a colaboração entre filósofos, psiquiatras, historiadores e estudiosos da literatura. Procuramos fazer uma história das representações da loucura em Portugal, acompanhando dois domínios: aquele que pertence à história propriamente dita, e que se dirige aos arquivos dos asilos e à bibliografia médica, e aquele outro que procura reconstituir genericamente as representações do louco, quer positivamente enquanto um modo da condição humana, quer negativamente, como o outro da razão. Por isso escolhemos para este primeiro conjunto de trabalhos o título de "Loucura e Desrazão". No plano institucional este número da revista apresenta parte do material que se tem produzido no interior do projecto de investigação Psiquiatria e Fenomenologia na primeira metade do Século XX em Portugal, do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, criado em 2003. Mas é o prolongamento de um outro, com o título História da Loucura em Portugal, igualmente financiado pela FCT, e que se desenrolou entre 1999 e 2001 no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Desde o início que os colaboradores deste projecto se confrontaram com uma questão prévia: será que, em Portugal, se verifica essa mesma correlação entre a história da psiquiatria e a história das representações da razão e da verdade que Michel Foucault descobriu estar na origem da consciência moderna? Haverá algum paralelo entre as metamorfoses da figura do louco, tal como se constituem nos tratados médicos portugueses, e as diferentes aproximações à ideia de humano que atravessam o ensaísmo disperso dos nossos pensadores? A resposta só pode ser negativa. No plano da análise da intersecção directa dos domínios, o ensaísmo e a psiquiatria portuguesas foram quase indiferentes entre si. A psiquiatria em Portugal, respondeu genericamente a um princípio de actualização de conhecimentos e de eficácia terapêutica, colocando algumas vezes os nossos investigadores na condição de pioneiros. Apesar de estar permanentemente marcada pelas questões antropológicas da consciência e da racionalidade, e atenta sempre à transformação dos modelos de explicação e de verdade produzidos pela filosofia do seu tempo, a psiquiatria portuguesa nunca se reclamou dos trabalhos de ensaio ou de história da filosofia escritos em Portugal. Os pensadores que em Portugal se reclamavam da ideia de filosofia, pelo seu lado, sempre se alimentaram de uma soberana indiferença, não só pelo trabalho das ciências positivas, como pelos adquiridos dos programas teóricos que foram surgindo no centro da Europa. Assim se explica que alguns dos textos que hoje reconhecemos como parte da história do que seria o "pensamento português" tenham sido escritos por médicos file:///C:/Users/mmira/Desktop/Revista%20Conceito.html 2/4 3/5/2016 Revista Conceito alienistas. Júlio de Matos continua a ser paradigmático, mas também Miguel Bombarda, Egas Moniz, Barahona Fernandes, Sobral Cid ou, mais recentemente, Coimbra de Matos. Também é reveladora a ausência nas obras do ensaismo português de ressonâncias antropológicas, estéticas, políticas ou culturais de algumas mutações decisivas do campo clínico que se verificaram em Portugal nos últimos 100 anos. A chamada "filosofia portuguesa" foi totalmente indiferente às questões da loucura, mesmo quando a loucura aparecia como explicação para alguns casos marcantes da cultura contemporânea ­ Nietzsche, Strindberg, Van Gogh, ou, na literatura portuguesa, Antero de Quental, Manuel Laranjeira, Mário de Sá Carneiro. A superficialidade com que alguns autores trataram o tema da loucura como Leonardo Coimbra ou Teixeira de Pascoaes ­ deixa perceber alguns dos factores da pobreza da tradição do ensaísmo em Portugal. Pode mesmo dizer­se que a exclusão do tema da loucura no pensamento filosófico de Portugal teve um efeito devastador. Apagando da sua agenda a loucura, o pensamento português exclui­se de alguns dos problemas centrais da cultura contemporânea. Isso significa que o que se foi escrevendo entre nós sobre a loucura do ponto de vista especulativo só tem uma utilidade em negativo. Nenhum texto que reclame da ideia de filosofia escrito por autores portugueses faz parte de algum capítulo de uma história da loucura em Portugal. As derivas poéticas sobre a vida interior do louco que se encontram nas obras de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra não excedem o regime de uma consciência irónica da razão que se encontrava já em O Elogio da Loucura de Erasmo. Nenhum dos nomes que hoje se pretendem elevar a património do pensamento português se demorou com rigor nas questões da loucura, como doença mental, ou da desrazão como uma outra forma da experiência. Por isso, tudo o que existe sobre a loucura em Portugal pertence ao campo médico, e tenuemente ao campo literário. Torna­se quase impossível fazer em Portugal uma história da loucura que não se limite aos arquivos dos asilos, à evolução da doutrina psiquiátrica, ou à ficção de uma racionalidade excêntrica ou extravagante. O projecto que orienta este número da CONCEITO parte de duas convicções: a) a urgência de reconstituição dos principais paradigmas que orientaram a psiquiatria e a prática dos asilos em Portugal e, b) da necessidade de recorrer a modelos filosóficos exteriores ao espaço do ensaísmo português para compreender a instauração clínica e antropológica da loucura em Portugal. Isso faz com que o nosso projecto se oriente por três linhas nem sempre convergentes. Uma, que se inscreve integralmente num trabalho de arquivo, outra que acompanha alguns textos paradigmáticos da literatura portuguesa contemporânea, e uma terceira que arranca de Foucault e procura utilizá­lo como ferramenta para a leitura desse arquivo médico e dessa tradição literária. No primeiro domínio, os campos de trabalho têm sido os seguintes: 1. descrições pessoais de formas de sofrimento mental, 2. legislação sobre o encarceramento da loucura a partir do sec. XVII. 3. análise do regime de práticas perante a loucura e a progressiva constituição da ciência médica da loucura. Aqui se situam os trabalhos de José Subtil e Rita Garnel, aqui publicados. No plano do que seria uma teoria da cultura portuguesa temos procurado construir a história das representações literárias da loucura (Antero de Quental, Teixeira de Pascoais, Manuel Laranjeira, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Raul Brandão, Raul Proença). Neste número publicamos os estudos de Patrícia San Payo e de Jerónimo Pizarro ­ dedicados a Raul Brandão, o primeiro, e a Antero de Quental e Fernando Pessoa, o segundo. No domínio filosófico procura­se determinar a função e o lugar da loucura no pensamento de Michel Foucault e, desse modo, precisar o papel que o pensamento da loucura aí desempenhou de crítica e de inversão da tradição filosófica. Atravessamos aqui domínios tão vastos e nucleares como a constituição do saber e da verdade, a elaboração do campo transcendental, os limites (e o alargamento) da razão. Os trabalhos de José Luís Câmara Leme e de Nuno Melim pertencem a este domínio. Cada vez se torna mais clara a necessidade, para a compreensão do "caso" português, dos muitos trabalhos já feitos sobre a história da psiquiatria no Brasil. Ali, a problematização dos textos dos médicos alienistas, das práticas terapêuticas, dos regimes jurídicos sobre internamento compulsivo, ou sobre inimputabilidades, tem já uma imensa tradição. As visitas que Foucault fez ao Brasil, e os vínculos que aí estabeleceu com alguns dos pensadores mais significativos da comunidade filosófica e psiquiátrica, permitiu que se fosse escrevendo, não apenas o que pode ser considerado uma versão tropical da História da Loucura na Idade Clássica, mas sobretudo uma visão política e epistemológica das grandes instituições e dos grandes textos sobre a loucura escritos em língua portuguesa. Nesses estudos é possível detectar dispositivos comuns em Portugal e no Brasil de explicação das patologias mentais tal como eles surgem na literatura, nas doutrinas jurídicas, nos tratados escolares de psicologia, nas obras de filosofia. É neste sentido que incluímos neste conjunto de trabalhos sobre "Loucura e Desrazão" contributos de investigadores brasileiros como Roberto Machado, Peter Pál Pelbart e Vera Portocarrero. file:///C:/Users/mmira/Desktop/Revista%20Conceito.html 3/4 3/5/2016 Revista Conceito Dois outros textos ajudam a compreender a arqueologia do tema da loucura no pensamento contemporâneo. Trata­se de um estudo sobre o conceito de "inconsciente" em Schelling, escrito por Teresa Pedro, e da entrada "Loucura" que Voltaire escreveu para o seu Dicionário Filosófico, traduzida por Nuno Melim. Em números posteriores da revista esperamos publicar outros estudos sobre o tema da loucura e desrazão. Queremos alargar este trabalho interdisciplinar para além do que se vem fazendo no interior do projecto Fenomenologia e Psiquiatria. Contamos que a comunidade dos que se dedicam à filosofia, ao direito, à história, à teoria da literatura, à psiquiatria, à sociologia, ou à antropologia, se venha a reconhecer no(a) CONCEITO. Nuno Nabais file:///C:/Users/mmira/Desktop/Revista%20Conceito.html 4/4